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Modos de vida e organização do trabalho de agentes comunitários de saúde de unidades fluviais na Amazônia

Ways of life and work organization of community health workers of river units in the Amazon, Brazil

Formas de vida y organización del trabajo de los agentes de salud comunitaria de las unidades fluviales en la Amazonía, Brasil

Resumo

O artigo analisa modos de vida e organização do trabalho de agentes comunitários de saúde que atuam em comunidades rurais atendidas por Unidade Básica de Saúde Fluvial, no município de Manaus. Foram investigados atividades e desafios cotidianos desses profissionais, interação com as famílias atendidas, vínculos com as comunidades e com o ambiente natural. Pesquisa qualitativa exploratória realizada em 17 comunidades rurais ribeirinhas distribuídas na margem esquerda do Rio Negro, ao longo de 190 quilômetros. A coleta de dados em 2021 e 2022 abrangeu entrevista semiestruturada, questões escalonadas de apego ao lugar e observação participante da atuação dos agentes comunitários de saúde. Os resultados mostraram que a qualificação dos agentes atende às principais demandas do trabalho cotidiano em meio rural. O tempo de experiência mostrou-se relevante no cargo, indicando robusto conhecimento da natureza e apego ao lugar/comunidade, estabelecido por vínculos de parentesco, identificação e conhecimento do ambiente natural. Eles reconstroem práticas intersetoriais, priorizando intervenções associadas aos determinantes sociais, micropolíticos e culturais do processo saúde-doença e à participação na vida comunal em domicílios acessados exclusivamente por deslocamento fluvial e espalhados num vasto território. O trabalho administrativo intramuros foi interpretado como desvio de função e afastamento das interações cotidianas nos domicílios gerando insatisfação e desmotivação desses trabalhadores.

Palavras-chave:
saúde da população rural; atenção primária à saúde; unidade básica saúde fluvial; agente comunitário de saúde

Abstract

The article analyzes ways of life and organization of work of community health workers working in rural communities served by Basic Fluvial Health Unit, in the city of Manau, Brazil. Daily activities and challenges of these professionals were investigated, interaction with the families served, links with the communities and with the natural environment. Exploratory qualitative research conducted in 17 rural riverside communities distributed on the left bank of Rio Negro, along 190 kilometers. Data collection in 2021 and 2022 covered semi-structured interviews, staggered issues of attachment to the place and participant observation of the performance of community health workers. The results showed that the qualification of these workers meets the main demands of daily work in rural areas. The time of experience was relevant in the position, indicating robust knowledge of nature and attachment to the place/community, established by kinship links, identification and knowledge of the natural environment. They rebuild intersectoral practices, prioritizing interventions associated with social, micropolitical and cultural determinants of the health-disease process and participation in communal life in households accessed exclusively by river displacement and spread across a vast territory. The intramural administrative work was interpreted as deviation of function and removal of daily interactions in households, generating dissatisfaction and demotivation of these workers.

Keywords:
rural population health; primary health care; basic river health unit; community health worker

Resumen

El artículo analiza las formas de vida y organización del trabajo de los agentes comunitarios de salud que trabajan en comunidades rurales atendidas por la Unidad Básica de Salud Fluvial, en la ciudad de Manaus, Brasil. Se investigaron las actividades cotidianas y los desafíos de estos profesionales, la interacción con las familias atendidas, los vínculos con las comunidades y con el entorno natural. Investigación cualitativa exploratoria realizada en 17 comunidades ribereñas rurales distribuidas en la margen izquierda del Río Negro, a lo largo de 190 kilómetros. La recolección de datos en 2021 y 2022 abarcó entrevistas semiestructuradas, temas escalonados de apego al lugar y observación participante del desempeño de los agentes comunitarios de salud. Los resultados mostraron que la calificación de los agentes cumple con las principales demandas del trabajo diario en las zonas rurales. El tiempo de experiencia fue relevante en la posición, indicando un sólido conocimiento de la naturaleza y el apego al lugar/comunidad, establecido por vínculos de parentesco, identificación y conocimiento del medio natural. Reconstruyen las prácticas intersectoriales, priorizando las intervenciones asociadas a los determinantes sociales, micropolíticos y culturales del proceso salud-enfermedad y la participación en la vida comunal en los hogares a los que se accede exclusivamente por desplazamiento fluvial y que se extienden por un vasto territorio. El trabajo administrativo intramuros fue interpretado como desviación de función y eliminación de interacciones diarias en los hogares, generando insatisfacción y desmotivación de estos trabajadores.

Palabras-clave:
agente de salud de la población rural; atención primaria de salud; unidad básica salud fluvial; agente comunitario de salud

Introdução

Em que pese a extensão de cobertura da atenção básica proporcionada pelo Sistema Único de Saúde (SUS) nas últimas décadas, foram pouco efetivos os passos dados no intento de superar lacunas nas políticas de saúde para as populações rurais (Fausto et al., 2022FAUSTO, Márcia C. et al. Sustentabilidade da atenção primária à saúde em territórios rurais remotos na Amazônia fluvial: organização, estratégias e desafios. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 27, n. 4, p. 1.605-1.618, 2022. https://doi.org/10.1590/1413-81232022274.01112021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/zZdBtL6QPw35vSPYz75XRPv/abstract/?lang=pt. Acesso em: 9 nov. 2022.
https://www.scielo.br/j/csc/a/zZdBtL6QPw...
). Nesse sentido, ganha destaque a Política Nacional de Atenção Básica nas suas versões de 2011 e 2017, que apresentaram especificidades direcionadas à saúde rural, em particular para localidades de acesso exclusivamente fluvial, resultando na implantação das Unidades Básicas de Saúde Fluvial (UBFSs) que visam estender a cobertura a locais de difícil acesso na Amazônia e no Pantanal (Garnelo et al., 2018GARNELO, Luiza et al. Acesso e cobertura da Atenção Primária à Saúde para populações rurais e urbanas na região norte do Brasil. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 42, p. 81-99, 2018. https://doi.org/10.1590/0103-11042018S106. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/3tZ6QRxxTsPJNj9XwDftbgS/. Acesso em: 25 out. 2023.
https://www.scielo.br/j/sdeb/a/3tZ6QRxxT...
; El Kadri et al., 2019EL KADRI, Michele et al. Unidade básica de saúde fluvial: um novo modelo da atenção básica para a Amazônia, Brasil. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 23, e180613, 2019. https://doi.org/10.1590/Interface.180613. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/jJWLyMsndVmG3N9BTc5M4GG/. Acesso em: 25 out. 2023.
https://www.scielo.br/j/icse/a/jJWLyMsnd...
; Garnelo et al., 2020GARNELO, Luiza et al. Barriers to access and organization of primary health care services for rural riverside populations in the Amazon. International Journal for Equity in Health, v. 19, p. 19-54, 2020. Disponível em: https://equityhealthj.biomedcentral.com/articles/10.1186/s12939-020-01171-x. Acesso em: 25 out. 2023.
https://equityhealthj.biomedcentral.com/...
; Brasil, 2006BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n. 648 de 28 de março de 2006. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica para o Programa Saúde da Família (PSF) e o Programa Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 29 mar. 2006.).

Os agentes comunitários de saúde (ACSs) são imprescindíveis à implementação da Estratégia Saúde da Família, sendo a primeira linha de atenção aos que buscam cuidados na rede básica (Lopes et al., 2022LOPES, Fernanda et al. Condições de trabalho e saúde dos agentes de saúde: uma revisão integrativa. Research, Society and Development, v. 11, n. 3, e50911326585, 2022. http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v11i3.2658.
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.334...
; Riquinho et al., 2018RIQUINHO, Deise et al. O cotidiano de trabalho do Agente Comunitário de Saúde: entre a dificuldade e a potência. Trabalho Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 16 n. 1, p. 163-182, 2018. https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00086. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/pSkqkSzg9bG39YmZyMzdtwR/abstract/?lang=pt. Acesso em: 25 out. 2023.
https://www.scielo.br/j/tes/a/pSkqkSzg9b...
; Santos et al., 2015SANTOS, Michele et al. Desafios enfrentados pelos agentes comunitários de saúde na estratégia de saúde da família. Revista Inova Saúde, Santa Catarina, v. 4, n.1, p. 26-46, 2015. https://doi.org/10.18616/is.v4i1.1765. Disponível em: https://periodicos.unesc.net/ojs/index.php/Inovasaude/article/view/1765. Acesso em: 25 out. 2023.
https://periodicos.unesc.net/ojs/index.p...
). Como em outros campos da política de saúde no Brasil, são restritos os estudos sobre ACSs que atuam em contextos rurais, em particular aqueles que trabalham em espaços amazônicos (Lima et al., 2021LIMA, Juliana et al. O processo de trabalho dos agentes comunitários de saúde: contribuições para o cuidado em territórios rurais remotos na Amazônia, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 37, n. 8, e00247820, 2021. https://doi.org/10.1590/0102-311X00247820. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/wtrkTyL7qTmDC4gqftX7B3N/abstract/?lang=pt. Acesso em: 12 jul. 2021.
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; Fausto et al., 2022FAUSTO, Márcia C. et al. Sustentabilidade da atenção primária à saúde em territórios rurais remotos na Amazônia fluvial: organização, estratégias e desafios. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 27, n. 4, p. 1.605-1.618, 2022. https://doi.org/10.1590/1413-81232022274.01112021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/zZdBtL6QPw35vSPYz75XRPv/abstract/?lang=pt. Acesso em: 9 nov. 2022.
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).

Na Amazônia, a diversidade dos espaços e as singularidades de sua sociodiversidade coexistem com elevados indicadores de vulnerabilidade social e sanitária e com distribuição limitada de serviços de saúde. Somadas, tais variáveis instituem desafios adicionais à oferta de cuidados resolutivos e adequados às condições de vida (Bousquat et al., 2022BOUSQUAT, Aylene et al. Remoto ou remotos: a saúde e o uso do território nos municípios rurais brasileiros. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 56, p. 73, 2022. https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2022056003914. Disponível em: https://rsp.fsp.usp.br/artigo/remoto-ou-remotos-a-saude-e-o-uso-do-territorio-nos-municipios-rurais-brasileiros/. Acesso em: 25 out. 2023.
https://rsp.fsp.usp.br/artigo/remoto-ou-...
; Correia, 2020CORREIA, Priscilla C. Sistema de auto atenção e vivências da gestação em uma comunidade rural do Amazonas. 2020. 151 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Instituto Leônidas e Maria Deane, Fundação Oswaldo Cruz, Manaus, 2020. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/handle/icict/47864/Disserta%c3%a7%c3%a3o%20Priscilla%20Cabral%20Correia.pdf?sequence=2&isAllowed=y. Acesso em: 25 out. 2023.
https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/ha...
; Sousa et al., 2022SOUSA, Amandia B. et al. Primary health care in the Amazon and its potential impact on health inequities: a scoping review. Rural and Remote Health, p. 1-15, 2022. https://doi.org/10.22605/RRH6747. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/34973683/. Acesso em: 25 out. 2023.
https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/34973683...
).

O município de Manaus, capital do Amazonas, tem características mistas, pois se assenta em uma área de 11.401 km², dos quais 10.968 km² (96% da área total) correspondem à zona rural do município. O tecido urbano, com 433,37 km², concentra 2.053.000 habitantes com uma densidade demográfica (DD) de 4.337 ha/km². Já a área rural tem a baixa DD de 0,9 ha/km², com aproximadamente 10.000 habitantes, uma fração dispersa em assentamentos ao longo de três rodovias que levam a municípios limítrofes e aos ramais que adentram a selva circundante. Outra modalidade de assentamentos são os de acesso exclusivamente fluvial à montante e à jusante dos rios Negro e Amazonas e seus afluentes (Brasil, 2020BRASIL. Ministério do Planejamento, orçamento e gestão. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Atlas do espaço rural brasileiro. Rio de Janeiro: IBGE , 2020. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/busca.html?searchword=%C3%81REA+RURAL+DE+mANAUS,%202020. Acesso em: 14 jul 2021.
https://www.ibge.gov.br/busca.html?searc...
).

Apesar da relativa proximidade com Manaus, populações da zona rural enfrentam dificuldades de acesso à sede municipal, onde se concentra a maioria dos serviços de saúde. Nos assentamentos rurais, os ritmos da vida são ditados pelo regime de cheias e vazantes dos rios, predominando dificuldades típicas do rural amazônico como ausência de linhas regulares de comunicação e de transporte, grandes distâncias e longas horas de viagem para obter atendimento à saúde, efetuar compras, acessar a rede bancária e comercializar produtos (Sousa, Monteiro e Bousquat, 2019SOUSA, Amandia B.; MONTEIRO, Iago; BOUSQUAT, Aylene. Atenção primária à saúde em áreas rurais amazônicas: análise a partir do planejamento do distrito de saúde rural de Manaus. In: SCHWEICKARDT, Júlio C.; EL KADRI, Michele R.; LIMA, Rodrigo T. S. (org.). Atenção básica na região Amazônica: saberes e práticas para o fortalecimento do SUS. Porto Alegre: Rede Unida, 2019. p.71-91. ; Garnelo, Sousa e Oliveira, 2017GARNELO, Luiza; SOUSA, Amandia B.; SILVA, Clayton O. Regionalização em Saúde no Amazonas: avanços e desafios. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 22, p. 1.225-1.234, 2017. https://doi.org/10.1590/1413-81232017224.27082016. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/j77vcsPR76Hxb6zjPzD9bHS/abstract/?lang=pt. Acesso em: 25 out. 2023.
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).

Frente a esse cenário, o sistema de saúde de Manaus se vê obrigado a organizar rotinas de atendimento para modalidades típicas de vida urbana e, simultaneamente, prover serviços e ações de saúde direcionados às populações interioranas, minoritárias e invisibilizadas, cujos modos de vida têm características de ruralidade até mesmo do rural remoto, ainda que não sejam oficialmente reconhecidos como tal na tipologia adotada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (Brasil, 2015BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Projeto regiões rurais 2015: relatório técnico. Rio de Janeiro: IBGE, 2015. ).

Para ofertar atenção básica à sua população rural ribeirinha, a Secretaria Municipal de Saúde de Manaus (SEMSA) dispõe de duas UBSFs que atendem populações residentes ao longo dos rios Negro e Amazonas e afluentes (Manaus, 2022MANAUS (Estado). Secretaria Municipal de Saúde. Distrito de saúde rural. Manaus: SEMSA, 2022. Disponível em: https://semsa.manaus.am.gov.br/wp-content/uploads/2021/06/RURAL.pdf. Acesso em: 7 nov. 2022.
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). A limitação do serviço é sugestiva de dificuldade em garantir equidade no acesso ao atendimento e na alocação de verbas e recursos técnicos e operacionais capazes de ofertar serviços adaptados às particularidades do meio rural de Manaus. O cenário encontrado instiga à investigação sobre modos possíveis de otimizar a organização da atenção primária em território rural e identificar estratégias produzidas por seus agentes de saúde, que contribuíram com respostas às características típicas da ruralidade amazônica.

O artigo analisa modos de vida e organização do trabalho de ACSs que atuam em comunidades rurais ribeirinhas no município de Manaus cobertas pela Estratégia Saúde da Família Fluvial (ESFF). Foram investigados atividades e desafios cotidianos desses profissionais, organizados nas seguintes categorias: modos de vida; organização do trabalho; comunidades rurais ribeirinhas; modos de interação; vínculos; natureza; território; e apego ao lugar.

Metodologia

Pesquisa qualitativa exploratória, realizada em 17 comunidades rurais ribeirinhas localizadas na margem esquerda da calha do Rio Negro, distribuídas ao longo de um percurso de aproximadamente 190 km, até o limite entre os municípios de Manaus e Novo Airão, Amazonas. A seleção se deu por amostra intencional, justificada por sediarem atuação de 15 ACSs vinculados à ESFF, compondo a equipe da UBSF, que atende a população deste território (Figura 1).

Figura 1
Localidades ribeirinhas de residência e atuação dos agentes comunitários de saúde, Manaus, Amazonas, 2021-2022.

As condições ambientais e demográficas implicam elevada mobilidade no trabalho cotidiano dos ACSs. Para efetuar as visitas às famílias, cujos domicílios se distribuem nos lagos e igarapés de suas áreas de abrangência, os agentes têm que se deslocar em pequenas embarcações equipadas com motores de baixa potência, movidos a gasolina, em trajetos de 15 minutos a 1 hora.

O marco teórico do estudo buscou apreender a interdependência entre atores, estrutura social e os modos de ação que os sujeitos engendram, na busca de solucionar necessidades historicamente produzidas (Touraine, 1984TOURAINE, Alain. Découvrir les mouvements sociaux. In: CHAZEL, François. Action collective et mouvements sociaux, sous la dir. p.17-39. Paris: Presses Universitaires de France, 1993.). Tais premissas guiam a concepção de ‘modo de vida’ adotada na pesquisa.

Suzuki (2013SUZUKI, Júlio C. Território, modo de vida e patrimônio cultural em sociedades tradicionais brasileiras. Revista Espaço & Geografia, Brasília, v. 16, n. 2, p. 627-640, 2013. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/espacoegeografia/article/view/39994. Acesso em: 25 out. 2023.
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) chama atenção para as formas como

os moradores percebem, vivem e concebem o espaço, mediados pelo conjunto de suas práticas cotidianas e por sua história, [pela] posição que ocupam na sociedade envolvente e forma específica que assegura a sua reprodução social, constituindo-se no modo pelo qual o grupo social manifesta sua vida. (p. 633).

Nesse sentido, as abordagens dos modos de vida tanto se interessam pela análise de cotidianos em nível da esfera privada, do consumo e do lazer quanto pelas redes mais gerais de poder que perpassam a vida social (Guerra, 1993GUERRA, Isabel. Modos de vida: novos percursos e novos conceitos. Sociologia: problemas e práticas, Lisboa, v. 1, n. 13, p. 59-74, 1993. Disponível em: https://repositorio.iscte-iul.pt/bitstream/10071/932/1/6.pdf. Acesso em: 25 out. 2023.
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).

Ainda que a pesquisa priorizasse as interações entre um sistema social (o de saúde) e ações de sujeitos específicos - os ACSs -, o contexto amazônico onde tais relações se instituem demandou uma inflexão no âmbito da geografia humana. Esta, interessada nos modos de vida, mas também focada na influência do ambiente natural e na produção e manejo de territorialidades que interligam sociedades à natureza (Nabarro, 2021NABARRO, Sergio A. O conceito de modo de vida no pensamento social moderno. Biblio3W: Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales, Universitat de Barcelona, v. 26, n. 1.316, 2021. Disponível em: https://revistes.ub.edu/index.php/b3w/article/view/32875/35297. Acesso em: 25 out. 2023.
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; Suzuki, 2013SUZUKI, Júlio C. Território, modo de vida e patrimônio cultural em sociedades tradicionais brasileiras. Revista Espaço & Geografia, Brasília, v. 16, n. 2, p. 627-640, 2013. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/espacoegeografia/article/view/39994. Acesso em: 25 out. 2023.
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).

De acordo com Guerra (1993GUERRA, Isabel. Modos de vida: novos percursos e novos conceitos. Sociologia: problemas e práticas, Lisboa, v. 1, n. 13, p. 59-74, 1993. Disponível em: https://repositorio.iscte-iul.pt/bitstream/10071/932/1/6.pdf. Acesso em: 25 out. 2023.
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), a análise da organização do trabalho dos ACSs nas localidades ribeirinhas operou como fio condutor para apreender interligações entre as práticas do trabalho. Ou seja, tal análise verifica relações mais gerais que vinculam trabalhadores com a política de saúde e de atenção básica, e a vida fora do trabalho. Acompanha os ACSs como membros de grupos comunais específicos, detentores de práticas cotidianas de lazer, de consumo, produção rural e vida familiar, mediante as quais moldam redes de poder nos locais onde vivem e buscam conduzir satisfatoriamente seus interesses e trajetórias individuais ou coletivas.

A Psicologia Ambiental contribuiu com vertentes teóricas sobre o Apego ao Lugar, relacionado ao vínculo emocional com um ambiente físico (Felippe e Kuhnen, 2012FELIPPE, Maíra; KUHNEN, Ariane. O apego ao lugar no contexto dos estudos pessoa-ambiente: práticas de pesquisa. Estudos de Psicologia, Campinas, v. 29, n. 4, p. 609-617, 2012. https://doi.org/10.1590/S0103-166X2012000400015. Disponível em: https://www.scielo.br/j/estpsi/a/XNYyrZyTCfmmtqLFRw7DsCv/. Acesso em: 25 out. 2023.
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). Lugares se constituem em aspectos existenciais da vida de cada pessoa, capazes de fazer com que se sintam únicas, no controle, e portando um sentido subjetivo de quem são. Dessa forma, criam-se laços com um determinado lugar, onde se tende a permanecer e sentir segurança e comodidade (Cavalcante e Nóbrega, 2011CAVALCANTE, Sylvia; NÓBREGA, Lana M. A. Espaço e lugar. In: ELALI, Gleice; CAVALCANTE, Sylvia (org.). Temas básicos em psicologia ambiental. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. p.182-190.; Raymond, Brown e Weber, 2010RAYMOND, Christopher M.; BROWN, Gregory.; WEBER, Delene. The measurement of place attachment: Personal, community, and environmental connections. Journal of Environmental Psychology, v. 30, n. 4, p. 422-434, 2010. https://doi.org/10.1016/j.jenvp.2010.08.002. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0272494410000794. Acesso em: 17 mar. 2023.
https://www.sciencedirect.com/science/ar...
). Tais estudos fertilizam investigações no espaço amazônico, onde a diversidade sociocultural guarda estreita relação com as múltiplas manifestações da natureza e com outros construtos sociais, como a identidade de lugar (Rosa, 2014ROSA, Daniele. Teorias sobre a floresta e funções de apego: um estudo sobre a relação das pessoas com a Amazônia. 2014, 176 f. Tese (Doutorado em Psicologia Cognitiva) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2014.; Zacarias e Higuchi, 2021ZACARIAS, Elisa F. J.; HIGUCHI, Maria I. G. Panorama dos estudos sobre identidade de lugar. Novos Cadernos NAEA, Pará, v. 24, n. 1, p. 57-72, 2021. http://dx.doi.org/10.5801/ncn.v24i1.8821. Disponível em: https://periodicos.ufpa.br/index.php/ncn/article/view/8821. Acesso em: 25 out. 2023.
https://periodicos.ufpa.br/index.php/ncn...
).

Os dados foram coletados em duas viagens de campo entre 2021 e 2022, durante dez dias cada. O primeiro deslocamento se dedicou às dez localidades mais distantes de Manaus, já na fronteira com o município Novo Airão. A segunda viagem se concentrou em sete localidades mais próximas, que distam aproximadamente 50 km de Manaus. Todas as localidades pesquisadas possuíam apenas acesso fluvial.

Os critérios de inclusão dos ACSs foram: estar vinculado à Secretaria de Saúde e à Equipe de Saúde da Família da UBSF responsável pelo território; estar atuando na comunidade no período de coleta de dados. Foram coletados dados com os 15 ACSs (100%) atuantes nas localidades. Não houve recusas. A coleta de informações se apoiou em um consórcio de técnicas que abrangeram aplicação de questões escalonadas de Apego ao Lugar; entrevista semiestruturada e observação participante do trabalho cotidiano dos ACSs.

As questões escalonadas tipo Likert de Apego ao Lugar (com intervalo de 1 a 5) foram adaptadas da Escala Social de Apego ao Lugar de Raymond, Brown e Weber (2010RAYMOND, Christopher M.; BROWN, Gregory.; WEBER, Delene. The measurement of place attachment: Personal, community, and environmental connections. Journal of Environmental Psychology, v. 30, n. 4, p. 422-434, 2010. https://doi.org/10.1016/j.jenvp.2010.08.002. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0272494410000794. Acesso em: 17 mar. 2023.
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), visando compreender o fenômeno em ambientes naturais e áreas rurais. As dez questões formuladas avaliaram o vínculo social com o lugar e a natureza ao redor e a expressão dos sentimentos de pertencimento, de defesa da comunidade e segurança pessoal (Günther, 2008GÜNTHER, Hartmut. Como elaborar um questionário. In: PINHEIRO, José Q.; GÜNTHER, Hartmut (ed.). Métodos de pesquisa nos estudos pessoa-ambiente. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008. p. 105-147. ).

A entrevista semiestruturada incluiu tópicos como: caracterização socioeconômica e demográfica; descrição de rotinas e tarefas realizadas (preferenciais ou não); movimentação no território; condições de trabalho; avaliação dos serviços ofertados pela UBSF; interação com a comunidade e outros agentes políticos de relevância; e autoavaliação sobre seu trabalho e importância atribuída a ele pela comunidade. Congregou ainda elementos de verificação que possibilitaram diferenciar entre relatos dos entrevistados e observações dos pesquisadores. Para garantir o sigilo e proteger os sujeitos pesquisados, efetuou-se uma codificação dos entrevistados, atribuindo-se a cada um deles um número em ordem sequencial ascendente de 1 a 15, que serviu como identificador também para as entrevistas.

Na observação participante segundo Minayo (2013MINAYO, Maria C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 13. ed. São Paulo: Hucitec , 2013.), o observador, numa situação social, obtém informações sobre a realidade dos atores sociais em seus próprios contextos. A técnica visou identificar atividades prescritas e não prescritas pelos ACSs no seu dia a dia na comunidade. As observações priorizaram as visitas domiciliares via terrestre e fluvial e a participação dos ACSs no atendimento na UBSF. As observações foram registradas em diário de campo.

A análise dos dados compreendeu a transcrição das entrevistas gravadas e sistematização das anotações feitas no caderno de campo. Os dados quantitativos foram tabulados em planilhas Excel para análise descritiva das variáveis apresentadas em frequências absolutas e relativas. Os resultados geraram: perfil sociodemográfico e de qualificação dos ACSs; cotidiano do trabalho; atividades prescritas e atividades não prescritas; e apego ao lugar.

A interpretação do material de campo seguiu as fases propostas por Gomes (2007GOMES, Romeu. Análise e interpretação de dados de pesquisa qualitativa. In: MINAYO, Maria C. S. (org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 79-108.) e Gomes et al. (2005)GOMES, Romeu et al. Organização, processamento, análise e interpretação de dados: o desafio da triangulação. In: MINAYO, Maria C.; ASSIS, Simone; SOUZA, Ednilsa (org.). Avaliação por triangulação de métodos: abordagem de programas sociais. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005. p. 185-221. , abrangendo: leitura compreensiva do conjunto dos dados; identificação e problematização das categorias explícitas e implícitas que emergiram dos materiais; busca de sentidos mais amplos (socioculturais), subjacentes às falas e às ações dos sujeitos da pesquisa, e elaboração de síntese interpretativa, procurando articular objetivo do estudo, base teórica adotada e dados empíricos.

O artigo deriva do “Estudo exploratório das condições de vida, saúde e acesso aos serviços de saúde de populações rurais ribeirinhas de Manaus e Novo Airão, Amazonas”, aprovado em Comitê de Ética da Fundação de Medicina Tropical, Amazonas; CAAE n. 57706316.9.0000.0005, 2019.

Resultados e discussão

Perfil sociodemográfico e de qualificação dos ACSs

Os participantes da pesquisa foram nove homens e seis mulheres, com idade média de 48,5 anos: 93% se declararam casados e com filhos; e 80% procediam de pequenas cidades da região Norte, ou seja, não eram nativos do território onde atuavam. A maioria (66,7%) declarou renda familiar de até três salários-mínimos e 33,3% informaram renda de até cinco salários-mínimos.

O menor tempo de atuação entre os ACSs foi de oito anos e o maior, de 27 anos (média 17,6 anos de serviço), predominando entre os que atuam na coordenação de ações nas cinco Unidades Básicas de Saúde Rural (UBSR) implantadas no território. Além dos ACSs, as unidades de saúde rural não contam com outros profissionais e, basicamente, atuam no apoio à UBSF. Além da experiência, os coordenadores de UBSR, que são ACSs indicados pela Secretaria de Saúde, destacam-se pela escolaridade (ensino superior) e outras qualificações, atuando nas tarefas administrativas da unidade (Quadro 1).

Quadro 1
Caracterização dos agentes comunitários de saúde das Equipes de Saúde da Família de zona rural ribeirinha, Manaus, Amazonas, 2021/2022

Na qualificação profissional, predominaram cursos de atualização sobre o SUS e de controle de endemias (malária, dengue, zika e chikungunha, hanseníase e doença de Chagas). Também foram mencionadas outras profissionalizações na vigência do trabalho como ACS: técnico de enfermagem (5 ACSs), técnico em radiologia (1 ACS), artes gráficas (1 ACS) e piloto fluvial (1 ACS). Os ACSs detêm outras aptidões que utilizam em seu cotidiano, como marcenaria, cultivo de plantas, instrumentalização musical, artes marciais e culinária. Dentre os ACSs do sexo masculino, sete pescavam e, destes, três caçavam, evidenciando boa adaptação à vida rural.

O perfil sociodemográfico encontrado guarda congruência com achados da literatura (Castro et al., 2017CASTRO, Thiago A. et al. Agentes comunitários de saúde: perfil sociodemográfico, emprego e satisfação com o trabalho em um município do semiárido baiano. Caderno de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 3, p. 294-301, 2017. https://doi.org/10.1590/1414-462X201700030190. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cadsc/a/ZrxpxGtjBGQPbG3zkYVLS5B/abstract/?lang=pt. Acesso em: 25 out. 2019.
https://www.scielo.br/j/cadsc/a/ZrxpxGtj...
; Garcia et al., 2017GARCIA, Ana C. P. G. et al. Agente comunitário de saúde no Espírito Santo: do perfil às atividades desenvolvidas. Trabalho Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 15 n. 1, p. 283-300, 2017. https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00039. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/gbzRMT4W8qPDz5kf7SDNy5H/abstract/?lang=pt. Acesso em: 25 out 2023.
https://www.scielo.br/j/tes/a/gbzRMT4W8q...
), mas com importante distinção: perfis sociodemográficos encontrados em outras regiões do país apontam tendência à feminilização da atividade de ACS, diferente do verificado nesta pesquisa. Aqui o predomínio do sexo masculino pode estar associado ao fato de que, na Amazônia, ações prioritárias, como as visitas domiciliares, exigem deslocamentos fluviais cujo manejo é habitualmente monopolizado pelo gênero masculino. O conhecimento dos intrincados trajetos fluviais também pode estar associado ao longo tempo de trabalho como ACS, que exige conhecimento minucioso do território. Para visitar as famílias, os ACSs não usam mapas ou GPS. Dada a indisponibilidade de internet, o deslocamento é apoiado exclusivamente na própria memória e experiência.

O cotidiano do trabalho

Nos períodos de ausência da UBSF no território, os ACSs atuavam diariamente nas UBSRs distribuídas em pontos estratégicos na zona rural do município de Manaus. Em grande medida, a presença exclusiva de ACS nessas unidades decorre da dificuldade de fixação de profissionais de nível superior no meio rural, em particular médicos e enfermeiros. Nessas circunstâncias, o atendimento da equipe multiprofissional às comunidades adscritas se restringia a uma visita mensal da UBSF.

A periodicidade das visitas varia de acordo com decisão individual de cada agente, podendo ocorrer em dias fixos ou aleatórios na semana, com forte dependência das condições climáticas, como a ocorrência de chuvas e da disponibilidade de combustível. Os trajetos percorridos são desafiadores devido às condições naturais, como a correnteza do rio, a ocorrência de tempestades e o cansaço decorrente das longas horas de viagem.

Exposição às condições climáticas desfavoráveis, riscos ergonômicos associados ao trabalho extensivo e ao deslocamento cotidiano, exposição à violência no território, dificuldades no cumprimento de metas instituídas pelo sistema de saúde e provisão de recursos financeiros próprios para desempenhar o trabalho institucional têm sido identificados na literatura como aspectos recorrentes no labor dos ACSs (Lopes et al., 2022LOPES, Fernanda et al. Condições de trabalho e saúde dos agentes de saúde: uma revisão integrativa. Research, Society and Development, v. 11, n. 3, e50911326585, 2022. http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v11i3.2658.
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.334...
; Guida et al., 2012GUIDA, Hilka et al. As relações entre saúde e trabalho dos agentes de combate às endemias da Funasa: a perspectiva dos trabalhadores. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 21, n. 4, p. 858-870, 2012. https://doi.org/10.1590/S0104-12902012000400006. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/kr7d3Cg47Jz5jMbBhtw8Fkr/abstract/?lang=pt. Acesso em: 25 out. 2023.
https://www.scielo.br/j/sausoc/a/kr7d3Cg...
; Santos et al., 2015SANTOS, Michele et al. Desafios enfrentados pelos agentes comunitários de saúde na estratégia de saúde da família. Revista Inova Saúde, Santa Catarina, v. 4, n.1, p. 26-46, 2015. https://doi.org/10.18616/is.v4i1.1765. Disponível em: https://periodicos.unesc.net/ojs/index.php/Inovasaude/article/view/1765. Acesso em: 25 out. 2023.
https://periodicos.unesc.net/ojs/index.p...
; Riquinho et al., 2018RIQUINHO, Deise et al. O cotidiano de trabalho do Agente Comunitário de Saúde: entre a dificuldade e a potência. Trabalho Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 16 n. 1, p. 163-182, 2018. https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00086. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/pSkqkSzg9bG39YmZyMzdtwR/abstract/?lang=pt. Acesso em: 25 out. 2023.
https://www.scielo.br/j/tes/a/pSkqkSzg9b...
). A tais óbices laborativos, adicionam-se na área rural elevado risco de acidentes, comprometimento postural associado ao manejo da embarcação, exposição prolongada ao ruído do motor e à radiação solar inerentes ao deslocamento fluvial, além do comprometimento de ligamentos e articulações nas subidas e descidas em terrenos acidentados, típicos das paisagens amazônicas.

Os entrevistados declararam que as principais atribuições definidas pela Secretaria de Saúde são as orientações em saúde e as visitas domiciliares com média de cinco visitas diárias. O cumprimento dessa meta estabelecida exige o enfrentamento de longos percursos que, além dos supracitados riscos, implicam também desgaste físico tanto do ACS quanto da embarcação e motor que a impulsiona. Ademais, as grandes distâncias impossibilitam, por exemplo, o retorno para o almoço em família, sob pena de não cumprimento da meta.

Ainda assim, a visita domiciliar foi apontada como a atividade mais interessante, por incluir o deslocamento fluvial e possibilitar a interação com os usuários em suas residências. Relataram ser agraciados com frutas, refeições e outros pequenos presentes durante as visitas, conotando laços de prestígio e de afeto que têm bases profissionais e familiares. Na visita fazem busca ativa de grupos prioritários como o acompanhamento do desenvolvimento infantil, de gestantes, puérperas e idosos, controle de hipertensão e diabetes, bem como a prevenção e informações relativas a diversos temas de saúde. Atividades prescritas pela Secretaria, mas apontadas como menos frequentes no dia a dia foram prevenção da malária, realização de curativos e nebulização.

Reuniões de equipe foram apontadas como pouco comuns. Como uma unidade básica de saúde rural pode congregar mais de um ACS, residente ou não na comunidade que sedia a unidade de saúde, reuniões de equipe dependem do deslocamento fluvial de cada ACS para a comunidade-sede, o que demanda gasto de combustível e condições climáticas favoráveis, fatores que dificultam reunir os profissionais.

As tarefas administrativas nas unidades de saúde eram apontadas como as menos atrativas. Tais atividades abrangiam o registro de procedimentos, cadastramento de usuários e agendamento no sistema de regulação. São ações que dependem de acesso à internet, e como a maioria das comunidades não dispunha regularmente desse serviço, eram efetuadas quando possível e de forma intermitente. Na presença da UBSF no território, o leque de ações de ordem burocrático-assistencial se amplia abrangendo a separação de prontuários, aferição de pressão arterial, peso e altura dos usuários agendados para atendimento, além de direcioná-los para exames e consultas médicas e de enfermagem. Os ACSs também faziam a limpeza e a manutenção do espaço, dada a inexistência de profissional de serviços gerais na UBSR.

O perfil de tarefas descrito é, por um lado, fortemente moldado pelos cuidados biomédicos e individuais característicos da atenção programática (Bornstein e Stotz, 2008BORNSTEIN, Vera J.; STOTZ, Eduardo N. Concepções que integram a formação e o processo de trabalho dos agentes comunitários de saúde: uma revisão da literatura. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13, n. 1, p. 259-268, 2008. Disponível em: https://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/concepcoes-que-integram-a-formacao-e-o-processo-de-trabalho-dos-agentes-comunitarios-de-saude-uma-revisao-da-literatura/156?id=156. Acesso em: 25 out 2023.
https://www.cienciaesaudecoletiva.com.br...
; Silva e Dalmaso, 2002SILVA, Joana; DALMASO, Ana S. O agente comunitário de saúde e suas atribuições: os desafios para os processos de formação de recursos humanos em saúde. Interface - Comunicação, Saúde, Educação , Botucatu, v. 6, n.10, p. 75-83, 2002. https://doi.org/10.1590/S1414-32832002000100007. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/VHNC9VSKF57ZmjghKf9GZVd/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 25 out. 2023.
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) e, por outro, voltado à implementação de rotinas administrativas que, para Bornstein e Stotz (2008)BORNSTEIN, Vera J.; STOTZ, Eduardo N. Concepções que integram a formação e o processo de trabalho dos agentes comunitários de saúde: uma revisão da literatura. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13, n. 1, p. 259-268, 2008. Disponível em: https://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/concepcoes-que-integram-a-formacao-e-o-processo-de-trabalho-dos-agentes-comunitarios-de-saude-uma-revisao-da-literatura/156?id=156. Acesso em: 25 out 2023.
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, pouco valor acrescentam ao trabalho do ACS, que deveria priorizar atividades coletivas e de promoção à saúde (Bornstein e Stotz, 2008)BORNSTEIN, Vera J.; STOTZ, Eduardo N. Concepções que integram a formação e o processo de trabalho dos agentes comunitários de saúde: uma revisão da literatura. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13, n. 1, p. 259-268, 2008. Disponível em: https://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/concepcoes-que-integram-a-formacao-e-o-processo-de-trabalho-dos-agentes-comunitarios-de-saude-uma-revisao-da-literatura/156?id=156. Acesso em: 25 out 2023.
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. O gradativo deslocamento das rotinas dos ACSs para o trabalho administrativo intramuros tem sido apontado como desvio de função e consequente afastamento das interações cotidianas nos domicílios, gerando insatisfação e desmotivação desses trabalhadores (Riquinho et al., 2018RIQUINHO, Deise et al. O cotidiano de trabalho do Agente Comunitário de Saúde: entre a dificuldade e a potência. Trabalho Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 16 n. 1, p. 163-182, 2018. https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00086. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/pSkqkSzg9bG39YmZyMzdtwR/abstract/?lang=pt. Acesso em: 25 out. 2023.
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), situações igualmente assinaladas pelos ACSs participantes da pesquisa

Não dá pra esperar a Secretaria resolver, as licitações saírem. - (ACS 7, 43, homem)

Nossa realidade é muito distante do entendimento de Manaus. - (ACS 13, 23, homem)

O cotidiano dos sujeitos pesquisados caracteriza uma extensa jornada de trabalho e sobrecarga laborativa, apontadas na literatura (Castro et al., 2017CASTRO, Thiago A. et al. Agentes comunitários de saúde: perfil sociodemográfico, emprego e satisfação com o trabalho em um município do semiárido baiano. Caderno de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 3, p. 294-301, 2017. https://doi.org/10.1590/1414-462X201700030190. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cadsc/a/ZrxpxGtjBGQPbG3zkYVLS5B/abstract/?lang=pt. Acesso em: 25 out. 2019.
https://www.scielo.br/j/cadsc/a/ZrxpxGtj...
; Lopes et al., 2022LOPES, Fernanda et al. Condições de trabalho e saúde dos agentes de saúde: uma revisão integrativa. Research, Society and Development, v. 11, n. 3, e50911326585, 2022. http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v11i3.2658.
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.334...
) como fatores de piora da qualidade de vida dos ACSs, que extrapolam as cargas horárias previstas nos contratos formais de trabalho. Tal extensão da jornada não é remunerada e nem é computada nos indicadores de produtividade. Assim, embora as visitas domiciliares sejam cruciais para produzir vínculo e responsabilização, também podem resultar em redução das horas de descanso, alimentação e convívio familiar do ACS (Castro et al., 2017CASTRO, Thiago A. et al. Agentes comunitários de saúde: perfil sociodemográfico, emprego e satisfação com o trabalho em um município do semiárido baiano. Caderno de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 3, p. 294-301, 2017. https://doi.org/10.1590/1414-462X201700030190. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cadsc/a/ZrxpxGtjBGQPbG3zkYVLS5B/abstract/?lang=pt. Acesso em: 25 out. 2019.
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).

As dificuldades de acesso às redes de comunicação também contribuíram para onerar os ACSs. Afora as oportunidades de visitação, a comunicação com os residentes nos locais mais afastados ocorria por meio do telefone celular, mas somente quando conseguiam sinal. Tal recurso seria empregado principalmente quando os usuários necessitassem de um atendimento fora do horário habitual e para os ACSs se reportarem a Manaus, seja em emergências, seja para tarefas administrativas. Entretanto, o uso regular desse meio era prejudicado pela insuficiência de sinal de telefonia e internet, visto que a cobertura das operadoras é intermitente e imprevisível nas localidades.

Uma única comunidade dispunha de serviço de internet obtido por meio de parceria com organização não governamental que ali instalou um sistema de acesso por meio de satélite, garantindo alguma regularidade e qualidade de sinal. Em consequência, esta era a única unidade de saúde rural que conseguia agendar consultas e exames dos usuários no sistema de regulação, além de receber pontualmente serviços de telemedicina. Para as demais, cabia ao ACS encontrar meios próprios para sistematizar e inserir nos sistemas informatizados os dados das microáreas e agendamentos solicitados pelos profissionais da UBSF para exames e consultas de média e alta complexidade, todos sediados na área urbana de Manaus.

No contexto singular do rural amazônico, a exclusão digital se associa às barreiras geográficas e a altos custos de deslocamento potencializados pela escassa proatividade dos gestores da saúde, que deixam a cargo do ACS a tomada de providências situadas fora de sua governabilidade. Em consequência, tais problemas ampliavam o tempo de espera de acesso ao atendimento especializado. Melhorias do acesso aos cuidados de saúde são fortemente dependentes de decisão política dos gestores, devendo se acompanhar de suporte administrativo capaz de agilizar a organização e o fluxo das ações e superar gargalos assistenciais, garantindo a resolutividade necessária (Fontana et al., 2016FONTANA, Karine; LACERDA, Josimari; MACHADO, Patrícia. O processo de trabalho na Atenção Básica à saúde: avaliação da gestão. Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 40, n. 110, p. 64-80, 2016. https://doi.org/10.1590/0103-1104201611005. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/HpKx9c4yZwGTmvBxQ8H69Wf/abstract/?lang=pt. Acesso em: 25 out. 2023.
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; Riquinho et al., 2018RIQUINHO, Deise et al. O cotidiano de trabalho do Agente Comunitário de Saúde: entre a dificuldade e a potência. Trabalho Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 16 n. 1, p. 163-182, 2018. https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00086. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/pSkqkSzg9bG39YmZyMzdtwR/abstract/?lang=pt. Acesso em: 25 out. 2023.
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). A deliberação da gestão em subtrair horas de trabalho dos ACSs no cuidado às famílias no território em favor de tarefas administrativas mostra-se pouco produtiva, considerando os limitados resultados obtidos com tal permuta.

As rotinas dedicadas à atenção programática foram recorrentemente apontadas, mas eram entendidas por eles como ações independentes entre si, como exemplificado na distinção que faziam entre busca ativa de grupos prioritários e cuidados com as gestantes ou com os idosos. Nas ações espontaneamente referidas pelos ACSs, seis apontaram como rotineiras a atualização de cadastros das famílias na comunidade e quatro deles, a prevenção de doenças infecciosas, como a dengue, em particular no contexto de mudanças introduzidas pelo programa Previne Brasil (Brasil, 2017BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2017.) (Quadro 2).

Quadro 2
Atividades prescritas e não prescritas segundo número de agentes comunitários de saúde que as realizam nas Equipes de Saúde da Família de zona rural ribeirinha, Manaus, Amazonas, 2021/2022.

As ações assinaladas com menor frequência de realização foram, paradoxalmente, aquelas de caráter muito relevante no rural amazônico caracterizado por elevada ocorrência de doenças vetoriais e alta mobilidade das pessoas, exigindo atualização recorrente dos cadastros familiares. Já a falta de menção ao controle da malária pelos ACSs pode estar associada à divisão de tarefas com agentes de controle de endemias, em que pese as recomendações, na Política Nacional de Atenção Básica - PNAB 2017 (Brasil, 2017BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2017.) de mesclagem das atividades dessas categorias profissionais.

A observação também permitiu identificar um conjunto de atividades não prescritas (Quadro 2), mas que manifestam uma atuação que enriquece a rotina do ACS, revelando sua função polifônica e intersetorial (Nunes et al., 2002NUNES, Mônica et al. O agente comunitário de saúde: construção da identidade desse personagem híbrido e polifônico. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 18, n. 6, p. 1.639-1.646, 2002. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2002000600018. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/JKRYnBFxzhWvhjhtwVyxhtJ/abstract/?lang=pt. Acesso em: 6 mar. 2023.
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) que, aparentemente, não era percebida ou demandada pela Secretaria de Saúde. As atividades não prescritas descortinam diversos aspectos das necessidades de saúde nas comunidades, não respondidas satisfatoriamente no atendimento ofertado pela UBSF. A menção ao atendimento aos acidentes ofídicos merece destaque por se tratar de atividade que passa ao largo do perfil de atribuições de ACS, sendo inerente à atuação médica e de caráter emergencial. Entretanto, a falta de recursos para o atendimento imediato no território amplia o risco de agravamento e morte dos pacientes, em função do longo tempo de deslocamento, levando o ACS a agir. Por vezes, até mesmo a remoção do acidentado ficava fora do alcance deles, pois foi recorrente a menção à falta de combustível para o deslocamento das vítimas.

Identificar essa tarefa na rotina não prescrita para os ACSs sugere carência de fluxo de atendimento adequado aos acidentes por animais peçonhentos na área rural do município. As características geográficas (grandes distâncias, acesso estritamente fluvial), de infraestrutura (carência de meios de comunicação e de refrigeração) e insuficiências organizacionais da assistência (viagens mensais da UBSF, com ausência de profissionais médicos e de enfermagem nos intervalos entre as viagens e ausência de soro antiofídico nas localidades) também agravavam as lacunas ao cuidado a esses pacientes, tornando inteligível a necessidade de intervir. Dada a ausência de outros profissionais, querendo ou não, os ACSs assumem a função de primeira linha de cuidados em situações de urgência e emergência.

Raciocínio similar pode ser adotado para análise de outras atividades não prescritas, como auxílio ao parto e o encaminhamento de traumatismos e outros agravos para especialistas tradicionais de cura como os benzedores, com os quais os ACSs estabelecem relações de colaboração, na busca de garantir o bem-estar dos comunitários.

As disjunções entre o trabalho prescrito e o efetuado têm sido apontadas por autores, como Franco e Merhy (2003FRANCO, Túlio; MERHY, Emerson E. Programa Saúde da Família (PSF): contradições de um programa destinado à mudança do modelo tecno assistencial. In: MERHY, Emerson E. et al. O trabalho em saúde: olhando e experienciando o SUS no cotidiano. São Paulo: Hucitec, 2003. p. 55-124.) e Merhy (2002)MERHY, Emerson E. Saúde: a cartografia do trabalho vivo em ato. 3. ed. São Paulo: Hucitec , 2002., que valorizam o trabalho em ato, que propicia o protagonismo do trabalhador. Riquinho et al. (2018RIQUINHO, Deise et al. O cotidiano de trabalho do Agente Comunitário de Saúde: entre a dificuldade e a potência. Trabalho Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 16 n. 1, p. 163-182, 2018. https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00086. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/pSkqkSzg9bG39YmZyMzdtwR/abstract/?lang=pt. Acesso em: 25 out. 2023.
https://www.scielo.br/j/tes/a/pSkqkSzg9b...
), apoiados nas ideias de Yves Schwartz (Gomes, Abrahão e Vieira, 2006GOMES, Luciana; ABRAHÃO, Ana L.; VIEIRA, Mônica. Entrevista: Yves Schwartz. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 457-466, 2006. https://doi.org/10.1590/S1981-77462006000200015. Disponível em: https://www.tes.epsjv.fiocruz.br/index.php/tes/article/view/1805. Acesso em: 25 out. 2023.
https://www.tes.epsjv.fiocruz.br/index.p...
), exploraram a perspectiva ergológica na análise de processos de trabalho do ACS, reiterando que a operacionalização do trabalho traduz não somente a execução da normatividade institucional, mas também a possibilidade de (re)normatização das tarefas. Identificam recorrente negociação entre esses polos, num ambiente de microtransgressões, onde se busca atender às singulares necessidades da população atendida. Tais premissas se adequam à problematização das atividades prescritas e não prescritas dos ACSs vinculados à UBSF na área rural ribeirinha de Manaus.

Das seis ACSs do sexo feminino, cinco contavam com a presença do cônjuge em atividades que envolviam mobilidade, como a visita domiciliar. A participação dos esposos das ACSs também integra o rol de atividades não prescritas para o perfil habitual do trabalho. As entrevistadas alegaram sentir segurança com a presença do parceiro, frente às incertezas da natureza (tempestades, banzeiro do rio) e à violência no território. Tal atividade não remunerada onera também o cônjuge em termos de tempo despendido e amplia o gasto de combustível usado para consumar a visita, devido à duplicação do peso na embarcação. Nos trajetos acompanhados, os parceiros respondiam pela condução da canoa, seu abastecimento, entrega de suprimentos e medicamentos, ou seja, ofertavam o suporte necessário à mobilidade exigida para execução do trabalho de ACS em meio rural.

Tais atividades representam a incorporação não apenas de obrigações institucionais do ACS, mas também apontam para um questionamento do exercício do poder pela instituição empregadora. Também decorrem do insuficiente conhecimento institucional sobre os modos de vida dos seus usuários e trabalhadores rurais. Por fim, deve-se mencionar a incorporação, pelas famílias dos ACSs, de parte dos custos das ações de saúde em área rural, cujo dispêndio deveria caber à Secretaria de Saúde e não ao trabalhador.

Situações de urgência e emergência são eventos que marcavam as memórias dos ACSs, referidos como particularmente problemáticos os acidentes ofídicos, as complicações do parto e os ferimentos com cortes profundos com sangramento profuso. Também rememoraram atendimentos de urgência em que a remoção por helicóptero foi acionada e, em outros casos, a lancha do Serviço Médico de Urgência (Samu) fluvial. Ressaltaram, porém, as dificuldades para obter tais resgates, seja pela falta de credibilidade dada às suas demandas, seja por dificuldades de comunicação ou insuficiente disponibilidade de lanchas do Samu que, saindo da área urbana de Manaus, devem se deslocar por horas, para efetuar as remoções de urgência e emergência no território.

Os relatos deixaram evidente a frustração dos ACSs com a limitação de seu perfil de atuação. Como não são autorizados a realizar suturas, diante da necessidade, tinham que encaminhar os pacientes para a sede municipal mais próxima, seja em Novo Airão ou em Manaus. As necessidades sanitárias sob responsabilidade dos ACSs extrapolavam amplamente o perfil de atuação desses profissionais e evidenciam os nós críticos e as insuficiências do sistema de saúde frente à diversidade e complexidade dos problemas de saúde no território (Pinto et al., 2017PINTO, Antonio G. et al. Vínculos subjetivos do agente comunitário de saúde no território da Estratégia Saúde da Família. Trabalho Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 15, n. 3, p. 789-802, 2017. https://dx.doi.org/10.1590/1981-7746-sol00071. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/5RjYgPrMjPmZnhTbBzQGy9p/?lang=pt. Acesso em: 17 mar. 2023.
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). Entretanto, tais ocorrências são subjetivamente vivenciadas como limitação pessoal e profissional frente aos demais membros da equipe de saúde e como eventos que abalam a credibilidade do ACS pela população, contribuindo para alimentar sua autodepreciação e o sofrimento psíquico (Garcia et al., 2017GARCIA, Ana C. P. G. et al. Agente comunitário de saúde no Espírito Santo: do perfil às atividades desenvolvidas. Trabalho Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 15 n. 1, p. 283-300, 2017. https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00039. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/gbzRMT4W8qPDz5kf7SDNy5H/abstract/?lang=pt. Acesso em: 25 out 2023.
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).

Quando questionados sobre o número de ACSs contratados para atuar nas comunidades, todos declararam haver menos profissionais que o necessário. Apontam igualmente a insuficiência de equipes na UBSF que faz o atendimento itinerante mensal. A maioria dos entrevistados (n=11) demonstrou insatisfação com a limitada oferta de consultas médicas durante a permanência da UBSF no território, embora considerem que a equipe atende com qualidade. Os mais antigos no cargo relembraram que duas equipes atuavam de forma simultânea na UBSF, mas que esse contingente foi reduzido a uma única equipe, acarretando diminuição no número de consultas, limitadas a 12 por turno de atendimento, inviabilizando o equilíbrio entre demanda espontânea e demanda programada. Em consequência, muitos usuários não conseguiam consultas, pois a UBSF seguia seu roteiro de deslocamento para a localidade seguinte no turno subsequente. Relataram já ter solicitado à gestão da secretaria a necessidade de ampliar as equipes. Porém, não receberam qualquer retorno referente à demanda.

Nas visitas domiciliares que antecediam a chegada da UBSF, os agentes faziam uma triagem dos usuários com maior prioridade de atendimento naquele mês.

O atendimento em si da UBSF é ótimo. Mas em relação à quantidade da equipe foi retirada uma das equipes há poucos anos. Ficou indigesto; poucas consultas por comunidade. (ACS 1, 58, homem)

O número de vagas para consulta médica é pouco (12); o número de médicos também. Os outros profissionais também atendem sim. (ACS 2, 32, homem)

Para ser ótimo o atendimento, a outra equipe teria que voltar. A maior demanda são as consultas médicas. (ACS 3, 34, mulher)

Houve redução de equipe. 12 vagas para atendimento médico é pouco. (ACS 6, 41, mulher)

A alta demanda mensal de usuários desejosos de realizar consultas tensionava a relação com os ACSs, que recebiam as críticas, reclamações e por vezes ameaças de alguns comunitários que não conseguiam o acesso desejado.

“A corda rompe no ACS. Porque o comunitário não vai reclamar com a equipe, ele vem pra cima da gente” (ACS 4, 49, homem).

Tais tensões devem ser analisadas à luz das atividades apresentadas no Quadro 2 e das mudanças introduzidas pela PNAB 2017 (Brasil, 2017BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2017.). Autores como Garcia et al. (2017GARCIA, Ana C. P. G. et al. Agente comunitário de saúde no Espírito Santo: do perfil às atividades desenvolvidas. Trabalho Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 15 n. 1, p. 283-300, 2017. https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00039. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/gbzRMT4W8qPDz5kf7SDNy5H/abstract/?lang=pt. Acesso em: 25 out 2023.
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) e Morosini et al. (2018MOROSINI, Márcia V. G. C.; FONSECA, Angélica F.; LIMA, Luciana D. Política nacional de atenção básica 2017: retrocessos e riscos para o Sistema Único de Saúde. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 42, n. 116, p. 11-24, 2018. Disponível em: https://revista.saudeemdebate.org.br/sed/article/view/125. Acesso em: 6 mar. 2023.
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) apontam que a PNAB 2017 promoveu uma ampliação de tarefas administrativas e curativas para os agentes de saúde, em detrimento de suas responsabilidades educativas e de promoção da saúde, superpondo-se, não raro, com a atuação dos técnicos de enfermagem e dos agentes de endemias. Como visto na análise do Quadro 2, tais tarefas não apenas apareceram como rotina, mas também surgem nos depoimentos dos ACSs como desejo de ampliar sua atuação no caso das intervenções biomédicas em emergências de saúde.

As mudanças trazidas pela PNAB 2017 anteciparam as medidas efetivadas através da portaria n. 2.979/2019 que instituiu o Programa Previne Brasil (Brasil, 2019BRASIL, Ministério da Saúde. Portaria no 2.979, de 12 de novembro de 2019. Institui o Programa Previne Brasil, que estabelece novo modelo de financiamento de custeio da Atenção Primária à Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde, por meio da alteração da Portaria de Consolidação nº 6/GM/MS, de 28 de setembro de 2017. 2019. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2019/prt2979_13_11_2019.html. Acesso em: 13 nov. 2019.
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), confluindo ambos para uma progressiva redução de investimentos na área da saúde, com inflexão particular na primeira linha de cuidados, em decorrência da alteração radical no modelo de financiamento da atenção básica e do descompromisso com a universalização da atenção (Mendes et al., 2022MENDES, Karina C.; CARNUT Leonardo; GUERRA, Lucia S. Cenários de práticas na Atenção Primária à Saúde no Sistema Único de Saúde e a neoseletividade induzida pelo “Programa Previne Brasil”. JMPHC Journal of Management & Primary Health Care. v. 14, p. e002, 2022. DOI: 10.14295/jmphc.v14.1186. Disponível em: https://www.jmphc.com.br/jmphc/article/view/1186. Acesso em: 10 nov. 2023.
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).

Em termos da atuação dos ACSs, tal movimentação na política nacional de saúde se apresenta como redução do número de equipes da UBSF que anteriormente atendiam a população rural, corte da quantidade de combustível disponibilizado para o trabalho, insuficiência do número de ACSs e de outros recursos necessários à garantia da cobertura universal às famílias residentes, pari passu à ampliação desmesurada de suas atividades, tendo em vista a necessidade de suprir a ausência dos demais profissionais que deveriam atuar no território, mas não foram lotados.

Normas e prescrições são habitualmente reinterpretadas pelos sujeitos sociais. Assim, no desenvolvimento e duração do trabalho cotidiano, percebeu-se também um acordo tácito entre a comunidade e os ACSs. Dentre as tarefas entendidas como prioritárias e regularmente executadas, destacam-se as já citadas visitas domiciliares que devem atingir determinada frequência mensal, assim como o apoio ao trabalho da equipe embarcada durante a visita mensal da UBSF às comunidades. Nessas ocasiões, os agentes comunitários estarão integralmente dedicados a acompanhar as atividades da equipe. Na ausência desta, o ACS seria acionado, fora do seu horário de trabalho, principalmente em casos de emergência.

Uma vez atendidas essas circunstâncias os agentes de saúde possuem seus próprios horários e afazeres, que podem envolver atividades de subsistência, obrigações coletivas e de parentesco, como o trabalho coletivo ‘ajuri’ (direcionado à subsistência das famílias), além de participação em outras atividades congruentes com o status de membro adulto de um grupo social específico. Atividades extramuros ligadas ao funcionamento da unidade também podem ser desenvolvidas em paralelo à atuação política exercida junto aos residentes da localidade, imprescindíveis à manutenção de sua legitimidade como cidadão e liderança.

Variadas são as análises que problematizam a situação singular do ACS por trabalhar e morar na comunidade. Dentre os pontos favoráveis, são apontados a maior possibilidade de diálogo, confiança e empatia com as famílias atendidas, em decorrência da convivência cotidiana e da partilha das condições de vida, propiciando conhecimento da organização e dinâmica das interações sociais locais, o que favorece sua atuação no território (Bornstein e Stotz, 2008BORNSTEIN, Vera J.; STOTZ, Eduardo N. Concepções que integram a formação e o processo de trabalho dos agentes comunitários de saúde: uma revisão da literatura. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13, n. 1, p. 259-268, 2008. Disponível em: https://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/concepcoes-que-integram-a-formacao-e-o-processo-de-trabalho-dos-agentes-comunitarios-de-saude-uma-revisao-da-literatura/156?id=156. Acesso em: 25 out 2023.
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).

Dentre os pontos desfavoráveis, foram identificadas dificuldades em lidar com a ambígua condição de penetrar na intimidade dos lares, mas dispor de poucos meios para lidar com conflitos e com tragédias que por vezes envolvem a própria família do ACS. Também foi apontado o verdadeiro assédio de alguns usuários desejosos de facilitar o acesso a exames e consultas, algo que expõe as limitações de atuação desse trabalhador (Garcia et al, 2017GARCIA, Ana C. P. G. et al. Agente comunitário de saúde no Espírito Santo: do perfil às atividades desenvolvidas. Trabalho Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 15 n. 1, p. 283-300, 2017. https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00039. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/gbzRMT4W8qPDz5kf7SDNy5H/abstract/?lang=pt. Acesso em: 25 out 2023.
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). Igualmente, a indistinção entre momentos e espaços de trabalho e da vida privada faz com que os ACSs sejam acionados diuturnamente pelos usuários, impossibilitando o usufruto do descanso ou lazer a que faz jus (Jardim e Lancman, 2009JARDIM, Tatiana; LANCMAN, Selma. Aspectos subjetivos do morar e trabalhar na mesma comunidade: a realidade vivenciada pelo agente comunitário de saúde. Interface: Comunicação, Saúde e Educação, Botucatu, v. 13, n. 28, p. 123-135, 2009. https://doi.org/10.1590/S1414-32832009000100011. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/QVPd5szJmg8XVDhyjY5fFXL/abstract/?lang=pt. Acesso em: 25 out. 2023.
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; Bornstein e Stotz, 2008BORNSTEIN, Vera J.; STOTZ, Eduardo N. Concepções que integram a formação e o processo de trabalho dos agentes comunitários de saúde: uma revisão da literatura. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13, n. 1, p. 259-268, 2008. Disponível em: https://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/concepcoes-que-integram-a-formacao-e-o-processo-de-trabalho-dos-agentes-comunitarios-de-saude-uma-revisao-da-literatura/156?id=156. Acesso em: 25 out 2023.
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).

O contexto rural investigado mostra um ACS empoderado na gestão de seu tempo de trabalho, com demarcação clara de seus horários de trabalho, ressalvadas as supracitadas atividades prioritárias. Entretanto, são evidentes as obrigações éticas e políticas que o ACS deve atender, para manter sua credibilidade, não apenas como profissional, mas também como membro pleno do grupo. Esses múltiplos papéis sociais certamente adicionam estresse e trabalho extra no cotidiano, principalmente por saberem que reclamações de comunitários às autoridades podem, não apenas abalar seu prestígio, mas, no limite, também podem afastá-los da função, o que comprometeria sua subsistência, visto a restrita oferta de postos de trabalho nessas comunidades (Correia, 2020CORREIA, Priscilla C. Sistema de auto atenção e vivências da gestação em uma comunidade rural do Amazonas. 2020. 151 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Instituto Leônidas e Maria Deane, Fundação Oswaldo Cruz, Manaus, 2020. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/handle/icict/47864/Disserta%c3%a7%c3%a3o%20Priscilla%20Cabral%20Correia.pdf?sequence=2&isAllowed=y. Acesso em: 25 out. 2023.
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).

Os ACSs que trabalham na zona rural convivem, diariamente, com algumas situações que são singulares do seu labor. Um de seus principais desafios é o acesso aos domicílios rurais, que em geral são distantes ou mesmo quase inacessíveis (Baptistini e Figueiredo, 2014BAPTISTINI, Renan A.; FIGUEIREDO, Tulio A. M. Agente comunitário de saúde: desafios do trabalho na zona rural. Ambiente & Sociedade, São Paulo, v. 17, n. 2, p. 53-70, jun. 2014. https://doi.org/10.1590/S1414-753X2014000200005. Disponível em: https://www.scielo.br/j/asoc/a/gFYwGbcLLT4gpcDDW9mNfLh/#. Acesso em: 25 out. 2023.
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). Um fator estressor no trabalho diz respeito ao meio de transporte usado nas visitas. Embora canoa e motor sejam elementos essenciais ao trabalho do ACS, tais equipamentos não são usualmente disponibilizados pela Secretaria de Saúde. Para cumprir com suas obrigações, os ACSs empregavam seus bens particulares, respondendo também por sua manutenção. Alegavam receber da Secretaria de Saúde 30 litros de gasolina por mês, destinados à realização das visitas domiciliares. A totalidade dos entrevistados afirmou ser quantidade insuficiente para cumprir a meta de visitas mensais estipuladas.

No fim do mês temos que tirar do próprio bolso para fazermos as visitas. (ACS 12, 38 anos, mulher)

“Antes eram 50 litros, mas a secretaria decidiu diminuir e agora estamos assim, fora que, se o motor quebra, precisamos pagar para consertar também. (ACS 8, 63, mulher).

Também se observou haver distinção dos ganhos entre aqueles que atuam somente como ACS e os que também coordenam as atividades na UBSR. Tais distinções se apresentam, por exemplo, na diferenciação no tipo de transporte que dispõem. Via de regra, os coordenadores logram adquirir também motores de popa - mais caros e com maior consumo de combustível - para se deslocar, ao passo que os demais ACSs usam as rabetas (motores menos potentes e mais econômicos), locomovendo-se com mais lentidão, tanto para atividades inerentes à rotina prescrita de trabalho quanto para pesca e lazer, o que evidencia limitada diferenciação entre vida pessoal e profissional.

Apego ao lugar

Lima e Bomfim (2009LIMA, Deyseane; BOMFIM, Zulmira. Vinculação afetiva pessoa-ambiente: diálogos na. psicologia comunitária e psicologia ambiental. Revista Psico, Porto Alegre, v. 40, n. 4, p. 491-497, 2009. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=5161393. Acesso em: 12 jul. 2021.
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) afirmam que o apego ao lugar está relacionado aos acontecimentos e sentimentos dos sujeitos em relação a lugares onde vivenciam experiências significativas. Corroboram achados de Góis (2005GÓIS, Cezar. Psicologia comunitária: atividade e consciência. Fortaleza: Publicações Instituto Paulo Freire de Estudos Psicossociais, 2005.) sobre moradores de uma comunidade que dividem necessidades e problemas sociais em um território compartilhado e delimitado geograficamente, ocorrendo identificação com o lugar e com o modo de vida comunal, de mesma história e cultura.

Os ACSs têm uma inserção singular no tecido social, no que se distinguem do profissional de saúde que atende numa região, mas não pertence a ela: trata-se do apego ao lugar. Por residirem nas áreas em que atuam, os locais identificados por eles como mais centrais em suas vidas são a unidade de saúde, o centro social comunitário e a escola, todos empregados para ações de caráter coletivo.

Na aplicação geral da escala que mede o apego ao lugar, os ACSs apresentaram pontuação média de 4,29, considerada um alto índice de apego no intervalo de 1 a 5. Dentre as questões escalonadas aplicadas, as maiores pontuações obtidas se referiram ao sentimento de pertencer ao lugar, bem como o interesse nas histórias da comunidade e dos vínculos com as pessoas e família (Quadro 3).

Quadro 3
Média e desvio-padrão do escore das questões de apego ao lugar referidas pelos agentes comunitários de saúde, Manaus, Amazonas, 2021/2022.

Autores como Raymond, Brown e Weber (2010RAYMOND, Christopher M.; BROWN, Gregory.; WEBER, Delene. The measurement of place attachment: Personal, community, and environmental connections. Journal of Environmental Psychology, v. 30, n. 4, p. 422-434, 2010. https://doi.org/10.1016/j.jenvp.2010.08.002. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0272494410000794. Acesso em: 17 mar. 2023.
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) e Hammitt (2000HAMMIT, William. The relation between being away and privacy in urban forest recreation environments. Environment and Behavior, v. 32, p. 521-540, 2000. https://doi.org/10.1177/00139160021972649. Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/00139160021972649?journalCode=eaba. Acesso em: 25 out. 2023.
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) apontam que sentimentos de pertencimento ou vínculo com amigos são fontes significativas de apego ao lugar, mostrando-se mais proeminentes nos estudos em áreas remotas agrícolas, com menor acesso a serviços e, portanto, mais propensos a demandar o apoio da família e amigos para execução de tarefas diárias. Neste sentido, relembre-se que os vínculos dos ACSs com a população atendida extrapolam as relações interpessoais já assinaladas, principalmente em comparação ao trabalho em meio urbano (Pinto et al., 2017PINTO, Antonio G. et al. Vínculos subjetivos do agente comunitário de saúde no território da Estratégia Saúde da Família. Trabalho Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 15, n. 3, p. 789-802, 2017. https://dx.doi.org/10.1590/1981-7746-sol00071. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/5RjYgPrMjPmZnhTbBzQGy9p/?lang=pt. Acesso em: 17 mar. 2023.
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). No meio rural a relação de confiança é alicerçada na consanguinidade, afinidade e compadrio, ultrapassando largamente a objetividade da técnica e do registro de indicadores. A força e a complexidade de tais vínculos, a premência dos problemas e as dificuldades de acesso aos serviços de saúde localizados fora do território fazem com que alguns se arrisquem a prestar cuidados não autorizados. Nessas situações, os relatos conotam orgulho e alegria por receberem elogios pela equipe da UBSF e por demonstrarem capacidade de lutar pelo bem-estar comunal. No difícil equilíbrio entre a dificuldade e a potência (Riquinho et al., 2018RIQUINHO, Deise et al. O cotidiano de trabalho do Agente Comunitário de Saúde: entre a dificuldade e a potência. Trabalho Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 16 n. 1, p. 163-182, 2018. https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00086. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/pSkqkSzg9bG39YmZyMzdtwR/abstract/?lang=pt. Acesso em: 25 out. 2023.
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), eventuais insucessos são invisibilizados.

Tomando como base os dados obtidos, a elevada média de anos dos entrevistados na função e o fato de que a maioria deles não nasceu no local onde atua, o Apego ao Lugar aponta ser um fator preponderante, construído no tempo de atuação nos locais e relevante na motivação dos profissionais em regiões rurais ribeirinhas onde se estabeleceram relações significativas (Quadro 4). Também contribuem para a micropolítica intercomunitária, por meio da qual tecem e potencializam sua rede de influência.

Quadro 4
Escore de cada agente comunitário de saúde na escala Social de Apego ao Lugar, Manaus - Amazonas, 2021/2022

Dentre as duas pontuações obtidas na escala, destaca-se, no Quadro 4, o ACS 4, que obteve o escore mais baixo (2,9). Este ACS residia na área urbana de Manaus, tendo sido transferido para a comunidade que ora atende, a qual considerava pouco receptiva. Este informante estava entre os que apontaram inseguranças associadas à violência no território e ao receio do narcotráfico. Tais sentimentos também surgiram em outros entrevistados, como o ACS 2, que pontuou abaixo da média nos itens relacionados a se sentir seguro na comunidade e de ter orgulho dela. Embora as comunidades não sejam lugares homogêneos e que albergam conflitos e contradições (Góis, 2005GÓIS, Cezar. Psicologia comunitária: atividade e consciência. Fortaleza: Publicações Instituto Paulo Freire de Estudos Psicossociais, 2005.), os dados apontam para elementos externos como fonte dos receios e inseguranças.

A lide com a violência onde atuam os ACSs foi problematizada por autores como Jardim e Lancman (2009JARDIM, Tatiana; LANCMAN, Selma. Aspectos subjetivos do morar e trabalhar na mesma comunidade: a realidade vivenciada pelo agente comunitário de saúde. Interface: Comunicação, Saúde e Educação, Botucatu, v. 13, n. 28, p. 123-135, 2009. https://doi.org/10.1590/S1414-32832009000100011. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/QVPd5szJmg8XVDhyjY5fFXL/abstract/?lang=pt. Acesso em: 25 out. 2023.
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) que, além de apontarem situações de exposição e de constrangimento enfrentadas pelos ACSs ao adentrarem os domicílios, também assinalam a vulnerabilidade e a impotência desses trabalhadores frente a situações sobre as quais não têm qualquer governabilidade. Nessas circunstâncias, silenciar e invisibilizar o problema tem se mostrado atitude comum.

Considerações finais

A investigação das relações de trabalho e modos de vida dos ACSs em localidades ribeirinhas demonstra que o cuidar em áreas rurais amazônicas envolve uma perspectiva de mundo que molda a atuação desses profissionais. As normativas e prescrições das políticas de saúde, pensadas para âmbito geral da nação, se mostram insuficientes para atender à singularidade dos territórios amazônicos. A atuação dos ACSs em atividades não prescritas demonstra que seu trabalho está mais vivo que nunca, colorindo seu fazer cotidiano e potencializando a influência que exercem nas comunidades. Isso se manifesta muitas vezes de forma discreta como microtransgressões, que são, de fato, intervenções necessárias para promover a intersetorialidade e efetivar a promoção da saúde em áreas rurais amazônicas.

Embora moldado pelos cuidados biomédicos, o modo de ação dos ACSs rurais ribeirinhos cria uma rotina fluida de trabalho que retrata também autonomia, criatividade e capacidade de adaptação para amenizar as difíceis condições de trabalho e ampliar a resolutividade em sua atuação cotidiana. Diferente de outros profissionais de saúde que atuam em espaços relativamente protegidos pelos protocolos e a presença física da unidade de saúde, os ACSs de áreas rurais amazônicas sentem-se ‘em casa’ ao cruzar as águas e senhores de suas ações ao exercerem seu ethos político com as famílias e comunidades onde atuam. A mediação exercida entre o trabalho em saúde e as relações de poder na comunidade é tensa, transitando entre os interesses locais, a disponibilidade da equipe da UBSF e as normativas da Secretaria Municipal de Saúde de Manaus, vistas, não raro, como obstáculos à execução de um trabalho eficiente e de uma resposta mais próxima às necessidades dos pacientes.

Dentre os ônus desse regime de trabalho, destacam-se incorporação, no orçamento familiar dos ACSs, de alguns custos das ações de saúde, além da obrigatoriedade do trabalho administrativo intramuros, que responde por parte importante da insatisfação e desmotivação desses trabalhadores. Tais ocorrências são subjetivamente vivenciadas como limitação pessoal e profissional frente aos demais membros da equipe de saúde e como eventos que abalam a credibilidade do agente comunitário perante a população, contribuindo para alimentar o sofrimento psíquico.

A execução de atividades não prescritas descortina necessidades de saúde nas comunidades, para quem o perfil resolutivo de uma unidade básica como a UBSF é insatisfatório. A recorrente menção à falta de meios para o atendimento de situações de urgência/emergência no território também revela a preocupação dos ACSs com o risco de agravamento dos quadros e morte dos pacientes, conhecedores que são do longo tempo e das dificuldades de deslocamento até a unidade mais próxima de urgência e emergência. A carência de meios de comunicação e outros recursos de infraestrutura também empurram os ACSs para buscar apoio político na comunidade e entre agentes externos, a fim de prover meios para atender a essas demandas que são, em última instância, de responsabilidade do poder público.

Referências

  • Financiamento Apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM), Programa de Pesquisa para o SUS, proposta 01/2017-EFP_00014168, Programa Excelência em Pesquisa do Instituto Leônidas e Maria Deane - Fiocruz Amazônia, edital n. 001/2020 (PROEP-LABS/ILMD), e Programa de Desenvolvimento da Pós-Graduação (PDPG) na Amazônia Legal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), edital n. 13/2020 . FH é bolsista produtividade em CT&I, edital n. 013/2022, da FAPEAM. LG é bolsista de produtividade CNPq. MB recebeu bolsa de pós-doutorado, projeto PDPG Amazônia Legal, componente Saúde Coletiva 510071, Capes.
  • Aspectos éticos

    O artigo deriva do “Estudo exploratório das condições de vida, saúde e acesso aos serviços de saúde de populações rurais ribeirinhas de Manaus e Novo Airão, Amazonas”, aprovado em Comitê de Ética da Fundação de Medicina Tropical, Amazonas; CAAE n. 57706316.9.0000.0005, 2019.
  • Apresentação prévia

    Não se aplica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    25 Maio 2023
  • Aceito
    28 Set 2023
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