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A lua vem da ásia de Campos de Carvalho como paródia de Viagem ao fim da noite de Louis-Ferdinand Céline

Campos de Carvalho’s A lua vem da ásia as a parody of Louis-Ferdinand Céline’s Journey to the end of the night

Resumo

Amparando-se em Uma teoria da paródia, de Linda Hutcheon, o artigo constata que A lua vem da Ásia, de Campos de Carvalho, é uma paródia de Viagem ao fim da noite de Louis-Ferdinand Céline. Descreve-se o romance carvalhiano como uma tensa síntese bitextual que retoma, de maneira deferente, a visão de mundo pessimista do romance céliniano, não obstante contraditando-a, com distanciamento crítico e ironia, ao endossar reiteradamente a busca por uma transcendência transmundana, isto é, uma salvação através de outro mundo.

Palavras-chave:
A lua vem da Ásia; Campos de Carvalho; Viagem ao fim da noite; Louis-Ferdinand Céline; paródia

Abstract

Drawing on Linda Hutcheon’s A Theory of Parody, this article considers Campos de Carvalho’s A lua vem da Ásia as a parody of Louis-Ferdinand Céline’s Journey to the End of the Night. The article describes A lua vem da Ásia as a tense bitextual synthesis that deferentially picks up the pessimistic worldview of Céline’s novel, whilst contradicting it with critical distance and irony by repeatedly endorsing the quest for a transmundane transcendence, i.e., a salvation by means of another world.

Keywords:
A lua vem da Ásia; Campos de Carvalho; Journey to the end of the night; Louis-Ferdinand Céline; parody

Résumé

En s’apuiant sur Une théorie de la parodie, de Linda Hutcheon, l‘article constate que La lune vient d‘Asie de Campos de Carvalho est une parodie de Voyage au bout de la nuit de Louis-Ferdinand Céline. Le roman carvalhien est décrit comme une synthèse bitextuelle tendue qui reprend avec déférence la vision du monde pessimiste du roman célinien, tout en la contredisant, avec distance critique et ironie, en renforçant à plusieurs reprises la recherche d'une transcendance transmondaine, c'est-à-dire un salut à travers un autre monde.

Mots-clés
La lune vient d’Asie; Campos de Carvalho; Voyage au bout de la nuit; Loius-Ferdinand Céline; parodie

Numa passagem de A lua vem da Ásia, romance de 1956CARVALHO, Campos de. A lua vem da Ásia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. , de Campos de Carvalho, o narrador-protagonista, ao retomar a escrita de seu diário, alude discretamente ao título de Viagem ao fim da noiteCÉLINE, Louis-Ferdinand. Viagem ao fim da noite. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. , de Louis-Ferdinand Céline, publicado em 1932, ao explicar como está dando continuidade à sua escrita íntima após fugir do que acredita ser um campo de concentração. Hospedado num hotel, o narrador explica que, após a sua fuga, “[...] foi o dono do hotel [...] quem me deu o papel e o lápis necessários para que eu pudesse continuar escrevendo esta espécie de Diário dentro da Noite [...]” (CARVALHO, 1956CARVALHO, Campos de. A lua vem da Ásia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. , p. 110, Capítulo “A”). Nesse trecho do primeiro capítulo da segunda parte, a alusão ao romance de Céline não é exatamente didática, mas discreta, recuperando apenas parte de seu título - “da Noite” -, porém as palavras Noite e Diário estão grafadas com inicial maiúscula, sugerindo um título, o que basta para assinalar uma alusão mais ou menos explícita ao título do livro do autor francês. O leitor capaz de perceber a alusão feita na passagem pode se sentir encorajado, então, a investigar qual tipo de diálogo intertextual está sendo entabulado.

O diálogo intertextual em questão pode ser entendido como uma paródia, termo aqui entendido conforme a teorização de Linda Hutcheon em seu livro Uma teoria da paródia: ensinamentos das formas de arte do século XXHUTCHEON, Linda. A theory of parody: the teachings of twentieth-century art forms. Chicago: University of Illinois Press, 2000.. A teórica canadense propõe um conceito abrangente de paródia, diferente daquele de “imitação ridicularizadora”, que costuma figurar em dicionários. Trata-se de um conceito que concede à paródia uma aplicabilidade crítica mais ampla. Hutcheon chega a esse conceito ao examinar detidamente a etimologia do termo paródia, observando que o prefixo para em grego não indica necessariamente uma oposição, porém também um “acordo ou intimidade”:

A maioria dos teóricos da paródia remontam a raiz etimológica do termo ao substantivo grego parodia, que quer dizer “contracanto”, e ficam-se por aí. Se olharmos mais atentamente para essa raiz obteremos, no entanto, mais informação. A natureza textual ou discursiva da paródia [...] é evidente no elemento odos da palavra, que significa canto. O prefixo para tem dois significados, sendo geralmente mencionado apenas um deles - o de “contra” ou “oposição”. Desta forma, a paródia torna-se uma oposição ou contraste entre textos. [...]

No entanto, para em grego também pode significar “ao longo de” e, portanto, existe uma sugestão de um acordo ou intimidade, em vez de um contraste. É este segundo sentido esquecido do prefixo que alarga o escopo pragmático da paródia de modo muito útil para as discussões das formas de arte modernas [...]. Nada existe em parodia que necessite da inclusão de um conceito de ridículo, como existe, por exemplo, na piada [...]. A paródia é, pois, [...] repetição com diferença. (HUTCHEON, s/d [1985HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia - ensinamentos das formas de arte do século XX. Tradução de Teresa Louro Pérez. Lisboa: Edições 70, s/d [1985].], p. 48).

Assim, a paródia não tem um éthos necessariamente negativo para Hutcheon, não apresenta obrigatoriamente uma relação iconoclasta com a obra parodiada, criando efeitos derrisórios à sua custa: “muitas paródias actuais [sic] não ridicularizam os textos que lhes servem de fundo [...]. O verso modernista de Eliot e Pound é provavelmente o exemplo mais óbvio deste tipo de atitude, a qual sugere um éthos quase respeitoso ou deferente” (HUTCHEON, s/d [1985HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia - ensinamentos das formas de arte do século XX. Tradução de Teresa Louro Pérez. Lisboa: Edições 70, s/d [1985].], p. 78).

Em resumo, a paródia é definida por Hutcheon como “síntese bitextual [...], ao contrário de formas mais monotextuais, como o pastiche, que acentuam a semelhança e não a diferença” (HUTCHEON, s/d [1985HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia - ensinamentos das formas de arte do século XX. Tradução de Teresa Louro Pérez. Lisboa: Edições 70, s/d [1985].]), ou, como a teórica sintetiza numa introdução inédita à segunda edição de seu livro, a paródia é “um tipo de repetição com distanciamento crítico, marcando diferença ao invés de similaridade” (HUTCHEON, 2000HUTCHEON, Linda. A theory of parody: the teachings of twentieth-century art forms. Chicago: University of Illinois Press, 2000., p. xii, tradução nossa).

Tendo em mente a teorização de Hutcheon, pode-se descrever fertilmente o romance carvalhiano como uma paródia do céliniano. Em primeiro lugar, cumpre destacar o que há nele de homenagem deferente ao romance de Céline. Um aspecto importante que A lua vem da Ásia retoma de modo respeitoso a partir de Viagem ao fim da noite é a percepção do tempo como imóvel e a correlata recusa da ideologia do progresso. Conforme estudo anterior (FERREIRA, 2022FERREIRA, Arthur Barboza. A configuração da condição humana em Viagem ao fim da noite, de Louis-Ferdinand Céline. In: OLIVEIRA, Ellen dos Santos (org.). Literatura em foco: estudos reunidos sobre literatura, leitura e ensino. Aracaju: Editora J. Alves, 2022. p. 181-194.), a contestação da concepção de tempo linear e progressivo é recorrente no romance de Céline. Por exemplo, um de seus personagens, Arthur Ganate, mostra-se cético em relação à ideia de o século XX trazer novos tempos. Seguindo a tradução de Rosa Freire d’Aguiar, considerada “excelente” por Luiz Costa Lima (2006COSTA LIMA, Luiz. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras , 2006., p. 403), eis a passagem na qual Ganate expressa tal ceticismo: “Século da velocidade! é o que dizem [os parisienses]. Onde? Grandes mudanças! é o que contam. Como assim? Na verdade, nada mudou. Continuam a se admirar, e mais nada. E isso também não tem nada de novo” (CÉLINE, 2004CÉLINE, Louis-Ferdinand. Viagem ao fim da noite. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. , p. 17). Essa desconfiança quanto à noção de progresso é partilhada pelo próprio narrador, Ferdinand Bardamu. Ao descrever suas experiências na Primeira Guerra Mundial, observa, a respeito de uma batalha, que aquele acontecimento é um índice da irremediável imbecilidade humana: “Com criaturas semelhantes, aquela imbecilidade infernal podia continuar por toda a vida... Por que parariam? Nunca eu senti mais implacável a sentença dos homens e das coisas” (CÉLINE, 2004CÉLINE, Louis-Ferdinand. Viagem ao fim da noite. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. , p. 23). O narrador é da opinião que aquela batalha específica representa uma guerra humana mais ampla, interminável, e que os homens estão condenados, com sua “imbecilidade infernal”, a repeti-la para sempre. De volta a Paris, tendo escapado de seu serviço bélico, vem a ser diagnosticado como doente mental, em decorrência de um flashback que teve da guerra durante um jantar com Lola, sua namorada. Nessa ocasião, ao olhar para uma fileira de pessoas sentadas, Bardamu alucinou fileiras de soldados trocando tiros e, amedrontado com o que julgava ver, gritou para todos no local para que se salvassem das balas. Internado, é submetido a tratamento de eletrochoque, prática médica controversa (que reemerge no “Capítulo I (Novamente)” de A lua vem da Ásia como “tortura” aos olhos do narrador carvalhiano). Durante uma visita de sua já ex-namorada, o narrador de Céline exprime sua aversão à guerra e seu pessimismo quanto a um futuro diferente do presente: “Não acredito no futuro, Lola...” (CÉLINE, 2004CÉLINE, Louis-Ferdinand. Viagem ao fim da noite. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. , p. 75).

Uma passagem emblemática relativa à contestação do tempo linear-progressivo em Viagem ao fim da noite é a longa fala de Princhard, o professor de História que planejou escapar da guerra por meio de sua própria prisão mediante um furto. Mesmo no cárcere, Princhard não se salva do recrutamento, pois eventualmente a França passa a recrutar também presidiários, o que outrora não era do seu feitio, explica o próprio professor. Princhard interpreta essa mudança de estado de coisas como uma espécie de retrocesso:

[...] a guerra dura tempo demais [...]. Ela [a Pátria] começou a aceitar todos os sacrifícios, venham de onde vierem [...]. Hoje em dia não há mais soldados indignos de portar as armas [...]. [...] estamos habituados a admirar todos os dias bandidos colossais, cuja opulência o mundo inteiro venera e cuja existência se revela [...] um longo crime renovado todos os dias, mas essas pessoas gozam de glória, honrarias e poder, seus crimes são consagrados pelas leis, ao passo que tão longe quanto recuamos na história, e você sabe [dirigindo-se a Bardamu] que sou pago para conhecê-la, tudo nos demonstra que um furto venial [...] atrai inevitavelmente para seu autor [...] os castigos maiores [...]. [...] a repressão aos pequenos furtos se exerce, repare bem, em todas as latitudes com rigor extremo [...]. Até agora, porém, restava aos pequenos ladrões uma vantagem na República, esta de serem privados da honra de portar as armas patrióticas. Mas a partir de amanhã esse estado de coisas vai mudar [...]. [...] Este mundo não passa, garanto-lhe, de uma imensa empreitada que goza do mundo! [...] Luís XIV, ele pelo menos, que se recorde, desprezava às escâncaras o povinho. Quanto a Luís XV, idem. Com o povo ele borrava a região anal. Não se vivia bem naquele tempo, é verdade, os pobres nunca viveram bem, mas não arrancavam as tripas deles com a obstinação e a sanha que encontramos em nossos tiranos de hoje (CÉLINE, 2004CÉLINE, Louis-Ferdinand. Viagem ao fim da noite. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. , p. 75-77).

Observa-se, a partir das palavras desse professor de História, a noção de um tempo descendente-regressivo, no qual “bandidos colossais” renovam seu crime “todos os dias”, nos quais pequenos furtos são punidos de maneira implacável em toda parte e as pessoas economicamente desfavorecidas são cada vez mais massacradas. Para Princhard, se o passado foi ruim, o presente é ainda pior. E não há qualquer menção à revolução ou à luta de classes em sua longa fala.

A contestação do tempo linear-progressivo presente em Viagem ao fim da noiteCÉLINE, Louis-Ferdinand. Viagem ao fim da noite. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. é retomada em boa parte da narração em A lua vem da Ásia, ainda que de modo um tanto hiperbólico. Tome-se o exemplo dos títulos dos capítulos da primeira parte do romance. Servindo de cabeçalho para as entradas do diário do narrador carvalhiano, eles não informam uma data, mas funcionam como títulos de capítulo, indicando uma percepção de tempo muito pouco linear. Eis a disposição desses cabeçalhos conforme o andamento da narração da primeira parte do romance: “Capítulo Primeiro”; “Capítulo 18º”, “Capítulo Doze”, “(Sem Capítulo)”, “Capítulo Sem Sexo”, “Capítulo 99”, “Capítulo Vinte”, “Capítulo I (Novamente)”, “Capítulo”, “Capítulo CLXXXIV”, “Capítulo XXVI”, “Dois Capítulos Num Só”, “Capítulo 333”, “Capítulo 334”, “Cap. 71”, “Capítulo Não Eclesiástico”, “Capítulo 103”, “Capítulo Negro”, “Capítulo 42”, “Capítulo LIV”. Além do mais, nesse tocante, vale recordar a intentona comunista fracassada no capítulo “C” da segunda parte da narrativa, que contraria a ideologia do progresso tal como o fazem várias passagens do romance de Céline. A propósito, o que Henri Godard - segundo Dau Bastos (2003BASTOS, Dau. Céline e a ruína do Velho Mundo. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003., p. 31) o “maior especialista em Céline” - escreve a respeito da opinião de Céline quanto à noção de progresso vale também para Campos de Carvalho:

Toda posição política progressista, quer tenda para o socialismo, quer para a anarquia, implica que se deposite confiança nos homens, ou pelo menos que se confie em sua capacidade de se transformar. Se Céline não fala de um futuro que canta, é porque ele não crê na possibilidade de um homem novo. Ao postulado progressista ele se opõe duplamente, pela sua crença numa natureza humana imutável, e pela imagem negativa que se faz dela. (GODARD, 1993GODARD, Henri. Voyage au bout de la nuit de L.-F. Céline. Paris: Gallimard, 1993., p. 28, tradução nossa).

E ainda afirma acerca do ficcionista francês algo que poderia ser afirmado acerca do brasileiro: “[...] sua visão pessimista da natureza humana o separa de um pensamento de esquerda” (GODARD, 1993GODARD, Henri. Voyage au bout de la nuit de L.-F. Céline. Paris: Gallimard, 1993., p. 35).

Em A lua vem da Ásia, há ao menos uma passagem na qual emerge, de modo coerente com o que já foi apontado, a percepção do tempo como descendente-regressivo: quando o narrador escreve uma carta ao jornal Times, contando sua condição “trágica” no chamado “campo de concentração”, refere-se a um mundo “em que o absurdo é cada vez mais a regra geral, ou tende a sê-lo pelo menos” (CARVALHO, 1956CARVALHO, Campos de. A lua vem da Ásia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. , p. 68, “Capítulo 333”).

Um segundo aspecto importante retomado com deferência pelo narrador de A lua vem da Ásia a partir de Viagem ao fim da noite é o retrato do mundo natural como uma realidade hostil e repugnante. O narrador de Céline retrata uma natureza que ora produz temporais, ora sol excessivo. Poeira abunda nas ruas de Paris e nas habitações humanas; pulgas promovem comichões; percevejos e mosquitos atrapalham sonos noturnos; caspa encima cabeleiras. Doenças são referidas com frequência, sejam elas venéreas (CÉLINE, 2004CÉLINE, Louis-Ferdinand. Viagem ao fim da noite. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. , p. 397), sejam de outra ordem, como a febre amarela (CÉLINE, 2004CÉLINE, Louis-Ferdinand. Viagem ao fim da noite. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. , p. 141) e a febre tifoide (CÉLINE, 2004CÉLINE, Louis-Ferdinand. Viagem ao fim da noite. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. , p. 283). Um dos fenômenos insistentes do mundo natural é a chuva, acompanhadora da peregrinação do narrador para onde quer que ele vá. Durante a guerra, de acordo com ele, “[v]oltou a chover, os campos da Flandres babavam água suja” (CÉLINE, 2004CÉLINE, Louis-Ferdinand. Viagem ao fim da noite. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. , p. 28); “o granizo tornou-se cada dia mais espesso, mais denso, mais atulhado, recheado de obuses e balas. Breve estaríamos em plena tempestade” (CÉLINE, 2004CÉLINE, Louis-Ferdinand. Viagem ao fim da noite. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. , p. 43). De volta a Paris, em dada ocasião, “[c]hovia a cântaros” (CÉLINE, 2004CÉLINE, Louis-Ferdinand. Viagem ao fim da noite. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. , p. 94). Em estadia na África, numa colônia francesa, um Bardamu malárico e diarreico sofre variadas tribulações perante o horror da natureza. Ele permite que lagartas invadam uma de suas precárias edículas, pois esmagá-las produz um “fedor extremo” (CÉLINE, 2004CÉLINE, Louis-Ferdinand. Viagem ao fim da noite. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. , p. 176), efeito que o dissuade de matá-las (CÉLINE, 2004CÉLINE, Louis-Ferdinand. Viagem ao fim da noite. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. , p. 183). Em tal “inferno africano” (CÉLINE, 2004CÉLINE, Louis-Ferdinand. Viagem ao fim da noite. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. , p. 183), onde experimenta variados suplícios, Bardamu enfrenta “dois grandes temporais sucessivos” (CÉLINE, 2004CÉLINE, Louis-Ferdinand. Viagem ao fim da noite. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. , p. 183). Em Nova York, a natureza volta a incomodá-lo através de insetos e de chuva. Tendo transposto o Atlântico de navio, ele passa a exercer o ofício de “agente conta-pulgas” (CÉLINE, 2004CÉLINE, Louis-Ferdinand. Viagem ao fim da noite. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. , p. 199), porém suas estatísticas se desmancham em razão de uma “chuva torrencial” (CÉLINE, 2004CÉLINE, Louis-Ferdinand. Viagem ao fim da noite. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. , p. 200). Em Detroit, procurando emprego na Ford, descreve as filas de desempregados sob um céu chuvoso e hostil: “Chovia sobre nosso mundinho. As filas se apertavam debaixo das calhas” (CÉLINE, 2004CÉLINE, Louis-Ferdinand. Viagem ao fim da noite. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. , p. 231). Noutra ocasião, em Paris, o mau tempo o afugenta: “Que temporal! Trotei de um poste a outro até o mictório da praça des Fêtes. Primeiro abrigo” (CÉLINE, 2004CÉLINE, Louis-Ferdinand. Viagem ao fim da noite. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. , p. 265). A propósito da chuva em Viagem ao fim da noite, Godard observa:

Como elemento, a matéria por excelência é a terra. Ela é especialmente repelente quando, molhada, ensopada, como Céline a apresenta constantemente no romance, toma a forma de lama, de barro etc. Ela, então, gruda, adere pegajosa a nós, trazendo o risco de ficarmos atolados nela, de sermos deglutidos por ela [...]. Através dessa associação, a chuva, por seu turno, torna-se uma manifestação hostil do mundo. (GODARD, 1993GODARD, Henri. Voyage au bout de la nuit de L.-F. Céline. Paris: Gallimard, 1993., p. 65, 67, tradução nossa).

Ora, a chuva é também sinal de um mundo natural hostil em A lua vem da Ásia. Retomando com deferência esse aspecto de Viagem ao fim da noite, o narrador carvalhiano se queixa com insistência do mau tempo: “[...] tivemos que escapar-nos às pressas numa noite de chuva” (CARVALHO, 1956CARVALHO, Campos de. A lua vem da Ásia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. , p. 51, “Cap. CLXXXIV”); “Eu me abrigara sob a árvore para fugir da chuva” (CARVALHO, 1956CARVALHO, Campos de. A lua vem da Ásia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. , p. 107, Cap. “A”); “[...] desta vez [...] é a chuva, com trovões e relâmpagos para completar” (CARVALHO, 1956CARVALHO, Campos de. A lua vem da Ásia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. , p. 131, Cap. “F”); “[...] ontem à noite, debaixo de chuva e tudo [...]” (CARVALHO, 1956CARVALHO, Campos de. A lua vem da Ásia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. , Cap. “G”); “[...] eu não pude vir porque chovia muito [...]” (CARVALHO, 1956CARVALHO, Campos de. A lua vem da Ásia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. , p. 165, Cap. “K”). Após fugir do “campo de concentração” e uma vez resguardado num hotel, o narrador relata que “o temporal lá fora é cada vez mais forte e [...] estou ensopado [...]” (CARVALHO, 1956CARVALHO, Campos de. A lua vem da Ásia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. , p. 108, Cap. “A”). Ele procede à explicação de como veio a arranjar abrigo no hotel, após perambular “[...] de um lado para outro sob a chuva que começava a cair [...]” (CARVALHO, 1956CARVALHO, Campos de. A lua vem da Ásia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. , p. 110-111, Cap. “A”). Noutro ponto da narrativa, após fugir de uma prisão, tendo por principal bem material um relógio, lamenta que “[...] sob a chuva implacável, de nada me adiantou saber as horas quase que de minuto a minuto” (CARVALHO, 1956CARVALHO, Campos de. A lua vem da Ásia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. , p. 132, Cap. “F”).

Outros aspectos podem ilustrar a negatividade da natureza no romance de Céline, para além da fauna e flora repugnantes e da chuva indelicada e excessiva, e que são ecoados no de Campos de Carvalho. Quando não é época de chuvas, molhando com violência desabrigos, é a vez de a poeira atormentar à sua maneira: terminados os seus estudos de medicina, o narrador céliniano relata a superabundância da poeira em Paris, espessa a ponto de comprometer até a visibilidade da paisagem urbana: “Cruzei a poeira, [...] a máquina varredora municipal passava [...] fazendo vrum-vrum [...] um grande tufão [...] se ergueu impetuoso dos meios-fios [...] e encheu toda a rua [...]. A gente não se enxergava mais” (CÉLINE, 2004CÉLINE, Louis-Ferdinand. Viagem ao fim da noite. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. , p. 251). Indesejável, o ar poeirento é fator a se considerar até no planejamento de um passeio pela cidade. Exercendo seu ofício de médico, o narrador prescreve passeios a um garoto enfermo, Bébert, e a tia do menino mostra hesitação em acompanhar a criança num parque, dada a concentração de poeira no lugar (CÉLINE, 2004CÉLINE, Louis-Ferdinand. Viagem ao fim da noite. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. , p. 253). O narrador propõe-lhe passear então no cemitério de La-Garenne Rancy. A mulher considera a ideia com seriedade e adere à sugestão: “No parque, positivamente, tem poeira demais... Ao passo que o cemitério, é verdade, não é nada mal...” (CÉLINE, 2004CÉLINE, Louis-Ferdinand. Viagem ao fim da noite. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. , p. 253). A atmosfera carregada e imunda chega até mesmo a entravar a alimentação de pessoas noutro espaço público, onde há porcos de pão de mel “perdidos por causa de tanta poeira” (CÉLINE, 2004CÉLINE, Louis-Ferdinand. Viagem ao fim da noite. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. , p. 317).

De modo assemelhado, em A lua vem da ÁsiaCARVALHO, Campos de. A lua vem da Ásia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. , as pulgas são um traço negativo da natureza retomado a partir do romance de Céline. Esses insetos pululam no “hotel de luxo” onde o narrador reside na primeira parte do romance. Um de seus “hóspedes”, “o potentado hindu”, conta o narrador, “agora deu para colecionar pulgas, vivas ou mortas”, colhendo-as geralmente nas “próprias cuecas ou nas frestas do assoalho de seu quarto”. De acordo com os cálculos do “potentado”, sua coleção galga a marca de “exatamente doze mil” espécimes (CARVALHO, 1956CARVALHO, Campos de. A lua vem da Ásia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. , p. 73, “Capítulo 334”), sugerindo a grande capacidade procriadora desses insetos que contribuem para a caracterização de um mundo natural repulsivo ao ser humano.

Mesmo quando a natureza não parece tão hostil nas duas narrativas, e o dia é descrito como ensolarado, o sol não é necessariamente agradável. Tome-se a seguinte passagem de Viagem ao fim da noite, que mostra como o sol favorece as moscas e, com seu calor excessivo, perturba o narrador: “Moscas e mais moscas. [...] Um calor assombroso, de fazer fumegar todas as superfícies” (CÉLINE, 2004CÉLINE, Louis-Ferdinand. Viagem ao fim da noite. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. , p. 400). De A lua vem da Ásia pode-se extrair os seguintes ecos: “O calor era tórrido” (CARVALHO, 1956CARVALHO, Campos de. A lua vem da Ásia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. , p. 21, “Capítulo Doze”); “[...] embarco num caminhão repleto de cidadãos [...] num fedor coletivo que o sol cáustico da manhã só faz aumentar [...]” (CARVALHO, 1956CARVALHO, Campos de. A lua vem da Ásia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. , p. 115, Cap. “C”); “Como o calor está muito forte, entro numa igreja e me ponho a rezar” (CARVALHO, 1956CARVALHO, Campos de. A lua vem da Ásia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. , p. 127, Cap. “E”); “[...] Sol implacável [...]” (CARVALHO, 1956CARVALHO, Campos de. A lua vem da Ásia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. , p. 184, Cap. “N”).

Um terceiro aspecto retomado em A lua vem da ÁsiaCARVALHO, Campos de. A lua vem da Ásia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. a partir de Viagem ao fim da noiteCÉLINE, Louis-Ferdinand. Viagem ao fim da noite. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. é a angústia existencial, manifesta na insônia de seus narradores e sua obsessão com a morte, os quais se perguntam o que estão fazendo neste mundo. O narrador de Céline relata sua estadia insone num hotel em Nova York, e, em meio a pessoas que se põem a dormir tão facilmente, vê-se como um estranho no mundo:

É triste as pessoas se deitando, a gente percebe muito bem que não ligam a mínima [...], a gente vê muito bem que não tentam compreender o porquê de estarmos aqui. Para elas tanto faz como tanto fez. Dormem de qualquer jeito, são umas descaradas, umas bestas quadradas, umas insensíveis, americanas ou não. Sempre têm a consciência tranquila.

[...] por mais que [eu] me virasse e revirasse na pequena cama não conseguia pegar nem no menor fiapinho de sono. [...]

O que é pior é que a gente fica pensando como que no dia seguinte vai encontrar força suficiente para continuar o que fizemos na véspera [...], [...] esses mil projetos que não levam a nada, essas tentativas [...] que sempre abortam, e todas elas para que a gente se convença uma vez mais que o destino é invencível [...].

É a idade também que está chegando, talvez, a traidora, e nos ameaça com o pior. [...] Toda a juventude já foi morrer no fim do mundo [...]. [...] A verdade é uma agonia que não acaba. A verdade deste mundo é a morte. É preciso escolher, morrer ou mentir. Eu, eu nunca pude me matar.

O melhor [...] era sair para a rua, esse pequeno suicídio. Cada um possui [...] seu método para conquistar o sono [...]. [...] Não se creia que é fácil adormecer quando se começou a duvidar de tudo [...]. (CÉLINE, 2004CÉLINE, Louis-Ferdinand. Viagem ao fim da noite. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. , p. 208-209).

Também apostrofa o sono e os adormecidos à sua volta o narrador de A lua vem da Ásia, nesta passagem-pastiche em que se julga “superlúcido” e diferente das demais pessoas, mostrando-se, como o narrador de Céline, preocupado com a morte:

Assombra-me (sempre me assombrou) ver a facilidade com que certas criaturas se recostam num travesseiro e caem logo num sono profundo, como se se houvessem suicidado inteiramente, sem problema nenhum a resolver no dia seguinte. Parecem bonecos de corda a que de repente faltasse a corda [...]. Em mim, o superlúcido, o sono foi sempre uma conquista muito difícil e sua escalada através dos anos sempre me pareceu mais penosa e meritória do que a do Himalaia ou mesmo a do monte Everest.

Agora a chuva baila em torno da minha cabeça, e no hotel todos dormem ou fingem que dormem [...]. [...] Agora vou pentear o cabelo com a água da chuva, olhar um pouco mais o céu indevassável através das grades da janela [...] e depois recolher-me ao leito, como uma criança de dois anos [...].

Outra coisa que a chuva me faz lembrar são os mortos [...].

Agora que já olhei a chuva [...] o que me resta a fazer é não fazer nada [...] e esperar [...] que meu corpo durma antes de mim. Deitar-me-ei como um faquir sobre os espinhos do meu leito [...] e fingirei de morto por algum tempo [...]. No escuro a noite é completamente escura, e o jeito que resta é a gente esperar que, mesmo com chuva, a alvorada volte [...] e com ela de novo as esperanças e as ideias felizes, que são sempre as mesmas sempre, apesar de todas as decepções ou talvez por isso mesmo [...]. (CARVALHO, 1956CARVALHO, Campos de. A lua vem da Ásia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. , p. 17-19, “Capítulo 18º”).

Como se vê, ambos os romances concebem o tempo linear-progressivo reiteradamente como uma espécie de ilusão, pintam o mundo como uma realidade negativa, marcada por uma natureza hostil composta de pulgas, sol e chuva excessivos, e apresentam narradores angustiados com a condição humana, num mundo cujo traço essencial é a morte. Nesse último particular, vale lembrar que o narrador carvalhiano, angustiado com a efemeridade da vida, relata várias vezes morrer, transgredindo a concepção de tempo prevalente, para a qual os acontecimentos são inéditos, únicos e irreversíveis. Ao dar vários relatos de seu falecimento, embaraça as fronteiras entre estar vivo e morto. Na primeira página do romance, ao tratar de seu passado, afirma morrer sem causa aparente “[...] dentro da noite calma” (CARVALHO, 1956CARVALHO, Campos de. A lua vem da Ásia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. , p. 11). Mais adiante, no chamado “Capítulo I (Novamente)”, de novo relata morrer, descrevendo seu corpo frígido após ser submetido a uma suposta tortura: “[...] o que afirmo é que me transformei instantaneamente num cadáver e me senti mais frio do que um cubo de gelo jogado na gaveta de um morgue” (CARVALHO, 1956CARVALHO, Campos de. A lua vem da Ásia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. , p. 44). No chamado “Cap. CLXXXIV”, mais uma vez relata morrer, nesse caso depois de participar de uma “maratona de danças”, vindo “a falecer na madrugada de 15 de setembro de 1934” (CARVALHO, 1956CARVALHO, Campos de. A lua vem da Ásia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. , p. 52). Somam-se aqui, portanto, três mortes no passado, as quais o narrador relata, naturalmente, no presente, quando elas deveriam ser uma única morte situada no futuro, algo, para o senso comum, categoricamente inenarrável por qualquer pessoa. Por meio desse expediente, o narrador rompe com a tríade temporal passado, presente e futuro, dando a entender a vigência de uma realidade mais profunda e fundamental, a da morte. Esse seu aforismo também expressa a ideia de inseparabilidade entre morte e vida: “Corpo, sinônimo de cadáver” (CARVALHO, 1956CARVALHO, Campos de. A lua vem da Ásia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. , p. 87, “Capítulo Não Eclesiástico”), o qual, por extensão, colide e interpenetra presente e futuro.

Pode parecer um paradoxo, pois se observa a rejeição do tempo linear-progressivo pelos narradores céliniano e carvalhiano e, contudo, a afirmação reiterada por eles daquilo que se pode entender como um dos efeitos mais notórios da ação do tempo - a interrupção da vida. Esse aparente paradoxo pode ser justificado da seguinte forma: esses narradores não veem no tempo um processo, mas apenas o seu efeito básico implacável, sustentando ser esse efeito algo que a própria vida carrega consigo desde sua gênese, e pelo qual é inevitavelmente subjugada. A noção familiar de linha do tempo seria para esses narradores, portanto, imprecisa. Para eles, tal linha seria redutível a um ponto, e o ponto corresponderia ao efeito mortal do tempo.

Mas a descrição da retomada dos três aspectos acima não basta para demonstrar que A lua vem da Ásia é uma paródia de Viagem ao fim da noite. Recorde-se que paródia é “repetição com diferença” (HUTCHEON, s/d [1985HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia - ensinamentos das formas de arte do século XX. Tradução de Teresa Louro Pérez. Lisboa: Edições 70, s/d [1985].], p. 48). Cumpre doravante tratar de que modo o romance carvalhiano guarda distanciamento crítico em relação ao céliniano. Com efeito, apesar do canto deferente concedido por uma obra à outra, os dois romances apresentam numerosas disparidades, algumas das quais são abordadas a seguir. O narrador de Campos de Carvalho sente-se, mais do que Bardamu, um estranho num mundo que lhe é estranho; apresenta, ao contrário de Bardamu, afinidades com o gnosticismo, aspecto este destacado por Claudio Willer (2010WILLER, Claudio. Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010 [2008]. [2008], p. 427). De fato, o narrador carvalhiano expressa interesse em angariar uma transcendência transmundana ou uma salvação: vendo-se enclausurado no que chega a considerar um “campo de concentração”, planeja reaver a liberdade para o seu corpo, mas sobretudo salvar a sua alma. Após planejar sua fuga, expressa que “[q]ualquer coisa [...] me diz que esse será o passo decisivo para toda a minha vida futura, e mesmo para a salvação da minha alma depois da minha morte [...]” (CARVALHO, 1956CARVALHO, Campos de. A lua vem da Ásia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. , p. 98, “Capítulo 42”). Céline, por seu lado, não endossava a ideia de uma salvação transmundana. Como já observou Willer (2004WILLER, Claudio. Volta. 3. ed. São Paulo: Iluminuras, 2004 [1996]., p. 130), “religiosidade e misticismo eram estranhos para Céline”. E Bastos assinala, a propósito da mesma questão:

Por um paradoxo a que o ficcionista foi lançado ainda durante a juventude, a constante proximidade da morte lhe destruía a crença em divindade capaz de oferecer salvação, ao mesmo tempo que lhe parecia conferir autoridade para esbravejar contra as dores terrenas. (BASTOS, 2003BASTOS, Dau. Céline e a ruína do Velho Mundo. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003., p. 242-243).

Assim, levando em conta a questão da esperança numa salvação, presente em A lua vem da Ásia e ausente em Viagem ao fim da noite, enquanto o narrador de Céline narra eventos de maneira linear, o de Campos de Carvalho embaralha presente, passado recente e passado remoto durante toda a primeira parte da narrativa, marcando uma recusa mais contundente do mundo temporal à sua volta, em favor de um outro mundo misterioso no qual, intuitivamente, crê. Enquanto Bardamu descreve os combates entre franceses e alemães na Primeira Guerra Mundial, vendo neles algo mais profundo e abstrato, “a sentença dos homens e das coisas” (CÉLINE, 2004CÉLINE, Louis-Ferdinand. Viagem ao fim da noite. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. , p. 23), Astrogildo nem sempre tem o cuidado de dizer corretamente que nações estão envolvidas nas guerras que menciona, incorrendo em disparates como “guerra sino-finlandesa”, não raro mostrando indiferença categórica para com eventos no mundo à sua volta, considerados por ele como detalhes de somenos importância. Em acréscimo, se o narrador céliniano detalha mais o espaço urbano, mencionando vários nomes de ruas e lugares (rua Bonaparte, praça Blanche, rua Lepic, bulevar Poincaré, praça Clichy etc.), o carvalhiano costuma ser mais vago, mencionando nomes de cidades e países, e até um território extinto, a Bessarábia (CARVALHO, 1956CARVALHO, Campos de. A lua vem da Ásia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. , p. 51,“Capítulo CLXXXIV”; p. 111, Cap. “B”), como se tal território histórico ainda existisse em meados do século XX.

Essa dessemelhança entre as obras é compreensível, pois, diferentemente do narrador de Viagem ao fim da noite, o narrador de A lua vem da Ásia crê na existência de um mundo oculto, por ele estimado em detrimento do mundo à sua volta, donde talvez seu desinteresse em aplicar-se em conhecimentos relativos ao mundo sensível, manifesto, circundante. Daí talvez se explique em parte também as absurdidades de ordem geográfica em seus relatos. Além de mencionar a Bessarábia como se ainda existisse, não uma, mas duas vezes em seu diário, o narrador carvalhiano confunde a capital do estado americano da Pensilvânia com Pittsburg (CARVALHO, 1956CARVALHO, Campos de. A lua vem da Ásia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. , p. 102, “Capítulo LIV”), quando na realidade é Harrisburg, e comete outro equívoco geográfico ao admitir que costumava pensar que a capital do Brasil fosse Buenos Aires e não o Rio de Janeiro (CARVALHO, 1956CARVALHO, Campos de. A lua vem da Ásia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. , p. 78, “Cap. 71”). O mesmo equívoco Buenos Aires-Rio de Janeiro é apreensível numa passagem em Viagem ao fim da noite (CÉLINE, 2004CÉLINE, Louis-Ferdinand. Viagem ao fim da noite. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. , p. 89), porém as incorreções de ordem geográfica e histórica do narrador de A lua vem da Ásia não são esporádicas, mas frequentes.

O contraste entre os romances pode ser complementado levando em conta nomes de personagens. O narrador carvalhiano nem sempre retém na memória os nomes de quem chega a conhecer. Sobre o “potentado hindu” do “hotel”, o devotado colecionador de pulgas, escreve que “se chama, se não me engano, José” (CARVALHO, 1956CARVALHO, Campos de. A lua vem da Ásia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. , p. 21, “Capítulo Doze”) e, uma vez liberto de uma prisão, relata ignorar o nome de um dos prisioneiros políticos que veio a conhecer (CARVALHO, 1956CARVALHO, Campos de. A lua vem da Ásia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. , p. 132, Cap. “F”).

Correlatamente, as sensibilidades não equivalentes dos narradores implicam num tratamento de personagens díspar nas obras: mais detalhado e aprofundado em Viagem ao fim da NoiteCÉLINE, Louis-Ferdinand. Viagem ao fim da noite. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. e menos em A lua vem da ÁsiaCARVALHO, Campos de. A lua vem da Ásia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. . Os nomes das namoradas ou amantes de Bardamu (Lola, Molly, Sophie) são mencionados por ele numerosas vezes e Bardamu dedica-lhes amiúde discurso direto, algo bem diverso das mulheres com quem Astrogildo se relaciona sexualmente, várias delas prostitutas relegadas ao anonimato, e a quem ele nunca dedica discurso direto. Considerada essa questão, fica mais fácil dizer quem tem mais o “pé no chão” (Bardamu) e quem é o mais desapegado em relação ao mundo (Astrogildo); de quem é a escrita mais aberta a outrem (Bardamu), e de quem é a escrita mais ensimesmada e preocupada com uma salvação transmundana (Astrogildo).

Apesar das várias afinidades dignas de consideração, não se deve negligenciar que as visões de mundo não perfeitamente coincidentes nas duas obras repercutem em modos diferentes de narrar, assentados em percepções, embora afins, não idênticas, quanto ao tempo e ao espaço, os quais são mais detalhados e precisos, e seguindo certa linearidade, em Viagem ao Fim da Noite, e mais vagos e imprecisos, seguindo uma narração em boa medida não linear, em A lua vem da Ásia.

Referências

  • BASTOS, Dau. Céline e a ruína do Velho Mundo Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003.
  • CARVALHO, Campos de. A lua vem da Ásia Rio de Janeiro: José Olympio, 1956.
  • CÉLINE, Louis-Ferdinand. Viagem ao fim da noite Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
  • COSTA LIMA, Luiz. História. Ficção. Literatura São Paulo: Companhia das Letras , 2006.
  • FERREIRA, Arthur Barboza. A configuração da condição humana em Viagem ao fim da noite, de Louis-Ferdinand Céline. In: OLIVEIRA, Ellen dos Santos (org.). Literatura em foco: estudos reunidos sobre literatura, leitura e ensino. Aracaju: Editora J. Alves, 2022. p. 181-194.
  • GODARD, Henri. Voyage au bout de la nuit de L.-F. Céline Paris: Gallimard, 1993.
  • HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia - ensinamentos das formas de arte do século XX Tradução de Teresa Louro Pérez. Lisboa: Edições 70, s/d [1985].
  • HUTCHEON, Linda. A theory of parody: the teachings of twentieth-century art forms. Chicago: University of Illinois Press, 2000.
  • WILLER, Claudio. Volta 3. ed. São Paulo: Iluminuras, 2004 [1996].
  • WILLER, Claudio. Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010 [2008].
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    15 Maio 2022
  • Aceito
    30 Nov 2022
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