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A SUJEIÇÃO COMO PROCESSO PARADOXAL DE PODER: DA CONSTITUIÇÃO PSÍQUICA À ÉTICA DO DESEJO

Subjection as a paradoxical process of power: from the psychic constitution to the ethics of desire

RESUMO:

Descreveremos o processo paradoxal de poder que constitui a sujeição psíquica segundo Judith Butler e sua relação com a constituição do psiquismo em psicanálise. A interlocução entre Butler e a psicanálise deve-se ao fato de que a autora se utiliza de um aporte teórico psicanalítico no desenvolvimento das ideias. Veremos como o poder opera na internalização da consciência de culpa, e como são ambivalentes e dinâmicos os efeitos do poder na neurose e nos processos de sujeição social. Finalmente, veremos que esse poder opera na ordem fundamental das coisas, de onde se origina o desejo manifesto na realidade a partir de uma ação ética.

Palavras-chave:
psiquismo; poder; sujeição; desejo

Abstract:

We will describe the paradoxical process of power that constitutes psychic subjection according to Judith Butler, and its relation to the psychic constitution in psychoanalysis. The interlocution between Butler and psychoanalysis is due to the fact that the author uses a psychoanalytical theoretical input in the development of ideas. We will see how power works in the internalization of the consciousness of guilt, and how ambivalent and dynamic the effects of power are in neurosis and processes of social subjection. Finally, we will see that this power operates in the fundamental order of things, from which the desire manifested in reality originates from an ethical action.

Keywords:
psychism; power; subjection; desire

1 Sujeição: uma forma paradoxal de poder

O sujeito, seja como objeto do seu próprio saber, como nos diz Birman (2007BIRMAN, J. O mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2007.), ou pelo próprio sentido etimológico da palavra, nos remete àquilo que está submetido, subordinado, assujeitado. Vimos com Foucault, por exemplo, como as tecnologias desde os primórdios da modernidade produziram, reproduziram e mantiveram o sujeito em determinado lugar no interior da razão (FOUCAULT, 1984FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.). Isso demonstra como uma das “formas familiares” de ser sujeito é “sermos dominados por um poder externo a nós”. A um só tempo, esse poder também é condição e abrigo para nossa existência, pois sujeitar-se não é somente uma experiência de resignação, e o equívoco de pensá-la assim deixa de considerar o caráter paradoxal do poder, que, entre outras, demonstra que “o poder não é apenas aquilo a que nos opomos” (BUTLER, 2017BUTLER, J. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2017.).

Assim, a indicação foucaultiana de que “é preciso se livrar do sujeito constituinte” (FOUCAULT, 1984FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.) incentiva um distanciamento de qualquer tarefa que tenha a incumbência de substancializar ou conferir uma instância estática ao sujeito no psiquismo. Duas orientações nos serão úteis para isso: primeiro, a ideia de Butler da sujeição como um processo paradoxal do poder e, segundo, o recurso a essa ideia para demonstrar como se dá o processo de sujeição da consciência à culpa originária da gênese psíquica na experiência de identificação que marca definitivamente o Eu subjugado e seu lugar na regulação social. Seguiremos a trilha do poder paradoxal para destacar, afinal, como esse poder, segundo Lacan (1959-1960/2008LACAN, J. A ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2008. (Seminário, 7)), corresponde ao próprio estado de ordem que funda o desejo, e como a sujeição pode ser vista do ponto de vista da questão da ética lacaniana.

Inicialmente, tomemos o pensamento de Butler, para quem nos tornamos sujeitos através de um processo de sujeição que se configura como uma forma paradoxal de poder (BUTLER, 2017BUTLER, J. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2017.) que “significa tanto um processo de se tornar subordinado pelo poder quanto o processo de se tornar um sujeito” (BUTLER, 2017, p. 10), isto é, uma dupla valência que faz com que uma submissão primária ao poder seja a condição em que o sujeito é iniciado (BUTLER, 2017). Podemos nos referir ainda à dupla valência do poder de sujeição na forma como ele “afigura-se em duas modalidades temporais incomensuráveis: primeiro, como algo que é sempre anterior ao sujeito, fora dele mesmo e operante desde o início; segundo, como o efeito desejado do sujeito” (BUTLER, 2017, p. 23).

Como uma forma de poder, a sujeição que Butler (2017BUTLER, J. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2017.) descreve é uma “modalidade específica do psiquismo”; é uma sujeição psíquica. Essa leitura de Butler sobre o sujeito é uma leitura nada substancialista, na medida em que é possível dizer que o sujeito, para ela, é o que resulta de um processo de sujeição no qual o poder exerce papel central e exprime formas de poder distintas, ora como condição, ora como ação do sujeito, ora como constituição, ora como regulação da sujeição psíquica (BUTLER, 2017BUTLER, J. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2017.). O sujeito é o lugar onde essa ambivalência do poder se reitera, um lugar em que o sujeito surge “tanto como efeito de um poder anterior quanto como condição de possibilidade de uma forma de ação radicalmente condicionada” (BUTLER, 2017, p. 23). O poder não pode ser pensado simplesmente a partir de uma referencialidade que o localiza externa ou internamente, anterior ou posteriormente, como condição para formação do sujeito. De acordo com Butler:

O poder nunca é apenas uma condição externa ou anterior ao sujeito nem pode ser identificado exclusivamente com o sujeito. Para que as condições de poder persistam, elas devem ser reiteradas; o sujeito é justamente o local de tal reiteração, uma repetição que nunca é meramente mecânica. Na medida em que a aparência do poder passa da condição do sujeito para seus efeitos, as condições de poder (anteriores e externas) assumem uma forma presente e futura. (BUTLER, 2017BUTLER, J. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2017., p. 24).

Para Butler, o sujeito é algo que se constitui no interior do psiquismo, ou, ainda, nos meandros da vida psíquica, nos quais “como condição, o poder precede o sujeito” (BUTLER, 2017BUTLER, J. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2017., p. 22). Como aquilo que precede o sujeito, o poder acontece no interior do psiquismo, o que nos leva a afirmar que “a formação do sujeito envolve a formação reguladora da psique” (ibidem, p. 27). Essa regulação psíquica se dá, dentre outras maneiras, com o poder trabalhando para a sujeição, que pode ser descrita “na volta peculiar do sujeito contra si mesmo que ocorre em atos de autocensura, consciência e melancolia que se dão em conjunto aos processos de regulação social” (ibidem, p. 28). Dessa forma, o poder participa das artimanhas internas que arranjam os processos de sujeição, como também está nos meandros das experiências das trocas sociais, tornando nossas relações a um só tempo constitutivas e reprodutivas de uma existência pela regulação.

O poder paradoxal não se inscreve apenas como uma positividade para explicar a distinção que existe nas visões dualistas, como é o caso do psiquismo versus mundo. No que se refere ao engodo de explicar o dualismo regulador interno versus externo através do poder, eleva-se o argumento de que a internalização das normas que regulam o poder no interior do psiquismo não pode ser compreendida em conformidade com a constituição das normas sociais. Para Butler, “esse processo de internalização cria a distinção entre vida interior e exterior, oferecendo-nos uma distinção entre o psíquico e o social que difere significativamente do relato da internalização psíquica das normas” (BUTLER, 2017BUTLER, J. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2017., p. 28, grifos da autora). Dessa forma, Butler faz um pertinente questionamento em torno dos efeitos da norma externa nos meandros da vida psíquica, levantando a dúvida se a norma, quando internalizada, não pode assumir um outro caráter radicalmente novo enquanto fenômeno psíquico (BUTLER, 2017). Para a autora, são ambivalentes os efeitos psíquicos do poder social.

Essa reflexão demonstra como, de certa forma, as categorias sociais servem como garantia de uma existência reconhecível e duradoura (BUTLER, 2017BUTLER, J. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2017.), nos protegendo da condição de desamparo que não garante o reconhecimento da existência social sob a forma como a experimentamos. Isso evidencia que o poder está implicado tanto com a criação como com a manutenção da existência social do sujeito. Vejamos como essa ideia de um processo paradoxal de poder que resulta em uma sujeição repercute na forma como são descritos a constituição psíquica do sujeito, o processo de identificação e aquisição do Eu através da consciência de culpa e o assujeitamento no processo de regulação social, a partir de aportes psicanalíticos.

2 Sujeição psíquica e identificação: um mesmo processo paradoxal de poder

Na sua leitura sob forte influência do pensamento de Foucault, Butler não dispensa nem mesmo certa retórica que marca as críticas do seu antecessor aos enunciados psicanalíticos. Mas, assim como a crítica foucaultiana à psicanálise é marcada pela ambiguidade, também é marcante a maneira como certos aportes teóricos da psicanálise passam a orientar o pensamento de Butler. Por exemplo, é o caso da pulsão, esse conceito freudiano importante para a filósofa desde os seus 22 anos (KNUDSEN, 2010KNUDSEN, P. Gênero, psicanálise e Judith Butler: do transexualismo à política. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. 2007.), conceito-limite no limiar entre corpo e ideia, tão importante como noção que carrega uma potência transformadora interessante para os propósitos políticos da autora (DUNKER; COSSI, 2017DUNKER, C.; COSSI, R. K. A diferença sexual de Butler a Lacan: gênero, espécie e família. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, v. 33, p. 1-8, 2017.). Fato é que a crítica de Butler direciona-se principalmente à “incorporação estruturalista lacaniana” que marca o retorno à Freud e aos conceitos de simbólico e diferença sexual em Lacan, no que se refere à tarefa da autora em pensar os desdobramentos em torno das suas questões sobre gênero (DUNKER; COSSI, 2017KNUDSEN, P. Gênero, psicanálise e Judith Butler: do transexualismo à política. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. 2007.).

No entanto, para o nosso intento, não está no centro de nossa discussão o contraditório entre o pensamento de Butler e a psicanálise, haja vista que muitas dessas contradições já se encontram superadas e a própria filósofa entende que a psicanálise pode “fornecer uma crítica vigorosa da normalização, uma crítica vigorosa da regulação social, pode nos proporcionar uma teoria da fantasia, pode colocar em questão o corpo natural, pode observar o modo como o poder social toma forma na psique [...]” (KNUDSEN, 2010KNUDSEN, P. Gênero, psicanálise e Judith Butler: do transexualismo à política. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. 2007.). A autora propõe exatamente um desvio através de Freud para uma reflexão do problema da regulação social “não como atuante sobre a psique, mas como cúmplice na formação da psique e seu desejo” (BUTLER, 2017BUTLER, J. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2017., p. 83).

A escolha pelo desvio através de Freud se deve à maneira como são descritos os efeitos da renúncia pulsional necessária para a conformação da cultura e a conciliação do sujeito com a realidade a partir da leitura freudiana. Como especifica Birman (2016BIRMAN, J. As pulsões e seus destinos: do corporal ao psíquico. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.), a crítica psicanalítica parte da ideia básica de que os registros da consciência e do eu estariam “subordinados a outros espaços e domínios psíquicos”, espaços atravessados por “forças” e por “investimentos”, espaços “heterogêneos” atravessados por forças conflitantes entre si. Nos meandros do psiquismo, como Freud o descreve espacial, dinâmica e economicamente, processos paradoxais de poder - que, entre outras coisas, são também processos de subordinação de uma força à outra - operam ora independentes entre si, ora interrelacionados com as forças do mundo externo para a produção da consciência e das identidades dos sujeitos (BUTLER, 2017BUTLER, J. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2017.). São nesses termos que, para Butler (2017BUTLER, J. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2017.), a sujeição é o princípio de regulação segundo o qual um sujeito é formulado ou produzido.

A exigência cultural que faz com que se renuncie da satisfação pulsional, segundo Freud, é um processo que consiste na substituição do poder do indivíduo por aquele que constitui as relações em comunidade, em que “o elemento cultural passaria a existir com a primeira tentativa de regular essas relações sociais” (FREUD, 1930/2020FREUD, S. O mal-estar na cultura (1930). In: FREUD, S. Cultura, sociedade, religião: o mal-estar na cultura e outros escritos. Belo Horizonte: Editora Autêntica , 2020., p. 344). É necessário que o poder da comunidade humana limite as possibilidades de satisfação das arbitrárias moções pulsionais para o desenvolvimento da cultura; “esse processo nós podemos caracterizar pelas modificações que ele empreende nas conhecidas disposições pulsionais humanas, cuja satisfação não deixa de ser a tarefa econômica de nossa vida” (ibidem, p. 346). A renúncia pulsional, em última instância, corresponde à internalização da lei, de uma consciência moral de culpa pelo psiquismo que reverbera na forma como se dá a identificação do Eu e sua regulação pela cultura. Freud descreve isso da seguinte maneira:

De quais meios a cultura se serve para inibir a agressão que a ela se opõe, para torná-la inofensiva e para talvez eliminá-la? A agressão é introjetada, interiorizada, mas, na verdade é enviada de volta para o lugar de onde veio, portanto, é voltada contra o próprio Eu. Lá ela é assumida por uma parte do Eu, que se opõe ao restante como Supereu, e então, como consciência moral, exerce contra o Eu essa mesma disponibilidade rigorosa para a agressão, que o Eu, teria com prazer, saciado em outros indivíduos, desconhecidos a ele. Chamamos de consciência de culpa a tensão entre o severo Supereu e o Eu que lhe está submetido; ela se manifesta como necessidade de punição. A cultura lida, portanto, com o perigoso prazer de agressão do indivíduo, enfraquecendo-o e vigiando-o, por meio de uma instância em seu interior, como se fosse a ocupação de uma cidade conquistada. (FREUD, 1930/2020FREUD, S. O mal-estar na cultura (1930). In: FREUD, S. Cultura, sociedade, religião: o mal-estar na cultura e outros escritos. Belo Horizonte: Editora Autêntica , 2020., p. 377).

Vemos como, a partir de um processo paradoxal de sujeição, o psiquismo produz as condições para que a instância da autoridade primitiva se estabeleça como uma autoridade interna a partir da renúncia pulsional consequente do medo da agressão da autoridade externa, e como, a partir disso, mais uma vez a renúncia pulsional, agora diante do medo da autoridade internalizada, equivalente a uma consciência moral, produz a consciência de culpa (FREUD, 1930/2020). Resumidamente, Freud apresenta sua “tese paradoxal” da seguinte maneira: “a consciência moral é consequência da renúncia pulsional; ou: a renúncia pulsional (que nos é imposta de fora) cria a consciência moral, que então exige mais uma renúncia pulsional” (ibidem, p. 384).

Uma versão para isso que Freud está chamando a atenção está lá em Além do princípio de prazer (1920/2020). Ainda que alguns processos psíquicos possam se dar em regiões bem mais profundas, próximas ao “campo mais obscuro e inacessível da vida anímica” onde é impossível diferenciar as sensações de prazer e desprazer, o trabalho psíquico aí seria “totalmente inútil e até mesmo altamente perigoso”, assim também como seria inútil a busca por satisfação, caso essa tarefa não contasse com a influência das pulsões de autoconservação do Eu que sucede o princípio de prazer em princípio de realidade, possibilitando “o adiamento da satisfação, a renúncia às diversas possibilidades dessa satisfação, e a tolerância temporária do desprazer pelo longo desvio para chegar ao prazer” (FREUD, 1920/2020FREUD, S. Além do princípio de prazer (1920). Belo Horizonte: Editora Autêntica , 2020., p. 67).

Descrito dessa forma, e a partir da sujeição como processo paradoxal de poder em Butler, não podemos tratar os processos do psiquismo somente nos termos de uma relacionalidade com os processos da consciência. Nos termos de uma metapsicologia, o processo de sujeição psíquica corresponde ao mesmo processo de identificação no qual o Eu se submete a essa instância (autoritária, agressiva), que participa da fundação da sujeição psíquica ao tempo em que aparece como operador da consciência de culpa do Eu. O paradoxo que mantém esse processo, de uma relação ora independente, ora interrelacionada com a consciência, é que faz supor que se trata não apenas de um único processo, quando na verdade o é. Como se, do ponto de vista do poder, a sujeição se dissipa, sem perder o ímpeto regulador que há em sua gênese.

Logo, quando falamos da sujeição do Eu à consciência de culpa é ao próprio processo de constituição do psiquismo a que estamos nos referindo. Assim, “a consciência moral teria, no início, surgido da repressão de uma agressão e, no curso posterior, teria se fortalecido como novas regressões com essas” (FREUD, 1930/2020FREUD, S. O mal-estar na cultura (1930). In: FREUD, S. Cultura, sociedade, religião: o mal-estar na cultura e outros escritos. Belo Horizonte: Editora Autêntica , 2020., p. 385). Para Freud, não existe nenhuma contradição entre essas duas concepções - que aproxima radicalmente a agressividade primeva dos efeitos do mundo externo sobre o psiquismo -, e, para ele, isso é observável até mesmo na própria experiência infantil com o mundo real. Então, Freud é mais claro ainda: “na formação do Supereu e no surgimento da consciência moral, atuam conjuntamente fatores constitucionais inatos e influências do meio, do ambiente real, e que isso de forma alguma é estranho, mas a condição etiológica geral de todos os processos dessa espécie” (FREUD, 1930/2020FREUD, S. O mal-estar na cultura (1930). In: FREUD, S. Cultura, sociedade, religião: o mal-estar na cultura e outros escritos. Belo Horizonte: Editora Autêntica , 2020., p. 386). Sendo assim, a punição que vem do mundo externo não é senão aquilo que, internalizado pelo Supereu, passa a operar em nome da sujeição do psiquismo e que recupera a exigência pela satisfação agressiva de sua gênese, mantendo com isso o êxito do processo psíquico que constitui a sujeição fundamental assim como a sujeição do Eu à culpa.

Freud sugere “uma grande mudança quando a autoridade for interiorizada por meio da constituição de um Supereu” (FREUD, 1930/2020, p. 379), quando os fenômenos da consciência são elevados a uma nova fase, na qual a consciência moral e o sentimento de culpa verdadeiramente demonstram sua “força relativa” e sua “esfera de influência” através do Supereu. A consequência disso é que anula-se o “medo de ser descoberto”, assim como a diferença entre fazer ou querer fazer o mal, pois nada pode ser escondido desse Supereu. Sendo assim, o Eu pena não porque o Supereu teria algum motivo para maltratá-lo, o que acontece é que “ a influência da gênese, que deixa continuar vivendo aquilo que foi passado e superado, manifesta-se no fato de que, no fundo, tudo permanece como era no início” (FREUD, 1930/2020, p. 380). Vemos, nesse processo de internalização da culpa pelo Eu, culpa essa que já existe lá onde ela ainda não é, uma forma de funcionamento do processo paradoxal de sujeição psíquica. O desvio através de Freud serve para revelar, em circunstâncias do que pretendemos demonstrar como vida psíquica e vida real, que tanto os processos psíquicos como os processos de regulação social correspondem a uma só metapsicologia.

3 Culpa, neurose e o poder que não se nomeia

Para Freud, o sentimento de culpa seria “o problema mais importante do desenvolvimento da cultura” (FREUD, 1930/2020, p. 390). A neurose, segundo ele, é como experimentamos a consciência de culpa na cultura como um sentimento de culpa. E se esse sentimento de culpa se impõe claramente na consciência, no caso da neurose obsessiva, “na maioria dos outros casos e formas de neurose, ele fica completamente inconsciente, sem, por isso, manifestar efeitos mais insignificantes” (ibidem, p. 391). O fato de uma forma de neurose permanecer inconsciente, e mesmo assim seus efeitos continuarem significativos para a vida do sujeito, é uma excelente maneira de dizer que a neurose é o meio privilegiado de como a culpa é experimentada pelo sujeito como a manifestação de uma necessidade de punição (FREUD, 1930/2020FREUD, S. O mal-estar na cultura (1930). In: FREUD, S. Cultura, sociedade, religião: o mal-estar na cultura e outros escritos. Belo Horizonte: Editora Autêntica , 2020.).

Mais do que a manifestação de uma necessidade de punição ocasionada pela culpa, a neurose nos mostra que de alguma forma já experimentamos os efeitos do poder paradoxal que regula a vida psíquica como uma regulação do corpo, na qual o processo de sujeição se realiza obedecendo uma estrutura conformada para a instauração da lei no âmbito do psiquismo - uma incorporação da lei pelo Supereu (BUTLER, 2017BUTLER, J. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2017.). Dessa forma, é possível afirmar que a nossa experiência de existir socialmente já se refere a uma segunda forma de sujeição, interrelacionada com a nossa condição de sujeição. Butler (2017BUTLER, J. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2017.) explica isso da seguinte maneira:

A lei repressiva não é externa à libido que reprime, mas reprime na medida em que a repressão se torna uma atividade libidinal. Além disso, as interdições morais, especialmente aquelas que se voltam contra o corpo, são elas mesmas sustentadas pela atividade corporal que visam cercear. O desejo de desejar é uma vontade de desejar justamente aquilo que forcluirá o desejo, ainda que pela simples possibilidade de continuar a desejar. Esse desejo pelo desejo é explorado no processo de regulação social, pois se os termos pelos quais adquirimos reconhecimento social para nós mesmos são aqueles pelos quais somos regulados e ganhamos existência social, então a afirmação da existência implica render-se à subordinação - uma ligação lamentável. (BUTLER, 2017BUTLER, J. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2017., p. 84-85).

A neurose se refere a uma outra expressão do poder no psiquismo, que surge para a resolução de um impasse entre psiquismo e realidade. Na descrição de Freud, que serve a Butler, a neurose corresponde à passagem da libido pela censura da lei e ao retorno da própria libido, já na forma do afeto que sustenta a lei. Segundo Butler (2017BUTLER, J. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2017., p. 84), a libido se torna “o instrumento de sua própria sujeição”.

Processos de formações psíquicas, como esse que explica a neurose, nos ajudam a pensar a sujeição para além do lugar que essa condição automaticamente nos remete: o de uma repressão à qual tendemos resistir. Diferente de um regime de produção de sujeitos que se estabelece psiquicamente integrado às condutas e aos discursos relacionados à lei repressiva, “a sujeição, é, literalmente, a feitura de um sujeito, o princípio de regulação segundo o qual um sujeito é formulado ou produzido” (BUTLER, 2017BUTLER, J. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2017., p. 90, grifo da autora). Dessa forma, é incompreensível insistir em explicar o poder apenas do ponto de vista de forças externas agindo sobre o psiquismo. Diferentemente disso, a sujeição

[...] é um tipo de poder que não só unilateralmente age sobre determinado indivíduo como uma forma de dominação, mas também ativa ou forma o sujeito. Portanto, a sujeição não é simplesmente a dominação de um sujeito nem sua produção - ela também designa um certo tipo de restrição na produção, uma restrição sem a qual é impossível acontecer a produção do sujeito, uma restrição pela qual essa restrição acontece. (BUTLER, 2017BUTLER, J. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2017., p. 90).

A questão freudiana da culpa na constituição da sociedade, que pode ser resumida na assertiva de que “só há compromisso social através da internalização da repressão externa às moções pulsionais devido ao desenvolvimento de uma consciência moral fundamentalmente vinculada à experiência de culpabilidade” (SAFATLE, 2008SAFATLE, V. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Editora Boitempo, 2008., p. 149), mostra como certo regime de poder similar àquele do processo de sujeição, ou seja, uma forma paradoxal de poder, funciona no interior do psiquismo e tem uma forte relação com os processos de socialização. Esse ponto de vista não se limita a afirmar que existe um regime externo de poder que cria uma consciência que se sujeita a uma determinada racionalidade, mas demonstra como é a própria maneira pela qual o psiquismo produz uma consciência que obedece a um regime próprio e funciona por meio de uma forma de poder que remete a um assujeitamento à culpa.

Sendo assim, o poder que opera na regulação do psiquismo funciona independentemente, ao mesmo tempo em que não é independente dos efeitos causados pelos regimes de socialização do desejo e dos sujeitos nas relações. Essa constatação sustenta a afirmação de Safatle de que “esse supereu que articula uma consciência moral fundada na repressão de moções pulsionais teve, por exemplo, uma função social preciosa no desenvolvimento do capitalismo como sociedade de produção” (SAFATLE, 2008SAFATLE, V. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Editora Boitempo, 2008., p. 120, grifos do autor).

4 Os diversos lugares do poder

Quando tomamos as formas pelas quais o poder era exercido na sociedade de produção da era moderna, vemos que elas se sustentavam quase que exclusivamente pela capacidade de dissimular os aspectos repressivos que mantinham sua produção e, nesse sentido, também sua reprodução. Segundo Butler, “para ressaltar os abusos do poder como reais, e não como criação ou fantasia do sujeito, o poder é muitas vezes projetado como inequivocamente externo ao sujeito, como algo imposto contra sua vontade” (BUTLER, 2017BUTLER, J. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2017., p. 29). Essa imposição constituía “relações de poder sustentadas na dessimetria da força” (SAFATLE, 2008SAFATLE, V. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Editora Boitempo, 2008., p. 94). Ou seja, relações de poder estruturadas pelo exercício de um agente externo sobre o sujeito, a partir do qual este demonstrava uma subordinação explícita às determinações impostas.

Segundo Safatle (2008SAFATLE, V. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Editora Boitempo, 2008.), atualmente, a mudança significativa na compreensão do poder é a de que ele não está mais escamoteado nas formas de sua criação e propagação, ou, ainda, agora se trata de um poder em que a representação de sua incoerência não se encontra mais nas suas contradições. Nesse sentido, é necessário “compreender como o regime contemporâneo da transparência do poder é capaz de preencher exigências de validade e legitimação, transformando a contradição posta em contradição resolvida” (SAFATLE, 2008SAFATLE, V. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Editora Boitempo, 2008., p. 94).

Assim, no que concerne ao poder como processo paradoxal pelo qual se formam os sujeitos (interna ou externamente), assim como suas identidades assujeitadas, as questões do em torno da sujeição psíquica inferem uma distinção ou, menos que isso, uma descrição do poder em dois âmbitos do processo: o poder constituinte e regulador da psique e o poder constituinte e regulador das trocas sociais do sujeito. Apesar do impulso de tratá-lo como dois processos, fica evidente que, no final, diz-se de um mesmo processo, que se dá no interior do psiquismo mas também encontra correspondência nas relações por meio das identificações dos sujeitos e a maneira como a racionalidade opera sua própria regulação (BUTLER, 2017BUTLER, J. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2017.). No entanto, essa sujeição tem sua gênese anterior ao regime de normas das estruturas disciplinares de uma cultura, e também é para a conservação dessa gênese que se dá o processo.

Independente da disciplina normativa, há uma expressão do poder que sempre terá um efeito constituinte como aquilo em que nos implicamos, enquanto outra terá um efeito reprodutor, como aquilo a que estamos implicados em replicar (BUTLER, 2017BUTLER, J. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2017.), mesmo que o que se replique passe a constituir algo novo, a carregar alguma diferença ou, ainda, a se desdobrar para uma estrutura modificada. Ou seja, nesse processo se constitui o lugar onde se reitera o sujeito, como também o não-lugar onde é possível a reincorporação de outra norma subjetivadora. Segundo Butler:

O sujeito só permanece sujeito mediante a reiteração ou rearticulação de si mesmo como sujeito, e o fato de a coerência do sujeito depender dessa repetição pode constituir a incoerência desse sujeito, seu caráter de incompletude. Essa repetição - ou melhor, iterabilidade - torna-se assim o não-lugar da subversão, a possibilidade de recorporificar a norma subjetivadora capaz de redirecionar sua normatividade. (BUTLER 2017BUTLER, J. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2017., p. 107).

5 Um poder constituinte

Essa leitura da sujeição interessa à psicanálise quando partimos do pressuposto de que a teoria freudiana não é uma teoria que se ocupa em compreender a lei repressiva, como aparentemente pode sugerir. A psicanálise não se vale de uma mudança positiva da norma, na medida em que isso equivale apenas ao surgimento de uma outra (SAFATLE, 2015SAFATLE, V. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. Rio de Janeiro: Editora Cosac Naify, 2015.). A reiteração permanente da norma pode, inclusive, ser interpretada como uma dinâmica paradoxal de poder que funciona produzindo formas de vida, ou seja, o que nós somos e a maneira como criamos a fantasia que interpreta o mundo em que vivemos (SAFATLE, 2015), o que quer dizer que é possível pensar em formas de vida com outro regime de reconhecimento e outra relação com a norma.

É nesse sentido que o poder da lei repressiva não deve ser interpretado como o poder de uma lei rigorosa e exclusiva que funda o sujeito. Em Psicologia das massas e análise do eu (1921/2020FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu (1921). In: FREUD, S. Cultura, sociedade, religião: o mal-estar na cultura e outros escritos. Belo Horizonte: Editora Autêntica , 2020.), é possível que Freud atribua um valor realmente distinto ao poder como algo que circula no interior da linguagem quando recorre à assertiva de Le Bon, para quem “a massa está submetida ao poder realmente mágico das palavras” (FREUD, 1921/2020FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu (1921). In: FREUD, S. Cultura, sociedade, religião: o mal-estar na cultura e outros escritos. Belo Horizonte: Editora Autêntica , 2020., p. 149 ). A descrição do processo de identificação das massas com uma figura idealizada, por exemplo, demonstra uma das formas do poder organizar as trocas no campo dos afetos, tendo em vista que os indivíduos, ao sustentarem “um interesse comum por um objeto”, compartilham de “uma mesma orientação afetiva em determinada situação” (FREUD, 1921/2020FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu (1921). In: FREUD, S. Cultura, sociedade, religião: o mal-estar na cultura e outros escritos. Belo Horizonte: Editora Autêntica , 2020., p. 154 ), gerando assim “uma intensificação do afeto”, e causando nos indivíduos que sofrem a influência da massa uma “a impressão de um poder ilimitado e de um perigo imbatível” (FREUD, 1921/2020FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu (1921). In: FREUD, S. Cultura, sociedade, religião: o mal-estar na cultura e outros escritos. Belo Horizonte: Editora Autêntica , 2020., p. 157).

Uma “mesma orientação afetiva” quer dizer que os indivíduos que agem de determinada maneira na massa apostam em uma maneira do poder funcionar e não outra. Diante da abertura desse outro campo de fundamental indeterminação, importa o que extraímos de uma compreensão de poder a partir de uma afirmação como essa: “a massa é claramente mantida coesa por alguma espécie de força. Mas a que outra força poderíamos atribuir essa realização se não a Eros, que mantém unido tudo o que há no mundo” (FREUD, 1921/2020FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu (1921). In: FREUD, S. Cultura, sociedade, religião: o mal-estar na cultura e outros escritos. Belo Horizonte: Editora Autêntica , 2020., p. 164). É apropriado resgatar esta indagação pela sua força assertiva, justamente porque ela sugere que, mesmo que um poder atue em conformação com referenciais de identificação, projeção e consonância em relação ao outro e em relação a determinados discursos do grupo, essa não é a única forma de poder existente, principalmente quando é possível presumir com Freud um poder que é da ordem da linguagem, do Eros.

Que compreensão de sujeito podemos encontrar em uma ideia como esta, de um Eros que mantém unido tudo que há no mundo? Entre outras coisas, estar sujeito é uma forma de estar localizado no âmbito de tudo aquilo que se organiza na linguagem como discurso. É na forma do discurso que pode emergir um sujeito que experimenta sua sujeição como meio de constituição do laço.

Experimentar a sujeição como forma de fazer laço. No fim, a descrição do poder paradoxal que origina a sujeição psíquica, que serve também como exercício metapsicológico, não pode ter outra finalidade que não essa: ao seu fim, pensar também a feitura do laço com Eros. Não por acaso, no seu percurso em torno da Ética da psicanálise, Lacan questiona porque não se foi mais longe “no sentido da investigação daquilo que devemos chamar, propriamente falando, de uma erótica? Isso é coisa que merece reflexão” (LACAN, 1959-1960/2020LACAN, J. A ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2008. (Seminário, 7), p. 20). Nesse momento, Lacan está diante do desafio de avançar com a psicanálise a partir da falta estrutural que existe e que marca a determinação simbólica do sujeito no interior da linguagem. Ele dá o passo a mais a que se vale toda metapsicologia. E se a força dessa falta pode ser reforçada pela ausência da erótica a que ele se refere, não é por acaso que Lacan se dedica a esse dilema em torno do prazer e da realidade (LACAN, 1959-1960/2008LACAN, J. A ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2008. (Seminário, 7)), em torno da história esquecida da filogênese e a história contada pelos sujeitos, do mundo natural e o mundo dos discursos, esse dilema em torno da entrada do sujeito na linguagem.

6 Poder e desejo: a ética não-assujeitada de Lacan

“Mel, tento fornece-lhes o meu mel” (LACAN, 1959-1960/2008LACAN, J. A ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2008. (Seminário, 7), p. 29). Não hesitamos em dizer que a face mais implacável da sujeição, tanto na constituição psíquica do sujeito e sua identificação em um Eu quanto na sujeição experimentada na linguagem como sujeição social, certamente é essa que mantém sempre no campo de uma impossibilidade a oferta do Mel, que aqui não é outra coisa senão a tentativa de oferecer uma resposta sobre o desejo. Essa tentativa fracassa o tempo inteiro nos fazendo reatar e reencadear a série infinita de tentativas que correspondem ao esforço possível para dizer sobre o doce do desejo, sobre a verdade do sujeito. Não que as palavras de Lacan contivessem o peso dessa angústia quando foram proferidas; Lacan não só desconfiava, ele sabia da importância da fala. Como ele mesmo salienta, os potes de mel são metáforas dos potes de mostarda, desde que não imaginemos nenhuma relação natural entre os hexágonos espalhados pelo universo, do microcosmo da colmeia ao macrocosmo das formações de nuvens ao redor de Saturno, com a estrutura do mundo. Então, a fala, as metáforas por si só já são saídas para dizer do desejo. Logo, a sujeição não significa estritamente a limitação da experiência no mundo, haja vista que essa limitação corresponde, na verdade, a uma falta. Falta essa que não tem outra forma de ser experienciada senão pela própria conduta do sujeito no mundo, que visa, ao final, tamponá-la. Nesse sentido, Lacan fala “da nossa própria ação” no mundo como uma ação que visa, no fim, agir pelo desejo.

Sobre o mundo onde se dá essa ação, o mundo de Eros e da linguagem, não é nova uma interpretação de que Freud sempre esteve às voltas com a tentativa de emancipação, haja vista que a emancipação é uma experiência distinta, que tem correspondência com a ética de que fala Lacan. A busca por emancipação em Freud percorre os meandros do assujeitamento, seja à culpa ou às normas, como se indagasse o tempo inteiro sobre a correspondência entre a função da sujeição e o desejo. Assim, da mesma maneira que podemos indagar “por que desejamos a norma?”, também podemos nos perguntar “desejamos a norma por que ela exerce uma função vital para nós?”. Do ponto de vista freudiano, o que o psiquismo faz é internalizar o mundo real na forma de uma sujeição social. E, embora a constituição do que somos no psiquismo busque a todo instante escapar do reconhecimento normativo, de maneira geral, isso não quer dizer outra coisa que não seja que a nossa vida psíquica possui autonomia da nossa vida social (SAFATLE, 2015SAFATLE, V. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. Rio de Janeiro: Editora Cosac Naify, 2015.).

Dessa forma, a condição de sujeição social do ponto de vista freudiano, não é resultado puro e simples da imposição da lei repressiva. A sujeição social é, por assim dizer, uma forma mesmo de relacionalidade que possibilita nossa existência social, mas que não elimina a disposição filogenética do nosso psiquismo, que seria “justamente o precipitado de uma vivência, à qual vem se acrescentar, como soma dos fatores acidentais, a mais nova vivência do indivíduo” (FREUD, 1905/2016FREUD, S. Prefácio à terceira edição de Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2016. (Obras completas, 6), p. 15). E, quando Freud fala de uma disposição filogenética, não encontramos relação alguma com a biologia, pois ele está se referindo a uma irredutibilidade, uma condição irredutível dos sujeitos. Freud está dizendo que também há o irredutível quando há a sujeição. E que certamente a própria dinâmica paradoxal do poder opera para a permanência dessa irredutibilidade. No final, a resistência às normas sociais (que compreende um aspecto da sujeição social como existência social), que não contém em si outra reivindicação que não seja a reivindicação do sujeito sobre seu próprio desejo, é, para Lacan, a forma como essa irredutibilidade aparece.

Para Lacan (1964/1988LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1988. (Seminário, 11)), assim como a relação do homem com o mundo não está relacionada ao conhecimento que se tem sobre ele, também essa relação não está submetida a nenhuma analogia com uma filogênese. Isso porque se “o desenvolvimento se anima pelo acidente, pelo tropeço da tiquê, é na medida em que a tiquê nos traz de volta ao mesmo ponto em que a filosofia pré-socrática procurava motivar o próprio mundo” (LACAN, 1964/1988LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1988. (Seminário, 11), p. 64), que é a busca por respostas sobre o ser e o mundo nos elementos da natureza. Isso reforça que a menção de Freud ao primitivo e à filogênese em momento algum quer dizer de alguma concepção naturalista. O que a psicanálise de Freud fez foi introduzir na natureza (que, no final, é o protótipo por excelência do mundo em que vivemos) o campo do desejo inconsciente, ante a racionalidade que introduz a todo instante, no interior da linguagem e das relações entre os sujeitos, os meios mais fantasiosos para suplantar o vazio do desejo, inclusive o engodo da separação entre natureza e cultura e a dominação da primeira. Não por acaso, Lacan diz que Freud não introduziu o sujeito no mundo porque Descartes prestou-se a essa tarefa anteriormente, mas que a novidade freudiana foi anunciar “Aqui, no campo do sonho, está em casa” (LACAN, 1964/1988). Ou seja, no final, o irredutível é o desejo. O sonho é sobre nossa filogênese. É isso que a menção de Lacan, do sonho como lar, visa representar.

Em última instância, a irredutibilidade do desejo é aquilo que orienta a ação do sujeito no mundo, aquilo que corresponde à sua ética. Quando diz que em todas as épocas “atribuiu-se o maior valor a essa Ética, como se realmente dela esperassem realizações especialmente importantes” (FREUD, 1930/2020FREUD, S. O mal-estar na cultura (1930). In: FREUD, S. Cultura, sociedade, religião: o mal-estar na cultura e outros escritos. Belo Horizonte: Editora Autêntica , 2020., p. 401), para em seguida afirmar que, no âmbito da cultura, “a Ética, portanto, pode ser concebida como uma tentativa terapêutica, como um esforço para alcançar, através de um mandamento do Supereu, aquilo que até então não pode ser alcançado por meio de qualquer trabalho cultural” (FREUD, 1930/2020FREUD, S. O mal-estar na cultura (1930). In: FREUD, S. Cultura, sociedade, religião: o mal-estar na cultura e outros escritos. Belo Horizonte: Editora Autêntica , 2020., p. 401), Freud coloca a questão da ética nos termos de Lacan e sua leitura kantiana (LACAN, 1959-1960/2008LACAN, J. A ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2008. (Seminário, 7)), a saber, como um “dever-agir”. Isto é, tanto na aposta natural na Ética como meio de realização de algo importante como na aposta moral na Ética de que algo seja alcançado através do mandamento do Supereu no interior da cultura, que por acaso conhecemos muito bem, o Amarás o próximo..., o desejo deve ser colocado no centro do debate ético, e toda ação deve ser uma ação pelo desejo (LACAN, 1959-1960/2008LACAN, J. A ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2008. (Seminário, 7)), ou seja, uma ação na qual o sujeito se inscreve com o seu desejo. E por quê? Lacan argumenta a partir de Kant a ideia de uma imposição ética que orienta toda ação no mundo, um “Tu deves incondicional” que se transpõe a partir de um lugar vazio: “Ora, esse lugar, podemos, nós analistas reconhecer que é o lugar ocupado pelo desejo” (LACAN, 1959-1960/2008LACAN, J. A ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2008. (Seminário, 7), p. 369).

É esse o postulado ético lacaniano: “Agiste conforme o desejo que te habita?” (LACAN, 1959-1960/2008LACAN, J. A ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2008. (Seminário, 7), p. 267). Pergunta e resposta se opõem à posição da ética tradicional, da “depreciação de desejo, modéstia, temperança”; essas posições de subserviência que tão bem retratam as especificidades do poder de nossa sujeição social. Na verdade, não se trata de todo de uma oposição, pois é a ambiguidade que marca profundamente a medida que a ética tradicional toma para sua fundação. Ou seja, ambiguidade em que estão preservados tanto o sentido da ética tradicional dos serviços de bens, como o sentido da ética do desejo e seu valor de verdade (LACAN, 1959-1960/2008LACAN, J. A ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2008. (Seminário, 7)). A ética do desejo “no fim das contas, a ordem das coisas sobre a qual ela pretende fundar-se é a ordem do poder, de um poder humano, por demais humano” (LACAN, 1959-1960/2008LACAN, J. A ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2008. (Seminário, 7), p. 368). Logo, no que se refere ao desejo, “ao seu desarvoramento, a posição do poder, qualquer que seja, em toda circunstância, em toda incidência, histórica ou não, sempre foi a mesma” (LACAN, 1959-1960/2008LACAN, J. A ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2008. (Seminário, 7)). Nesses termos, o poder gira em torno de um real, que não podemos perder de vista; está relacionado com o desejo. Ainda mais que isso, trata-se de um real, de uma ordem das coisas que corresponde ao âmbito do bem que, como diz Lacan, é o âmbito do nascimento do poder.

Para finalizar, segundo Lacan, “em última instância, aquilo de que o sujeito se sente efetivamente culpado quando apresenta a culpa, de maneira aceitável ou não pelo diretor da consciência, é sempre, na raiz, na medida em que ele cedeu de seu desejo” (LACAN, 1959-1960/2008LACAN, J. A ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2008. (Seminário, 7), p. 373). Ou seja, só há uma coisa da qual pode-se ser culpado, afinal, que é abrir mão do seu desejo. Se é assim, terminamos com o argumento de que a ética do desejo, não ceder de seu desejo, corresponde a uma ação ou um imperativo sobre o sujeito exigindo “reivindico o efeito do desejo sobre minha própria sujeição”. Uma ética que se refere ao efeito do impossível e da indeterminação sobre a sujeição psíquica, a sujeição do Eu e a sujeição social, que, do ponto de vista do desejo em Lacan, só podem ser uma única coisa, que se reitera, inclusive, na própria ação do sujeito de reivindicar através da ética do desejo seu lugar no mundo.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    14 Jul 2020
  • Aceito
    17 Mar 2021
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