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GRACILIANO RAMOS E PAULO HONÓRIO: BIOGRAFIA, AUTOBIOGRAFIA MELANCÓLICA E TÉCNICA NA CRIAÇÃO LITERÁRIA

Graciliano ramos and paulo honório: biography, melancholic autobiography and technique in literary creation

RESUMO:

A partir de textos de Freud, Ogden, Leader, Ricœur e da análise de S. Bernardo, propomos três características de uma autobiografia melancólica: é uma forma literária da autorrecriminação; do espaço privado; e que não é produto de um trabalho de rememoração, mas de uma compulsão de repetição. Em seguida, comparamos a escrita de Infância e S. Bernardo, particularmente em relação às imagens sonoras, às ideias e atitudes e à relação entre pais e filhos. Por último, defendemos que a estrutura melancólica é uma potência, e não um limite criativo.

Palavras-chave:
S. Bernardo; luto; melancolia; escrita; trabalho de rememoração

Abstract:

From the writings of Freud, Ogden, Leader, Ricœur, and a Sao Bernardo’s analysis, we propound some characteristics of a melancholic autobiography: it is a literary form of self-loathing; of privacy; and that is not the outcome of a remembrance work, but of a compulsion to repetition. We then compare the writing of Infancia and Sao Bernardo, particularly concerning sonant images, ideas and attitudes, and a relationship between parents and children. Finally, we argue that the melancholy structure is a power and not a creative limit.

Keywords:
Sao Bernardo; mourning; melancholy; writing; working through

INTRODUÇÃO

Davi Arrigucci Jr, em uma palestra sobre o ponto de vista na literatura para um público de psicanalistas, aponta para a importância da escolha do tipo de narrador, ângulo e voz por parte do autor e as consequências que essa escolha acarreta no texto, pois “a coerência interna da narrativa... pressupõe detalhes muito contundentes, delicados e difíceis de lidar”. Isso ocorre porque “a técnica está articulada com a visão de mundo”, com a “temática” (ARRIGUCCI JR, 1998ARRIGUCCI, D. Teoria da narrativa: posições do narrador. Jornal de Psicanálise, n. 31(57), set. 1998, São Paulo, p. 9-43., p. 21-20).

As correntes literárias “textualistas” normalmente partem da análise da técnica para interpretar; poderíamos chamar, talvez, de uma escolha empirista. Partem do objeto - o texto - e através da interpretação chegam a uma visão de mundo.

Agora, se podemos compreender uma visão de mundo a partir da escolha da técnica, acredito que seja válido o caminho inverso: quais limitações na técnica uma visão de mundo acarreta para a escrita de um narrador melancólico? Ou seja, partindo da teoria psicanalítica do sujeito melancólico, perguntamos como seria uma autobiografia deste sujeito e comparamos estas conclusões com um texto que consideramos ter sido escrito por um, Paulo Honório.

Assim, este artigo possui uma divisão metodológica clara. Na primeira seção, haverá um enfoque no romance S. Bernardo, escrito por Graciliano Ramos, enquanto obra ficcional, suspendendo momentaneamente o seu autor. Na segunda, ocorrerá o contrário. O foco será no autor, Graciliano, tanto por suas palavras, especialmente Infância, quanto pelas palavras de outros, especificamente a biografia escrita por sua filha, Clara Ramos, e seu filho, Ricardo Ramos. Esperamos que, pela soma das duas seções, possamos, na terceira seção, destacar rapidamente o papel da técnica na criação literária.

CARACTERÍSTICAS DE UMA AUTOBIOGRAFIA MELANCÓLICA

Em Luto e melancolia (2010bFREUD, S. “Luto e Melancolia” (1917). Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). São Paulo: Companhia das Letras, 2010b. (Obras completas, 12)), Freud aponta que a “diminuição da autoestima, que se expressa em recriminações e ofensas à própria pessoa e pode chegar a uma delirante expectativa de punição” é o traço intrigante que distingue a melancolia do luto e que serve de ponto de partida para a compreensão da melancolia. Em síntese, “no luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio Eu” (2010bFREUD, S. “Luto e Melancolia” (1917). Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). São Paulo: Companhia das Letras, 2010b. (Obras completas, 12), p. 128-130). Assim, Freud aponta para a existência de duas “arenas” distintas e nas quais atuam separadamente o luto e a melancolia. A perda no luto é externa ao sujeito, apesar deste sofrer as consequências pelas ligações estabelecidas com o objeto perdido, e que tais ligações precisam ser desfeitas pelo trabalho do luto. Já na melancolia, a autorrecriminação aponta a existência de uma perda no próprio sujeito. Continua Freud: “De maneira que temos a chave para o quadro clínico, ao perceber as recriminações a si mesmo como recriminações a um objeto amoroso, que deste se voltaram para o próprio Eu” (2010bFREUD, S. “Luto e Melancolia” (1917). Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). São Paulo: Companhia das Letras, 2010b. (Obras completas, 12), p. 132-133).

A conclusão de que objetos mentais poderiam ter ações próprias e, inclusive, conflitantes entre si, levou a teoria psicanalítica a outro patamar. Thomas H. Ogden, em A new reading of the origins of object relations theory, defende que, em Luto e melancolia, Freud percebeu “nada menos do uma nova forma de subjetividade humana” (2009, p. 123) e que, como o título aponta, esse é o texto seminal da teoria das relações objetais.1 1 Acrescentamos que também serviu de base para a teoria da fantasia de Melanie Klein. Não é à toa que Klein chama a posição depressiva de “uma melancolia em statu nascendi” ([xref ref-type="bibr" rid="r10"]KLEIN, 1996[/xref], p. 388).

Usando outros termos, com o apoio do desenvolvimento posterior a Freud da teoria das relações objetais, Ogden apresenta dessa forma as ideias subjacentes em Luto e melancolia:

O “abandono” melancólico do objeto (como oposto à perda do objeto pelo enlutado) envolve um evento psicológico paradoxal: o objeto abandonado, para o melancólico, é preservado na forma de uma identificação com ele... A experiência dolorosa da perda entra em curto-circuito pela identificação melancólica com o objeto, negando, portanto, a separatibilidade [separateness] do objeto: o objeto sou eu e eu sou o objeto. Não há perda; um objeto externo (o objeto abandonado) é onipotentemente substituído por um interno (o ego-identificado-com-o-objeto).

Então, em resposta à dor da perda, o ego é dividido duas vezes formando uma relação objetal interna na qual uma parte cindida do ego (a agência crítica [the critical agency]) raivosamente (com ultraje) age sobre a outra parte cindida do ego (o ego-identificado-com-o-objeto) ... O mundo interno do melancólico é poderosamente moldado pelo desejo [wish] de manter cativo o objeto na forma de um substituto imaginário dele - o ego-identificado-com-o-objeto. Nesse sentido, a internalização do objeto torna [renders] o objeto eternamente cativo ao melancólico ao mesmo tempo que torna o melancólico infinitamente cativo ao objeto. (OGDEN, 2009OGDEN, T. H. A new reading of the origins of object relations theory. In: FIORINI, L. G.; BOKANOWSKI, T.; LEWKOWICZ, S. (orgs.). On Freud’s “Mourning and Melancholia”. London: Karnac, 2009., p. 130-131, tradução nossa).

E, mais à frente, conclui:

Aqui está, para Freud, a chave do problema teórico - a “contradição” - imposta pela melancolia: a melancolia é uma doença do narcisismo. Uma necessária “precondição” para a melancolia é um distúrbio no desenvolvimento narcísico inicial. O paciente melancólico na infância [infancy and childhood] foi incapaz de mover-se com sucesso do objeto de amor narcísico [narcissistic object love] para objeto de amor maduro envolvendo uma pessoa que é vivenciada como separada de si mesma. Consequentemente, diante da perda ou do desapontamento do objeto, o melancólico é incapaz de luto - isto é, incapaz de enfrentar o impacto total da realidade da perda do objeto e, com o tempo, mover-se para [to enter into] o objeto de amor maduro com outra pessoa. O melancólico não tem a capacidade de se separar do objeto perdido e, ao contrário, evita a dor da perda através da regressão do parentesco [relatedness] do objeto narcísico para a identificação narcísica. (OGDEN, 2009OGDEN, T. H. A new reading of the origins of object relations theory. In: FIORINI, L. G.; BOKANOWSKI, T.; LEWKOWICZ, S. (orgs.). On Freud’s “Mourning and Melancholia”. London: Karnac, 2009., p. 134, tradução nossa).

Freud percebeu e teorizou que a mente não é una e possui um desenvolvimento. Se não é una e possui uma história, distúrbios nos estágios iniciais desse desenvolvimento terão consequências estruturais. Em outros termos, esse indivíduo terá uma relação com o mundo externo determinada pelo seu desenvolvimento.

Não temos muitas informações sobre o desenvolvimento infantil do personagem-narrador de S. Bernardo, Paulo Honório. A sua origem familiar é nebulosa: “Possuo a certidão, que menciona padrinhos, mas não menciona pai nem mãe. Provavelmente eles tinham motivo para não desejarem ser conhecidos.” Assim, orgulhosamente, Paulo Honório considera-se “o iniciador de uma família”, um marco zero sem a necessidade de uma história (2007RAMOS, G. S. Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 2007., p. 15-16, III2 2 Nas citações de S. Bernardo, indicaremos em números romanos os capítulos do livro dada a importância da distribuição das citações na análise. ).

Mas, como sempre no romance, Paulo Honório não consegue manipular todas as informações e conseguimos entrever omissões nas suas falas. Ele teve uma história, apesar da aparente insignificância ao resumir dezoito anos de vida em um parágrafo: “Se tentasse contar-lhes a minha meninice, precisava mentir. Julgo que rolei por aí à toa. Lembro-me de um cego que me puxava as orelhas e da velha Margarida, que vendia doces” (2007, p. 16, III). Aí está a precária cena familiar de Paulo Honório. Além disso, é interessante notar que, em diálogo com Margarida, Paulo Honório a chama de “Mãe Margarida” (2007, p. 65, X).

Claro que tais ausências e precariedades não são suficientes para defender que Paulo Honório seja um melancólico. Por enquanto, espero apenas que sejam tratadas como indícios que vão se acumulando ao longo do romance. Por exemplo, também não temos a história familiar de Madalena; apenas sabemos que foi criada pela tia, a qual ela chama de Dona Glória. E o próprio filho de Paulo Honório e Madalena possui mais contato com Casimiro Lopes do que com os próprios pais, antes e depois do suicídio de Madalena. É claro que não pretendemos atuar como acusadores de nenhum personagem; no caso de Madalena, por exemplo, são patentes os sinais de uma depressão pós-parto e, como se sabe, como a frágil situação da mãe no puerpério afeta diretamente a saúde mental do bebê. Esperamos nos concentrar nos elementos do romance, sem juízo de valor; pelo menos, não de modo consciente.

A síntese perfeita da maternidade e da paternidade existentes no mundo do romance está presente nas únicas linhas poéticas da obra, em uma cantiga cantada por Casimiro Lopes para o filho do patrão:

Eu nasci de sete meses,

Fui criado sem mamar.

Bebi leite de cem vacas

Na porteira do curral. (2007, p. 161, XXV).

O rebento nasceu fora do tempo adequado, não teve uma relação mais individual com a mãe, foi alimentado por tantos que a individuação do cuidador não foi possível, cresceu no limiar entre os homens e os animais. S. Bernardo é povoado de homens e mulheres sem pai e mãe, e de pais e mães que perderam seus filhos.

A precária relação de Paulo Honório com o seu filho é sua derradeira autorrecriminação: “Nem sequer tenho amizade a meu filho. Que miséria!” (2007, p. 221, XXXVI). Mas, com certeza, não é a única. Os capítulos reflexivos, II, XIX e XXXVI - início, meio e fim da obra - são, na prática, coleções de autorrecriminações. Os outros, mais narrativos, mostram a força da ação de Paulo Honório, uma ação sem tempo para dúvidas, pura autoconfiança. Selecionamos alguns trechos dos capítulos citados para que a condensação das citações mostre a regularidade da autopercepção negativa do narrador.

Segundo Paulo Honório, ele não tem capacidade mental para compreender e realizar tarefas complexas, não compreende bem a linguagem e não consegue comunicar pensamentos e emoções: “Talvez deixe de mencionar particularidades úteis, que me pareçam acessórias e dispensáveis”; “Não estou acostumado a pensar”; “Se eu possuísse metade da instrução de Madalena, encoivarava isso brincando” (2007, p. 12-13, 13, II). “As minhas palavras eram apenas palavras, reprodução imperfeita de fatos exteriores, e as dela [Madalena] tinham alguma coisa que não consigo exprimir”; “A palestra de Seu Ribeiro e d. Glória é bastante clara. A dificuldade seria reproduzir o que eles dizem. É preciso admitir que estão conversando sem palavras”; “Se eu convencesse Madalena de que ela não tem razão... Se lhe explicasse que é necessário vivermos em paz... Não me entende. Não nos entendemos. O que vai acontecer será muito diferente do que esperamos. Absurdo” (2007, p. 117, 118, 120, 120, XIX). “Devo confessar que a superioridade que me envaidece é bem mesquinha . . . . e não me tornaram melhor que o que eu era quando arrastava a peroba” (p. 218, XXXVI).

Além da mente, Paulo Honório também condena o seu corpo como disforme e incapaz: “Hoje não canto nem rio. Se me vejo ao espelho, a dureza da boca e dos olhos me descontentam”; “Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes” (p. 219, 221, XXXVI).

Ao fazer o balanço de sua vida, ele é extramente duro: “Digo em voz baixa: - Estraguei minha vida, estraguei-a estupidamente. / A agitação diminui. - Estraguei a minha vida estupidamente” (. 220, XXXVI). Este trecho é a retrospectiva mais longa que ele escreveu:

O que estou é velho. Cinqüenta anos pelo S. Pedro. Cinqüenta anos perdidos, cinqüenta anos gastos sem objetivo, a maltratar-me e a maltratar os outros. O resultado é que endureci, calejei, e não é um arranhão que penetra esta casca espessa e vem ferir cá dentro a sensibilidade embotada.

Cinqüenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira sem saber para quê! Comer e dormir como um porco! Como um porco! Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo, procurando comida! E depois guardar para os filhos, para os netos, para muitas gerações. Que estupidez! Que porcaria! Não é bom vir o diabo e levar tudo? (p. 216, XXXVI).

Por fim, e mais importante, em algumas autorrecriminações, Paulo Honório culpa a profissão por ele ser quem é. Nesses casos, é possível ver que ainda há um desvio na direção da autorrecriminação, um desvio próprio da melancolia. O sujeito, mesmo apontando para si, culpa outra coisa. A realidade é dura demais; ou usando uma metáfora bíblica, o véu não pode ser levantado: “A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste” (2007, p. 117, XIX); “Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins. E a desconfiança terrível que me aponta inimigos em toda a parte! A desconfiança é também consequência da profissão. Foi este modo de vida que me inutilizou” (2007, p. 221, XXXVI).3 3 Sugerimos, talvez, que essa desconfiança tenha origem nos objetos persecutórios da posição esquizo-paranóide da teoria kleiniana, persistente pela falta do processo de integração da posição depressiva. Assim, o melancólico nem seria um indivíduo que permaneceu na posição esquizo-paranóide, nem que se desenvolveu majoritariamente para a posição depressiva, o que resultaria propriamente na capacidade de realizar o trabalho do luto. O melancólico está no limiar desta passagem ([xref ref-type="bibr" rid="r10"]GARDNER, 1993[/xref], p. 146), tendo algumas características das duas posições. Invertendo a definição de Klein, sugerimos que, talvez, possamos olhar a melancolia como uma posição depressiva permanentemente em status nascendi.

Assim, como primeira característica, sugerimos que a autobiografia melancólica é uma forma literária da autorrecriminação.

Em contraste, a elegia, ou um canto ou poema fúnebre de forma geral, é uma forma literária de desligamento: o trabalho do luto. Os quatros sonetos não nomeados de Augusto dos Anjos - Sonetos I, II, III e Soneto (2004ANJOS, A. Eu e outras poesias. Apresentação, notas e comentários de Sérgio Alcides. São Paulo: Ática, 2004. (Série Bom Livro).), dedicados ao filho natimorto e ao pai morto - são exemplos deste trabalho. Podemos acompanhar, inclusive, o desenvolvimento deste trabalho em suas diferentes etapas na série de três sonetos dedicados ao pai. Por fim, cabe registar que é possível o aparecimento de recriminações ao morto ou autorrecriminações do enlutado pelo surgimento abrupto da ambivalência; entretanto, elas não chegam a impedir o trabalho do luto. Retornaremos a comentar o trabalho do luto no final desta seção.

Este contraste entre duas formas, uma autobiografia melancólica e uma elegia fúnebre, por exemplo, prepara o caminho para uma segunda característica, especificamente sobre a circulação do texto. A autobiografia melancólica é uma forma literária do espaço privado e, portanto, adequada à expressão melancólica. É interessante notar como essa característica encaixa bem com a forma romance - uma forma que ascendeu junto com a ascensão do indivíduo moderno. E, na mesma linha, essa característica também contribui para entender o surgimento das biografias literárias de escritores melancólicos na Inglaterra do século XVII.

Temos o contrário no caso dos cantos fúnebres, por exemplo. Darien Leader descreve bem a dimensão pública do luto, particularmente, a capacidade da arte de servir como ponte entre as experiências pessoais, possibilitando o que ele chamou de “diálogo entre lutos” (2011, p. 84):

O luto público existe para permitir que o privado se expresse. A lamentação pelos heróis há muito falecidos, que possuía um lugar tão preciso na cultura helenística, tinha a função de fornecer um espaço para o lamento das perdas individuais e privadas. . . . é precisamente a estrutura pública que permite que as pessoas articulem seus próprios lutos com outras perdas não relacionadas. (LEADER, 2011LEADER, D. Além da depressão: novas maneiras de entender o luto e a melancolia. Rio de Janeiro: BestSeller, 2011., p. 82).

Acreditamos que Paul Ricœur é mais feliz quando a usa a ideia de cruzamento, ao afirmar que “os comportamentos de luto constituem um exemplo privilegiado de relações cruzadas entre a expressão privada e a expressão pública” (2007RICŒUR, P. A memória, a História, o Esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2007., p. 92). E Ricœur vai mais longe, mostrando que essa expressão pública faz parte de memórias e experiências coletivas:

É a constituição bipolar da identidade pessoal e da identidade comunitária que, em última instância, justifica estender a análise freudiana do luto ao traumatismo da identidade coletiva. Pode-se falar em traumatismos coletivos e em feridas da memória coletiva, não apenas num sentido analógico, mas nos termos de uma análise direta. A noção de objeto perdido encontra uma aplicação direta nas “perdas” que afetam igualmente o poder, o território, as populações que constituem a substância de um Estado. (2007, p. 92).

Esse amplo aspecto público e coletivo do luto não está eliminado das formas literárias mais individuais, como o romance. Um triste exemplo dessa influência foi o caso de um jovem rapaz que se suicidou após a leitura de Angústia, fato que consternou Graciliano, como conta seu filho Ricardo Ramos. Entretanto, acreditamos que a experiência melancólica possui mais facilidade de ser transmitida por uma forma como o romance: da experiência privada do narrador para a experiência privada do leitor.

Retornando à forma literária, e considerando os elementos da comunicação e as duas características apontadas da autobiografia melancólica, temos que neste subgênero o melancólico fala e fala sobre si: ele é o emissor e o assunto. E se pensarmos no melancólico leitor da obra nunca publicada, ele também é o receptor, como é o provável caso de Paulo Honório: “Há fatos que eu não revelaria, cara a cara, a ninguém. Vou narrá-los porque a obra será publicada com pseudônimo. E se souberem que o autor sou eu, naturalmente me chamarão potoqueiro” (2007, p. 11, II).

Após essas considerações sobre as suas primeiras características da autobiografia melancólica, retornamos a Paul Ricœur para apresentar alguns conceitos seus necessários para a definição da terceira característica. Ricœur, em A memória, a história, o esquecimento, especificamente no capítulo “A memória exercitada: usos e abusos”, faz uma leitura aprofundada do luto e da melancolia. E, para chegar a essa diferença, ele começa analisando um pequeno texto de Freud de 1914, traduzido na edição da Companhia das Letras como Recordar, repetir e elaborar (2010aFREUD, S. “Recordar, repetir e elaborar” (1914). Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia ... (1911-1913). São Paulo: Companhia das Letras, 2010a. (Obras completas, 10), p. 146-158):

Detenhamo-nos, por enquanto, nesse duplo manejo das resistências pelo paciente e seu analista, ao qual Freud dá o nome de Durcharbeiten, de working through, como foi traduzido em inglês, de “perlaboration”, como foi traduzido em francês, ou de “remanejamento”, como eu preferiria dizer. A palavra importante, aqui, é trabalho - ou, antes, “trabalhar” - que enfatiza não somente o caráter dinâmico do processo inteiro, mas a colaboração do analisando nesse trabalho. É em relação com essa noção de trabalho, enunciada em sua forma verbal, que se torna possível falar da própria lembrança, assim liberada, como de um trabalho, o “trabalho de rememoração” (Erinnerungsarbeit). Assim, trabalho é a palavra repetida várias vezes, e simetricamente oposta à compulsão: trabalho de rememoração contra compulsão de repetição, assim se poderia resumir o tema desse precioso pequeno ensaio. (2007, p. 85-86).

A partir deste texto de Freud sobre a técnica psicanalítica, Ricœur encontra uma base para categorizar atos distintos que se relacionam com a memória. Ricœur chama a atenção para a conceituação de trabalho de Freud, o que nos permite enxergar ações com capacidade para criar - como o trabalho de rememoração - em contraste com ações que não possuem capacidade para criar - como a compulsão de repetição. Essa distinção já está presente no texto de Freud, ocupando um papel crucial na formação dos sintomas, por exemplo. A vantagem da ênfase de Ricœur é que ela nos permite enxergar ações já conhecidas, como lembrança e luto, como trabalhos - o trabalho da lembrança e o trabalho do luto:

O que faz do luto um fenômeno normal, embora doloroso, é que, “quando o trabalho do luto se conclui, o ego fica outra vez livre e desinibido” [Freud, Luto]. É por esse aspecto que o trabalho de luto pode ser comparado com o trabalho da lembrança. . . . Pode-se sugerir que é enquanto trabalho da lembrança que o trabalho de luto se revela custosamente, mas também reciprocamente, libertador. O trabalho de luto é o custo do trabalho da lembrança; mas o trabalho da lembrança é o benefício do trabalho do luto. (2007, p. 86).

Destacando a existência de um trabalho de lembrança, Ricœur pode mostrar como o luto se relaciona com a memória, sem se confundir com a ação de lembrar o objeto perdido. O trabalho do luto pressupõe o trabalho da lembrança, mas são atos diferentes. E como são trabalhos, é possível falar em custos e benefícios. Assim, fica em evidência que tanto o trabalho da lembrança quanto o trabalho do luto envolvem a produção de materiais novos a partir de materiais pré-existentes, sendo essa a própria definição econômica de trabalho. No caso do luto, isto é, inclusive, a questão central. Se o enlutado não consegue reviver as experiências com o objeto perdido e liberar a libido para novas relações, não houve sucesso no trabalho do luto. A partir desse aspecto produtivo, Ricœur pode estabelecer uma relação de oposição entre o trabalho do luto e da rememoração de um lado e compulsão e “trabalho de melancolia” do outro:

E a primeira questão que o analista se coloca é a de saber por que, em certos doentes, vemos surgir, “em seguida a circunstâncias idênticas, no lugar do luto, a melancolia” [Freud, Luto]. A expressão “no lugar de…” assinala de saída o parentesco, do ponto de vista da estratégia da argumentação, entre os dois ensaios [Recordar vs. Luto] que estamos confrontando: no lugar da lembrança, a passagem ao ato - no lugar do luto, a melancolia. Trata-se, portanto, de certo modo, da oposição entre luto e melancolia, da bifurcação, no nível “econômico”, entre investimentos afetivos diferentes e, nesse sentido, de uma bifurcação entre duas modalidades de trabalho. (2007, p. 86, grifo do autor).

Acompanhamos Ricœur na relação de oposição que ele estabelece entre lembrança/luto e compulsão/melancolia, mas preferimos não enxergar a melancolia como trabalho, e sim como compulsão. O critério para esta conclusão é a capacidade de criar, desenvolver, mudar. Como compulsão, a melancolia está fadada à repetição. Não vemos na melancolia uma dinâmica que justifique chamá-la de trabalho.

Com este pequeno detalhe de nomeação, propomos uma terceira característica, a de que a autobiografia melancólica não é produto de um trabalho de rememoração, ela é produto de uma compulsão de repetição. E essa narrativa, que é em si resultado de uma compulsão, é a narrativa de um conjunto de atos compulsivos.

Paulo Honório é obrigado a escrever, apesar de não entender o porquê: “Com efeito, se me escapa o retrato moral de minha mulher, para que serve esta narrativa? Para nada, mas sou forçado a escrever” (2007, p. 117, XIX). A ausência de mudança própria de um ato compulsivo é sentida corporalmente como uma imobilidade: “Seria conveniente dar corda ao relógio, mas não consigo mexer-me” (2007, p. 120, XIX). E, o mais importante, por ser um ato compulsivo, não há capacidade de mudança: “Penso em Madalena com insistência. Se fosse possível recomeçarmos... Para que enganar-me? Se fosse possível recomeçarmos, aconteceria exatamente o que aconteceu. Não consigo modificar-me, é o que mais me aflige” (2007, p. 220, XXXVI).

Portanto, apesar de Paulo Honório falar de si, rondar as origens dos seus problemas, relatar suas memórias, não há um trabalho de lembrança. O narrador termina sua obra do mesmo modo que começou. E essa é a diferença entre o trabalho do enlutado em relação ao trabalho de um melancólico, pois, se o trabalho do luto foi realizado com sucesso, o enlutado está agora em condições de estabelecer novas relações, enquanto o melancólico está preso na compulsão.4 4 Em termos clínicos, e sobre o caso do Homens dos ratos, assim Gardner fala sobre a possibilidade de mudança entre as posições klenianas: “A tarefa central para o Homem dos ratos, que ainda é dominado pelas formas de representação esquizo-paranóides, é trabalhar através (to work through) da posição depressiva: combinar as representações boas e ruins de sua figura parental; e reconhecer (appreciate) que o objeto bom é o mesmo objeto ruim que foi atacado, e que este objeto sobreviveu ao ataque” (GARDNER, 1993, p. 146).

De toda forma, um narrador melancólico - com limitações na capacidade de rememoração - pode escrever sobre vivências de sujeitos não melancólicos. E isso acontece porque o melancólico vive no limiar entre prender e perder os objetos amados, vivenciando as duas possibilidades sem êxito completo em nenhuma, como Ogden descreveu.

AUTOBIOGRAFIAS E BIOGRAFIAS DE GRACILIANO RAMOS

Nesta seção, o foco é Graciliano Ramos, o autor em si. Diferentemente da seção anterior, que focou em Paulo Honório como narrador, aqui investigamos qual é a relação entre o autor e a sua obra, tentando não cair em um biografismo raso.

O primeiro passo é lembrar o caminho que Graciliano Ramos percorreu nos seus escritos autobiográficos. É claro que o “tom” autobiográfico está no conjunto da obra de Graciliano, desde Relatórios ao Governador de Alagoas (1981hRAMOS, G. Viventes das Alagoas. Rio de Janeiro: Record, 1981h.) até Pequena História da República (1981aRAMOS, G. Alexandre e outros heróis. Rio de Janeiro: Record, 1981a.). Entretanto, algumas obras se destacam. O primeiro destes textos é Infância (1981eRAMOS, G. Infância. Rio de Janeiro: Record, 1981e.), cuja produção ele terminou em vida e publicou de forma organizada. Trata-se de uma coletânea de contos muito bem estruturada, que cobre desde as primeiras lembranças do autor até a sua primeira relação sexual, fato que encerra a infância e a obra. O segundo texto é Memórias do Cárcere (1981fRAMOS, G. Memórias do Cárcere. 2vol. Rio de Janeiro: Record, 1981f.), obra mais específica, que cobre o período da prisão de Graciliano. Apesar de cobrir um período menor, neste texto, Graciliano analisa com profundidade a sociedade, como, por exemplo, na belíssima análise do direito no Brasil e do advogado Nunes Leite (1981fRAMOS, G. Memórias do Cárcere. 2vol. Rio de Janeiro: Record, 1981f., cap. 13). Assim, Memórias, a obra de maior extensão de Graciliano, cobre inúmeros temas que só são abordados obliquamente na ficção. Por fim, Viagem (1981fRAMOS, G. Memórias do Cárcere. 2vol. Rio de Janeiro: Record, 1981f.) narra a viagem do autor para a União Soviética. Neste pequeno livro, não temos a profundidade das análises de Memórias nem a intimidade de Infância. Realmente, é o livro mais específico deste grupo, tanto no período cronológico quanto no escopo dos temas.

Assim, a partir das características destes três livros, acreditamos que o caminho mais fácil para encontrar uma ponte entre os textos ficcionais e os autobiográficos seja a partir de Infância, como já foi feito várias vezes.

Já no grupo das biografias, o livro O Velho Graça: uma Biografia de Graciliano, de Dênis de Moraes (2012MORAES, D. O Velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. São Paulo: Boitempo, 2012.), pelo escopo completo e pela ampla pesquisa do autor, é a biografia de referência do escritor. Graciliano Ramos: uma Biografia Ilustrada, de Selma Caetano (2014CAETANO, S. Graciliano Ramos: uma biografia ilustrada. Rio de Janeiro: Record, 2014.), traz materiais iconográficos que complementam a obra de Moraes. Outras obras são mais específicas, como Graciliano era assim, de Ivan Barros (2004BARROS, I. Graciliano era assim. Recife: Ed. do autor, 2004.). Por último, dois livros biográficos ganham força pela intimidade com que são narrados, pois foram escritos por filhos de Graciliano - Graciliano: retrato fragmentado de Ricardo Ramos (2011RAMOS, R. Retrato fragmentado. Rio de Janeiro: Globo, 2011.) e Mestre Graciliano: Confirmação humana de uma obra, de Clara Ramos (1979RAMOS, C. Mestre Graciliano: confirmação humana de uma obra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.).

Como estamos focados na aproximação entre melancolia e escrita, pode ser produtivo que esta ponte seja no campo do que poderia se chamar técnica ou estilo. Assim, uma possibilidade de aproximação é pela relação da escrita com a audição, algo semelhante à “escrita de ouvido” de Marília Librandi Rocha (2015ROCHA, M. Escritas de ouvido na Literatura Brasileira. Literatura e Sociedade, v. 19, n. 19, abr. 2015, p. 131-48.).

Em Infância, especialmente no capítulo “Cegueira”, vemos que uma infecção nos olhos deixava o menino Graciliano “cego” durante semanas e que ele “na escuridão perceb[eu] o valor enorme das palavras” (1981eRAMOS, G. Infância. Rio de Janeiro: Record, 1981e., p. 141):

Mas os ruídos avultavam, todos os sons adquiriam sentido. Os passos revelavam as criaturas, quase se confundiam com elas: para bem dizer tinha forma, feições, e era-me possível saber de longe se estavam zangados ou satisfeitos. D. Conceição rezava o bendito na casa próxima: certamente calejava o espírito e os joelhos, adorando as litografias do oratório. Pedras de gamão estalavam à distância, dados chocalhavam, os parceiros gritavam números, excitados ou deprimidos. Ao ramerrão externo associava-se o caseiro: pedaços de conversas, lamúrias de criança, o chiar da água a ferver na chaleira, o crepitar das labaredas, a vibração do abano, o cochicho dos moleques. Os meus ouvidos aguçavam-se reconstituíam frases indistintas, supriam lacunas - e isto encurtava ou alongava o tempo. (1981eRAMOS, G. Infância. Rio de Janeiro: Record, 1981e., p. 142).

A mesma prática de construir uma imagem sonora do cotidiano é feita por Paulo Honório: “Distingo no ramerrão da fazenda as mais insignificantes minudências. Maria das Dores, na cozinha, dá lições ao papagaio. Tubarão rosna acolá no jardim. O gado muge no estábulo” (2007, p. 120, XIX). Mas, enquanto o menino Graciliano conseguia identificar pessoas, até personalidades distintas, como no caso do vizinho Chico Brabo, Paulo Honório não possuía a mesma habilidade, sempre ouvindo indistintos passos e sem compreender palavras.

Em Infância, “a igreja, de torre fina, [era] povoada de corujas” (1981eRAMOS, G. Infância. Rio de Janeiro: Record, 1981e., p. 49). Em S. Bernardo, os pios das corujas da torre da igreja estão entrelaçados com a escrita do romance. É um pio de uma coruja que traz a primeira referência a Madalena no final do primeiro capítulo; que inicia a “composição” no segundo, fato relembrado no início do último capítulo; que faz com que Paulo Honório passa a noite na igreja, a noite que Madalena se suicida; e, mesmo após terem sido mortas, o pio das corujas continuam assombrando Paulo Honório, como se vê no capítulo XIX: “Talvez seja o mesmo pio daquele tempo”.

Em Infância, “os sapos só se explicavam de noite: durante o dia as vozes deles misturavam-se a outros rumores” (1981eRAMOS, G. Infância. Rio de Janeiro: Record, 1981e., p. 141). Em S. Bernardo, “os sapos arengavam, o vento gemia. . . . o tique-taque do relógio diminui, os grilos começam a cantar. . . . a voz de Madalena continua a acariciar-me” (2007, p. 118, XIX).

As conversas sem corpos também estão presentes nos dois livros. Primeiro em Infância, como brincadeira: “Ali, oculto no milho, apenas com o rosto descoberto, enchia-me dessas idéias, imaginava-me um ser encantado. Punha-me a tagarelar. Minha irmã divagava também, sem corpo, escondida no mistério. As nossas conversas, às vezes tempestuosas, eram agora um sussurro, como as que tínhamos à noite, na sala de jantar” (1981eRAMOS, G. Infância. Rio de Janeiro: Record, 1981e., p. 67). Já em S. Bernardo, Paulo Honório, da mesma forma, à noite, na sala de jantar, fica imaginando as conversas que não teve com Madalena.

Por fim, tanto no capítulo XIX quanto no XXXVI, a ausência de sons é o distintivo final do ambiente: “Há um grande silêncio,” (2007, p. 120, XIX; 221). Os buracos dos grilos foram tampados. As corujas, mortas. Os hóspedes, embora. Madalena, morta. Este é o ambiente de Paulo Honório nos, cronologicamente, últimos capítulos, XIX e XXXVI: imobilidade, vultos e silêncio.

Além da sonoridade, é possível apresentar inúmeras outras aproximações entre ideias e atitudes presentes em S. Bernardo e Infância. A visão dos homens como animais: “me desenvolvi como um pequeno animal” (1981eRAMOS, G. Infância. Rio de Janeiro: Record, 1981e., p. 12) e “Bichos. As criaturas que me serviram durantes anos eram bichos” (2007, p. 217). A visão idílica do que a ignorância podia oferecer ao menino Graciliano, a seu pai e a Paulo Honório: “Se ele [o pai] estivesse embaixo, livre de ambições, ou em cima, na prosperidade, eu e o moleque José teríamos vivido em sossego” (1981eRAMOS, G. Infância. Rio de Janeiro: Record, 1981e., p. 30) e “Se houvesse continuado a arear o tacho de cobre da velha Margarida, eu e ela teríamos uma existência quieta. . . . Provavelmente [seria] um sujeito feliz” (2007, p. 218-219). A autorrecriminação e o rebaixamento de tudo que faz: “Ainda hoje, se fingem tolerar-me um romance, observo-lhe cuidadoso as mangas, as costuras, e vejo-o como ele é realmente: chinfrim e cor de macaco” (1981eRAMOS, G. Infância. Rio de Janeiro: Record, 1981e., p. 198).

Sobre a relação com o pai, o menino Graciliano diz: “afinal meu pai desesperou de instruir-me, revelou tristeza por haver gerado um maluco e deixou-me” (1981eRAMOS, G. Infância. Rio de Janeiro: Record, 1981e., p. 108). Toda essa situação fez com que ele “sempre tive[sse] inclinação para as crianças abandonadas” (1981eRAMOS, G. Infância. Rio de Janeiro: Record, 1981e., p. 211). Não é gratuito que o primeiro texto ficcional de Graciliano, aos onze de idade, seja sobre um menino mendigo. A partir desse cenário familiar, é fácil compreender o alcance da análise de Clara Ramos acerca da relação entre o menino Graciliano e o filho de Paulo Honório e Madalena:

E quem lhe conta estórias de onça, embala-o com cantigas, com ele rodopia em grandes gargalhadas, é o capataz de confiança do pai, o pistoleiro-chefe do “pequeno exército de potentados matutos”. Desse funcionário do serviço de segurança doméstica, o pequeno guardará boas lembranças.... Vale a pena lembrar que também no romance S. Bernardo será um assassino profissional que se compadecerá e cuidará do abandonado filho de Paulo Honório. (RAMOS, 1979RAMOS, C. Mestre Graciliano: confirmação humana de uma obra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979., p. 26).

Mas a relação de abandono não é exclusiva do menino Graciliano. Paulo Honório afirma claramente: “eu não gosto do menino” (2007, p. 206, XXIV). E Clara Ramos conta um episódio da vida do pai, após o falecimento da primeira esposa que ilustra a relação de Graciliano com os filhos do primeiro casamento:

Desde que Maria Augusta morreu, Graciliano mostra indisfarçada repulsa pela recém-nascida, nela projeta a responsabilidade da desgraça. Por longo tempo a punirá, como inimiga a conservará longe de seus olhos. Dois anos depois do nascimento da menina, ao encontrar certo dia no portão de casa uma empregada com uma belíssima criança ao colo, a tomará nos braços, encantado, perguntará a quem pertence aquele bebê de anúncio publicitário. Informado que se trata da própria filha, devolverá a carga, fisionomia mudada. (1979, p. 47).

Assim, acreditamos que seja patente como a situação familiar de Graciliano e Paulo Honório é semelhante. Na próxima seção, apontamos a diferença entre ambos e a relação com a escrita.

A TÉCNICA É O LIMITE

Desde as resenhas de Antonio Candido, em 1945, e a publicação de Ficção e Confissão até o texto de Sérgio Miceli, a relação de Graciliano com seus protagonistas é investigada.

Essas questões nos levam para o debate atual sobre a autoficção. Eurídice Figueiredo, em Mulheres ao espelho: autobiografia, ficção, autoficção, faz um amplo e profundo percurso dos gêneros que atravessam esse campo de discussão: ficção biográfica de escritor, memórias, romance autobiográfico ou romance pessoal, o diário como procedimento literário etc. Entre a defesa do “retorno do autor” e a sua crítica, incluindo a defesa da indiferença, vemos uma tensão, uma disputa sobre concepções de literatura. E, de certa forma, todos estão certos.

Recuando o debate sobre o que é literatura, acreditamos que a definição mais funcional seja a de David Damrosch em What is world literature?: “literatura pode ser melhor definida pragmaticamente como quaisquer textos que uma dada comunidade de leitores toma como literatura.” (2003, p. 14). A seguinte passagem apresenta uma rápida comparação:

Na tradição ocidental desde Platão e Aristóteles, literatura é algo que um poeta ou escritor compõe - uma presunção construída sobre os nossos termos “poesia” (do grego poieses, “fazendo”) e “ficção” (do latim facere, “fazer”) . . . . Em contraste, várias culturas têm visto a literatura como profundamente cravada na realidade, nem acima nem abaixo do mundo físico e moral de sua própria audiência. Escritores não são vistos como se estivessem compondo coisas, mas observando e refletindo sobre o que eles veem ao redor deles. (DAMROSCH, 2003DAMROSCH, D. What is world literature? Princeton: Princeton UP, 2003., p. 14).

O recurso a um texto teórico da world literature tem o objetivo de sairmos, momentaneamente, da tradição ocidental para percebermos que todo este debate está restrito à nossa tradição e é nela que temos que perceber a fundamentação histórica, tanto da defesa como da crítica da autoficção.

É certo que a crítica à autoficção é conservadora, pois busca manter a poética do gênio criador romântico e que a base histórica dessa poética é o indivíduo moderno. Mas essa base também possibilita uma tentativa de interpretação “mais” objetiva do mundo exterior. É a mesma base que permite as narrações realistas, uma tentativa, no final das contas, de entender o outro (mesmo que isso implique uma absorção acrítica dos conceitos científicos, como em alguns momentos do naturalismo).

Por outro lado, a autoficção dá nome a um movimento poético de autores que estavam «marginais» em relação a um centro; movimento, inclusive, que continua a tendência de afirmação do indivíduo na modernidade. Se podemos falar do outro, por que não falar de si? Ou falar do outro do meu local?

Parte dos defensores da autoficção buscam argumentos na forma; por exemplo, a defesa de que numa autoficção o nome do autor deve coincidir com o do protagonista. Bem mais funcional é um critério subjetivo, centrado no sujeito, como a da intencionalidade, em que o que está em discussão é a presença ou não da intenção, como propõe Eurídice Figueiredo (2013FIGUEIREDO, E. Mulheres ao espelho: autobiografia, ficção, autoficção, EdUERJ, 2013., p. 62, 65).

Considerando essa ideia de intencionalidade, podemos lembrar Antonio Candido que, no lançamento de uma nova edição de Ficção e Confissão, em 1992, afirma que “ainda [lhe] parece justo o pressuposto básico [do livro], isto é, que ele passou da ficção para a autobiografia como desdobramento coerente e necessário da sua obra” (2007CANDIDO, A. Ficção e confissão. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2007., p. 14). Acreditamos que essa fórmula de Candido pode ser melhor entendida à luz do que discutimos sobre melancolia e escrita e das diferenças entre Paulo Honório e Graciliano Ramos.

Enquanto Paulo Honório tornou-se um coronel que subjugou o mundo, Graciliano teve um desenvolvimento diferente. Após contar um episódio em que quis provar a si mesmo que podia bater em alguém, assim reflete Graciliano: “O meu ato era a simples exteriorização de um sentimento perverso, que a fraqueza limitava. Se a experiência não tivesse gorado, é possível que o instinto ruim me tornasse um homem forte. Malogrou-se - e tomei rumo diferente” (1981eRAMOS, G. Infância. Rio de Janeiro: Record, 1981e., p. 88).

Esse rumo diferente foi o dos devaneios e sonhos. Foi da capacidade de ir além da autorrecriminação e reconhecer a própria fragilidade. Em Infância, vemos esse aprendizado no menino Graciliano: “Pela primeira vez ri de mim mesmo” (1981eRAMOS, G. Infância. Rio de Janeiro: Record, 1981e., p. 198). Já Paulo Honório não possui essa capacidade. Em S. Bernardo, não há espaço para humor sobre si mesmo, apenas para ironia aos outros.

Esse rumo foi o da observação: “Todos os meus tipos foram constituídos por observações apanhadas aqui e ali, durante muitos anos. É o que penso, mas talvez me engane. É possível que eles não sejam senão pedaços de mim mesmo e que o vagabundo, o coronel assassino, o funcionário e a cadela não existam” (1981hRAMOS, G. Viventes das Alagoas. Rio de Janeiro: Record, 1981h., p. 196). A introspeção provocada pela melancolia abriu os olhos e ouvidos para enxergarem o mundo externo.

Assim, e respondendo a questão do final da segunda seção, os melancólicos podem escrever tanto do seu mundo interior quanto do mundo exterior. Graciliano deu vida a João Valério, Paulo Honório, Luís da Silva e Baleia. A estrutura melancólica é, então, uma potência, e não um limite criativo. O limite está na técnica narrativa. Técnica que nos convence da existência de cada personagem e nos faz esquecer do autor. E, no domínio dessa técnica, Graciliano foi um mestre.

REFERÊNCIAS

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  • BARROS, I. Graciliano era assim Recife: Ed. do autor, 2004.
  • CAETANO, S. Graciliano Ramos: uma biografia ilustrada Rio de Janeiro: Record, 2014.
  • CANDIDO, A. Ficção e confissão Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2007.
  • DAMROSCH, D. What is world literature? Princeton: Princeton UP, 2003.
  • FIGUEIREDO, E. Mulheres ao espelho: autobiografia, ficção, autoficção, EdUERJ, 2013.
  • FREUD, S. “Luto e Melancolia” (1917). Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916) São Paulo: Companhia das Letras, 2010b. (Obras completas, 12)
  • FREUD, S. “Recordar, repetir e elaborar” (1914). Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia ... (1911-1913) São Paulo: Companhia das Letras, 2010a. (Obras completas, 10)
  • GARDNER, S. Irrationality and the philosophy of psychoanalysis Cambridge: Cambridge UP, 1993.
  • KLEIN, M. Amor, culpa e reparação Rio de Janeiro: Imago, 1996.
  • LEADER, D. Além da depressão: novas maneiras de entender o luto e a melancolia Rio de Janeiro: BestSeller, 2011.
  • MICELI, S. Ficções de poder e sexo em Graciliano. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, v. 35, n. 3, nov2016, p. 149-155.
  • MORAES, D. O Velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. São Paulo: Boitempo, 2012.
  • OGDEN, T. H. A new reading of the origins of object relations theory. In: FIORINI, L. G.; BOKANOWSKI, T.; LEWKOWICZ, S. (orgs.). On Freud’s “Mourning and Melancholia” London: Karnac, 2009.
  • RAMOS, G. Alexandre e outros heróis Rio de Janeiro: Record, 1981a.
  • RAMOS, G. Angústia Rio de Janeiro: Record, 1981b.
  • RAMOS, G. Caetés Rio de Janeiro: Record, 1981c.
  • RAMOS, G. Infância Rio de Janeiro: Record, 1981e.
  • RAMOS, G. Linhas tortas Rio de Janeiro: Record, 1981d.
  • RAMOS, G. Memórias do Cárcere 2vol. Rio de Janeiro: Record, 1981f.
  • RAMOS, C. Mestre Graciliano: confirmação humana de uma obra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
  • RAMOS, R. Retrato fragmentado Rio de Janeiro: Globo, 2011.
  • RAMOS, G. S. Bernardo Rio de Janeiro: Record, 2007.
  • RAMOS, G. Viagem Rio de Janeiro: Record, 1981g.
  • RAMOS, G. Viventes das Alagoas Rio de Janeiro: Record, 1981h.
  • RICŒUR, P. A memória, a História, o Esquecimento Campinas: Editora da Unicamp, 2007.
  • ROCHA, M. Escritas de ouvido na Literatura Brasileira. Literatura e Sociedade, v. 19, n. 19, abr. 2015, p. 131-48.
  • 1
    Acrescentamos que também serviu de base para a teoria da fantasia de Melanie Klein. Não é à toa que Klein chama a posição depressiva de “uma melancolia em statu nascendi” ([xref ref-type="bibr" rid="r10"]KLEIN, 1996[/xref], p. 388).
  • 2
    Nas citações de S. Bernardo, indicaremos em números romanos os capítulos do livro dada a importância da distribuição das citações na análise.
  • 3
    Sugerimos, talvez, que essa desconfiança tenha origem nos objetos persecutórios da posição esquizo-paranóide da teoria kleiniana, persistente pela falta do processo de integração da posição depressiva. Assim, o melancólico nem seria um indivíduo que permaneceu na posição esquizo-paranóide, nem que se desenvolveu majoritariamente para a posição depressiva, o que resultaria propriamente na capacidade de realizar o trabalho do luto. O melancólico está no limiar desta passagem ([xref ref-type="bibr" rid="r10"]GARDNER, 1993[/xref], p. 146), tendo algumas características das duas posições. Invertendo a definição de Klein, sugerimos que, talvez, possamos olhar a melancolia como uma posição depressiva permanentemente em status nascendi.
  • 4
    Em termos clínicos, e sobre o caso do Homens dos ratos, assim Gardner fala sobre a possibilidade de mudança entre as posições klenianas: “A tarefa central para o Homem dos ratos, que ainda é dominado pelas formas de representação esquizo-paranóides, é trabalhar através (to work through) da posição depressiva: combinar as representações boas e ruins de sua figura parental; e reconhecer (appreciate) que o objeto bom é o mesmo objeto ruim que foi atacado, e que este objeto sobreviveu ao ataque” (GARDNER, 1993, p. 146).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    15 Jan 2020
  • Aceito
    09 Dez 2020
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