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Verter “El hornero” para “João-de-barro”: um experimento instintivo

Translating “El hornero” to “João-de-barro”: an instinctive experiment

Resumo

O conto “El hornero”, de César Aira, foi publicado originalmente em meados dos anos 1990 numa revista de La Plata chamada La Muela del Juicio. No caso do conto do pássaro-símbolo da Argentina, o joão e a maria-de-barro, o narrador se propõe como um investigador frio e distanciado, um naturalista cuja hipótese inicial é a de que a cultura pertence aos chamados “animais” e a natureza aos chamados “homens”, numa inversão característica de Aira, colocando a humanidade no lugar do puro instinto, ou melhor, de um “estrito programa instintivo”.

Palavras-chave:
César Aira; “El hornero”; narrativa latino-americana contemporânea

Abstract

César Aira's short story “El hornero” was originally published in the mid-1990s in a La Plata magazine called La muela del juicio. In the case of the tale of Argentina's national bird, “el hornero”, the narrator presents himself as a cold and detached investigator, a naturalist whose initial hypothesis is that culture belongs to the so-called “animals” and nature to the so-called “men”, in an inversion characteristic of Aira’s thinking, putting humanity in the place of pure instinct, or rather, of a "strict instinctive program".

Keywords:
César Aira; “El hornero”; contemporary Latin-American narrative

Resumen

El cuento “El hornero” de César Aira fue publicado originalmente a mediados de los años 90 en una revista de La Plata llamada La muela del juicio. En el caso del cuento del pájaro-símbolo de Argentina, el hornero, el narrador se propone como um investigador frio y distanciado, un naturalista cuya hipótesis inicial es la de que la cultura pertenece a los llamados “animales” y la naturaleza a los llamados “hombres”, en una inversión característica de Aira, colocando a la humanidad en el lugar del puro instinto, o mejor, de un “estricto programa instintivo”.

Palabras clave:
César Aira; “El hornero”; narrativa latinoamericana contemporánea

Antes de mais nada, é preciso dizer que o relato breve “El hornero” de César Aira foi publicado originalmente em meados dos anos 1990 numa revista de La Plata chamada La Muela del Juicio, editada por dois jovens escritores que se destacariam mais tarde no cenário intelectual argentino, Miguel Dalmaroni e Esteban López Brusa. Tratava-se de La Plata e não da “capital federal”, tratava-se de uma revista feita por jovens sem plata: eram os tempos em que o escritor disseminava seus textos com a liberdade de um joão-de-barro (como se lerá a seguir), do mesmo modo que vários daqueles que depois comporiam os Relatos reunidos (AIRA, 2013AIRA, César. Relatos reunidos. Buenos Aires: Mondadori, 2013.), fonte de nossa tradução; entre eles, destacam-se “Picasso” (Belleza y Felicidad), “Mil gotas” (Eloísa Cartonera), “El criminal y el dibujante” (Spiral Jetty) em edições argentinas, “El té de Dios” (Ediciones Mata Mata, Guatemala) e “Los osos topiarios del Parque Arauco” (revista Paula, Santiago de Chile). E a menção a esses títulos basta para evocar a dimensão latino-americana e jovem de sua política de edições fora do mercado comercial até pelo menos os anos 2000, antes de se tornar, à sua revelia, um frequente candidato ao prêmio Nobel, com edições em inglês prefaciadas por Patti Smith.

Pois bem, Aira se impôs com essa política editorial, que muitos consideravam suicida, e com uma abordagem literária absolutamente sui generis, como ele próprio cuidou de divulgar. César Aira é o escritor que não corrige, que não vacila, que simplesmente escreve sem travas, assim como respira ou dorme. Essa é, ao menos, a lenda pessoal que pôs desde sempre em circulação, dando a ela contornos teóricos com a invenção do conceito de “mito do escritor” em Nouvelles impressions du Petit Maroc (AIRA, 2011AIRA, César. Nouvelles Impressions du Petit Maroc. Tradução de Joca Wolff. Desterro: Cultura e Barbárie, 2011.). Segundo ele, cada artista, cada escritor(a) cria e põe em circulação o seu próprio mito, que nada mais seria que a própria obra. Com isso, e numa só tacada, refutava as noções de aura da obra de arte e de morte do autor, ao mesmo tempo em que forjava o seu peculiar mito do escritor, o qual, no entanto ou justamente, põe em movimento a sua escrita e o seu pensamento velozes, porque - como bem sabem os leitores de Aira - sua fuga é sempre para frente. Refutando igualmente o tempo cronológico, o futuro para ele já passou - noutra formulação paradoxal, ainda que mais lógica, na medida em que o “futuro” no sentido airiano são as vanguardas históricas, em cujas fontes ele bebe assumidamente sem cessar. Aira é mesmo o santo beberrão das caudalosas fontes de Isidore Ducasse, Raymond Roussel, Benjamin Péret, Marcel Duchamp. Bêbado empedernido, antropófago argentino que devorou toda literatura latino-americana, com destaque para a brasileira (vide o Diccionario de autores latinoamericanos, 2001AIRA, César. Diccionario de autores latinoamericanos. Buenos Aires: Emecé, 2001.), vomita narrativas neodadaístas sem parar, misturando organicamente crítica e teoria com fábula e ficção.

Porém, no caso do conto do pássaro-símbolo da Argentina, o joão e a maria-de-barro, o narrador se propõe como um investigador frio e distanciado, um naturalista cuja hipótese inicial é a de que a cultura pertence aos chamados “animais” e a natureza aos chamados “homens”, numa inversão característica de Aira, colocando a humanidade no lugar do puro instinto, ou melhor, de um “estrito programa instintivo”. Hipótese absurda, tida como arriscada, fantástica, chocante, arbitrária - para empregar os mesmos adjetivos do texto, além da matreira observação entre parênteses “sei que não estou me expressando bem”, que remete a outra de suas conhecidas provocações, a do “escrever mal” (igualmente posta em circulação nas páginas de Nouvelles impressions du Petit Maroc). Hipótese que, no entanto, o narrador trata de tornar convincente a ponto de acreditar que pode persuadir alguém (se não todo mundo): aqui quem fala (ainda que pela interposta pessoa de um naturalista), quem pensa, quem raciocina, quem sofre, quem teme é o pássaro argentino por excelência, conhecido como a “ave de la patria”, e portanto qualquer semelhança com o povo simbolizado não será mera coincidência. Importa notar, a propósito, que seu canto, sua fala, sua linguagem não era “simples, funcional, fácil de manejar” como a dos seres humanos, muito pelo contrário, sendo aquele canto e aquela voz “um rabiscado onírico em que se misturavam caoticamente a função e o gratuito, o sentido e o sem-sentido, a verdade e a beleza” (lembrando o passarinho do Diário da hepatiteAIRA, César. Diário da hepatite. Tradução de Joca Wolff. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, no prelo.: “É hora de acontecer isto ou aquilo. Por exemplo, o alarido mecânico de um passarinho que conheço bem. Se abriu o canto. Soou a flor”). Na sua vida monótona de nascimento, reprodução e morte, eram os humanos e mais ninguém que poderiam dizer “morrer, dormir, talvez sonhar”.

Assim, rejeitando tanto o rótulo de fábula quanto o de ficção, o narrador propõe algo mais e que vem a ser o que chama de "tradução a fundo", na sua estratégia de convencimento e autoconvencimento em relação ao absurdo, posto que só a tradução, diz ele, “pode chegar a fundo nesse tema da dialética natureza∕cultura”. Quanto à nossa tradução do texto, feita a quatro mãos, quer dizer, quanto à nossa contribuição para este experimento instintivo, ela obedece exclusivamente aos prazeres da leitura a fundo da obra de Aira, a começar pelo simples e imenso prazer de verter “el hornero” para o “joão-de-barro” brasileiro, que - tanto quanto na Argentina - é um pássaro presente em todos lugares, de um semáforo ou um edifício numa cidade qualquer a uma árvore ou um poste diante de uma casa no campo. No caso deste relato, ambientado no “pampa sagrado” (sendo parte da série de narrativas provincianas de Aira) num dia preciso do outono de 1895, o dia 16 de abril, a perspectiva é oferecida ao habitante de uma morada a meio fazer e que a constrói com a ajuda da companheira, “la hornera”, a maria-de-barro. “Tomemos a coisa no seu valor facial”, propõe o suposto frio cientista, colocando no rosto as lentes do fazedor de fornos que, ao encarar o mundo, enxerga a si próprio como uma “espécie maldita”, “fruto de um fatídico desvio na evolução”: o joão-de-barro, nauseado, deprimido, indeciso, mal-humorado, deplora a sua condição pouco natureza e demasiado cultura - ainda que as duas se confundam na tradução-demonstração de César Aira.

Tradução

João-de-barro1 1 Agradecemos ao autor pela cessão dos direitos de publicação do texto no Brasil. Extraído de Relatos reunidos. Buenos Aires: Mondadori, 2013.

César Aira

A hipótese de que parte esta investigação é que o ser humano age movido por um estrito programa instintivo, que se manifesta sempre, em todas as ocasiões da sua vida, até as que parecem mais caprichosas ou voluntárias; seu livre-arbítrio “cultural”, segundo essa hipótese, não é mais que uma ilusão benévola com que nos enganamos, ela mesma também parte da nossa carga inata. A proposta soa arriscada ou mesmo fantástica: a louca variedade das vidas humanas, sem ir mais longe, a extravagante irisação do pensamento, o imprevisível da menor reação ou inspiração que nos assalta a qualquer momento, parece desmentir a mera possibilidade de que tudo esteja pré-ordenado; e se já parece errôneo postular isso para uma só pessoa, como explicar nesses termos as incalculáveis diferenças de humano a humano, mesmo entre os mais próximos e familiares? Mas, justamente, a hipótese propõe que essa é a ilusão e basta aceitar (não digo que seja fácil fazê-lo) sua qualidade de ilusão para que tudo se simplifique, para que as variações se despojem de pertinência e caia o véu que dissimulava a essencial uniformidade instintiva das gentes. Não é necessário renunciar a essas variedades, nem sacrificar suas diferenças de “superfície” a uma essência de “fundo”; não existe tal essência, tudo é superfície. Mas o que impede que toda a microscopia inumerável dos atos, pensamentos, desejos, sonhos e criações da nossa vida, tudo o que vai acontecendo segundo a segundo desde que nascemos até que morremos, esteja inscrito de antemão nos nossos genes e que esse programa seja o mesmo para toda a espécie? Hoje em dia, a ciência nos acostumou a prodígios informáticos maiores que esse. O homem sempre esteve muito seguro de obedecer a causalidades livres e superiores, “culturais”... Mas também desde sempre postulou esta mesma hipótese da programação instintiva e a aplicou, com rigor fanático, aos animais.

Não sei se dá para convencer alguém. A ideia é chocante e arbitrária demais; e de certa forma morde o próprio rabo, porque se nossa programação não a inclui, como poderíamos aceitá-la? Mas talvez a inclua mesmo, como prova o fato de que tenha me ocorrido (a mim e a outros antes). O que é certo é que a persuasão está incluída em nossos dons instintivos, assim como a ficção.

O que o homem veio acreditando sobre os animais é tributário do campo da ficção. Não digo que não esteja certo. Como poderia dizer? Tomemos a coisa no seu valor facial: pode-se inverter a perspectiva. Suponhamos, em honra da demonstração, o raciocínio que um animal qualquer poderia fazer sobre o assunto. Me dirão que os animais não fazem raciocínios. Muito bem, não vejo inconveniente em mudar a palavra; de qualquer maneira, é apenas uma questão de definições (e, além disso, sei que não estou me expressando bem). O “raciocínio” de um animal seria outra coisa, para a qual não temos um nome justamente porque sempre nos mantivemos deste lado. Esqueçamos os contos e as fábulas, a formiguinha viajante, o urso rabugento, a raposa e o corvo... Ou, melhor que esquecê-los, levemo-los às suas últimas consequências. No lugar de “ficção” digamos “tradução” e façamos tradução a fundo: é o momento, de resto, de fazer isso porque só a tradução pode chegar a fundo nesse tema da dialética natureza∕cultura. Acredito que vai ficar mais claro com um exemplo, mas fazendo a ressalva de que não é um exemplo no sentido convencional, de um particular extraído ao acaso de um geral mediante o discurso. Aqui é tudo geral, do princípio ao fim, geral puro.

Suponhamos um joão-de-barro, no ano de 1895, na província de Buenos Aires. Mantenhamos por um momento a perspectiva humana, para contrastar melhor.

O joão-de-barro começa a edificar no outono... enquanto constrói o ninho a ave não perde de vista as pessoas... quando a obra já alcançou sua forma globular... se acasala para toda a vida e encontra seu alimento, que consiste em larvas e vermes, somente no chão... pavoneia-se com ares de grande gravidade... sua voz forte, tilintante e animosa...

Basta! O leitor já terá reconhecido o tom. É um homem quem fala, um naturalista. Como todos os estilos, este pressupõe a eternidade do seu objeto. Fizemos da vida dos animais uma travessia de estilos; no processo, tornamos nossas vidas uma travessia de estilos (por isso posso levar a cabo este experimento).

O joão-de-barro estava construindo a sua casinha. Digamos que era outono, para não fugirmos demais do verossímil, ou simplesmente por gosto. As tardes enormes do campo. Um pé-d’água às cinco. Dia 16 de abril de 1895. Retomemos uma frase do parágrafo do naturalista: enquanto constrói o ninho, a ave não perde de vista as pessoas (no seu contexto, essa observação tem por função explicar por que a entrada da casinha fica sempre orientada em direção à casa ou ranchos próximos, ou ao caminho). Nos seus longos ócios, o joão-de-barro pensava...

Mas é possível? É possível fazer isso sem cair na Disney? Não é levar longe demais a tradução? Porque se pode aceitar o uso do verbo “pensar” como tradução, como um modo de nos entendermos, para nos referir ao que acontece no cérebro do animal, ou no seu sistema nervoso, ou, mais precisamente: na sua vida e na sua história. Mas pode-se aceitar o conteúdo desse pensamento? Aceitamos que eu diga que pensa. Podemos aceitar que diga o que está pensando? Acho que sim. Porque é a mesma coisa.

Pois bem, o que é que ele pensava? Nada. Tinha a mente em branco. O cansaço, a angústia (estas palavras também são tomadas aqui como tradução, do mesmo jeito que todas as que se seguem; é a última vez que faço a advertência) tinham-no deixado estupefato.

Na “tradução joão-de-barro” dos seus sentimentos se sentia acabrunhado por uma soma de calamidades, que era como via a sua vida. Tanto trabalho, tanto sofrimento, tantas obrigações! E tudo na incerteza, na necessidade de escolher sempre, sem nunca saber se estava escolhendo bem... sua única certeza, que anulava o único consolo possível, era que havia uma via correta, um modo de fazer as coisas bem, de ser feliz. E nunca tomaria essa direção, ou só a tomaria para abandoná-la na primeira encruzilhada. Esta certeza lhe era dada pela visão dos humanos, que tinha sempre diante de si. Agora, por exemplo: a família tinha saído para a varanda da casa, depois da chuva, e estavam tomando chimarrão. Tinha inveja do automatismo instintivo com que agiam, os homens e todos os demais animais, menos o joão-de-barro, a espécie maldita (segundo ele). Estremecia vendo-os cevar o mate, passar a cuia, toda essa cerimônia complicada, com uso de instrumentos, acompanhada de palavras, gestos, movimentos... Que assombroso o instinto do homem! Permitia-lhe levar a cabo esse intrincado balé (e muitíssimos outros: sempre os estava vendo) sem vacilações, sem pensar, sem perguntar se era o correto ou não, sem deliberar, tudo porque sim, porque assim estava escrito nos registros imemoriais da sua espécie feliz. Enquanto ele... Os joões-de-barro, se dizia, tinham pago com a debilitação extrema do aparato instintivo a aquisição das habilidades que lhes permitiam sobreviver. Era inútil, e talvez ingrato, se queixar, mas sentia que tinha perdido demais. O exemplo dos homens demonstrava isso. Os homens viviam e sabiam de antemão como viver. O joão-de-barro estava à mercê do acaso horrendo das ideias, das ocorrências, dos estados de ânimo, da vontade e dos seus infinitos desfalecimentos, do clima, da história.

Como souberam que era a hora de tomar chimarrão? Para eles dava na mesma chover ou não chover, porque costumavam tomar chimarrão sem que chovesse ou deixasse de chover, ou então podia parar de chover e não tomavam. A sabedoria insondável do instinto! E como desfrutavam dele, os desgraçados. Quando começava a pensar que o próprio instinto os tinha levado ao armazém para comprar a erva, à cozinha para ferver a água, à cama para fazer a sesta... Eram perfeitos. Máquinas perfeitas de viver. Toda uma lição para um torturado infeliz como ele. Mas o que podia fazer, se a natureza não havia dotado a sua pobre espécie de um instinto digno desse nome, como a todos os demais seres do mundo? Não tinha sentido ficar se lamentando pelo que aconteceu, por esse fatídico desvio na evolução que tirou o joão-de-barro dos caminhos seguros da adequação... Talvez a solução estivesse em seguir adiante, ir ao fundo da inadequação até recuperar... Não, era inútil e, além do mais, perigoso; não convinha piorar as coisas.

Diante disso, se sentia cada vez pior. Tinha vertigem, ficava tudo girando. O que estava fazendo ali, na forquilha da taleira, a seis metros do chão? Ele era um animal de terra, a altura lhe fazia mal. Só que por enquanto não podia descer porque uma ratazana andava rondando o pé da árvore, faminta e mal-humorada. Bastava que caíssem duas gotas para que se inundasse a cova dessa ratazana imbecil que ficava frenética, virava uma assassina. Está certo que ele podia voar longe e aterrissar em qualquer lugar e caminhar um pouco, ainda que mais não fosse para desopilar. Mas era muito chato; depois precisava voltar... E onde encontrar um lugar praticável, com a quantidade de charcos que tinham se formado? Valia mais ficar onde estava, tratando de controlar a tontura. Além disso, era preciso esperar a maria-de-barro, que tinha saído antes da chuva e vá saber onde teria se metido; voltaria molhada, enlameada, reclamando, e teriam que dormir úmidos e famintos, nessa ruína... Se virou para olhar o ninho pela metade. A indecisão provocou uma vertigem mental, que se somou à física e por pouco não o fez cair como uma pedra. A chuva tinha escolhido com sadismo o pior momento. Ao cessar justo na hora em que ele habitualmente se dispunha a interromper sua jornada, ficava diante de uma dessas alternativas difíceis que eram a história da sua vida miserável. Porque, ao sair o sol entre as nuvens, restavam pelo menos duas horas de luz. Começar a trabalhar não era tão instantâneo; precisava de um bom tempo para colocar em marcha o mecanismo de leva-e-traz, fazer a massa, etcétera. Duas horas não era pouco, dava tempo para levantar uns centímetros, talvez tudo o que a chuva tinha estragado, que era o setor fresco, seu trabalho da manhã. Mas já tinha perdido uma hora olhando para os humanos, mergulhado em seus devaneios pessimistas. E agora, valia a pena começar ou não? O barro devia estar mole demais, mas abundava... Tinha perdido a vontade e, ao mesmo tempo, sabia que iria se culpar se não fizesse nada. Mas o que podia fazer, no pouco tempo que restava de luz? Se não fizesse nada, não restava nada além de continuar se deprimindo. Foi esta última opção que prevaleceu. Um dia perdido.

O ninho estava pela metade. Não existia. Um origami de barro. Está certo: amanhã na primeira hora botava mãos à obra. Ou fazia alguma coisa agora? Podia jurar que sobrava mais tempo do que parecia; depois da chuva o dia sempre se estende. Enfim... Amanhã. Ao menos ficava o consolo de que faria tempo bom. As nuvens tinham ido embora, não restava uma em todo o céu.

O joão-de-barro via sua arte construtiva como uma soma de formas vagas e inúteis, de que saía por casualidade algo equivalente a uma função. Devia se mirar no exemplo, dizia a si mesmo, dos homens, de suas casas hiperfuncionais, automáticas, sempre iguais: paredes verticais, teto, aberturas, sistema de entrada e saída... Eles sim que não tinham preocupações de arquitetura! Faziam como faziam, faziam e pronto, sempre a mesma coisa, que durava eternidades. Por exemplo, a localização. Um instinto infalível (“o” instinto) fazia com que construíssem sempre no chão, sempre colado ao chão, sobre a superfície. Não precisavam escolher; a natureza tinha escolhido por eles. Um joão-de-barro, ao contrário, estava sujeito às mais imprevisíveis inspirações: um poste, uma árvore, um teto, um beirado, a cinco metros do chão, a sete, a quinze... E tinha o tipo de barro para escolher, a proporção de grama ou fibras... Praticamente não havia nada fixo ao que se aferrar (ao menos ele entendia assim). E os acidentes! A chuva de hoje, sem precisar ir mais longe. Estava à mercê das circunstâncias, qualquer minúsculo detalhe podia mudar tudo, as consequências do menor acontecimento se projetavam até o fim da sua vida, fazendo-a tão variegada e barroca pela superposição que se tornava invivível. Os homens, por seu lado, do mesmo jeito que qualquer outro ser vivo no planeta, tinham um modo de neutralizar o acidental, o instinto vigoroso e bem estruturado permitia que criassem circunstâncias improvisadas capazes de anular tudo o que fosse aleatório. E ele não! Só ele em toda criação! Isso se devia ao fato de que o joão-de-barro era um indivíduo, todos os joões-de-barro o eram, enquanto os humanos eram uma espécie. A espécie estava firmemente assentada no necessário, o indivíduo estava no ar, na vertigem, no casual.

Mas essa excepcionalidade não tinha suas vantagens? Não deveria ter? Sempre que se paga, se dizia o joão-de-barro nas profundezas do seu enorme desassossego, se consegue alguma coisa em troca. E “a raça maldita” a que pertencia tinha pago um preço elevado: a renúncia à paz de viver sem preocupações, geração após geração, entregues com feliz confiança aos doces mecanismos da natureza. Era impossível que em troca de tanto não recebesse nada. Tinha que haver vantagens e elas existiam, grandes, definitivas. Resumiam-se numa palavra: liberdade. Tinha a liberdade. Bastava desfrutar dela.

Como se fosse tão fácil!, exclamou para os próprios miolos num estertor psíquico, e ergueu os olhos doloridos para o signo com que o mundo tinha escrito a palavra “liberdade”: o céu. Na sua curva vazia se desenhara um arco-íris. Via-o um pouco de lado, em diagonal, e assim era mais monumental, mais formidável. Via-o carregado de ressonâncias “poéticas”, “filosóficas”, “morais”, “estéticas” (me viro com equivalentes, mas confio que serei entendido), enquanto os humanos, que também estavam olhando para ele, viam o simples fenômeno meteorológico que era, o simples presente que era. E por trás, a resplandescência rosa do crepúsculo.

Sim!, se exaltava o pobre infeliz, a liberdade! O voo imenso sobre o mundo, sobre os mundos. Isso os humanos não tinham! Sobre eles caía desde a primeira infância a persiana inflexível do instinto e todo o resto era obedecer cegamente aos ditados da sua natureza. Enquanto o joão-de-barro avançava pelo caminho das possibilidades infinitas.

Mas esse caminho se parecia muito com o vazio. Seu estado atual, o que sentia como um envelhecimento prematuro, um esgotamento no fogo incessante do esforço de tratar de viver, provava que a liberdade era o seu próprio excesso. Na realidade, era preciso voltar a definir a liberdade e, nessa redefinição, ele ficava em maus lençóis. Os seres que viviam apegados a uma natureza incontaminada, como os homens, eram livres num sentido superior. Escravos do instinto? Certo, mas também era necessário redefinir “instinto”; e se o instinto equivalia ao infalível, à felicidade, que maior liberdade podia haver? Todo o resto eram ilusões. Não se perdia nada.

Os humanos lá na varanda já paravam de tomar chimarrão. Porque a água tinha esfriado, porque a erva estava lavada, porque estavam satisfeitos... Numa palavra: porque o ditava a Lei grandiosa que governava todas as pequenas causas; o universo inteiro se manifestava entre os humildes e os mansos e, ao acudir a eles como um deus, colocava-se a sua disposição, obedecia-os. O Tempo, que tudo destrói e domina, se remansava no presente eterno da vida simples. Tranquilos e sensuais, alheios aos tormentos da consciência e da dúvida, seguros do fluir suave da vida, do acasalamento, da reprodução, da morte; a morte também: eles é que podiam dizer “morrer, dormir, talvez sonhar”. Não tinham temores... E eles também tinham “ressonâncias”. Quando olhavam como agora o céu rosa e violeta, o campo cristalino, a hora detida nas leves espirais do ar, eles também sentiam a metafísica, a poesia, a moral, a estética, e melhor que ele, porque viam a realidade sem véus! Se resolvesse imitá-los, como tinha feito algumas vezes, não ia dar em nada: seria mais um capricho da consciência, mais um exercício destinado ao fracasso, dos tantos em que se esgotava tentando e tentando...

Agora falavam. Estiveram falando o tempo todo, seguros, serenos, com suas palavrinhas secas, seus sussurros. Esse era outro ponto sensível para o joão-de-barro. Ainda que não fosse uma área importante (para nós humanos é que é, para ele não; o que indica que é melhor não se apressar em fazer a contratradução: as equivalências, mesmo que completas, não são simétricas), para ele isso era especialmente doloroso. O que saía da garganta dos homens era funcional, simples, de fácil manejo; já o do joão-de-barro, o canto, o pio, era um rabiscado onírico em que se misturavam caoticamente a função e o gratuito, o sentido e o sem-sentido, a verdade e a beleza. Os homens não tinham problemas quanto a isso, a Natureza tinha lhes facilitado tudo: desde que nasciam ou pouco menos (desde que, no seu primeiro ano de vida, caía a “persiana” do instinto), depositavam todo o sentido na linguagem e o que ficava de fora era marginal e insignificante. Já para o joão-de-barro, o sentido estava disperso em mil telepatias diferentes; e o canto, por outro lado, era uma estética sem limites precisos, que tanto podia servir para lavar como para passar, ou não servir para nada. Cantava por amor, por estar com soluço, porque dava vontade, porque era hora... Como em tudo mais, estava sujeito aos avatares imprevisíveis da consciência, ao excesso da liberdade ou ao excesso que era a liberdade.

Caía a noite sobre o pampa sagrado. O passarinho, quieto e mudo como uma espiral de barro diante da sua morada inconclusa, continuava afundado na angústia, na nostalgia da vida verdadeira que via alheia, longínqua, nos outros. Não sei se consegui me explicar direito; e, mesmo no caso de ter conseguido, posso ter sido pouco convincente. Este escrito não pretende mais do que ser uma contraprova, nem sequer definitiva, mas apenas sugestiva. É possível contestar o próprio método: afinal, isto foi escrito por um homem. Mas o que isso prova senão que o ser humano está equipado com um instinto que lhe permite escrever? Poderia fazê-lo sem ele? Por que um passarinho não escreve? Justamente porque tem muita liberdade, pode fazer ou não fazer, não há nada nele que o ponha em ação de maneira indefectível, não tem como o homem um programa para escrever com perfeita facilidade automática. Desde o fundo dos tempos a ação de escrever estas páginas está prevista na minha dotação genética. Por isso posso fazê-lo num átimo, sem vacilações, sem correções, como respirar ou dormir. Um abismo (do ponto de vista do joão-de-barro) separa esta mágica facilidade das deliberações que tornam tão penosas as tarefas que ele empreende.

8 de maio de 1994

Referências

  • AIRA, César. Relatos reunidos Buenos Aires: Mondadori, 2013.
  • AIRA, César. Nouvelles Impressions du Petit Maroc Tradução de Joca Wolff. Desterro: Cultura e Barbárie, 2011.
  • AIRA, César. Diccionario de autores latinoamericanos Buenos Aires: Emecé, 2001.
  • AIRA, César. Diário da hepatite Tradução de Joca Wolff. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, no prelo.
  • 1
    Agradecemos ao autor pela cessão dos direitos de publicação do texto no Brasil. Extraído de Relatos reunidos. Buenos Aires: Mondadori, 2013.
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    15 Maio 2022
  • Aceito
    30 Jun 2022
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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