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A vez de morrer: granizo e chuva no lugar total de Simone Campos

A vez de morrer: hail and rain in Simone Campos’ total place

RESUMO

A partir do romance A vez de morrer, de Simone Campos, define-se uma reflexão sobre a difícil equação do “viver-junto” muito mais próxima da fantasia idiorrítmica aludida por Roland Barthes - sem, no entanto, acatá-la por inteiro - do que das concepções de Zygmunt Bauman, na tentativa de pensar quais são as perguntas que a literatura brasileira contemporânea tem feito às molduras discursivas que apontam para a constituição de comunidades cada vez mais afeitas às relações entre os iguais. Ao confrontar distintas comunidades, Campos permite dissertar sobre questões tão urgentes como a sexualidade e a religião em tempos de “concentração dos poderes capitalístico-midiáticos”, na expressão de Jacques Derrida.

Palavras-chave
literatura brasileira contemporânea; comunidade; idiorritmia; gênero

RESUMEN

A partir de la novela A vez de morrer, de Simone Campos, se define una reflexión sobre la difícil ecuación del “vivir-junto” mucho más próxima de la fantasía idiorrítmica aludida por Roland Barthes - sin acatarla del todo - que de las concepciones de Zygmunt Bauman, con la intención de pensar cuáles son las preguntas que la literatura contemporánea ha hecho a los marcos discursos que apuntan hacia la constitución de comunidades cada más proclives a las relaciones entre iguales. Al confrontar distintas comunidades, Campos permite disertar sobre cuestiones tan urgentes como la sexualidad y la religión en tiempos de “concentración de los poderes capitalístico-mediáticos”, en la expresión de Jacques Derrida.

Palabras claves
literatura brasileña contemporánea; comunidad; idiorritmia; género

ABSTRACT

From the novel A vez de morrer, by Simone Campos, a reflection is made on the difficult equation of “living together”, which is much closer to the idiorrhythmic fantasy proposed by Roland Barthes - without, however, abiding by it entirely - than to Zygmunt Bauman’s conceptions, in an attempt to think about what questions contemporary Brazilian literature has addressed to the discursive frameworks that point to the constitution of communities that are growingly more inclined to forming relationships among equals. In confronting different communities, Campos enables a discussion about urgent issues such as sexuality and religion in times of a “concentration of the capitalistic-mediatic powers”, as expressed by Jacques Derrida.

Keywords
contemporary Brazilian literature; community; idiorrhythm; gender

A liquidez do espaço íntimo

era uma vez uma mulher que não perdiaa chance de enfiar o dedo no ânusno próprio ou no dos outros

...

Angélica Freitas (2012, p. 23)

O booktrailer de A vez de morrer, de Simone Campos1 1 O booktrailer pode ser encontrado na página da Companhia das Letras: <https://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=13460> , possui qualquer coisa da atmosfera do filme O pântanoO PÂNTANO. Direção: Lucrécia Martel. França, Argentina, Espanha, 2001., de Lucrécia Martel; não apenas porque a cena é tomada pela visão de uma grande piscina, suja, cheia de folhas, em que uma mulher tenta, em vão, retirar as folhas, primeiro com as próprias mãos em sucessivos mergulhos, e depois com um limpador de piscinas, mas sim pelo aspecto sombrio e opressivo que acompanha esses gestos. É o a algo-a-acontecer da cena. Não uma cena estática, mas uma que carrega a promessa de acontecimentos. Nesse caso, a piscina “verde-lago”, a despeito de no filme de Martel estar sempre rodeada de pessoas e no booktrailer ser ocupada apenas pela jovem mulher, materializa sinais de abandono, efeitos do tempo, mas também de uma certa indolência das pessoas.

Essa é a paisagem escolhida pela escritora, tradutora e editora Simone Campos para compor o seu romance A vez de morrer, publicado em 2014CAMPOS, Simone. A vez de morrer. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. , pela Companhia das Letras. O sítio em Araras, na região montanhosa do Rio de Janeiro, concentra na área externa a piscina, e no interior a casa. Essa compressão se repete. Apesar das descrições das paisagens, que indicam o trânsito da protagonista Izabel (no ônibus, a pé, de moto) entre o Rio de Janeiro, Araras e suas cercanias, os ambientes internos são vitais: a lan-house de Eduardo, o apartamento da mãe no Rio, o Polo Gráfico de Itaipava, onde arrumará trabalho. Revelam-se, de pronto, os espaços íntimos por onde transita Izabel, que, após a morte do avô, retorna de Toronto, no Canadá, e, pouco a pouco, perfaz o caminho da cidade ao campo. Esses espaços, ainda que íntimos, não cumprem exatamente a função de acolhimento. A atmosfera densa de chuva, vento e frio remete a qualquer coisa como o poema de Ana Cristina Cesar (1999CESAR, Ana Cristina. A teus pés. São Paulo: Ática, 1999. , p. 38): “... Esses mosquitos que não largam! Minhas saudades ensurdecidas por cigarras! O que faço aqui no campo declamando aos metros versos longos e sentidos?” A irrupção do real produz a decaída do mito idílico do campo, tal como a inserção do pecado no Éden faz com que todo paraíso seja perdido. A picada - dos mosquitos, da manutenção do lugar, do inevitável encontro com o outro - retira da propriedade campestre a simbologia do “lugar total”2 2 Barthes (2003) aponta a tese do historiador de arte Joseph Rykwert de que “o paraíso implica a ‘casa’”, o que a liga à ideia de “contrassolidão”, daí a cabana de Adão ser o modelo milenar da arquitetura. E a propriedade campestre posta como o “lugar total”. O interesse da tese de Rykwert reside na demonstração da simbologia da casa como lugar de “Criar um volume que o sujeito possa interpretar em função de seu próprio corpo. Cabana: ao mesmo tempo corpo e mundo; o mundo como projeção do corpo” (2003, p. 96). .

Em busca de um lugar para morar que não a confine às escolhas dos preços exorbitantes dos imóveis do Rio de Janeiro pré-olimpíadas, Izabel prolonga pouco a pouco suas estadas no sítio de Araras, que pertencia ao avô e fora praticamente abandonado depois de sua morte. Enuncia-se um traçado típico de nossa época, em que o sujeito se desloca, pondo-se em fluxo constante. Viver em determinado lugar passa a ter mais a ver com a promessa de bem-estar do que com a de sobrevivência. Daí porque parece que tanto faz ser em um grande centro ou em uma casa de campo. Entretanto, essa é apenas a moldura que ajuda a vender um sem-fim de narrativas tipo lifestyle, ao predizerem uma forma de vida que diz respeito tão somente àqueles que podem exercitar o que Bauman (2003BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Trad. P. Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003., p. 56) denominou de “cosmopolitismo dos bem-sucedidos”. Se tal discurso necessita ser contraposto sob o risco de se escamotear as consequências perversas dessa reconstituição do paraíso, interessa-me saber que perguntas a literatura tem feito a essas molduras narrativas que exaltam o discurso do provisório, do transitório, sem alcançarem o seu peso, pois é certo que existe, uma vez que não se pode falar do lugar sem considerar os que estão nele.

Sendo assim, mais do que fazer uma análise minuciosa da composição do romance, o que pretendo é perscrutar algumas das passagens que permitem pensar sobre como o movimento solitário da protagonista é enredado - e alterado - pela proximidade com outrem, de forma que seja possível refletir sobre a indissociabilidade entre o estar-só e o estar-junto. Nesse sentido, a cena do booktrailer, que é na verdade uma das cenas do romance, serve ainda para espreitar o que há de fortuito e de inesperado no encontro com o que está próximo, o qual ocupa ou ocupará o lugar que se sabia apenas de um. Na primeira descrição, “[a] piscina transbordava, completada pela chuva. Estava verde. Verde-lago. A pedra da borda era áspera e curvada para cima, e represava a água acima do nível do chão. O deque úmido reluzia tristonho sem as espreguiçadeiras de PVC”. (CAMPOS, 2014CAMPOS, Simone. A vez de morrer. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. , p. 18). É a própria imagem do inabitado. Transbordamento, aspereza e vazio, de um modo estranho e singular, parecem se equivaler como que à espera de coabitação. É uma ação, ou ainda uma inação, a depender do ponto de vista, que compõe a segunda descrição: “A piscina estava cheia de folhas. Se esquecera de cobri-la antes de ir embora e o vento jogara tudo quanto é detrito vegetal dentro d’água. Naquele dia não estava propriamente chovendo, apenas chuviscando e nublado. Nenhum relâmpago, mas tinha caído bastante água durante a semana” (2014, p. 48). É nessa piscina, cheia de detritos, que Izabel mergulha reiteradas vezes, até, “tesa, um passo atrás”, ver:

... Era um escorpião. Sem tirar os olhos dali, alçou o corpo para fora da piscina. Agarrou o bambu com a cesta na ponta. Lançou-o na água. Em segundos o bicho estava sobre as lajotas - inerte e vivo. Deixou o copo de limonada emborcado em cima dele e voltou da cozinha com fósforos. ... Izabel acendeu três fósforos juntos e tacou no escorpião. Que se retorceu, sibilou, fumegou e, superado o exoesqueleto, por fim expirou”. (CAMPOS, 2014CAMPOS, Simone. A vez de morrer. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. , p. 48-49)

Todo o tempo, o estar-só é atravessado pelo estar-junto, pautando a sucessão dos acontecimentos. O contato com o animal peçonhento põe em destaque não apenas o instinto de sobrevivência, mas também a presteza de agarrar a presa, movimento típico do escorpião, antecipando-se a qualquer ferrada. É um gesto de defesa antecipatório. Não é difícil supor que esse contato com o totalmente outro do animal peçonhento reverbera outros. Para não se ferrar, a protagonista do romance está sempre em estado de fuga, ajustando-se às situações que indicam qualquer contato mais permanente, em um constante fluxo de relações provisórias. No caso, ajustar-se significa manter uma “justa distância” que nem afasta de todo o que está próximo nem acolhe de modo definitivo.

Nesse sentido, A vez de morrer indaga, de diferentes modos, como viver junto, essa que é uma das expressões mais complexas de Roland Barthes, embora pareça relativamente simples naquilo que tem de reiterativa. Na sua aparência de afirmação (nenhum ponto de interrogação acompanha o título que envolve um dos últimos cursos de Barthes), há aí uma das questões que mais suscita perplexidades, sendo, por isso, abordada por tantas disciplinas que lhe dão contornos específicos. Evidentemente, o caráter definitivo de qualquer resposta é incessantemente postergado, restando-nos o exercício de diagnósticos provisórios. Ao relacionar o questionamento de Barthes a um romance, quero demarcar uma deriva que não se afasta de um único exemplar. Dito de outro modo, a questão que nos ocupará está contida, toda ela, no romance de Campos, embora seja necessário fazer uso de noções outras para tentar respondê-la: de que maneira A vez de morrer, como uma dada “simulação romanesca”, trata acerca do viver-junto? Que comunidades são formadas e deformadas nesse tratamento? Adianto que Campos não está interessada em fazer um painel sociológico, cujas figuras como a família, a religião, a sexualidade, que aparecem no livro, serviriam para concretizar um diagnóstico do contemporâneo. Os ambientes fechados - e mais uma vez penso no filme de Martel - indicam outro movimento. A relação das urgências do presente com o que está dito no livro é mais um indicador de leitura do que de produção. O romance acompanha de muito perto a protagonista e, com isso, a individualiza, trata-a em suas especificidades. A narração dos acontecimentos e a enorme variedade de diálogos produzem uma imersão no seu mundo íntimo. Praticamente, não há reflexão; os fatos são apresentados, e não pensados. Exceto em um e outro momento, comentados posteriormente, não há visões sociais generalizadoras. Pode até ser que o apocalipse3 3 Entrevista concedida ao Jornal O Globo em 8 de novembro de 2014. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/cultura/livros/simone-campos-rio-esta-sempre-vivendo-pequenos-apocalipses-13097422> , palavra utilizada pela escritora tanto no romance quanto em entrevista acerca dele, remeta à situação social específica do boom da especulação imobiliária na cidade do Rio de Janeiro, que tem como uma das consequências empurrar as pessoas para longe dos centros, mas precipita-se principalmente sobre o que isso gera na vida de uma pessoa e como ela reage diante de tais situações.

O habitar idiorrítmico

Lançado no primeiro semestre de 2014, a história se desenrola no ano seguinte. O ano de 2014 é como um fora-do-livro, exterior à intitulada Parte 1. A contemporaneidade das questões é escancarada em mais de um sentido: o presente é já o intempestivo; é além do tempo, como se para melhor ver o presente fosse preciso distanciar-se não como geralmente se faz, por meio do retorno ao passado, mas como normalmente faz a literatura científica que se remete ao futuro. Para quem leu o livro quando do lançamento, estava diante de acontecimentos ainda por vir; e não quaisquer acontecimentos: 2015 foi o ano que antecedeu os jogos olímpicos no Rio de Janeiro, reconfigurando desde as formas de habitar até as de agrupar-se para entreter-se. É para essa cidade que a protagonista retorna, fazendo de seu lugar de origem um lugar de passagem, dada a dificuldade de permanência, apesar de seu fascínio: “Izabel tinha passado quase dois anos num lugar gelado e distante; sentia estranhas saudades da compressão, da sufocação, mas especialmente de pensar e usar a fantasia [de carnaval]”. (CAMPOS, 2014CAMPOS, Simone. A vez de morrer. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. , p. 108).

O fora-do-livro localiza-se, então, nesse “lugar gelado e distante”. Composto de duas cenas que funcionam como uma epígrafe mais alargada, sintetiza muitas outras passagens do livro, ora explicando-as, ora redefinindo-as. A primeira é uma cena de encontro não propriamente amoroso. Trata-se de um encontro marcado por um aplicativo de relacionamentos: “Já tinha visto Mark outras vezes. ... Dessa vez a conversa demorava a decolar” (CAMPOS, 2014CAMPOS, Simone. A vez de morrer. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. , p. 7). Na cena seguinte, o roommate que mora com Izabel reclama do barulho da trepada da colega que o havia acordado.

Eis duas formas contemporâneas de relacionamento que divergem da clássica formação do casal. As terminologias entram em colapso: não sendo namorados nem amantes, os pares desobrigam-se do investimento no modelo e sentem-se livres para desejar sem o acréscimo das obrigações amorosas, de modo que as figuras da experiência amorosa são suspensas. Não é apenas a chance de visualizar um perfil antes e ter o seu interesse suscitado por um apanhado de informações, verídicas ou não, e, a partir daí, decidir se quer ou não transformar em encontro; é ser partícipe de uma forma inédita de relacionamento que marca nosso tempo, cujos pressupostos barram, inicialmente, o compromisso, a durabilidade da relação, que desencadearia uma promessa de partilha de desejos com um “igual”, “parelho”, para evocar o sentido etimológico da palavra “par”. A ênfase é maior em um sentido como “conjunto de pessoas ligadas por algo em comum” do que em “conjunto formado por macho e fêmea ou por marido e mulher; casal” (HOUAISS, 2017).

Em relações desse tipo, é estranha tanto a figura do namoro como da prostituição dos corpos, visto que o consentimento se apoia no que ali acontece, naquele instante, não fazendo alusão ao que vem antes nem depois. Essa espécie de pacto, que não necessita ser instituído pelos pares, porque já intermediado pelas regras do aplicativo, diz respeito mais ao engajamento dos corpos, abrindo uma fenda em dualidades como razão/emoção, corpo/alma, solidão/encontro. A dificuldade de fazer durar tal pacto, cujas regras sequer são enunciadas, é o que faz gerar os atritos e, consequentemente, a passagem para outro tipo de relacionamento. No entanto, essa não parece ser uma das preocupações dos usuários. De fato, parece haver certo alívio de entregar à máquina o estabelecimento de normas bastante difíceis de enunciar sem a sua intermediação. Não ter que dizer, nos primeiros encontros, que não se está atrás de um “relacionamento sério”, não ter nem mesmo que falar sobre tal assunto, desobriga o sujeito de uma filiação ao que é sentido como modelo convencional de relação.

Há concepções distintas sobre tais formas de vida. Uma delas demarca a dissolução dos afetos, erigida pela indiferença e assepsia. Barthes, em Fragmentos de um discurso amoroso, quando descreve a figura “fazer uma cena”, dá a entender que esta só tem razão de ser quando existe um casal, de modo que o confronto não visa a consequências imediatas, mas serve como “princípio de repartição dos bens da fala” para demonstrar ao amado, e ao mesmo tempo disputar com ele a primazia do lugar do apaixonado “nunca você, sem mim, e vice-versa” (2000BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Trad. H. dos Santos. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, 2000., p. 63). Sob esses moldes, não haveria mais cena. A ausência de cena, advinda do desengajamento das razões de se trocar “contestações recíprocas”, por conta do tipo de relação que transforma o par em uma cadeia infinita de outros pares, funcionaria como prova de descarte dos sentimentos? Segundo Bauman,

Pode-se até acreditar (e frequentemente se acredita) que as habilidades do fazer amor tendem a crescer com o acúmulo de experiências... Essa é, contudo, outra ilusão. O conhecimento que se amplia juntamente com a série de eventos amorosos é o conhecimento do “amor” como episódios intensos, curtos e impactantes desencadeados pela consciência a priori de sua própria fragilidade e curta duração. (2004BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Trad. C. A. Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. , 2004., p. 11)

Para o sociólogo, a “experiência amorosa” (as aspas são suas), sob esses parâmetros, equivale a um produto destinado a uso imediato, cujo fascínio é o das mercadorias: após a obtenção, perde-se o interesse, daí por que ser preciso adquirir sempre mais. O desejo só pode ser satisfeito pela reposição incessante, o que causa uma enorme sensação de insegurança. Em termos de relacionamento, assim que algo corresse o risco de cristalizar, seria hora de afastar-se. Em A vez de morrer, essas aproximações e distanciamentos são recorrentes. As mensagens dos aplicativos de paquera, encobertas pelos pseudônimos, produzem tantos encontros quanto queira o desejo:

ELZA_BI: Oi, Gostei do seu perfil. Será que tenho chance? Antes que ela chegasse ao Flamengo, veio a resposta: DOC V: Oi, Elza. Claro que tem. Especialmente por ser fã de May e Gato negro. ELZA_BI: Hahaha. Já vi que você é uma moça destemida. Será que está livre hoje? Toparia encontrar uma fã de May e Gato negro? DOC V: sim e sim. :-) (CAMPOS, 2014CAMPOS, Simone. A vez de morrer. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. , p. 75)

É evidente que as relações mediadas pelas tecnologias estabelecem uma comunidade que, em princípio, é regida por um preceito estranho ao seu funcionamento, que é o ideário de liberdade - de distanciar-se, de abandonar, sem que isso signifique o abalo da integridade emocional. Porém, é importante ressaltar o quanto essas constatações são revestidas de um forte apelo à negatividade. De modo geral, analisamos as novas formas de convivência a partir de uma Utopia do Viver-junto - para usar a expressão de Barthes - que se funda nos valores da permanência, o que não deixa de ser um modelo normativo de comunidade, que tem seu exemplar máximo na família.

Ora, podemos estar diante de modelos que remetem a outro tipo de utopia almejado por Barthes (2003BARTHES, Roland. Como viver junto: simulações romanescas de alguns espaços cotidianos: cursos e seminários no Collège de France, 1976-1977. Trad. L. Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2003.): a “Utopia do Viver-junto idiorrítmico” que, segundo ele, nunca foi uma Utopia social, deixando pressupor que justamente em razão de fugir da normatividade. Antes de qualquer coisa, Barthes afirma a idiorritmia como uma fantasia; ou seja, uma busca por uma forma de vida sobre a qual existem somente exemplos imperfeitos que, no entanto, consubstanciam uma forma por vir de comunidade. Gostaria de me deter um pouco nessa possibilidade, experimentando a hipótese de que, ao abdicar do registro irônico, o romance de Campos, como uma daquelas perguntas lançadas pela literatura, não assinala a decadência e o caráter decepcionante das interações contemporâneas, lançando-se de fato contra os esquemas de comportamento normativos.

Desse modo, tanto os encontros casuais como o habitar em que cada um é livre para criar seu ritmo, independentemente do outro, podem ser sinal de uma desconstrução de afetos que invariavelmente levam à dependência e à manipulação. O problema é que se lida muito mal com a imagem gerada por ritmos próprios, sobretudo quando se trata do feminino. Um dos exemplos de Barthes para apontar problemas da idiorritmia, talvez aquele que mais tenha se fixado no imaginário de seus leitores, evoca uma mãe que puxa seu filho pelo braço:

De minha janela (1º de dezembro de 1976), vejo uma mãe segurando o filho pequeno pela mão e empurrando o carrinho vazio à sua frente. Ela ia imperturbavelmente em seu passo, o garoto era puxado, sacudido, obrigado a correr o tempo todo, como um animal ou uma vítima sadiana chicoteada. Ela vai em seu ritmo, sem saber que o ritmo do garoto é outro. E no entanto, é a sua mãe! - O poder - a sutileza do poder - passa pela disritmia, a heterorritmia. (2003BARTHES, Roland. Como viver junto: simulações romanescas de alguns espaços cotidianos: cursos e seminários no Collège de France, 1976-1977. Trad. L. Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2003., p. 19)

A figura da mulher que exerce um ritmo próprio, a despeito do ritmo do filho, é a da mãe. Isto é, já está afastada da fantasia alicerçada por Barthes; está, por assim dizer, fora, a não ser quando está ao lado da loucura. É evidente o fascínio que a leitura de La séquestrée de Poitiers, de André Gide, exerce sobre ele, sobretudo porque lhe permite ir contra o discurso da época e evocar um regime de vida totalmente contrário à ordem burguesa da família. No entanto, a Sequestrada não é mãe, nem tem domínio sobre as suas decisões. O escândalo é justamente este: a usurpação de liberdade de forma tão explícita leva à loucura.

Em A vez de morrer, não há nota de escândalo no tom da narração. Não há moralidade, portanto. Quando há, faz parte do enredo cuja disposição serve para contrastar posições distintas. Diante do conservadorismo, como o das cidades do interior, Izabel não abdica do seu modo de vida, apesar de não ignorar as diferenças:

Cecília [a amiga com quem tem um caso junto com o namorado] era bem capaz de fazer a caseira lavar seus brinquedos sexuais, e a ideia a horripilava. A amiga não entendia certas distinções, Izabel não era exibicionista, só gostava de sexo ao ar livre. E Cecília amava o risco de ser pega. De alguém ver. Não que ela fosse admitir. Tudo bem, Izabel seria a última a julgar; mas que ela não tentasse perverter sua perversão. (CAMPOS, 2014CAMPOS, Simone. A vez de morrer. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. , p. 216)

É um romance em que se expõe a autonomia do corpo da mulher através do corpo que deseja, sendo que desejar, nas palavras de Agamben (2007AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Trad. S.J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007., “cé a coisa mais simples e humana que há”. Ainda de acordo com o filósofo, “[o] corpo dos desejos é uma imagem. E o que é inconfessável no desejo é a imagem que dele fizemos” (AGAMBEN, 2007AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Trad. S.J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007., p. 49). Campos trata esse “inconfessável” com um naturalismo desconcertante, trazendo-o à palavra, desfazendo o segredo e forçando o desfazimento da imagem de um corpo puro, devotado à maternidade e à família, que persiste desde as origens do Cristianismo. As diversas cenas dos encontros sexuais de Izabel tanto com mulheres quanto com homens, gerados pelo uso ou não de aplicativos de relacionamento, negam esse corpo, mas não a possibilidade do vir a ser. A diferença é que, por ora, o regime de vida dessa mulher está aberto a afetar e deixar-se afetar por outros corpos. Ao experimentar o gozo do sexo, aplicando-lhe uma normalidade, ou seja, não atribuindo a isso um problema, torna-se patente a centralidade do feminino. O homem, nesse momento, é substituído por uma prótese apenas condutora de desejo:

Izabel gozou com cara normal, surpresa com a falta de aviso daquele orgasmo. De zero a cem em um segundo. Gemeu. Abanou as mãos, aflita, para Cecília tirar aquilo da sua vagina. ... Sentia uma sanha. Ia mostrar como é que era. Montou em Cecília e encaixou entre as duas um vibrador em forma de cunha. ... Pegou o menor dos plugues azuis e o enfiou no próprio rabo.

Depois que ela já estava aquecida, Izabel chupou sua boceta enquanto cinzelava os arredores com um vibrador pontudo. (2017, p. 215)

Interessa-me observar como esse corpo não aprisionado diante do discurso da moral é poderoso no que se refere à literatura de Simone Campos. A apropriação do discurso dito masculino aponta para a negação dessa propriedade: o excesso do discurso pornográfico é também um discurso de mulher, como se proferi-lo à maneira de fosse um ato de tomar posse, de desapropriar as imagens de desejo do corpo da mulher que causam estranheza porque confrontadas com a supremacia das imagens uniformes de corpos regulados. E isso porque, evidentemente, as diferenças aparecem: a mulher sabe que está o tempo todo sendo observada e julgada pelos seus atos. Quando não predomina a busca de um “Viver-a-dois”, tampouco a de uma solidão que exclua todo e qualquer convívio, mas, sim, algo mais complexo que envolve extrair do corpo o máximo de prazer, é impossível não pensar que os discursos sociológicos servem também à censura, quando enquadram os que fazem tal uso do corpo como seres incapacitados para os afetos.

Quando se trata da imagem da mulher, a violência é ainda maior, como é de se esperar. É o que aponta Campos. A protagonista de seu romance está sempre às voltas com cobranças externas que põem em xeque as suas escolhas. O modo como responde a essas cobranças revela um artifício crucial da narrativa. Como já dito, o foco está nas ações; e isso não impede que logo se saiba bastante sobre o que se passa e quais são as questões de Izabel. Mais ainda, embora sem saber como ela vai reagir diante de determinada demanda, confia-se nela. Como uma personagem que, sem grandes explicações, se muda para o sítio do avô morto, abandona o emprego, compra uma moto após aprender a dirigir com um jovem da comunidade, “trepa” com diversos parceiros, entra e bebe sozinha em bares, aparenta uma lucidez que é da ordem de uma exigência ética? Uma hipótese plausível é a de um certo fascínio por esse modo de vida, o que possibilita a suspensão dos julgamentos, porém é mais do que isso: a autora arrisca-se a criar um corpo desejante sem relacioná-lo com distúrbios psicológicos; não é nenhuma das patologias ligadas ao sexo que move as “perversões” de Izabel. Para ela, basta o transbordamento do gozo. Fica evidente, assim, que o “lugar total” de que se trata aqui é menos a propriedade campestre, com os seus sentidos de natureza a revelar a verdadeira essência, e mais o que no indivíduo excede a totalidade - “uma totalidade sem complemento, um total sem restrição, um lugar sem nada ao lado”; outros nomes para o transbordamento (BARTHES, 2000BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Trad. H. dos Santos. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, 2000., p. 282). Essa totalidade resta excessiva à comunidade, que, para se manter, investe em ordenamentos que a caracterizam e tornam-na reconhecível. Assim, a empatia pela trajetória da protagonista advém, em parte, de sua capacidade de reconhecer esses mecanismos de controle e não abdicar da parte do imaginário que produz o a-mais que corrompe o padrão.

A disritmia religiosa

O que está em jogo, na literatura de Campos, é o questionamento das amarras que ligam as pessoas a determinado padrão comunitário. Por isso, profanar com o sexo os ideais de totalização é tão importante no romance. Por outro lado, repele-se o que se erige como sustentáculo de uma “comunidade imaginária” que barra qualquer um não identificado com os seus pressupostos. As comunidades religiosas, como as igrejas evangélicas que proliferam nas cidades do interior, são vistas como estruturas que criam respostas-padrão para questões muito diversas, não estando abertas nem mesmo para a tolerância, o que havia sido uma das marcas identitárias da igreja.

De maneira sutil, a história paralela de A vez de morrer põe em contato o percurso de dois indivíduos, cuja fantasia é estabelecer um regime de vida estranho aos limites da regularidade social ou, pelo menos, abrir uma fenda nessa regularidade. Eduardo, o jovem dono da lan house que Izabel frequenta para se conectar com o mundo exterior e conhecer os ritmos dos jovens que fazem dali seu point, desde há muito é o expatriado da comunidade em que foi criado. Adquire autonomia para sair da religião por conta da imagem de jovem trabalhador arrimo da família, o que não evita que seja tutelado pela religiosidade de seus próximos. A saída é, de fato, o ponto comum entre os dois, o que compartilham sem saber. O que comprova a delicadeza do percurso de cada um, apesar de suas visões por vezes céticas acerca das próprias escolhas, é o sem-saída dos sentimentos que confirma o encontro dos dois, apenas sugerido, reiteradamente adiado, porém inevitável.

O poder que sustenta os macroagrupamentos se põe alheio às sutilezas. Na verdade, estes se constituem a partir da contrariedade à delicadeza de ritmos próprios; ao contrário, favorece a rigidez dos rituais para o exercício do controle. O fato de estarem dispostos dois mundos tradicionalmente antagônicos no romance - o da sexualidade e da religião - determina as diferenças a serem avaliadas. Mais uma vez, o procedimento narrativo acerta quando não materializa a história de amor de Eduardo e Izabel com os clichês que geralmente tomam conta dessa linguagem. Os silêncios, os subentendidos, fazem parte daquela altercação ao modelo, por isso a concentração não é apenas no que transcorre entre os dois, mas na conciliação dos contrários que é necessário operar para que a história dos dois seja possível. Tudo o que é vivido por Izabel é posto sob o jugo da religião, do qual a irmã de Eduardo é a serva fiel:

- Todo mundo sabe que você dorme com mulher? - disse Talita. - Mulher casada ainda por cima. - O que você tem com... - Ah, não é da minha conta, né? Tá, mas não vem mexer com meu irmão. Se mexer com ele... - Eu não tô mexendo com ele. - Claro. Não é disso que você gosta, né? Então deixa meu irmão em paz. Deixa o Edu em paz e vai cuidar da tua vida. Izabel estava injuriada. ... - Você é doente. - Você é que é podre. - Você é maluca. Coitado do seu filho. (CAMPOS, 2014CAMPOS, Simone. A vez de morrer. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. , p. 220)

É um embate em que a invocação da paz, o deixar-em-paz, é uma declaração de guerra. “Deixar em paz” não significa aqui manter a “justa distância”, mas, sim, a imposição de um distanciamento completo; uma ordem com a função de afastar o irmão da má companhia; em outras palavras, uma ordem para manter separadas a religião e a sexualidade. A ideia de segurança e proteção que normalmente envolve a noção de comunidade escamoteia o fato de que, para essa ideia subsistir, é preciso afastar os que não estão de acordo com suas normas. É preciso deixar do lado de fora tudo o que é visto como impuro, pois o que se deve evitar a todo custo é a contaminação. Por isso, um dos únicos modos de entrar em uma comunidade, ou de permanecer nela, ou de ser “deixado em paz”, usufruindo de seus benefícios, é a conversão. Todas as benesses dependem desse gesto originário.

Quando Talita, irmã de Eduardo, profere o deixar-em-paz, invoca essas leis. Um dos preceitos da religião é a de que se pode falar em seu nome; aliás, é sempre em nome da religião que o fiel deve falar. É o que se encena mais adiante: “Se Deus mandava ela [Talita] falar, ela falava. Só tinha dado o recado. Lógico que o diabo ia espernear de ódio. Lógico que ele ia retaliar. Mas filho de Deus não pode baixar a cabeça na primeira tribulação” (CAMPOS, 2014CAMPOS, Simone. A vez de morrer. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. , p. 240). É em nome de Deus que se evoca o ódio.

A semântica da doença, da podridão e da loucura contidas nesse diálogo faz migrar a “cena”. A dúvida não é se existe amor nas relações contemporâneas, mas como ele pode se manter no meio de comunidades tão díspares, se o que ainda subsiste é a conversão a um único modelo. A bissexualidade de uma mulher não deveria se encontrar com a religiosidade de outra, porque ambas são regidas por leis próprias, irremediavelmente antagônicas. O fato de igrejas evangélicas, em diferentes denominações, disseminarem ainda algo tão impreciso e passível de contraposição quanto a “cura gay” como uma das promessas de aceitação e efetivação da conversão demonstra o tamanho das diferenças que há em cada uma. “Aceitar Jesus em seu coração”, aliás, é parte desse processo; expressão corriqueira nos templos religiosos como sinônimo de conversão. Não seria essa a maior prova de expurgo a que as comunidades submetem o diferente, o que não comunga? A comunhão, a partilha, se efetivaria tão somente entre os iguais. Nas comunidades existentes, a radicalidade dos preceitos tende a uniformizar, a forjar uma unidade às custas da erradicação de qualquer diferença. Nesse caso, a identidade deve necessariamente ser forjada para não aceitar nenhuma interferência que seja ditada fora da comunidade. Esse pensamento higienista, forjado em oposições (doença/cura, limpeza/contaminação), nega a existência do que seja heterogêneo. Pensar de outra forma é obrigatoriamente abdicar da participação em dado agrupamento social.

Ao contrário do que prediz o senso comum, nenhuma hospitalidade é possível a partir desses parâmetros, uma vez que sua oferta está condicionada a deveres pré-determinados. Essa hospitalidade condicional em que se deve “curvar de certa forma às regras em uso no lugar que o acolhe” (DERRIDA, 2004DERRIDA, Jacques. De que amanhã: Diálogo/Jacques Derrida; Elisbeth Roudinesco. Trad. A. Telles. Rio de Janeiro: Jorge zahar Editor, 2004., p. 77) encontra respaldo nos conceitos político e jurídico, porém se choca com a ideia de aliança que permeia as religiões, pois essas são fundadas (se pensarmos nas religiões de base cristã) na crença de união de todos os povos; seriam, portanto, o lugar da hospitalidade incondicional, na qual se deixaria adentrar na casa todo e qualquer um, acolhendo até mesmo o intruso, o qual teria permissão inclusive de usurpar o que seria próprio daquele que hospeda. Nenhuma comunidade aceita esse risco.

Há, pelo menos, duas cenas fortes de não hospitalidade, de expulsão em A vez de morrer. Transcrevo a que relata o confronto entre aquele que segue a religião e o que não segue. Eduardo, após se envolver com a filha de um religioso, vai a um casamento no templo (“Era o casamento de Júnior, irmão mais velho de Sirlene e mais novo pastor da região, com Graciane, ex-vocalista da Holy Sacrifice” - CAMPOS, 2014CAMPOS, Simone. A vez de morrer. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. , p. 127). O desfecho não poderia ser outro senão a interpelação:

- Sabe, Eduardo? O problema pra mim não é você não ter religião. Isso não tá em questão. Sou um cara ok com isso. - Sua voz era aguda e estranha. - É só que eu fiquei sabendo por aí que você não gosta de namorar. Não gosta de namorar...! Ora, vejam só. O que eu acho engraçado é que começar você achou certo. (2014CAMPOS, Simone. A vez de morrer. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. , p. 128)

Por detrás da denegação da frase, todo o “problema” origina-se na religião e no que prega como correto, justo, próprio: o sexo, a união carnal, é interdito antes do matrimônio, incorrendo em grave erro quem corrompe tal lei. O corruptor deve ser banido da “cerimônia”, e seu não lugar à mesa exposto é como sinal de indecência: “- Eu sei que você não frequenta. Sei que não acredita. Mas a pessoa que não acredita também pode ser decente. Acho”. (2014CAMPOS, Simone. A vez de morrer. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. , p. 127).

A indecência é posta como atributo do não frequentar, não acreditar. Afirmar que se pode ser, fora das leis da religião, é afirmar que não se é. É o não-ser que é nomeado para, em seguida, ser admoestado. Ora, o que está sendo inquirido tanto a Izabel como a Eduardo é um cerceamento do corpo em nome da religião. Como diria Barthes, todo um dossiê a ser explorado. Mesmo nas comunidades idiorrítmicas, há o cuidado de separar os corpos, de estabelecer regras para as paixões não usurparem o bem-estar, o que é reforçado ao extremo nos macroagrupamentos religiosos. Inúmeros são os exemplos em que o sexo é o leitmotiv desestabilizador da vida comunitária. Novamente, propaga-se a antonímia corpo/alma, na qual a última, imaterial, tem a prevalência. Por isso, Sade e Pasolini não puderam formar senão agrupamentos temporários, à mercê da censura, dos escândalos e da exceção.

Tal ordenamento, que submete o estranho às regras da comunidade, não constitui novidade, tampouco as formas de subversão. No romance de Campos, paralelamente à ordenação das regras, existe uma movimentação subterrânea que, caso exposta, desmontaria a suposta ordem cultuada. Delitos ocorrem o tempo todo, criando um clima de desconfiança e ressentimento, sob a aparente normalidade: roubo de fios de energia elétrica, adolescentes que matam aula para passar o dia na lan house, mulher que contrata homens para estuprá-la e com isso livrar-se do marido, jovens bêbados nos bares em busca de um par, estupros e revenge porn que expõem as mulheres em situações vexatórias públicas e privadas.

Situações como essas serviram para sedimentar o consenso de uma violência sem trégua das grandes cidades, justificadora da ansiedade, do medo e da desconfiança dos indivíduos. Toda uma sociologia do caos urbano ajudou a constituir uma literatura brasileira contemporânea, de matiz urbano, fundada na explicitação dessa violência. Muitas vezes, o retorno ao campo foi apontado como saída. O livro de Campos, ao encenar essa saída, desnaturaliza o campo, demonstrando a dificuldade de distinção entre este e a cidade, uma vez que tudo é atingido pela “concentração dos poderes capitalístico-midiáticos”, na expressão de Jacques Derrida (2000DERRIDA, Jacques; VATTIMO, Gianni. A religião: o seminário de Capri. Trad. T. M. Verza. São Paulo: Estação Liberdade, 2000. , p. 37). Nesse sentido, o filósofo atenta para o fato de que as guerras religiosas exigem hoje, “com todo o rigor”, o controle do céu. Ao fazer o trocadilho entre céu e espaço aéreo, ele lembra o quanto as manifestações religiosas circulam através da cultura digital.

No romance, como prova de que não há conciliação possível entre os preceitos da religião e a existência do “Um”, a distinção permanece irresolvida. Através da rádio, difunde-se o Rock Cristão Brasileiro, porta-voz de jovens evangélicos (“- O grupo foi formado há um ano por quatro jovens da região serrana do Rio: Selene, Jonas, Ricky e Dennyson. Em setembro passado, eles levaram o som deles pro festival de bandas cristãs Nova Alvorada, em Ribeirão Preto, e arrebataram o público gospel com suas composições! Sim, como o Brasil tá descobrindo, Jesus também gosta de rock!” - CAMPOS, 2014CAMPOS, Simone. A vez de morrer. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. , p. 249). Na exposição da violência, a protagonista parada no acostamento ouve, em outra língua que ressoa todas as línguas, a versão da sua história. Ela é Jezebel, a prostituta. O som maneiro do gospel religioso destina a ela uma das tantas punições bíblicas. O julgamento de Deus virá com granizo e chuva4 4 Em Ezequiel 38:22, Deus pronuncia: “Vou trazer o meu julgamento contra ele (o Diabo) com peste e derramamento de sangue. Farei cair uma chuva torrencial, pedras de granizo, fogo e enxofre sobre ele, sobre suas tropas e sobre os muitos povos que o acompanham” (BÍBLIA SAGRADA, 2014). . É a voz do Apocalipse. 2:20-21: “Contudo tenho [Deus] o seguinte contra você [Tiatira, umas das congregações cristãs]: você tolera aquela mulher Jezabel, que se diz profetisa e ensina e desencaminha os meus escravos, induzindo-os a cometer imoralidade sexual e a comer coisas sacrificadas a ídolos. Eu dei a ela tempo para se arrepender, mas ela não quer se arrepender da sua imoralidade sexual” (BÍBLIA SAGRADA, 2014BÍBLIA SAGRADA. Tradução do novo mundo. Cesário Lange-SP: Associação Torre de Vigia de Bíblia e Tratados, 2014.).

O céu, desde o início, não tem compaixão. A idiorritmia, embora pertença ao vocabulário religioso, pode ser tão somente uma fantasia, isto é, uma projeção. As comunidades, tais como constituídas, tendem a se opor violentamente ao ritmo pessoal dos indivíduos, que ficam sujeitos aos discursos apocalípticos; não apenas religiosos, mas também jurídicos, sociológicos, filosóficos, etc.

Referências bibliográficas

  • AGAMBEN, Giorgio. Profanações Trad. S.J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007.
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  • BARTHES, Roland. Como viver junto: simulações romanescas de alguns espaços cotidianos: cursos e seminários no Collège de France, 1976-1977. Trad. L. Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
  • BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Trad. P. Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
  • BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Trad. C. A. Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. , 2004.
  • BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade Trad. E. Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. , 2009.
  • BÍBLIA SAGRADA. Tradução do novo mundo. Cesário Lange-SP: Associação Torre de Vigia de Bíblia e Tratados, 2014.
  • CAMPOS, Simone. A vez de morrer São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
  • CESAR, Ana Cristina. A teus pés São Paulo: Ática, 1999.
  • DERRIDA, Jacques. De que amanhã: Diálogo/Jacques Derrida; Elisbeth Roudinesco. Trad. A. Telles. Rio de Janeiro: Jorge zahar Editor, 2004.
  • DERRIDA, Jacques; VATTIMO, Gianni. A religião: o seminário de Capri. Trad. T. M. Verza. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.
  • O PÂNTANO. Direção: Lucrécia Martel. França, Argentina, Espanha, 2001.
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    O booktrailer pode ser encontrado na página da Companhia das Letras: <https://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=13460>
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    Barthes (2003) BARTHES, Roland. Como viver junto: simulações romanescas de alguns espaços cotidianos: cursos e seminários no Collège de France, 1976-1977. Trad. L. Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2003.aponta a tese do historiador de arte Joseph Rykwert de que “o paraíso implica a ‘casa’”, o que a liga à ideia de “contrassolidão”, daí a cabana de Adão ser o modelo milenar da arquitetura. E a propriedade campestre posta como o “lugar total”. O interesse da tese de Rykwert reside na demonstração da simbologia da casa como lugar de “Criar um volume que o sujeito possa interpretar em função de seu próprio corpo. Cabana: ao mesmo tempo corpo e mundo; o mundo como projeção do corpo” (2003, p. 96).
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    Entrevista concedida ao Jornal O Globo em 8 de novembro de 2014. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/cultura/livros/simone-campos-rio-esta-sempre-vivendo-pequenos-apocalipses-13097422>
  • 4
    Em Ezequiel 38:22, Deus pronuncia: “Vou trazer o meu julgamento contra ele (o Diabo) com peste e derramamento de sangue. Farei cair uma chuva torrencial, pedras de granizo, fogo e enxofre sobre ele, sobre suas tropas e sobre os muitos povos que o acompanham” (BÍBLIA SAGRADA, 2014BÍBLIA SAGRADA. Tradução do novo mundo. Cesário Lange-SP: Associação Torre de Vigia de Bíblia e Tratados, 2014.).
  • Milena Magalhães fez mestrado e doutorado em Teoria da Literatura pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - IBILCE/Unesp, com estágio na Université Paris VIII. Atualmente, é professora na Universidade Federal do Sul da Bahia e líder do GEPEC - Grupo de Pesquisa em Poética Brasileira Contemporânea. Centra seus estudos na prosa e poesia brasileira contemporâneas, refletindo sobre as representações autobiográficas do/no presente. Mantém, ainda, uma reflexão constante sobre o lugar da literatura na Educação Básica e no Ensino Superior, desenvolvendo, no momento, o projeto Partilhas literárias para a elaboração de práticas de leitura interdisciplinares, com o apoio do CNPq. E-mail: milena_guidio@yahoo.com.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2018

Histórico

  • Recebido
    15 Set 2017
  • Aceito
    30 Nov 2017
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