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“O autor de si mesmo” e “Mineirinho” diante da violência

“O autor de si mesmo” and “Mineirinho” in the face of violence

Resumo

“O autor de si mesmo” e “Mineirinho” são reações a notícias de jornal sobre casos de grande violência. Ambos são também crônicas publicadas em órgãos importantes da imprensa de sua época, a Gazeta de Notícias, no caso de Machado de Assis, e a revista Senhor, no caso de Clarice Lispector. Este artigo propõe analisar essas crônicas paralelamente, de modo a investigar as modalidades de reação diante da violência que elas corporificam.

Palavras-chave:
O autor de si mesmo; Mineirinho; violência; imprensa

Resumé

“O autor de si mesmo” et “Mineirinho” sont deux chroniques nées en réaction à des articles de presse sur des cas de grande violence. Les deux sont également des chroniques publiées dans d'importants organes de presse de leur époque, la Gazeta de Notícias, dans le cas de Machado de Assis, et la revue Senhor, dans le cas de Clarice Lispector. Cet article propose d'analyser ces chroniques en parallèle, afin d'enquêter sur les modalités de réaction à la violence qu'elles incarnent.

Mots-clés:
O autor de si mesmo; Mineirinho; violence; presse

Abstract

“O autor de si mesmo” and “Mineirinho” are both chronicles written as reactions to newspaper reports about cases of extreme violence. Both are also texts published in the mainstream media of their time: Gazeta de Notícias, in the case of Machado de Assis, and the magazine Senhor, in the case of Clarice Lispector. This article seeks to analyze these texts in parallel, in order to investigate the modalities of reaction to the violence that they embody.

Keywords:
O autor de si mesmo; Mineirinho; violence; press

I

No obituário do professor Alfredo Bosi, publicado na Folha de São Paulo em 2021ROCHA, João Cézar de Castro. Bosi fez do acordo entre o verbo e a carne o norte de sua existência. 7 abr. 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/04/bosi-fez-do-acordo-entre-o-verbo-e-a-carne-o-norte-de-sua-existencia.shtml . Acesso em: 17 mai. 2022.
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/...
, João Cezar de Castro Rocha lembra de uma intervenção do crítico em um debate na década de 1980, que reuniu figuras importantes à época, sobre a obra de Machado de Assis. Numa mesa redonda que contava com críticos e escritores como Roberto Schwarz, Luiz Roncari e Antonio Callado, a discussão tomava um rumo sofisticado, com elaborações teóricas e divergências analíticas. Lá pelo meio do debate, Bosi toma a palavra pela primeira vez e, num registro distinto daquele rarefeito que a conversa vinha tomando, pergunta sobre como os presentes “respondiam vitalmente a Machado” (BOSI, 1982BOSI, Alfredo et al. Machado de Assis. São Paulo: Ática, 1982., p. 322).

Gostaria de partir dessa questão para pensar a crônica “O autor de si mesmo”, de Machado de Assis. A leitura da crônica, me parece, incita uma sensação de desconforto, um tipo de inquietação moral: desde as primeiras linhas a impressão é que uma enormidade está acontecendo, que estamos sendo convidados a presenciar uma operação obscena. Não acho que é um exagero dizer que essa crônica seria muito provavelmente impublicável hoje nos jornais de grande circulação. O tipo de “resposta vital” imediata que a crônica enseja, a meu ver, é de indignação e de perplexidade. Diante de um caso tenebroso de infanticídio da época, Machado escreve uma crônica que parece profanar o corpo já violentado da criança. A ironia sutil do texto atado a sua crueldade ostensiva, o tipo de perplexidade irresolvida com que ele nos deixa, são, me parece, alheios ao espaço da coluna de jornal contemporânea.

Por razões distintas, julgo que “MineirinhoLISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In: LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira. Rio de Janeiro: editora do autor, 1964. p. 252.”, de Clarice Lispector, se não seria impublicável, possivelmente também encontraria um tipo de resistência própria do nosso tempo. A crônica de Clarice reage à morte do bandido Mineirinho, assassinado pela polícia numa espécie de execução extrajudicial. A operação para-policial que resultou na sua morte é, por vezes, tratada como “ponto de origem do famigerado esquadrão da morte” (BRETAS, 2011BRETAS, Marcos Luiz. Valente mas muito considerado: a memória do crime. In: Anais do XXVI Simpósio Nacional de História - ANPUH, São Paulo, 2011., p. 4), nome dado a vários grupos de extermínio clandestinos formados por policiais, surgidos no início da década de 1960 e que se espalharam pelo país. A crônica foi provavelmente uma das primeiras e mais contundentes respostas literárias a esse fenômeno que surgia ali.1 1 José Miguel Wisnik sugere que provavelmente o texto seria inaugural, o primeiro “a acusar os justiçamentos policias e parapolicias que se converteriam em norma na montante da violência brasileira” (WISNIK, 2021, p. 302). No contexto atual da República, como se sabe, isso que estava sendo denunciado por Clarice hoje não apenas persiste, como reclama, desimpedida, sua legitimidade política. Fosse publicada hoje, a crônica teria que se haver com uma esfera pública rebaixada em que muito do que antes só podia ser dito ou defendido de modo sussurrado é agora proferido abertamente.

O autor de si mesmoMACHADO DE ASSIS, Joaquim M. “O autor de si mesmo”. Machadiana Eletrônica, Vitória, v. 4, n. 8, s/p, jul-dez. 2021.” e “MineirinhoLISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In: LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira. Rio de Janeiro: editora do autor, 1964. p. 252.” são ambas reações a notícias de jornal sobre casos de grande violência. Ambos são também crônicas publicadas em órgãos importantes da imprensa de sua época, a Gazeta de Notícias, no caso de Machado de Assis, e a revista Senhor, no caso de Clarice Lispector. Isto é, temos dois textos que, ao mesmo tempo, foram escritos em periódicos jornalísticos e também foram disparados por outros textos jornalísticos. E, nesse sentido, pensá-los em relação a esse contexto do jornal parece uma entrada natural ou mesmo óbvia.

É conhecido o comentário de Balzac que, num momento ainda inicial da massificação da imprensa diária em Paris, teria dito que o “jornal seria mortal para a existência dos escritores modernos” (BUCK-MORSS, 1989BUCK-MORSS, Susan. The Dialectics of Seeing: Walter Benjamin and the Arcades Project. Massachusetts: The MIT Press, 1989., p. 142). Num registro parecido, Walter Benjamin também iria escrever sobre os efeitos para a literatura dessa nova forma de comunicação que ganhara relevo.2 2 Em seu texto clássico sobre Leskov, Benjamin vai chamar essa nova forma de comunicação (característica da imprensa) de “informação”, que será oposta a arte da “narrativa” e tratada como sua maior ameaça. Ver: BENJAMIN, Walter. O narrador. In: Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 197-221. Por exemplo, em seu ensaio sobre Baudelaire, Benjamin vai atar o tópico da atrofia da experiência - que constituiria, para ele, a matéria básica da literatura moderna - com a proeminência que o jornal adquiria (BENJAMIN, 1989BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas III: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989., p. 106-107). O estilo jornalístico, sua concisão e pronta inteligibilidade, a diagramação da página do jornal e o tipo de leitura vertical que ela convida, a desconexão das notícias entre si, o desenraizamento na vivência comunitária daquilo que é relatado, tudo isso confluiria para uma incapacidade do jornal de “afetar a experiência do leitor” (BENJAMIN, 1989BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas III: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 106).

“Mineirinho” e “O autor de si mesmo” podem ser entendidas como configurando duas estratégias literárias distintas que se orientam contra a abordagem jornalística da violência. Como tentarei mostrar, embora as duas crônicas sejam evidentemente muito diferentes entre si, seria possível argumentar que há uma espécie de secreta aliança entre elas, ambas estão se havendo com um tipo de torpor diante da violência própria do leitor do jornal.

II

Sem a pretensão de formular uma leitura abrangente de “MineirinhoLISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In: LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira. Rio de Janeiro: editora do autor, 1964. p. 252.”, vou me limitar a um comentário dos seus primeiros parágrafos. O intuito será descrever o funcionamento de um de seus aspectos, a saber, o tipo de reação à cobertura jornalística que a crônica encarna. Contra a distância segura em face dos acontecimentos, própria do que podemos chamar da perspectiva jornalística, “Mineirinho” vai opor dois procedimentos principais, que se alternam vertiginosamente. Há na crônica uma oscilação complexa entre um movimento da narradora de se identificar radicalmente com Mineirinho, mesmo de aspiração em se transformar no outro, que é seguido por um movimento em certo sentido oposto de admissão envergonhada da existência de um elo dissimulado com os algozes do bandido, portanto, pela implicação político-moral na sua morte. Poderíamos dizer, um pouco esquematicamente, que o primeiro movimento nega mais diretamente a “distância”, há um desejo na crônica de se conectar a Mineirinho, de se fundir a ele, e o segundo mina a “segurança”, a narradora não tira o seu “corpo fora”, ela não faz a denúncia de sua execução sem que ela esteja nela implicada, como beneficiária e corresponsável pela sua morte. As primeiras linhas da crônica já apresentam, de maneira incipiente, essa dinâmica geral, que, como veremos, não diz respeito apenas à narradora, mas envolve também o leitor.

É, suponho que é em mim, como um dos representantes de nós, que devo procurar por que está doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o mal-estar de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações contraditórias por não saber como harmonizá-las. Fatos irredutíveis, mas revolta irredutível também, a violenta compaixão da revolta. Sentir-se dividido na própria perplexidade diante de não poder esquecer que Mineirinho era perigoso e já matara demais; e no entanto nós o queríamos vivo. A cozinheira se fechou um pouco, vendo-me talvez como a justiça que se vinga. Com alguma raiva de mim, que estava mexendo na sua alma, respondeu fria: “O que eu sinto não serve para se dizer. Quem não sabe que Mineirinho era criminoso? Mas tenho certeza de que ele se salvou e já entrou no céu”. (LISPECTOR, 1964LISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In: LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira. Rio de Janeiro: editora do autor, 1964. p. 252., p. 252-253).

MineirinhoLISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In: LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira. Rio de Janeiro: editora do autor, 1964. p. 252.” abre com um “É” fático, traço de oralidade que parece performar mesmo um diálogo já iniciado, que se pode supor ser com o próprio leitor. De saída, estamos incorporados em uma primeira pessoa do plural, da qual as experiências da narradora seriam representativas. A crônica vai construindo um leitor implícito, inscrito no texto, que também experimenta a mesma oscilação da narradora entre identificação e implicação moral, oscilação na qual esse pronome será decisivo. Por um lado, o primeiro “nós” é de classe. O que dispara a crônica é a conversa com a cozinheira, que coloca a narradora na incômoda posição da “justiça vingadora”, ao lado dos algozes de Mineirinho. Por outro, a morte de Mineirinho não é indiferente à narradora, ela não é imune a ela, de sorte que o movimento de aproximação está colocado desde as primeiras linhas. Esse movimento, ainda incipiente aqui, vai encontrar o seu ponto de maior radicalidade na “contagem dos tiros”. Ainda nesse primeiro parágrafo, vale notar, a narradora diz que prefere “contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes”, preparando o momento mais conhecido da crônica. Trata-se de uma inversão de pauta, como apontou Yudith Rosenbaum em artigo que investigou a cobertura jornalística na época do caso (ROSENBAUM, 2010ROSENBAUM, Yudith. A ética na literatura: leitura de “Mineirinho”, de Clarice Lispector. Estudos Avançados, v. 24, n. 69, p. 169-182, 2010., p. 169-172). A expectativa de uma abordagem jornalística seria falar de Mineirinho a partir de seus crimes, a crônica, ao contrário, vai optar por narrar os tiros que o executaram:

Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina - porque eu sou o outro. (LISPECTOR, 1964LISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In: LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira. Rio de Janeiro: editora do autor, 1964. p. 252., p. 253).

Se as reportagens friamente relatavam o número total de tiros que alvejaram Mineirinho,3 3 Por exemplo, a manchete do Diário de Notícias dizia com uma dureza impressionante: “‘Mineirinho’ foi metralhado 13 vezes e atirado no mato” (ROSENBAUM, 2010, p. 171). a crônica vai contá-los um a um, prolongando-os incomodamente, e descrevendo também as suas cada vez mais intensas repercussões sobre a narradora. A dinâmica dual de implicação moral na execução e de identificação com Mineirinho está colocada também nesse parágrafo. Os dois primeiros tiros são feitos em nome da narradora, para sua segurança. A contagem dos tiros, contudo, continua e, num crescendo dramático, culmina num desejo de transformação, numa identificação radical com Mineirinho. O texto continua e esse mesmo movimento se repete:

Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais. Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos. Até que treze tiros nos acordam, e com horror digo tarde demais - vinte e oito anos depois que Mineirinho nasceu - que ao homem acuado, que a esse não nos matem. (LISPECTOR, 1964LISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In: LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira. Rio de Janeiro: editora do autor, 1964. p. 252., p. 253-254).

Da identificação radical com Mineirinho, ato contínuo, estamos novamente envolvidos em sua morte, dependentes da “justiça” que o matou. A figura do “sonso” exprime bem esse movimento da crônica de implicar a nós e a narradora na tragédia. Ela está relacionada a outras duas imagens, a do “sono” e da “casa”. Sonso, na crônica, é aquele que dorme enquanto Mineirinho é assassinado, é a imagem da impassibilidade diante do sofrimento do outro. Essa inconsciência é, no entanto, fingida, ser sonso está ligado a um “se fazer de bobo”. É preciso ser sonso, diz a narradora, para a “casa” não estremecer. A imagem da "casa" mobiliza, por sua vez, a expectativa de tranquilidade, segurança e, sobretudo, a ideia de uma solidariedade contida, restrita à família. Ser sonso é, nesse sentido, uma espécie de inconsciência fingida em nome de um conforto moral ilusório. E a alcunha é usada, claro, como uma acusação, como um chamado à consciência. Nesse momento, o “nós” funciona como uma dolorosa lembrança para a narradora e os leitores de que estamos juntos de seus algozes contra Mineirinho. Mais adiante, contudo, o mesmo pronome, associado a figura do “doido”, funcionará num sentido oposto, indicando que somos o mesmo que ele,4 4 “Essa alguma coisa muito séria em mim fica ainda mais séria diante do homem metralhado. Essa alguma coisa é o assassino em mim? Não, é o desespero em nós. Feito doidos, nós o conhecemos, a esse homem morto onde a grama de radium se incendiara. Mas só feito doidos, e não como sonsos, o conhecemos” (LISPECTOR, 1964, p. 256). executando, com isso, essa oscilação que estou tentando descrever.5 5 Vale lembrar que Mineirinho tinha escapado do Manicômio Judiciário. Nesse pronome “nós” a tensão entre essas duas linhas de força da crônica está condensada. Num movimento mais geral, com efeito, essa tensão aparece na oposição entre “nós-sonsos” e “nós-doidos”, pervasiva na crônica. Mas esse movimento se repete, como estamos vendo, também em um domínio menos amplo. Por exemplo, o fim dessa citação que estamos comentando - que está no interior de um parágrafo maior - completa essa mesma oscilação. Partimos de um “nós” que nos ligava à justiça vingadora, aos policiais que executaram Mineirinho. O trecho termina, contudo, com uma aparente incorreção gramatical, onde seria esperado “que a esse não o matem” a narradora diz “que a esse não nos matem”: o “nos”, agora pronome oblíquo, nos liga à Mineirinho, os tiros que o mataram estão direcionados à narradora e aos leitores.

Esse movimento pendular, como se vê, funciona como uma espécie de célula, uma estrutura que se repete no texto. Embora tenha me limitado apenas aos primeiros parágrafos, ela aparece, com diferentes extensões, por toda a crônica. De um certo ponto de vista, esses dois movimentos são opostos, mesmo contraditórios, ora estamos junto de seus algozes, entre seus assassinos, ora junto de Mineirinho, tão ligados a ele que os tiros que o mataram nos matam, pois somos feitos da mesma matéria errante que ele. Esses dois movimentos são experimentados pelo leitor na forma de uma tensão, e muito da intensidade da crônica tem a ver com isso, com essa espécie de voragem, em que somos jogados de um lado para o outro. Mas, correndo o risco de dizer o óbvio, essa contradição entre os dois movimentos que é vivida na leitura, que se dá nesse plano, digamos, fenomenológico, se desfaz se interrogarmos a crônica enquanto intervenção literária na esfera pública, como texto que reagia à complacente cobertura da imprensa da execução de Mineirinho.6 6 Jose Miguel Wisnik, no ensaio já citado, faz uma análise breve, mas muito aguda, de um editorial do Correio da Manhã da época sobre a execução de Mineirinho, “pronunciamento jornalístico” que exemplificaria “bem a posição dúbia e prenhe de consentimento contra a qual Clarice levantará sua revolta” (WISNIK, 2021, p. 301-302). Embora experimentados como opostos, os dois movimentos convergem nesse outro plano, pois em ambos os casos se trata de elaborar uma aliança com Mineirinho, isto é, tanto a empatia como a culpa são mobilizadas com a mesma finalidade política.

Em resumo, esse movimento tensionado entre identificação e implicação moral é o dispositivo fulcral de “Mineirinho” para entender a sua reação à cobertura jornalística ao caso. Nele se trata de procurar negar uma atitude confortável em sua distância dos fatos, dramatizando a atitude oposta, uma de intensa exposição ao mundo, de porosidade à dor do outro, e de autorresponsabilização moral e política diante da violência.

III

Dificilmente se poderia pensar num texto mais distinto de “MineirinhoLISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In: LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira. Rio de Janeiro: editora do autor, 1964. p. 252.” do que “O autor de si mesmoMACHADO DE ASSIS, Joaquim M. “O autor de si mesmo”. Machadiana Eletrônica, Vitória, v. 4, n. 8, s/p, jul-dez. 2021.”. Estilo, tonalidade afetiva, digressões eruditas, postura irônica, dicção empertigada, tudo o que caracteriza a crônica machadiana é estrangeiro ao texto de Clarice.

Guimarães chama-se ele; ela Cristina. Tinham um filho, a quem puseram o nome de Abílio. Cansados de lhe dar maus tratos, pegaram do filho, meteram-no dentro de um caixão e foram pô-lo em uma estrebaria, onde o pequeno passou três dias, sem comer nem beber, coberto de chagas, recebendo bicadas de galinhas, até que veio a falecer. Contava dois anos de idade. Sucedeu este caso em Porto Alegre, segundo as últimas folhas, que acrescentam terem sido os pais recolhidos à cadeia, e aberto o inquérito. (MACHADO DE ASSIS, 2021MACHADO DE ASSIS, Joaquim M. “O autor de si mesmo”. Machadiana Eletrônica, Vitória, v. 4, n. 8, s/p, jul-dez. 2021., s/p).

Se na crônica de Clarice, desde as primeiras linhas, o relato em primeira pessoa do caso era indissociável de uma descrição minuciosa das suas intensas e contraditórias repercussões afetivas na narradora, o que dava ao texto uma carga patética evidente, a abertura de O autor de si mesmoMACHADO DE ASSIS, Joaquim M. “O autor de si mesmo”. Machadiana Eletrônica, Vitória, v. 4, n. 8, s/p, jul-dez. 2021. introduz uma atmosfera diversa, seca e apática. O início do texto faz um relato “objetivo” dos tormentos de Abílio, num estilo que, se parece inverter a ordem da exposição jornalística (que teria provavelmente aberto já na primeira frase com o relato direto do fato e local), emula o seu distanciamento.

A dor do pequeno foi naturalmente grandíssima, não só pela tenra idade, como porque bicada de galinha dói muito, mormente em cima de chaga aberta. Tudo isto, com fome e sede, fê-lo passar um mau quarto de hora, como dizem os franceses, mas um quarto de hora de três dias; donde se pode inferir que o organismo do menino Abílio era apropriado aos tormentos. Se chegasse a homem, dava um lutador resistente; mas a prova de que não iria até lá, é que morreu. (MACHADO DE ASSIS, 2021MACHADO DE ASSIS, Joaquim M. “O autor de si mesmo”. Machadiana Eletrônica, Vitória, v. 4, n. 8, s/p, jul-dez. 2021., s/p).

A crueldade da crônica começa aqui. Diante do horror da morte de Abílio, o narrador responde com um fraseado refinado, vocabulário distinto e sintaxe engomada, e faz acenos de assentimento ao leitor (“naturalmente”). Na frase seguinte, num crescendo de desrespeito, o cronista faz graça com a expressão francesa un mauvais quart d'heure (que fala de algo desconfortável, mas breve), o que atenua indecorosamente o caso, que é de infanticídio. No fim do parágrafo, ápice da canalhice, o cronista se permite especular obscenamente sobre a resistência física do bebê.

Se o cronista narra o acontecimento de longe, impassível diante do sofrimento de Abílio, isso não quer dizer que o faz de modo impessoal. O estilo da crônica é marcadamente pessoal, seu fraseado e o seu humor sofisticadamente cruéis são singulares, dão individualidade e diferenciação ao texto. O estilo jornalístico é, grosso modo, distante e impessoal; no caso de “O autor de si mesmoMACHADO DE ASSIS, Joaquim M. “O autor de si mesmo”. Machadiana Eletrônica, Vitória, v. 4, n. 8, s/p, jul-dez. 2021.”, ao contrário, há distância e também pessoalidade. Não há pretensão de objetividade com sua visão de lugar nenhum (a suposta “view from nowhere”). A distância machadiana, pelo contrário, tem lugar definido, a saber, acima do narrado. Como formulou Augusto Meyer, a ironia machadiana supõe um “homem do camarote” (MEYER, 2008MEYER, Augusto. Machado de Assis (1935-1958). Rio de Janeiro: José Olympio, 2008., p. 61).

Se não fosse Schopenhauer, é provável que eu não tratasse deste caso diminuto, simples notícia de gazetilha. Mas há na principal das obras daquele filósofo um capítulo destinado a explicar as causas transcendentes do amor. Ele, que não era modesto, afirma que esse estudo é uma pérola. A explicação é que dois namorados não se escolhem um ao outro pelas causas individuais que presumem, mas porque um ser, que só pode vir deles, os incita e conjuga. Apliquemos esta teoria ao caso Abílio. (MACHADO DE ASSIS, 2021MACHADO DE ASSIS, Joaquim M. “O autor de si mesmo”. Machadiana Eletrônica, Vitória, v. 4, n. 8, s/p, jul-dez. 2021., s/p).

O narrador - pela primeira marcado na primeira pessoa - introduz o objetivo proclamado da crônica, a saber, fazer uma ilustração da metafísica do amor schopenhaueriana a partir do caso da morte de Abílio. No ponto de vista explícito da crônica, há uma hierarquia evidente entre a filosofia de Schopenhauer e o caso de Abílio, “simples notícia de gazetilha”, salva da obscuridade pelo prestígio do idealismo alemão. Seria possível argumentar, no entanto, que algo diverso está sendo explorado nesse gesto de aplicação “da teoria ao caso Abílio”. É que de um ponto de vista moral, a ordem, em verdade, é oposta: a gravidade da matéria, o respeito exigido pela morte violenta da criança, proíbe o filosofema feito na crônica. Vem daí a experiência de desconforto com essa operação filosofante da crônica. É difícil ler “O autor de si mesmoMACHADO DE ASSIS, Joaquim M. “O autor de si mesmo”. Machadiana Eletrônica, Vitória, v. 4, n. 8, s/p, jul-dez. 2021.”, que se pretende um exercício filosófico, sem pensar no tratamento satírico que a metafísica recebe no conto “Teoria do medalhãoMACHADO DE ASSIS, Joaquim M. Teoria do Medalhão. In: MACHADO DE ASSIS, Joaquim M. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v. II. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000232.pdf . Acesso em: 17 mai. 2022.
http://www.dominiopublico.gov.br/downloa...
”, tratada como uma atividade inócua.7 7 “Quanto à matéria dos discursos, tens à escolha: - ou os negócios miúdos, ou a metafísica política, mas prefere a metafísica. Os negócios miúdos, força é confessá-lo, não desdizem daquela chateza de bom-tom, própria de um medalhão acabado; mas, se puderes, adota a metafísica; - é mais fácil e mais atraente” (MACHADO DE ASSIS, 1994, s/p). Em “O autor de si mesmoMACHADO DE ASSIS, Joaquim M. “O autor de si mesmo”. Machadiana Eletrônica, Vitória, v. 4, n. 8, s/p, jul-dez. 2021.”, a metafísica aparece afrontando nossa sensibilidade, como uma frivolidade que não cabe diante de um assunto grave demais.

Um dia Guimarães viu Cristina, e Cristina viu Guimarães. Os olhos de um e de outro trocaram-se, e o coração de ambos bateu fortemente. Guimarães achou em Cristina uma graça particular, alguma coisa que nenhuma outra mulher possuía. Cristina gostou da figura de Guimarães, reconhecendo que entre todos os homens era um homem único. E cada um disse consigo: “Bom consorte para mim!” O resto foi o namoro mais ou menos longo, o pedido da mão da moça, as formalidades, as bodas. Se havia sol ou chuva, quando eles casaram, não sei; mas, supondo um céu escuro e o vento minuano, valeram tanto como a mais fresca das brisas debaixo de um céu claro. Bem-aventurados os que se possuem, porque eles. possuirão a terra (MACHADO DE ASSIS, 2021MACHADO DE ASSIS, Joaquim M. “O autor de si mesmo”. Machadiana Eletrônica, Vitória, v. 4, n. 8, s/p, jul-dez. 2021., s/p).

A crônica, desencadeada por um infanticídio, faz a essa altura uma narração amena sobre o apaixonamento dos pais da criança assassinada: a dissonância entre uma coisa e outra é palpável e parece ter sido produzida deliberadamente, com o intuito de escandalizar. Para juntar ofensa à injuria, o parágrafo termina bendizendo os amantes com uma paródia bíblica, numa dupla impiedade, em que se faz uma glorificação diabólica e se profana o livro sagrado. Notável também que os pais não são censurados em nenhum momento na crônica, bem ao contrário, como veremos adiante:

Assim pensaram eles. Mas o autor de tudo, segundo o nosso filósofo, foi unicamente Abílio. O menino, que ainda não era menino nem nada, disse consigo, logo que os dois se encontraram: “Guimarães há de ser meu pai, e Cristina há de ser minha mãe; não quero outro pai nem outra mãe; é preciso que nasça deles, levando comigo, em resumo, as qualidades que estão separadas nos dois.” As entrevistas dos namorados era o futuro Abílio que as preparava; se eram difíceis, ele dava coragem a Guimarães para afrontar os riscos, e paciência a Cristina para esperá-lo. As cartas eram ditadas por ele. Abílio andava no pensamento de ambos, mascarado com o rosto dela, quando estava no dele, e com o dele, se era no pensamento dela. E fazia isso a um tempo, como pessoa que, não tendo figura própria, não sendo mais que uma ideia específica, podia viver inteiro em dois lugares, sem quebra da identidade nem da integridade. Falava nos sonhos de Cristina com a voz de Guimarães, e nos de Guimarães com a de Cristina, e ambos sentiam que nenhuma outra voz era tão doce, tão pura, tão deleitosa. (MACHADO DE ASSIS, 2021MACHADO DE ASSIS, Joaquim M. “O autor de si mesmo”. Machadiana Eletrônica, Vitória, v. 4, n. 8, s/p, jul-dez. 2021., s/p).

O núcleo pretensamente filosófico da crônica está nesse parágrafo. Nele está já em germe o indecente arremate da crônica, que terminará por responsabilizar o próprio Abílio pelo seu assassinato. Também começa entrar em operação na crônica a familiarização de Schopenhauer, que no início era chamado pelo sobrenome ou por “aquele filósofo”, e agora já começa ser chamado de “nosso filósofo”, para, nos últimos parágrafos, comparecer em pessoa na crônica e ser finalmente designado pelo primeiro nome e com a grafia abrasileirada, um “Artur”, nosso conhecido.

É nesse momento de “O autor de si mesmo” que, do ponto de vista do filosofema colocado pela crônica, o essencial é exposto, a saber, a tese schopenhaueriana de que os amantes sentem o amor como algo positivo, como escolha individual ou fruto de uma inclinação pessoal, mas eles não passam de veículo de algo que os ultrapassa, “a vontade da espécie” (SCHOPENHAUER, 2000SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do amor, metafísica da morte. São Paulo: Martins Fontes, 2000., p. 9). Parece provável, ao meu juízo, que Machado tivesse simpatia pela visão desencantada do amor de Schopenhauer, que o via como uma “ilusão instintiva”, uma artimanha da espécie feita contra os interesses do indivíduo (SCHOPENHAUER, 2000SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do amor, metafísica da morte. São Paulo: Martins Fontes, 2000., p. 50). O caso é que, sem contradição com essa atitude desenganada, a filosofia de Schopenhauer também torna o amor algo transcendente, sublime, no sentido de que para ele o amor é animado por “um fim puramente metafísico” (SCHOPENHAUER, 2000SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do amor, metafísica da morte. São Paulo: Martins Fontes, 2000., p. 36), o que, suspeito, se choca com o ceticismo “pé no chão” machadiano. De todo modo, o que nos interessa principalmente é que essa tese schopenhaueriana de que no amor o descendente em potencial conduz, como uma espécie de “Ideia” platônica, os gestos apaixonados dos seus “futuros pais” (SCHOPENHAUER, 2000SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do amor, metafísica da morte. São Paulo: Martins Fontes, 2000., p. 13), está claramente sendo satirizada na crônica. É essa tese que ironicamente dá título ao texto e está sendo desqualificada. A visão idealizada de Abílio que ela supõe é incompatível com a crueza de seu corpo violentado. E, sobretudo, a tese será satirizada pelo destino indigno que ela terá, de imputar à criança o seu próprio assassinato.

Naturalmente, houve alguma vez arrufos. Como explicá-los? Explico-os a meu modo; creio que Abílio teve momentos de Hamlet. Uma ou outra vez haverá hesitado e meditado, como o outro: “Ser ou não ser, eis a questão. Valerá a pena sair da espécie para o indivíduo, passar deste mar infinito a uma simples gota d’água apenas visível, ou não será melhor ficar aqui, como outros tantos que se não deram ao trabalho de nascer? Nascer, viver, não mais. Viver? Lutar, quem sabe?” It is the rub, continuou ele em inglês, nos termos do poeta, tão universal é Shakespeare, que os próprios seres futuros já o trazem de cor. (MACHADO DE ASSIS, 2021MACHADO DE ASSIS, Joaquim M. “O autor de si mesmo”. Machadiana Eletrônica, Vitória, v. 4, n. 8, s/p, jul-dez. 2021., s/p).

O leitor suposto pela crônica é cínico. O “naturalmente”, que abre o parágrafo, prevê a conivência do leitor, como se o narrador, numa conversa, se antecipasse a um leitor que concorda num ponto (talvez discorde num outro), mas alguém que, sobretudo, estivesse se engajando tranquila e civilizadamente no “exercício especulativo” obsceno proposto pela crônica. Ele também é culto. A crônica mobiliza no seu curto espaço um repertório erudito que passa pelo idealismo alemão, citações em outras línguas, a Bíblia e Shakespeare. O conjunto de referências letradas, todas elevadas, como que discrepa da natureza degradada do caso. E elas servem, com efeito, para marcar um tipo particular de distanciamento. O tipo de galhofa erudita pressupõe um leitor capaz de “pescar” as referências (basta pensar na tirada com a expressão francesa no início da crônica ou na piada com Hegel no final, ambas piscadelas refinadas que supõem um repertório culto compartilhado previamente) e forja uma comunidade de leitor e narrador que riem da situação “a partir do camarote”.

Enfim, nasceu Abílio. Não contam as folhas coisa alguma acerca dos primeiros dias daquele menino. Podiam ser bons. Há dias bons debaixo do sol. Também não se sabe quando começaram os castigos, - refiro-me aos castigos duros, os que abriram as primeiras chagas, não as pancadinhas do princípio, visto que todas as coisas têm um princípio, e muito provável é que nos primeiros tempos da criança os golpes fossem aplicados diminutivamente. Se chorava, é porque a lágrima é o suco da dor. Demais, é livre, - mais livre ainda nas crianças que mamam, que nos homens que não mamam. (MACHADO DE ASSIS, 2021MACHADO DE ASSIS, Joaquim M. “O autor de si mesmo”. Machadiana Eletrônica, Vitória, v. 4, n. 8, s/p, jul-dez. 2021., s/p).

Novamente o cronista parece se lambuzar na ruindade. O narrador abre de maneira insidiosa, dizendo que os jornais teriam focado apenas no infanticídio, ignorando os dias bons que porventura o antecederam, e termina sugerindo escandalosamente para Abílio que o “choro é livre”. A maneira como se ofende a sensibilidade do leitor é tão ostensiva e ubíqua que a hipótese de que ela não seja deliberada fica prejudicada. Flora Süssekind, comentando de passagem essa crônica, diz que há nela “um desarme impiedoso de lágrimas potenciais”, o que ela vai vincular ao conhecido final de Quincas Borbas (SÜSSEKIND, 1990SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1990., p. 272). Trata-se de neutralizar a compaixão antes que ela desabroche.

Chagado, encaixotado, foi levado à estrebaria, onde, por um desconcerto das coisas humanas, em vez de burros, havia galinhas. Sabeis já que estas, mariscando, comiam ou arrancavam somente pedaços da carne de Abílio. Aí, nesses três dias, podemos imaginar que Abílio, inclinado aos monólogos, recitasse este outro de sua invenção: “Quem mandou aqueles dois casarem-se para me trazerem a este mundo? Estava tão sossegado, tão fora dele, que bem podiam fazer-me o pequeno favor de me deixarem lá. Que mal lhes fiz eu antes, se não era nascido? Que banquete é este em que a primeira coisa que negam ao convidado é pão e água?”. (MACHADO DE ASSIS, 2021MACHADO DE ASSIS, Joaquim M. “O autor de si mesmo”. Machadiana Eletrônica, Vitória, v. 4, n. 8, s/p, jul-dez. 2021., s/p).

Praticamente não há frase em “O autor de si mesmo” em que a maldade do narrador não apareça, ela é como uma força que imanta toda a crônica. O cronista fala de “um desconcerto das coisas humanas” para se referir não à morte do filho pelos pais (qual prova maior de desconcerto das coisas humanas do que o infanticídio?), mas ao fato de que na estrebaria se encontravam galinhas e não um equino, como seria esperado pelo nome do local. Há uma espécie de gozo na maldade, o cronista parece se divertir na exploração das infinitas maneiras de ser maledicente.

Como notou Augusto Meyer no seu ensaio sobre a crônica, o gesto de imaginar a cena fantástica de um Abílio de dois anos dado a monólogos, ecoa um caso análogo das Memórias póstumas de Brás Cubas, em que o narrador imagina uma Dona Plácida recém-nascida que também pergunta por que foi trazida ao mundo e recebe uma resposta igualmente cruel à que Abílio receberá (MEYER, 2008MEYER, Augusto. Machado de Assis (1935-1958). Rio de Janeiro: José Olympio, 2008., p. 141).

O humor absurdo da cena passa por fazer Abílio, um bebê de dois anos, próximo do narrador e leitor cultivados. Se na crônica de Clarice, como mostrei, há um desejo e esforço da narradora de se tornar próxima de Mineirinho, em “O autor de si mesmo” há uma espécie de satirização do movimento oposto, no qual é Abílio que se torna (falsamente) próximo do narrador. Na crônica, o Abílio fictício é dado a monólogos, cita Shakespeare de cor, e se engaja em discussões com Schopenhauer, o que equivale a negar o Abílio real, tragicamente assassinado e obviamente alheio a esse universo. A zombaria do narrador é, nesse sentido, uma maneira de enfatizar a distância pelo avesso.

Nesse ponto do discurso é que o filósofo de Dantzig, se fosse vivo e estivesse em Porto Alegre, bradaria com a sua velha irritação: “Cala a boca, Abílio. Tu não só ignoras a verdade, mas até esqueces o passado. Que culpa podem ter essas duas criaturas humanas, se tu mesmo é que os ligaste? Não te lembras que, quando Guimarães passava e olhava para Cristina, e Cristina para ele, cada um cuidando de si, tu é que os fizeste atraídos e namorados? Foi a tua ânsia de vir a este mundo que os ligou sob a forma de paixão e de escolha pessoal. Eles cuidaram fazer o seu negócio, e fizeram o teu. Se te saiu mal o negócio, a culpa não é deles, mas tua, e não sei se tua somente... Sobre isto, é melhor que aproveites o tempo que ainda te sobrar das galinhas, para ler o trecho da minha grande obra, em que explico as coisas pelo miúdo. É uma pérola. Está no tomo II, livro IV, capítulo XLIV... Anda, Abílio, a verdade é verdade ainda à hora da morte. Não creias nos professores de filosofia, nem na peste de Hegel...”

E Abílio, entre duas bicadas:

- Será verdade o que dizes, Artur; mas é também verdade que, antes de cá vir, não me doía nada, e se eu soubesse que teria de acabar assim, às mãos dos meus próprios autores, não teria vindo cá. Ui! ai! (MACHADO DE ASSIS, 2021MACHADO DE ASSIS, Joaquim M. “O autor de si mesmo”. Machadiana Eletrônica, Vitória, v. 4, n. 8, s/p, jul-dez. 2021., s/p).

O arremate da crônica é o auge do acinte. Ele traz Schopenhauer em pessoa, cuja fala autocentrada e grosseira num certo sentido replica a atitude do narrador diante do caso, e termina numa cena absurda em que o filósofo alemão, vaidoso de sua obra, conversa placidamente com um bebê de dois anos, absolutamente insensível aos sofrimentos terríveis de que ele padece, preocupado com sua picuinha com Hegel enquanto a criança é comida viva. O tom de avacalhação é totalmente alheio ao decoro que a tragédia exigiria.

O lance central aqui, no entanto, é outro. Trata-se da responsabilização de Abílio pela sua própria morte. A aplicação da metafísica da vontade de Schopenhauer ao caso resulta numa conclusão aberrante. Quem teria escolhido os seus perversos pais fora o próprio Abílio, de modo que, se havia alguém culpado na situação, era ele mesmo. A crônica não diz, mas nós sabemos que essa conclusão é inadmissível. De sorte que poderíamos dizer que quem está realmente no tribunal é a teoria e não Abílio. É a filosofia que se mostraria inapta moralmente, demasiado autocentrada para lidar dignamente com o caso. Nessa visada, a crônica funcionaria como uma espécie de redução ao absurdo da teoria. É uma leitura possível, mas para ela funcionar fica por provar que a aplicação da metafísica da vontade de Schopenhauer para responsabilizar Abílio se sustenta, que ela é uma interpretação viável da filosofia schopenhaueriana.

A profusão de infâmias contra Abílio antecede a aparição de Schopenhauer e não parece depender de doutrina. Antes de questionar sobre o que a crônica afirma ou significa, talvez seja o caso de fazer, como Bosi no debate, a pergunta mais básica sobre seus efeitos sobre o leitor. A inquietação que ela provoca tem algo de indignação contra a postura ultrajante do narrador, mas também tem algo de repulsa diante da posição vil em que somos colocados. O texto faz um convite cínico para ver a tragédia de Abílio do camarote.

Se voltarmos à comparação com “Mineirinho”, lembraríamos que o traço principal dos sonsos era uma espécie de falso esquecimento, que na verdade era uma autocondescendência. O sonso, o leitor suposto das páginas de jornal contra as quais Clarice reagia, é aquele que dorme diante da violência sofrida por Mineirinho, se faz de bobo para dormir tranquilo. Há um desejo de conforto moral aqui. No caso da crônica de Machado, ao contrário, não há ingenuidade possível: o procedimento é ostensivo demais, a crueldade é indisfarçada. Se em “Mineirinho” se tratava de compensar o distanciamento jornalístico com uma proximidade radical, em “O autor de si mesmo”, trata-se de salientá-lo de modo a torná-lo insuportável. Há também em Machado, o que não deveria causar surpresa, um corpo que é chamado a responder: sua crônica mobiliza a repulsa do leitor, uma repugnância a ver a desgraça do camarote. Em uma frase, digamos que o objetivo da sátira machadiana é tornar o conforto moral inviável. Como em Clarice, se trata de atacar o aconchego da casa.

Referências

  • BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985.
  • BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas III: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989.
  • BOSI, Alfredo et al Machado de Assis São Paulo: Ática, 1982.
  • BUCK-MORSS, Susan. The Dialectics of Seeing: Walter Benjamin and the Arcades Project. Massachusetts: The MIT Press, 1989.
  • BRETAS, Marcos Luiz. Valente mas muito considerado: a memória do crime. In: Anais do XXVI Simpósio Nacional de História - ANPUH, São Paulo, 2011.
  • LISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In: LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira Rio de Janeiro: editora do autor, 1964. p. 252.
  • MACHADO DE ASSIS, Joaquim M. “O autor de si mesmo”. Machadiana Eletrônica, Vitória, v. 4, n. 8, s/p, jul-dez. 2021.
  • MACHADO DE ASSIS, Joaquim M. Teoria do Medalhão. In: MACHADO DE ASSIS, Joaquim M. Obra Completa Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v. II. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000232.pdf Acesso em: 17 mai. 2022.
    » http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000232.pdf
  • MEYER, Augusto. Machado de Assis (1935-1958) Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.
  • ROCHA, João Cézar de Castro. Bosi fez do acordo entre o verbo e a carne o norte de sua existência 7 abr. 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/04/bosi-fez-do-acordo-entre-o-verbo-e-a-carne-o-norte-de-sua-existencia.shtml Acesso em: 17 mai. 2022.
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  • ROSENBAUM, Yudith. A ética na literatura: leitura de “Mineirinho”, de Clarice Lispector. Estudos Avançados, v. 24, n. 69, p. 169-182, 2010.
  • SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do amor, metafísica da morte São Paulo: Martins Fontes, 2000.
  • SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
  • WISNIK, José Miguel. A coisa social. In: FERRAZ, Eucanaã; STIGGER, Veronica (org.). Constelação Clarice São Paulo: IMS, 2021. p. 294-309
  • 1
    José Miguel Wisnik sugere que provavelmente o texto seria inaugural, o primeiro “a acusar os justiçamentos policias e parapolicias que se converteriam em norma na montante da violência brasileira” (WISNIK, 2021WISNIK, José Miguel. A coisa social. In: FERRAZ, Eucanaã; STIGGER, Veronica (org.). Constelação Clarice. São Paulo: IMS, 2021. p. 294-309, p. 302).
  • 2
    Em seu texto clássico sobre Leskov, Benjamin vai chamar essa nova forma de comunicação (característica da imprensa) de “informação”, que será oposta a arte da “narrativa” e tratada como sua maior ameaça. Ver: BENJAMIN, Walter. O narrador. In: Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985.. p. 197-221.
  • 3
    Por exemplo, a manchete do Diário de Notícias dizia com uma dureza impressionante: “‘Mineirinho’ foi metralhado 13 vezes e atirado no mato” (ROSENBAUM, 2010ROSENBAUM, Yudith. A ética na literatura: leitura de “Mineirinho”, de Clarice Lispector. Estudos Avançados, v. 24, n. 69, p. 169-182, 2010., p. 171).
  • 4
    “Essa alguma coisa muito séria em mim fica ainda mais séria diante do homem metralhado. Essa alguma coisa é o assassino em mim? Não, é o desespero em nós. Feito doidos, nós o conhecemos, a esse homem morto onde a grama de radium se incendiara. Mas só feito doidos, e não como sonsos, o conhecemos” (LISPECTOR, 1964LISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In: LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira. Rio de Janeiro: editora do autor, 1964. p. 252., p. 256).
  • 5
    Vale lembrar que Mineirinho tinha escapado do Manicômio Judiciário.
  • 6
    Jose Miguel Wisnik, no ensaio já citado, faz uma análise breve, mas muito aguda, de um editorial do Correio da Manhã da época sobre a execução de Mineirinho, “pronunciamento jornalístico” que exemplificaria “bem a posição dúbia e prenhe de consentimento contra a qual Clarice levantará sua revolta” (WISNIK, 2021WISNIK, José Miguel. A coisa social. In: FERRAZ, Eucanaã; STIGGER, Veronica (org.). Constelação Clarice. São Paulo: IMS, 2021. p. 294-309, p. 301-302).
  • 7
    “Quanto à matéria dos discursos, tens à escolha: - ou os negócios miúdos, ou a metafísica política, mas prefere a metafísica. Os negócios miúdos, força é confessá-lo, não desdizem daquela chateza de bom-tom, própria de um medalhão acabado; mas, se puderes, adota a metafísica; - é mais fácil e mais atraente” (MACHADO DE ASSIS, 1994MACHADO DE ASSIS, Joaquim M. Teoria do Medalhão. In: MACHADO DE ASSIS, Joaquim M. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v. II. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000232.pdf . Acesso em: 17 mai. 2022.
    http://www.dominiopublico.gov.br/downloa...
    , s/p).
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    14 Set 2022
  • Aceito
    20 Set 2022
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