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O QUE É A PSICANÁLISE? SÁNDOR FERENCZI E SUA REPETIÇÃO NO ARQUIVO PSICANALÍTICO

Arquivo e memória da experiência psicanalítica: Ferenczi antes de Freud, depois de Lacan, de Joel Birman. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2014. 160 p

Arquivo e memória da experiência psicanalítica: Ferenczi antes de Freud, depois de Lacan, de Joel Birman. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2014, 160 p.

A recepção do pensamento de Sándor Ferenczi na história do movimento psicanalítico é marcada por uma descontinuidade fundamental: ora suas construções no plano metapsicológico da teoria e suas intervenções no plano metodológico da clínica são negadas e excluídas para o arquivo morto, ora essas mesmas construções e intervenções, metapsicológicas e metodológicas, são afirmadas e aceitas no arquivo vivo que constitui o campo de discursividade da psicanálise.

Quando se encontram no arquivo morto, seus enunciados permanecem no lado de fora, no lado daquilo que por sua exterioridade aponta para as linhas rígidas e delimitadas do que está dentro. A experiência da psicanálise, por essa via, é definida por uma linha plena e contínua; tal qual um mineral cristalizado ou um cadáver mórbido e enrijecido, identifica-se com o que é imóvel, transformado em pedra, impermeável, descolorido e sem vida. Quando, no entanto, por encontros efetivos e singulares com o que é outro e que, assim sendo, modifica radicalmente o estatuto do mesmo, a psicanálise experimenta, por assim dizer, uma crise de evidências - crise daquilo que é tido por certo e definido numa dada época ou período -, é preciso destituir as linhas rígidas do um e produzir em seu interior uma abertura ao que é múltiplo. Da linha contínua à borda porosa, o deslocamento da fronteira que constitui a modalidade da relação da psicanálise com o exterior afirma a produção de um espaço de intertextualidade no campo do arquivo. É intertextual um discurso que comporta os diferentes fluxos de escrita e os muitos movimentos de uma intensidade que é viva e dançante.

Ferenczi, sua loucura psicótica, sua terrível infantilidade, como foi interpretado, podem enfim se aproximar. Entre o mesmo e o outro, a psicanálise descobre a repetição de um texto, de um autor que constitui uma verdadeira inscrição em seu discurso. Ferenczi se torna arquivo vivo não por sua submissão ou obediência a uma retórica do rigor, nem por sua adequação a uma doutrina ou a um campo de doutrinação de um discurso institucional, mas sim porque a repetição de um desejo de saber e a atualidade inapagável de seu traço legitimam o seu eterno retorno. O que produz essa inversão? Quais são as linhas de força que constituem a determinação de um acontecimento e de sua repetição na história de um arquivo? A presença de problemas.

Pensar a psicanálise, se perguntar e buscar responder à pergunta o que é a psicanálise?, e fazer isso não a partir das respostas dadas pelo cânone psicanalítico de uma época, mas sim a partir de problemas, formas de problematização de um campo de experiência, foi o que Ferenczi realizou, de modo que sua intervenção aponta efetivamente para a inscrição de uma diferença no arquivo. Foi ele quem mais do que qualquer outro, como disse Lacan, se perguntou insistentemente: o que significa psicanalisar? E, além disso, em que consiste ocupar o lugar em questão, a posição de analista nessa tarefa?

Que uma experiência seja psicanálise, e que essa experiência seja empreendida por um psicanalista, não é uma coisa dada, nem resolvida. A estranha inquietude de um campo que pretende fazer surgir a singularidade de uma história e promover a especificidade de um desejo aponta não para a burocratização de um sistema de formação e transmissão, nem para a padronização de um manual de tratamento e de utilização técnica, mas sim para a abertura de um encontro situado entre dois. Se para Ferenczi a psicanálise tinha se transformado numa experiência pedagógica, na qual a distinção entre professor e aluno, mestre e discípulo, indicava o exercício assimétrico de poder e de autoridade entre analista e analisante, era preciso repensar a modalidade de relação implicada nesse encontro e as condições de possibilidade para que esse encontro seja uma psicanálise. A noção de análise mútua é a resultante dessa operação; para existir psicanálise é preciso que o analista seja também analisante e continue sua análise na experiência de analisar. O desejo do analista deve estar implicado no tratamento.

A partir dessa formulação, podemos interpretar duas proposições metodológicas de Ferenczi: a técnica ativa, e, mais adiante, a neocatarse. São formas distintas que, no entanto, remetem a uma mesma e única problemática, qual seja, a participação do analista na experiência de analisar. No primeiro caso, inventa-se que o analista pode agir: interditar um gozo autoerótico ou estimular fantasias e cenários de uma sexualidade inibida, com a finalidade precisa de alcançar a materialidade da pulsão condensada nos sintomas de um corpo libidinal e reconduzir essa economia do inconsciente para o campo da fala e da linguagem. Tanto numa atividade quanto noutra, utiliza-se de uma palavra ou de um gesto que intervém no aqui e agora da transferência, a fim de relançar a análise para além da estagnação destrutiva de uma compulsividade em direção aos mecanismos de livre associação, rememoração e elaboração. É a continuidade do processo analítico que está em jogo. A atualidade do enunciado de Ferenczi é decorrente de uma preocupação em remeter sua alternativa metodológica aos desenvolvimentos da metapsicologia de Freud - a radicalidade de uma pulsão e a substituição da tópica do inconsciente pela tópica do isso, a partir dos anos 1920.

O segundo caso, apesar de responder à mesma formulação da análise mútua, é bastante distinto. Com a ideia de neocatarse, Ferenczi retoma de maneira renovada a problemática freudiana do trauma, para pensar de que modo uma forma específica de sedução pode ser revivida sob transferência e potencialmente resolvida em análise. Com a atualização na clínica da confusão de línguas entre o adulto e a criança, o mal-entendido entre a paixão e a ternura pode ser dissolvido, e isso se o analista e o analisando terminam o processo de análise numa simetria de posições. O fim de uma análise ou a sua finalidade natural descreveria a saída do analisante da posição masoquista de criança sábia, aquela que sabe de uma catástrofe real a ser encoberta e silenciada, para a posição normal do psiquismo, com a sua igualdade em relação ao analista, no caso dos homens, e a resolução da inveja de ter ou não ter o pênis, no caso das mulheres.

Ora, essa ficção normativa Freud não pode aceitar. O fim da análise seria a outra face de sua infinitude, uma mesma moeda remeteria as duas à mesma condição. Tem fim a análise que permite a dissolução da onipotência narcísica, seja da criança ou da mãe, e a entrada do sujeito no registro da castração; não tem fim a análise que, pela mesma via, permite a assunção da feminilidade diante das vicissitudes da vida e dos caminhos e descaminhos do existir. A intervenção da análise e o real dessa experiência se estendem e também terminam por aí.

Esquecer Ferenczi é impossível. Não no sentido de que a sua memória deve ser resgatada como um modelo, como um tipo a partir do qual regulamos nossa experiência. Ferenczi não deve ser esquecido, disse Freud, porque a repetição daquilo que nele difere é fundamental para a psicanálise. Deve-se repetir não uma segunda ou terceira vez, mas sim indefinidamente e à enésima potência a primeira.

Este texto quer repetir um outro. Arquivo e memória da experiência psicanalítica, de Joel Birman, é uma análise da inscrição histórica de acontecimentos em psicanálise. Aborda-se a intertextualidade dos enunciados e dos discursos de Ferenczi, Freud e Lacan no arquivo psicanalítico a fim de produzir um pensamento crítico e autoral a respeito do ser da psicanálise e de sua experiência.

Se perguntarmos ao autor do livro o que é a psicanálise? o que é a experiência psicanalítica?, ele não nos responderá o que ela é, mas reenviará essa questão a algumas outras: quem? como? onde? quando? Sua investigação teórica a propósito da problemática da experiência psicanalítica na obra de Ferenczi, desenvolvida entre os anos 1980 e 1990, e o desdobramento dessa investigação com a produção de diferentes artigos e ensaios críticos, escritos no decorrer dos últimos 30 anos, constituem a língua de sua dramatização. A escolha dos personagens e fantasmas, as máscaras e os ornamentos utilizados, as narrativas contadas e a tessitura com que amarra os diferentes nós, as formas de entrada e de saída de um mesmo problema revelam sua resposta, sua invenção.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    13 Fev 2015
  • Aceito
    02 Mar 2015
Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Instituto de Psicologia UFRJ, Campus Praia Vermelha, Av. Pasteur, 250 - Pavilhão Nilton Campos - Urca, 22290-240 Rio de Janeiro RJ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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