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Depois, o começo: a literatura e o vazio

Then, the Beginning: Literature and Emptiness

Resumo

Este texto, escrito ao modo de cenas de leitura, aborda narrativas que problematizam a questão do começo. O foco analítico está no caráter aporético que articula o começo (da vida, da experiência, do sentido) com a linguagem. Trata-se de um problema temporal, por certo, mas igualmente ontológico e, afinal, político. O que emerge da leitura crítica dessas cenas literárias inaugurais é o fundamento ausente que nos constitui, individual e coletivamente.

Palavras-chave:
Começo; literatura; vazio.

Abstract

This text, written in the manner of reading scenes, approaches narratives that problematize the question of the beginning. The analytical focus is on the aporetic character that articulates the beginning (of life, of experience, of meaning) with language. It is a temporal problem, of course, but also an ontological and, ultimately, a political one. What emerges from the critical reading of these inaugural literary scenes is the absent foundation that constitutes us, both individually and collectively.

Keywords:
Beginning; literature; emptiness.

Resumen

Este texto, escrito a modo de escenas de lectura, aborda narrativas que problematizan la cuestión del comienzo. El análisis se centra en el carácter aporético que articula el principio (de la vida, la experiencia, del sentido) con el lenguaje. Es un problema temporal, sin duda, pero también ontológico y, después de todo, político. Lo que emerge de la lectura crítica de estas escenas literarias inaugurales es el fundamento ausente que nos constituye, individual y colectivamente.

Palabras-clave:
Comienzo; literatura; vacío.

Senhoras e Senhores, devo dizer-lhes que hoje sinto de maneira particularmente virulenta os sintomas de dor que acompanham a dificuldade de começar. Peter Sloterdijk, Vir ao mundo, vir à linguagem1 1 Tradução do autor, como nas demais citações de textos críticos ou teóricos que não estejam no idioma original.

In medias res

Proferidas há mais de 30 anos, as palavras de Peter Sloterdijk não foram ouvidas logo no começo de suas conferências no J. W. Goethe-Universität de Frankfurt, no verão de 1988. Não foram ditas na primeira semana, no primeiro dia, no início da primeira lição. Ao contrário, “os sintomas da dor” surgem apenas na terceira conferência - e tampouco em seu começo: aparecem com a exposição já em andamento, no meio de um parágrafo, na continuação, por assim dizer, do já começado... A princípio poderíamos imaginar que a dificuldade referida, em primeira pessoa, por Sloterdijk, um filósofo, diria respeito à angústia do poder/não poder começar uma fala, um texto, uma escritura. Afinal, essa é uma espécie de lugar-comum em que inevitavelmente se encontram aqueles que esgrimem o pensamento na tentativa seja de escrevê-lo, de inscrevê-lo ou ainda de excrevê-lo, externando-o no vertiginoso vazio de um suporte qualquer: o deserto - com infinitas saídas/sem saída alguma - de uma superfície de exposição “em branco”. Amós Oz dá contorno preciso à cena:

Eu, por outro lado, nutria certa inveja de meu pai. A cada vez que ele se sentava para trabalhar num ensaio acadêmico, sua mesa ficava tomada, de ponta a ponta, por livros abertos, separatas, referências, léxicos, uma bateria de artilharia de apoio. Ele jamais tinha que se sentar, como eu faço, e encarar uma única e zombeteira página em branco no meio de uma mesa árida, como uma cratera na face da lua. Somente eu e o vazio e desespero. Experimente alguma coisa a partir de absolutamente nada. (OZ, 2007OZ, Amós. E a história começa. Trad. Adriana Lisboa. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007., p. 7-8)

E é nesse sentido, ainda, que José Emilio Pacheco, amanuense de Juan José Arreola, registra as extemporâneas condições de nascimento de Bestiario:

Como todos los adolescentes, pensaba que escribir era lo más fácil del mundo. Basta sentarse para tener en el plazo de una semana tres cuentos, ocho poemas, dos comedias, cinco artículos. Todo fluye, nada nos detiene. Cómo iba yo a entender algo para lo que entonces ni siquiera teníamos un nombre: el bloqueo, la angustiosa imposibilidad de escribir que tarde o temprano llega para todos. […] Ahora comprendo la angustia de Arreola. Mientras más perentoria es la urgencia de entregar un texto más imposible se vuelve el sentarse a escribirlo. (PACHECO, 2006PACHECO, José Emilio. Amanuense de Arreola. In: ARREOLA, Juan José. Bestiario. México D.F.: Joaquín Mortiz , 2006, p. 39-47., p. 43-44)

Graciliano Ramos, por sua vez, nos apresenta o tópos com as palavras de um narrador célebre. Em São Bernardo, o relato é iniciado com a afirmação de que, antes, ele já fora imaginado, e mesmo planejado, devendo sua construção ser obra de “divisão do trabalho”, isto é, do trabalho de outros sujeitos/personagens, mais capazes, acreditava o narrador, de contribuir com “as letras nacionais”, já que ele mesmo, embora responsável pelo plano, julgava-se, contudo, pouco apto para a empresa literária. Todavia, ainda mais notável é que, somente com o malogro desse intento inicial, vale dizer, só depois de dois capítulos frustrados, e todavia - frisemos - registrados desse modo, como capítulos “perdidos”, o narrador anuncie, na abertura do terceiro capítulo: “Começo declarando que me chamo Paulo Honório, peso oitenta e nove quilos e completei cinquenta anos pelo S. Pedro” (RAMOS, 1984RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 1984., p. 15). Em poucas palavras: quando Paulo Honório diz quem é, a narrativa já o dissera; sua vida, digamos assim, já estava “perdida” para a linguagem. Amós Oz formula essa mesma síntese, inesquecível e repetitiva como a pedra de Drummond: “Talvez a stanza com que Dante abre O Inferno pudesse servir como início padrão para todas as histórias: ‘No meio do caminho da vida’ é, mais ou menos, onde tantas histórias de fato começam” (2007OZ, Amós. E a história começa. Trad. Adriana Lisboa. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007., p. 9).

Deuses protéticos

Sim, Sloterdijk poderia se referir também a isso, afinal: a essa disponibilidade de um sujeito que pode colocar-se no mundo a partir do gesto de encarar uma superfície vacante, para então, como se “do nada”, começar. Não obstante, e antes de tudo, em suas lições o filósofo pretendia ressaltar o caráter aporético de todas saídas e do começo mesmo; o começo por antonomásia: o fato de vir-ao-mundo, nascer. Aporético porque não temos acesso à origem da nossa própria passagem pelo mundo, embora lá, ou melhor, embora aqui já estivéssemos. Nossas histórias começam apenas quando já começadas, quando conduzidas por outro. Como se depois de ditadas a um amanuense, a exemplo do relato de José Emilio Pacheco, que segue desta maneira:

El último plazo vencía el 15 de diciembre de 1958. [...] Ya no recuerdo si la idea fue mía o de Vicente Leñero, Eduardo Lizalde o el propio Fernando del Paso, a quien 35 años después Arreola iba a dictarle en Guadalajara el primer tomo de sus Memorias. Sea como fuere, el 8 de diciembre, ya con el agua al cuello, me presenté en Elba y Lerma a las nueve de la mañana, hice que Arreola se arrojara en su catre, me senté a la mesa de pino, saqué papel, pluma y tintero y le dije: - No hay más remedio. Me dicta o me dicta. Arreola se tumbó de espaldas en el catre, se tapó los ojos con la almohada y me preguntó: - ¿Por cuál empiezo? Dije lo primero que se me ocurrió: -Por la cebra. Entonces, como si estuviera leyendo un texto invisible, el Bestiario empezó a fluir de sus labios: “La cebra toma en serio su vistosa apariencia, y al saberse rayada, se entigrece. Presa de su enrejado lustroso, vive en la cautividad galopante de una libertad mal entendida”. (PACHECO, 2006PACHECO, José Emilio. Amanuense de Arreola. In: ARREOLA, Juan José. Bestiario. México D.F.: Joaquín Mortiz , 2006, p. 39-47., p. 46)

Por qual começo? Ou por qual dos começos? O que se afirma no texto de Pacheco é que, no momento em que começou a fluir dos lábios de Arreola, Bestiario já era um fluxo, já havia partido. Suas primeiras folhas seriam impossíveis, ilegíveis como as folhas iniciais do Livro de areia, paradoxal protagonista do conto homônimo de Borges. Pois uma vez que a lembrança do próprio nascimento não se faz presente; uma vez que se começa sem a consciência de haver estado presente desde o primeiro momento em que já se estava presente, a história de cada um começa, de fato, com a ausência de si (SLOTERDIJK, 2006SLOTERDIJK, Peter. Venir al mundo, venir al lenguaje: lecciones de Frankfurt (1988). Trad. Germán Cano. Valencia: Pre-Textos, 2006., p. 40-41). Assim, a pergunta de Arreola deve ser entendida em seu viés ontológico. Com ela se abre uma cena em que a fundação (do sujeito, da escritura, do sentido) não coincide consigo mesma: indecidível, ela se retira, demandando um suplemento póstero; uma decisão, que será sempre parcial e contingente, por isso dada a descontinuidades e discórdias, mas sem a qual nenhuma fundação poderá vir a ser.

Isso não implica excepcionalidade alguma. Ao contrário, poderíamos mesmo dizer que o vir-a-ser só depois, mas por meio de uma linguagem que nos antecede ou não possuímos - que não nos é própria - seria um a priori comunitário. Para além de qualquer exegese, é essa a condição sugerida no “Gênesis” bíblico. O relato canônico nos apresenta um Deus segundo, dependente do narrador para tomar a palavra: “Deus disse: ‘Haja luz’ e houve luz”. Se o criador do céu e da terra está “no princípio” de tudo, seu acesso só é franqueado pelo narrador, que assim tem a primazia e o ombreia em onisciência e criatividade: “Deus viu que isso era bom” (1985A BÍBLIA DE JERUSALÉM. Nova Edição, Revista. São Paulo: Paulus, 1985., p. 31). Em outras palavras, toda fundação demanda uma prótese; a essa prótese daríamos aqui o nome de ficção. Isso significa que poderíamos escutar a pergunta de Arreola de modo literal, como um questionamento que busca acompanhar rigorosamente a própria letra, para chegar a sua inscrição primeira, mas que inevitavelmente se formula como indagação endereçada a um desígnio alheio: por qual [eu] começo? Vale dizer: por qual [marca] começa o eu? O que se indaga é a existência: colocar-se no espaço de uma elipse, de um texto invisível que tentamos ler na carnadura de um nome sempre impróprio, na cadeia de significantes, potencialmente sem fim, chamada linguagem. Com efeito, quem responde é sempre um outro: você começa pela zebra.

Acefalia

Ou pelos macacos. Pelos insetos. Pelo mimetismo. É o que parece sugerir Arreola, neste que poderia ser considerado um breve ensaio antropológico sobre a comunidade e seus mitos de origem:

Insectiada Pertenecemos a una triste especie de insectos, dominada por el apogeo de las hembras vigorosas, sanguinarias y terriblemente escasas. Por cada una de ellas hay veinte machos débiles y dolientes. Vivimos en fuga constante. Las hembras van tras de nosotros, y nosotros, por razones de seguridad, abandonamos todo alimento a sus mandíbulas insaciables. Pero la estación amorosa cambia el orden de las cosas. Ellas despiden irresistible aroma. Y las seguimos enervados hacia una muerte segura. Detrás de cada hembra perfumada hay una hilera de machos suplicantes. El espectáculo se inicia cuando la hembra percibe un número suficiente de candidatos. Uno a uno saltamos sobre ella. Con rápido movimiento esquiva el ataque y despedaza al galán. Cuando está ocupada en devorarlo, se arroja un nuevo aspirante. Y así hasta el final. La unión se consuma con el último superviviente, cuando la hembra, fatigada y relativamente harta, apenas tiene fuerzas para decapitar al macho que la cabalga, obsesionado en su goce. Queda adormecida largo tiempo triunfadora en su campo de eróticos despojos. Después cuelga del árbol inmediato un grueso cartucho de huevos. De allí nacerá otra vez la muchedumbre de las víctimas, con su infalible dotación de verdugos. (ARREOLA, 2006ARREOLA, Juan José. Bestiario. México D.F.: Joaquín Mortiz, 2006., p. 14)

Sabemos que a literatura configura, na contemporaneidade, uma sorte de espaço residual para as sagrações, os mitos, as semelhanças. Mas, uma vez que a mimese tem sua verdade e autonomia drenadas - uma vez que a linguagem, por assim dizer, dobra-se sobre si mesma, desse modo desdobrando-se sem limites sobre o mundo -, o trabalho da literatura passa a ser, eminentemente, a repetição, e não a reprodução ou a representação. Com o recuo dos astros, a literatura é o lugar onde se reencena, uma e outra vez, o desastre: “daí que o estudo de uma estética generalizada, ou até mesmo gerativa, o mimetismo, possa ser a forma arcaica e proto-histórica de resgatar a potência da imaginação”, escreve Raúl Antelo, “deslocando o conflito primordial de uma sociedade que declina e, em vão, se debate, agonicamente, em busca de sua própria identidade” (2010ANTELO, Raúl. De cidade/city/cité a Babel. Texto lido no 2º Workshop de Investigação “As Cidades”, no marco do Programa Próximo Futuro da Fundação Gulbenkian de Cultura Contemporânea, em fevereiro de 2010. Disponível em: Disponível em: https://proximofuturo.gulbenkian.pt/ . Acesso em: 15 abr. 2020.
https://proximofuturo.gulbenkian.pt/...
, p. 6). Arreola nos faz pertencer a uma espécie triste, tensionada entre os astra (mundo sideral) e os monstra (mundo visceral). A descrição do comportamento desse inseto sem nome (“Insectiada”), mas que poderia ser chamado de louva-a-deus, ou manta religiosa, torna-se assim emblemática. Roger Caillois dedicou-se ao tema em mais de uma oportunidade, destacando a pregnância e a ambivalência de sentidos relacionados ao culto dos insetos (a extensa família dos mantídeos), nas mais diversas culturas, mas principalmente em culturas africanas. Segundo Caillois, o fenômeno manifestado pela manta religiosa, carregado de “capacidade lírica” e de notável poder de evocação, nos ajudaria a compreender “o que pode ser a mitologia em estado nascente, antes que as determinações sociais tenham consolidado sua estrutura” (1939CAILLOIS, Roger. La manta religiosa. In: El mito y el hombre. Trad. Ricardo Baeza. Buenos Aires: Sur, 1939a, p. 43-106.a, p. 45). Ao inseto seriam creditadas as capacidades criadora, nomeadora e imaginativa das divindades e de certas entidades demoníacas. Se, ao que parece, os homens se sentiram impressionados, em todas as partes, pelo inseto, isso se deve sem dúvida, escreve Caillois, ao seu “aspecto singularmente antropomórfico”, “fonte infalível de sua influência sobre a afetividade humana” (1939CAILLOIS, Roger. La manta religiosa. In: El mito y el hombre. Trad. Ricardo Baeza. Buenos Aires: Sur, 1939a, p. 43-106.a, p. 59).

Agora, esse “recuo”, por meio do mimetismo, à proto-história do homem é ainda mais notável em razão de sua contemporaneidade. Pois a análise do comportamento dos insetos aponta, justamente, a inconsciência, a ausência, em suma, a acefalia que habita os nossos começos, e que parece de algum modo nos acompanhar. Se, de fato, a fêmea da manta religiosa “despedaza al galán” ou decapita “al macho que la cabalga”, como afirma, implicado, o narrador de Arreola, no homem, por sua vez, sugere Roger Caillois, em “graus diversos, deixam-se advertir certas imaginações nas quais não é difícil perceber a sobrevivência ou o pressentimento de tais dramas: fantasmas que respondem ao comportamento de outras espécies vivas” (1939CAILLOIS, Roger. La manta religiosa. In: El mito y el hombre. Trad. Ricardo Baeza. Buenos Aires: Sur, 1939a, p. 43-106.a, p. 68). E mesmo comportamentos entre homens e mulheres, durante o ato sexual, ou entre mães e filhos, durante a gestação e depois a amamentação, são, para o autor, em termos biológicos, atos automáticos, inconscientes, ao modo de vestígios de uma convergência de instintos com a manta religiosa (CAILLOIS, 1939CAILLOIS, Roger. La manta religiosa. In: El mito y el hombre. Trad. Ricardo Baeza. Buenos Aires: Sur, 1939a, p. 43-106.a, p. 71-72). E ainda em termos de imaginação, “seja mítica, seja delirante” (CAILLOIS, 1939CAILLOIS, Roger. La manta religiosa. In: El mito y el hombre. Trad. Ricardo Baeza. Buenos Aires: Sur, 1939a, p. 43-106.a, p. 73), a aproximação é consistente. Os complexos de castração, por certo, mas igualmente os mitos e o folclore são incrivelmente disseminados, apontando correspondências ou analogias entre o ato dos insetos e a representação dos homens. Finalmente é o mimetismo dos mantídeos o que aqui cobra destaque:

[...] ilustra de maneira às vezes alucinante o desejo humano de reintegração à insensibilidade original, que é preciso referir à concepção panteísta da fusão na natureza, frequente tradução filosófica e literária do retorno à inconsciência pré-natal. (CAILLOIS, 1939CAILLOIS, Roger. La manta religiosa. In: El mito y el hombre. Trad. Ricardo Baeza. Buenos Aires: Sur, 1939a, p. 43-106.a, p. 93)

É dessa maneira - acefalicamente, isto é, com o abandono da consciência, da personalidade, do saber, do logos - que o mimetismo nos remeteria, por um lado, a uma continuidade, a uma não autonomia em relação ao restante da natureza; e, por outro, a uma paradoxal rememoração do imemorial, franqueando um acesso àquilo que a rigor só comparece como ausência, e enquanto ausência deve ser ficcionado. Que o homem, como afirmou Benjamin, seja o mais prolífico produtor de semelhanças, a começar pela primitiva leitura dos astros, das vísceras, dos acasos, das danças (1994aBENJAMIN, Walter. A doutrina das semelhanças. In: Magia e técnica, arte e política (Obras escolhidas v. 1). 7a. ed. Trad. Sérgio Paulo Rouanet, 1994a, p. 108-113., p. 108); e que, além disso, para o filósofo, no decorrer de milênios, essa faculdade mimética tenha migrado para a linguagem, sendo esta, desde então, nosso principal meio mimético, no qual podemos ler os resíduos dessas práticas antigas (1994aBENJAMIN, Walter. A doutrina das semelhanças. In: Magia e técnica, arte e política (Obras escolhidas v. 1). 7a. ed. Trad. Sérgio Paulo Rouanet, 1994a, p. 108-113., p. 112) - aí encontramos, enfim, o vínculo que faz da experiência com a linguagem uma forma de acesso a um vasto arquivo de semelhanças imateriais e inconscientes (viscerais, corpóreas), arquivo que nos remeteria, enfim, à plasticidade abismal dos começos, situação em que, na síntese de Roger Caillois, “o semelhante produz o semelhante” (1939CAILLOIS, Roger. Mimetismo y psicastenia legendaria. In: El mito y el hombre . Trad. Ricardo Baeza. Buenos Aires: Sur , 1939b, pp. 107-152.b, p. 133).

Em uma palavra, “não há Babel sem mimetismo” (ANTELO, 2010ANTELO, Raúl. De cidade/city/cité a Babel. Texto lido no 2º Workshop de Investigação “As Cidades”, no marco do Programa Próximo Futuro da Fundação Gulbenkian de Cultura Contemporânea, em fevereiro de 2010. Disponível em: Disponível em: https://proximofuturo.gulbenkian.pt/ . Acesso em: 15 abr. 2020.
https://proximofuturo.gulbenkian.pt/...
, p. 8). Ou seja, trata-se, como para Sloterdijk, do parto, do vir-ao-mundo; o que não significa vir ao eu ou a outras formas do fechamento identitário e da apropriação, mas sim vir - ou não cessar de ser lançado - à impessoalidade, imprópria e incontornável, da linguagem. Benjamin: “Se o gênio mimético foi verdadeiramente uma forma determinante na vida dos Antigos, eles não poderiam deixar de atribuir ao recém-nascido a plenitude desse dom, concebido sobretudo como um ajustamento perfeito à ordem cósmica” (1994aBENJAMIN, Walter. A doutrina das semelhanças. In: Magia e técnica, arte e política (Obras escolhidas v. 1). 7a. ed. Trad. Sérgio Paulo Rouanet, 1994a, p. 108-113., p. 110). E Caillois: “O essencial é que reside no ‘primitivo’ uma tendência imperiosa a imitar, unida à crença na eficácia da imitação, tendência ainda bastante forte no ‘civilizado’ para continuar sendo nele uma das condições do caminho do seu pensamento entregue a si mesmo” (1939bCAILLOIS, Roger. Mimetismo y psicastenia legendaria. In: El mito y el hombre . Trad. Ricardo Baeza. Buenos Aires: Sur , 1939b, pp. 107-152., p. 133-134). A linguagem assemelha-se, portanto, não ao princípio genético, ao modelo, ao objeto primeiro ou único, mas à semelhança mesma: ao poder assemelhar-se como modo de assimilar-se ao meio (CAILLOIS, 1939CAILLOIS, Roger. Mimetismo y psicastenia legendaria. In: El mito y el hombre . Trad. Ricardo Baeza. Buenos Aires: Sur , 1939b, pp. 107-152.b, p. 135), ao espaço, vale dizer, ao vazio. “É semelhante, mas não semelhante a algo, senão simplesmente semelhante” (1939bCAILLOIS, Roger. Mimetismo y psicastenia legendaria. In: El mito y el hombre . Trad. Ricardo Baeza. Buenos Aires: Sur , 1939b, pp. 107-152., p. 139).

Haroldo de Campos ensaia essa assimilação em Galáxias - em suas palavras, uma “pulsão bioescritural em expansão galática” (1984CAMPOS, Haroldo de. Galáxias. São Paulo: Ex Libris, 1984., s/p) - por meio da articulação das metáforas da viagem e do livro. Trabalhando no registro da pulsão, a economia do que ele nomeia “formantes”, como em Roger Caillois, é ambivalente e dispendiosa, isto é, não pode ser resumida pelo princípio do prazer ou por qualquer funcionalismo ascendente. Como sabemos, o desejo humano de reintegração à insensibilidade original, essa tendência à fusão no vazio do espaço, trabalha em silêncio, o que significa, neste caso, onde o nome, onde a forma falha: “no extremar dos limites da poesia e da prosa” (CAMPOS, 1984CAMPOS, Haroldo de. Galáxias. São Paulo: Ex Libris, 1984., s/p), mas também do ensaio, e das línguas, e do léxico, e das figuras do orgânico e do inorgânico, e do começo e do fim. Um começo que, como sugerido anteriormente, é sempre já começado; é continuidade, acréscimo, suplemento, algo bem assinalado, no primeiro formante de Galáxias, tanto pela ausência de pontuações como pela presença - repetida, uma e outra vez - do e:

e começo aqui e meço aqui este começo e recomeço e remeço e arremesso e aqui me meço quando se vive sob a espécie da viagem o que importa não é a viagem mas o começo da por isso meço por isso começo escrever mil páginas escrever milumapáginas para acabar com a escritura para começar com a escritura para acabarcomeçar com a escritura por isso [...] (CAMPOS, 1984CAMPOS, Haroldo de. Galáxias. São Paulo: Ex Libris, 1984., s/p)

A ponte

Reformulemos uma vez mais: como se pode começar com a linguagem, se o começo do ser e o começo da linguagem não são coincidentes ou contínuos, ainda que sejam, de algum modo, para nós, indissociáveis? Em suma: como começar-se? Sloterdijk afirma que desde a instância pré-natal que prepara e marca a chegada ao mundo (que na verdade ainda não responde a uma economia de sentido própria do mundo e, sim, a uma potência de sentido incerto) estamos a ponto de linguagem.

Pois toda vida está já a seu modo a ponto de linguagem, está já repleta de sons, palavras, imagens fundamentais e cenas com que transcreve o texto do seu romance cotidiano. Essa sensação de poder começar que experimentam de um modo particularmente intenso em suas próprias carnes os debutantes literários tem sua razão de ser no já-ser-começado de um texto existencial pré-literário. […] Quer dizer, só porque já estamos em meio a uma história podemos começar a contar nossa própria história. [...] A partir do primeiro alento, inclusive desde os primeiríssimos estágios da noite intrauterina, toda vida é tão receptiva à escritura como uma tabuleta de cera, tão permeável como uma película sensível à luz. Neste material nervoso se gravam os caracteres inesquecíveis da individualidade. O que chamamos indivíduo é basicamente o pergaminho vivente em que se desenham, segundo a segundo, os perfis da crônica de nossa existência em meio a uma escritura nervosa. Aqui se pode ir tão longe como para dizer que existem livros impressos preto sobre branco porque existem indivíduos que dirigem sua condição existencial de livro neurológico para fora; são como folhas escritas que um bom dia ultrapassam a si mesmas e se fazem escreventes. (SLOTERDIJK, 2006SLOTERDIJK, Peter. Venir al mundo, venir al lenguaje: lecciones de Frankfurt (1988). Trad. Germán Cano. Valencia: Pre-Textos, 2006., p. 19-20)

Estar a ponto da linguagem. Eis a condição - sem dúvida difícil e doída - para uma poética do começar e, logo, colada ao corpo, para uma poética do desligamento. Giorgio Agamben dá o nome de infância a esse mesmo ponto ou parto - a essa fratura, com efeito, onde se joga, na língua, uma relação com o que não tem relação, com uma privação. O filósofo italiano frisa que não se trata de um lugar cronológico nem de um estado psicossomático independente da linguagem (e que poderia ser recobrado ou restaurado por alguma ciência ou nostalgia). De outro modo, a infância é a experiência da linguagem “como tal, na sua pura autorreferencialidade”. Trata-se de “arriscar-se em uma dimensão perfeitamente vazia”, onde não se encontra diante de si “senão a pura exterioridade da língua” (AGAMBEN, 2005AGAMBEN, Giorgio. Experimentum linguae. In: Infância e história. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2005, p. 9-18., p. 12-13). Sem ser conduzido por uma língua natural, por uma voz própria ou inata, o homem se encontra então lançado na linguagem como quem se arrisca, precisamente, no incontornável hiato entre som e sentido, voz e linguagem, phoné e logos. Ultrapassar a si mesmo e dirigir para fora essa condição de pergaminho vivente não implica qualquer solução de continuidade; implica, sim, um movimento a contrapelo: “voltar as páginas até chegar às folhas em branco do princípio, esse lugar onde carecemos de toda propriedade e só sentimos o vazio” (SLOTERDIJK, 2006SLOTERDIJK, Peter. Venir al mundo, venir al lenguaje: lecciones de Frankfurt (1988). Trad. Germán Cano. Valencia: Pre-Textos, 2006., p. 25).

Em La Habana ou no exílio, o escritor e engenheiro cubano Antonio José Ponte, movido, sem dúvida, por uma crítica ao fechamento das instituições oficiais, salienta essa aporética relação com o que não cessa de se esquivar de toda relação. Diante da censura doméstica e ajudado pelo crescente interesse das editoras estrangeiras na nova narrativa cubana, o autor preferiu publicar seus contos em outras partes, “exportándolos para protegerlos”, como escreve Esther Whitfield no prólogo de Un arte de hacer ruinas y otros cuentos, de modo que sua narrativa toma parte no que ela denomina a “literatura desterrada” de Cuba (2005PONTE, Antonio José. Un arte de hacer ruinas y otros cuentos. México: FCE, 2005., p. 17). Em 1999, Antonio José Ponte mora no Porto, em Portugal, como bolsista do Parlamento Internacional de Escritores. O texto intitulado “Un paréntesis de ruinas”, recolhido em La fiesta vigilada (2007PONTE, Antonio José. La fiesta vigilada. Barcelona: Editorial Anagrama, 2007.), dá voz a um narrador que, por sua vez, discorre sobre o período fora de Cuba, e sobre suas noites insones, e sobre seus sonhos. Esboçando uma singular ruinologia, o próprio narrador nos conduz à interpretação dessas imagens extemporâneas, vale dizer, nos conduz ao vazio, ao estranho que habita a semelhança:

En los insomnios del año en Portugal que pasé había un puente. Las ventanas del apartamento daban a un puente de hierro construido por un discípulo de Eiffel (río arriba, la ciudad contaba con otro, obra del maestro), y despierto en las madrugadas yo sopesaba los inconvenientes de regresar a La Habana después de vivir en el extranjero durante todo un año. Quien gaste en pensamientos sus noches en vela, no va a encontrar mejor imagen donde poner los ojos. Porque un puente es relación sobre el vacío, lo mismo que el trabajo de la cabeza insomne. [...] Más tarde, cuando ya no pude verlo, el puente entró en mis sueños. Pese a lo incierto que resulta recordar lo que se sueña, sé que una noche sostuvimos diálogo. Y no el metafórico que alcancé mientras soliloquiaba con la vista fija en él, sino conversación de humanos. [...] Los dos conversamos en ese portugués del norte, como de piedras en la boca. Luego supe que todo el sueño era una variación sobre el tema del doble. Pues mi apellido paterno significa puente en portugués y en ese idioma es palabra de género femenino: a ponte. Lo cual venía a coincidir con la inicial de mi nombre. De manera que yo hablaba dentro del sueño con otra figuración de mí mismo. (PONTE, 2007PONTE, Antonio José. La fiesta vigilada. Barcelona: Editorial Anagrama, 2007., p. 157-158)

A ponte, ou un paréntesis de ruinas. Eis, para Antonio José Ponte, a prótese, ou seja, o próprio nome. Que um outro lhe aponte essa prótese “más tarde”: eis novamente a ficção, a linguagem; uma vez mais, o começo, depois.

Ex-

Vir-ao-mundo. Existir. Exilar-se. O que lemos nessas experiências narrativas pode ser estendido, ao modo de uma proposição antropológica, uma sorte de antropologia especulativa (Cf. SAER, 2009SAER, Juan José. “O conceito de ficção” [Publicado originalmente em Punto de Vista, n. 40, Buenos Aires, jul.-set. 1991] . Trad. Jorge Wolff. Sopro, n. 15, ago. 2009, p. 01-04. Disponível em: Disponível em: http://www.culturaebarbarie.org/sopro/n15.pdf . Acesso em: 15 abr. 2020.
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). Ou nas palavras de Emanuele Coccia: “A potência que permite identificar-nos com uma imagem e reconhecer nossa natureza mesmo quando ela está fora de nós é aquilo que se costuma chamar faculdade mimética” (2010COCCIA, Emanuele. A vida sensível. Trad. Diego Cervelin. Desterro [Florianópolis]: Cultura e Barbárie, 2010., p. 57). Trata-se de uma forma de “exílio indolor”, com o qual a existência coincide com uma abertura radical, indissociável das imagens, das ficções - da vida sensível. O sentido etimológico de “exílio” é significativo; nele compreende-se um movimento duplo e algo redundante: parte de exsilium, do verbo exsilire, por sua vez formado por salire, que significa sair, saltar, e o prefixo ex, que significa fora: saltar, sair para fora (RAFFIN, 2011RAFFIN, Marcelo. Exilio y potencia en la perspectiva agambeniana. In: ROMANDINI, Fabián Ludueña; BURELLO, Marcelo; TAUB, Emmanuel. Políticas del exilio: orígenes y vigencia de un concepto. Caseros: EDUNTREF, 2011, p. 59-72., p. 59). Digamos: uma repetição do parto e do partir, e que, portanto, deve ser considerada simultaneamente em sua capacidade de drenagem de significados estanques e disseminação de sentidos possíveis. Em uma palavra, o exílio é sobretudo potência. Dessa maneira é pensado por Agamben, que a partir da leitura de Plotino encontra na figura do exilado e no conceito de exílio um saber - pois se trata da figura do filósofo, da vida filosófica - desprendido, que não responde aos desígnios da exceção e do bando de um indivíduo da comunidade (1996AGAMBEN, Giorgio. Política del exilio. Trad. Dante Bernardi. Archipiélago. Cuadernos de crítica de la cultura, Barcelona, n. 26-27, 1996, p. 41-52., p. 51-52). Ao contrário, para Agamben, trata-se de uma politicidade genuína que se firma precisamente no caráter estranho de sua própria intimidade; uma condição bem ilustrada pela fala de Sócrates diante da tribuna, ou seja, no seio do “interesse comum” e da coletividade, ao afirmar-se estrangeiro a esse lugar, alheio à retórica do direito, ao discurso dos tribunais (Cf. DERRIDA; DUFOURMANTELLE, 2003DERRIDA, Jacques; DUFOURMANTELLE, Anne. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar da hospitalidade. Trad. Antonio Romane. Revisão técnica: Paulo Ottoni. São Paulo: Escuta, 2003.). Em sintonia com essas ideias está Jean-Luc Nancy, filósofo que pensa a existência como um exílio sem retorno e sem pesar; o exílio como a constituição mesma da existência (1996NANCY, Jean-Luc. La existencia exiliada. Trad. Juan Gabriel López Guix. Revista Archipiélago, Barcelona, n. 26/27, invierno 1996, p. 34-39.). Reitera-se com isso que ler é retraçar uma ontologia do vazio; é escavar o fundamento ausente que nos constitui: até que na origem se revele o vestígio de uma absoluta impropriedade compartilhada, nosso comum (Cf. ESPOSITO, 2003ESPOSITO, Roberto. Communitas: origen y destino de la comunidad. Trad. Carlo Rodolfo Molinari Marotto. Buenos Aires: Amorrortu, 2003.). Tal é o endereçamento aberto pelo prefixo ex-, o mesmo em exílio e em existência. A mesma prótese ou ponte nos encaminha para fora, uma e outra vez:

Daí que não se trate de estar “em exílio no interior de si mesmo”, senão ser si mesmo um exílio: o eu como exílio, como abertura e saída, saída que não sai do interior de um eu, senão eu que é a saída mesma. E se o “a si” adota a forma de um “retorno” em si, trata-se de uma forma enganosa: porque “eu” só tem lugar “depois” da saída, depois do ex, se é que se pode dizer assim. Não obstante, não há “depois”: o ex é contemporâneo de todo “eu” enquanto tal (NANCY, 1996NANCY, Jean-Luc. La existencia exiliada. Trad. Juan Gabriel López Guix. Revista Archipiélago, Barcelona, n. 26/27, invierno 1996, p. 34-39., p. 38).

Política

Neste ponto, não será exagero sublinhar a importância política das considerações aqui alinhavadas. Pois tais considerações apostam no que seria a tarefa crítica - deliberada ou não - desse exercício da linguagem que, mesmo colapsado, atravessado, movido ao exterior de si, ainda pode, contemporaneamente, ser chamado literatura, esta tão mais efetiva quanto mais intensa e expansivamente permitir que o pensamento e a imaginação operem de modo não tributário do tempo e das necessidades da teleologia. No entanto, infelizmente, está longe de ter produzido todos os efeitos possíveis em nossa vida comunitária o entendimento de que a existência individual e coletiva se dá sempre entre-tempos e de maneira não autônoma. Pois, se o objetivo é, afinal, um reposicionamento do presente e um encaminhamento distinto do que pode ser o futuro, qualquer trabalho disruptivo deve implicar, primeiro, uma revolução no tempo passado. A essa espécie de revolução pretérita poderíamos remeter uma formulação conhecida como o efeito a posteriori.

Para além de Freud, Borges sintetizou sua operação num título célebre: trata-se de Kafka e seus precursores (não o contrário). O que também poderia ser traduzido como: a assinatura cria o signatário, assim como a obra cria o autor, etc. Mas talvez tenha sido Walter Benjamin quem produziu as linhas que delineiam a questão da maneira mais oportuna. Como sabemos, o problema coincide com as elaborações do autor em torno da noção de origem. O começo, ou a origem, como afirma Benjamin, “não tem nada a ver com a gênese. O termo origem não designa o vir-a-ser daquilo que se origina, e, sim, algo que emerge do vir-a-ser e da extinção”. De acordo com uma dialética que aponta como o único e o recorrente se condicionam mutuamente, Benjamin postula que o reconhecimento do originário “não se encontra nunca no mundo dos fatos brutos e manifestos”; ele depende de “uma visão dupla, que o reconhece, por um lado, como restauração e reprodução, e por outro, e por isso mesmo, como incompleto e inacabado” (1984BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Trad. Sergio P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984., p. 67-68).

A reiteração do começo, a repetição do começo já começado cria um estranho efeito sobre seu aspecto originário: a efetividade do evento primeiro depende de um efeito a posteriori, tendo em vista que, como um furo na ordem simbólica, o momento inaugural é encontrado em sua falta. Ele só pode ser reconhecido depois, por meio do diferimento de um segundo evento que o expõe, sim, mas enquanto vazio. É assim que o começo retorna do futuro - e se abisma numa contemporaneidade fraturada (Cf. AGAMBEN, 2014AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? In: Nudez. Trad. Davi Pessoa. Belo Horizonte: Autêntica, 2014, p. 19-33.). Benjamin retomaria o problema nas teses “Sobre o conceito de história”, texto escrito sob a sombra do avanço nazista e do suicídio do autor. Novamente o originário se apresenta como um fato estilhaçado que apenas se configura postumamente:

O historicismo se contenta em estabelecer um nexo causal entre vários momentos da história. Mas nenhum fato, meramente por ser causa, é só por isso um fato histórico. Ele se transforma em fato histórico postumamente, graças a acontecimentos que podem estar dele separados por milênios. O historiador consciente disso renuncia a desfiar entre os dedos os acontecimentos, como as contas de um rosário. Ele capta a configuração em que sua própria época entrou em contato com uma época anterior, perfeitamente determinada. Com isso, ele funda um conceito do presente como um “agora” no qual se infiltraram estilhaços do messiânico. (1994bBENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura (Obras escolhidas v. 1). 7 ed. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense , 1994b, p. 222-234., p. 232)

A seu modo, mas não muito distante de Benjamin, Michel Foucault busca na literatura moderna um pensamento do exterior. Encontra em Blanchot - para quem, como sabemos, “a literatura vai em direção a ela mesma, em direção à sua essência, que é o desaparecimento” (BLANCHOT, 2005BLANCHOT, Maurice. O desaparecimento da literatura. In: O livro por vir. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005, pp. 285-295., p. 285) - sua formulação mais bem acabada; mas também em Kant e em Baudelaire reconhecerá os traços de uma atitude-limite da modernidade. “Essa modernidade” - diz o filósofo em 1984, partindo justamente desses dois autores - “não liberta o homem em seu ser próprio; ela lhe impõe a tarefa de elaborar a si mesmo” (2005BLANCHOT, Maurice. O desaparecimento da literatura. In: O livro por vir. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005, pp. 285-295., p. 344). Quer dizer, Foucault considera a modernidade não um período histórico específico e, sim, uma rede de relatos em que cada ator envolvido deve se lançar no mundo, não para se reconhecer na verdade do já-dado, mas para inventar-se a si mesmo diante do vazio. Para Foucault, Kant e Baudelaire teriam praticado com rigor essa invenção crítica de si, isto é, teriam levado adiante, ao limite, o que ele nomeia uma “ontologia histórica de nós mesmos” (2005FOUCAULT, Michel. O que são as luzes? In: Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 335-351., p. 348). Dispensando qualquer universalismo transcendental ou metafísico, seu trabalho articula arqueologia e genealogia, ou seja, é indissociável dos discursos e das práticas que nos constituem como sujeitos e como objetos históricos; é indissociável da contingência que nos fez ser o que somos. Não para dessa contingência deduzir “o que para nós é impossível fazer ou conhecer”, afirma Foucault, mas para deduzir, isso sim, “a possibilidade de não mais ser, fazer ou pensar o que somos, fazemos ou pensamos” (2005FOUCAULT, Michel. O que são as luzes? In: Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 335-351., p. 348). É o começo, portanto, o que está por vir.

Referências

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  • 1
    Tradução do autor, como nas demais citações de textos críticos ou teóricos que não estejam no idioma original.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    27 Ago 2020
  • Aceito
    20 Nov 2020
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