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Saquear o arquivo, ouvir-se no eco: a leitura voraz do arquivo europeu na poesia de Rubén Darío

Looting the file, hearing yourself in the echo: The voracious reading of the European archive in the poetry of Rubén Darío

Resumo

Sylvia Molloy, ao ler a literatura latino-americana a partir do gênero autobiográfico, propõe que sua apropriação da cultura europeia se dê por meio de um saqueio voraz de seu arquivo. Perseguindo a ideia da crítica argentina, este artigo se propõe a ler esse procedimento de leitura voraz na obra do poeta nicaraguense Rubén Darío, enfocando um de seus poemas: “Caracol” em diálogo com outros poemas do autor, bem como busca compará-lo com trabalhos do cubano Julián del Casal, poeta coevo, com quem Darío partilha o interesse pela cultura francesa moderna. A partir da leitura dos poemas, mostra-se como o uso da tradição europeia funciona como estímulo para o encontro de uma literatura própria, em que a irreverência no uso do arquivo se impõe sobre a cópia.

Palavras-chave:
Rubén Darío; Modernismo hispano-americano; relações culturais; arquivo

Abstract

When reading Latin American literature from the autobiographical genre, Sylvia Molloy proposes that its appropriation of European culture takes place through the voracious looting of its archive. Pursuing this Argentinean author’s ideas, this article seeks to offer a reading of this voracious procedure in the work of Nicaraguan poet Rubén Darío, focusing particularly on one of his poems, “Caracol”, in dialogue with other of his poems, as well as comparing it with works by Julián del Casal, a contemporary Cuban poet with whom Darío shared a common interest in modern French culture. From the reading of these poems, we intend to show how the use of the European tradition prompts an encounter with our own literature, in which the irreverence in the use of the archive imposes itself on the copy.

Keywords:
Rubén Darío; Hispanic American Modernism; cultural relations; archive

Resumen

Sylvia Molloy, al leer la literatura latinoamericana desde el género autobiográfico, plantea que su apropiación de la cultura europea se da por medio de un saqueo voraz del archivo. Siguiendo la idea de la crítica argentina, el artículo se propone a leer este voraz procedimiento de lectura en la obra del poeta nicaragüense Rubén Darío, centrándose en uno de sus poemas: “Caracol” en diálogo con otros poemas del autor, así como busca compararlo con obras del cubano Julián del Casal, poeta contemporáneo, con quien Darío comparte el interés por la cultura francesa moderna. A partir de la lectura de los poemas, se muestra cómo el uso de la tradición europea funciona como estímulo para el encuentro de su propia literatura, en la que la irreverencia en el uso del archivo se impone sobre la copia.

Palabras clave:
Rubén Darío; Modernismo Hispanoamericano; relaciones culturales; archivo

Em seu texto “El lector con el libro en la mano”, capítulo que abre o livro Acto de presencia, Sylvia Molloy propõe uma interpretação da literatura hispano-americana desde um lugar bastante específico, partindo de um gênero que, além de não canônico, ocupara uma posição bastante marginal até então: a autobiografia. Buscando historicizar a literatura do continente a partir desse gênero, Molloy propõe que há na escrita da autobiografia algo que atravessa toda a literatura hispano-americana: “o saqueio do arquivo europeu atinge todos os gêneros da América Espanhola, mesmo aqueles que, à primeira vista, pareceriam dispensar o apoio de textos anteriores” (1996MOLLOY, Sylvia. El lector con el libro en la mano. In: MOLLOY, Sylvia. Actos de Presencia. México: Fondo de Cultura Económica, 1996. p. 25-52., p. 27).

O saqueio, verbo utilizado por Molloy, responde a um gesto bastante específico: guarda a ânsia de adentrar um espaço e levar de modo voraz tudo aquilo que for possível. Mais do que um roubo sugeriria, o saqueio é um gesto disruptivo, de afã totalizante, no qual busca-se levar não o específico, mas excedê-lo. Esse gesto intempestivo anima, segundo a crítica, a leitura que os escritores locais fazem da tradição.

Partindo dessa hipótese, sua leitura mostra como os textos latino-americanos se constituem por uma forma particular de leitura, capaz de uma “distorção criadora” desse arquivo ao qual recorre. “Reler e reescrever o libro europeu”, afirma Molloy, “pode ser uma experiencia às vezes selvagem, sempre inquietante” (1996MOLLOY, Sylvia. El lector con el libro en la mano. In: MOLLOY, Sylvia. Actos de Presencia. México: Fondo de Cultura Económica, 1996. p. 25-52., p. 26). Ao identificar essa repetição diferenciadora, localiza a tradução como prática fundamental para a constituição e modernização da região.

Tradução entendida não como prática de transposição que pretende buscar uma transparência (sempre mutilada) entre línguas, mas sim como uma maneira irreverente de se apropriar do arquivo. A tradução funciona como apropriação para os fins próprios do tradutor, empenhada em distorcer para criar. A viagem parte do reverenciado livro europeu, mas sempre tem como ponto de chegada a voz própria desse leitor que o toma nas mãos. Nesse sentido, tomamos as ideias de Molloy para pensar um momento fundador e privilegiado desse saqueio voraz empreendido pelos artistas latino-americanos: o modernismo hispano-americano e especificamente a obra de Rubén Darío.

Darío, que nasceu nicaraguense e viveu cidadão de toda parte, talvez seja um dos escritores hispano-americanos que mais claramente tematizou a operação descrita por Molloy. Em texto dedicado a leitura de sua obra, “Voracidad y solipsismo en la poesía de Darío”, Molloy afirma que o poeta modernista e seus pares operavam “a partir de um vazio cultural”, de uma “necessidade de preencher - e mais ainda: lotar” (MOLLOY, 2016MOLLOY, Sylvia. Voracidad y solipsismo en la poesía de Darío. Zama, Extraordinário: Ruben Darío, p. 311-317, 2016., p. 311). A leitura voraz e o saqueio do arquivo pelos modernistas foram feitos sob uma grande diversidade de críticas: Juan Valera, destacado intelectual espanhol do entresséculos, foi um dos primeiros a acusar o cosmopolitismo radical do autor em sua carta-prólogo a Azul, livro de estreia de Darío. “Se o livro (...) não estivesse em muito bom espanhol, poderia ser ele de um autor francês, de um italiano, de um turco ou até de um grego” (VALERA, 1988VALERA, Juan. Carta-prólogo de Juan Valera. In: DARÍO, Rubén. Azul. Madrid: Editora Alba, 1988. p. 19-41. , p. 20), marcando ainda que seu autor parecia sofrer do que chamou de galicismo mental, um excesso de afrancesamento. A voraz apropriação do poeta não passou incólume também pela posteridade: no Manifiesto Martín Fierro, texto fundamental da vanguarda argentina, a menção ao modernismo é bastante enfática.

Acentuar e generalizar, para as demais manifestações intelectuais o movimento de independência iniciado, no idioma, por Rubén Darío não significa, entretanto, que haveremos de renunciar, nem muito menos que finjamos desconhecer que todas as manhãs nos servimos de um creme dental sueco, de umas toalhas francesas e de um sabonete inglês. (GIRONDO, 2008GIRONDO, Oliverio. Manifesto Martín Fierro. In: SCHWARTZ, Jorge. Vanguardas Latino-americanas: polémicas, manifestos e textos críticos. São Paulo: EDUSP, 2008. p. 142-144., p. 143).

Na ironia do fragmento é possível entrever como o saqueio empreendido pelos poetas modernistas, cuja imagem central era Darío, foi lido posteriormente, ainda fazendo ressoar as palavras de Juan Valera. O produto da leitura dos contemporâneos europeus é entendido como um penduricalho que esconde uma exasperação pelo próprio, fascínio que mina qualquer interesse pela tradição da própria língua.

Para reavaliar o legado de Darío e do modernismo a contrapelo da insistência dos lugares-comuns e revisitar a crítica que buscou restituí-lo às inquietações de seu tempo, é necessário ler a materialidade dos poemas e perguntar-se que lugares o arquivo europeu ocupa. Adensando a questão e pensando na necessidade de “colmatar”, em espanhol, que identifica Molloy, é possível perguntar: após preencher o vazio com o arquivo europeu, sobraria espaço para que os poetas modernistas operassem alguma distorção criadora? O poema “Caracol” de Darío, publicado em Cantos de vida y esperanza, livro de 1905, pode nos oferecer algumas pistas para formular alguma resposta.

Caracol A Antonio Machado En la playa he encontrado un caracol de oro macizo y recamado de las perlas más finas; Europa le ha tocado con sus manos divinas cuando cruzó las ondas sobre el celeste toro. He llevado a mis labios el caracol sonoro y he suscitado el eco de las dianas marinas; le acerqué a mis oídos, y las azules minas me han contado en voz baja su secreto tesoro. Así la sal me llega de los vientos amargos Que en sus hinchadas velas sintió la nave Argos Cuando amaron los astros el sueño de Jasón; y oigo un rumor de olas y un incógnito acento y un profundo oleaje y un misterioso viento... (El caracol la forma tiene de un corazón.). (DARÍO, 1977DARÍO, Rubén. Poesía completa. Caracas: Ayacucho. 1977., p. 289).1 1 Em tradução nossa: “Na praia encontrei um caracol de ouro / maciço e revestido das pérolas mais finas; / Europa o tocou com suas mãos divinas / quando cruzou as ondas sobre o celeste touro. // Levei a meus lábios o caracol sonoro / e suscitei o eco das alvoradas marinhas, / o aproximei a meus ouvidos e as azuis minas, / me contaram em voz baixa seu secreto tesouro. // Assim o sal me chega dos ventos amargos / que em suas içadas velas sentiu a nau Argos / quando amaram os astros o sonho de Jasão. // e ouço um rumor de ondas e um incógnito acento / e uma profunda maré e um misterioso vento... / (o caracol a forma tem de um coração.)”.

O caracol do título é a imagem central do poema. O objeto digno do toque de mãos divinas não é um simples caracol marinho, é de ouro e revestido das mais finas pérolas. A relação com o caracol é marcada pelo luxo, aspecto central do arsenal modernista, que segundo Paz (1983PAZ, Octavio. El caracol y la sirena. In: PAZ, Octavio. Fundación y disidencia (Obras Completas). México: FCE, 1983. p. 137-171. Tomo 3., p. 142) é índice do desejo de modernidade. A partir da posse desse singular instrumento, o eu-lírico pode, por meio de sua palavra, convidar as vozes ocultas a se manifestarem e dar a conhecer o “secreto tesoro”. Encena-se a partir da imagem do caracol a criação poética. Em explicito diálogo com o mundo grego, a escuta aparece como a gênese da inspiração. Das musas, filhas da memória, que cantavam às poesias aos ouvidos dos poetas, o objeto resgata os ecos longínquos. Na segunda estrofe, os verbos llevar, suscitar, acercar e contar dão conta desses movimentos que expressam o cuidado para resgatar aquilo que se esconde nas espirais.

Além do luxo, a primeira referência do poema recolhe da tradição clássica um mito que é sempre recuperado por seu teor erótico. O mito de Europa, cuja cena central é recriada pelo teor narrativo do primeiro quarteto, remonta às inúmeras paixões caprichosas de Júpiter. Filha de um rei fenício, os banhos da jovem eram motivos de deleite do deus que, para consumar seu desejo, se metamorfoseia em um touro e a sequestra, levando-a para Creta, ocupando o continente que depois receberia o nome da princesa raptada. Trata-se de um gesto fundacional que tem como motivação primeira o desejo sexual. O poema recria a cena do rapto e o cruzamento sobre o oceano que levará à função de Creta e, por consequência, ao nascimento do velho continente (ver VERNANT, 2000VERNANT, Jean-Pierre. Europa vagabunda. In: VERNANT, Jean-Pierre. O universo, os deuses, os homens. Tradução Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 145-148., p. 145-148).

A outra referência mítica do poema anda paralela ao rapto de Europa: a nau Argos justamente passa pelas fronteiras criadas por Júpiter para proteger Europa e seus filhos, derrubando-as e derrotando Talo, o gigante que as protegia. Outro dado interessante é que a nave Argos, impulsada pelo “sueño de Jasón”, fora enviada em expedição por Pélias em busca de um objeto luxuoso: o Velocino de Ouro. Um dos mais ilustres tripulantes da expedição era Orfeu, cujo ritmo encantatório da lira impediu diversas vezes a ruína da missão.

É necessário ter em conta que essas referências míticas surgem na poética de Darío a partir do processo de saqueio do arquivo europeu. Não dos trabalhos dos mitólogos, mas sim extraída dos textos de seus contemporâneos do lado de lá do Atlântico, especialmente da literatura francesa coeva. Não se trata da Grécia histórica, como adverte Pedro Salinas, mas de “uma espécie de paraíso que está localizado em uma Grécia livremente entrevista pela imaginação” que “ao ser mais vagos e flexíveis para o desejo, se assemelham mais do que tudo a visões”. O poeta e crítico espanhol termina afirmando que essa paisagem de cultura é “um norte para desejos soltos em busca de direção” e que nela Darío “descobre um clima erótico” (SALINAS, 2005SALINAS, Pedro. El olímpico cisne. In: SALINAS, Pedro. La poesía de Rubén Darío. Barcelona: Península, 2005. p. 63-86. , p. 64). Assim, helenismo e galicismo andam de mãos dadas na poesia de Darío. Como observa Mariano Siskind, o segredo dos amores e saudações despertados pela França se justifica por “sua filiação a uma genealogia da cultura moderna que remonta ao classicismo” (2017SISKIND, Mariano. El universalismo francés de Darío y las cartografías mundiales del modernismo. In: SISKIND, Mariano. Deseos cosmopolitas: modernidad global y literatura. Buenos Aires: FCE, 2016. p. 245-290. , p. 259). A operação fica evidente se observarmos os seguintes fragmentos do poema “Divagación”, publicado em seu livro anterior, Prosas profanas, de 1896.

¿Vienes? Me llega aquí, pues que suspiras, un soplo de las mágicas fragancias que hicieron los delirios de las liras en las Grecias, las Romas y las Francias. (...) Amo más que la Grecia de los griegos la Grecia de la Francia, porque Francia, al eco de las Risas y los Juegos, su más dulce licor Venus escancia. (DARÍO, 1977DARÍO, Rubén. Poesía completa. Caracas: Ayacucho. 1977., p. 183-184).2 2 Em tradução nossa: “Vens? Me chega aqui, pois suspiras, / um sopro das mágicas fragrancias / que fizeram os delírios das liras / nas Grécias, nas Romas e nas Franças. // (...) Amo mais que a Grécia dos gregos / a Grécia da França, porque a França, / o eco dos Risos e dos Jogos, / seu mais doce licor Vênus derrama”.

A operação identificada por Salinas e Siskind se evidencia se observamos que Grécia, Roma e França ocupam a mesma posição sintagmática no quarto verso. Ao dispô-las desse modo, Darío constrói uma linhagem temporal em que a cultura se transmuta desde a gênese do ocidente até o que seria seu ponto culminante. Como dirá no mesmo poema, “Verlaine es más que Sócrates” tanto quanto França aperfeiçoa o delirar das liras gregas. A ideia é reiterada no segundo fragmento recuperado de “Divagación”. O eu-lírico é categórico, ama a Grécia, mas aquela que é recuperada pela França. Ama a antiguidade que o arquivo europeu quis resgatar e nutre-se dela, mediado pelo lugar que os poetas contemporâneos franceses lhe conferiram.3 3 Em seu célebre poema “Yo persigo una forma”, é possível ler “Yo persigo una forma que no encuentra mi estilo, / botón de pensamiento que busca ser la rosa; / se anuncia con un beso que en mis labios se posa / el abrazo imposible de la Venus de Milo” [em tradução nossa: Eu persigo uma forma que não encontra meu estilo, / botão de pensamento que busca ser a rosa; / se anuncia com um beijo que em meus lábios se pousa / o abraço impossível da Vênus de Milo] DARÍO, 1977, p. 240). Nos versos é possível ver que a referência à Deusa não busca tratar de seus atributos míticos, mas da estátua grega encontrada no início do século XIX, sem os braços, na cidade de Milo e em posse do Museu do Louvre desde então. Tomando de modo irreverente a deusa pela estátua, Darío mais uma vez ancora o mapa da tradição greco-latina na França moderna. Como verifica Siskind, “o significante francês é a instância de mediação que molda o mundo de Darío como uma totalidade modernista” (2017SISKIND, Mariano. El universalismo francés de Darío y las cartografías mundiales del modernismo. In: SISKIND, Mariano. Deseos cosmopolitas: modernidad global y literatura. Buenos Aires: FCE, 2016. p. 245-290. , p. 264).

A recuperação dos mitos em “Caracol” é, portanto, parte desse movimento. Emblema do poema, o mito de Europa estava recuperado pela arte francesa do final do século, revisitado justamente em seu teor erótico. Gustave Moreau, pintor francês que compunha a mitologia modernista (PAZ, 1983PAZ, Octavio. El caracol y la sirena. In: PAZ, Octavio. Fundación y disidencia (Obras Completas). México: FCE, 1983. p. 137-171. Tomo 3., p. 142), dedicou à cena do rapto uma série de desenhos, aquarelas e duas pinturas a óleo: a primeira de 1868, Jupiter et Europe (Figura 1), e a segunda de 1869, L'Enlèvement d'Europe (Figura 2). Moreau, segundo Mario Praz (1996PRAZ, M. A carne, a morte e o diabo na literatura romântica. Tradução de Philadelpho Menezes. Campinas: Ed. UNICAMP, 1996., p. 227), apostava em seus quadros a representação de cenas estáticas, resgatando nelas aspectos que unissem exotismo e erotismo. Em seu espírito decadentista, buscava a estéril contemplação, recolhendo do mundo grego mitos que pudessem corroborar para sua busca estética e sua inquietação com os corpos voluptuosos e impregnados de luxúria.

Figura 1 -
MOREAU, Gustave. Jupiter et Europe, c. 1868. Óleo sobre tela. Musée Gustave Moreau. Imagem disponível em: https://www.pop.culture.gouv.fr/notice/joconde/50410000226. Acesso em: 16 jun. 2022.

Figura 2 -
MOREAU, Gustave. L'enlèvement d'Europe, c. 1869. Óleo sobre madeira. Musée d'Orsay. Imagem disponível em: https://www.musee-orsay.fr/fr/oeuvres/lenlevement-deurope-1073. Acesso em: 16 jun. 2022.

É bastante significativo que nas duas pinturas referidas do mito de Europa a jovem esteja totalmente desnuda. Representada muitas vezes na pintura, o corpo da princesa fenícia não se descobriu por completo até encontrar-se com o pincel de Moreau. Na pintura de Ticiano (Figura 3), o corpo da jovem está coberto com um longo tecido branco, mas molhado, permitindo entrever seus contornos. Na versão de seu contemporâneo, Paolo Veronese, de 1580 (Figura 4), uma série de mulheres tenta impedir que Júpiter levante voo, ocasionando o desnudamento de um dos seios da jovem, que irrompe entre os grossos tecidos que o cobrem. Já no século XVIII, o francês Sébastien Leclerc retrata, na direção de seu olhar, um indício de atração amorosa entre ela e o touro (Figura 5), muito diferente do pavor que pairava nas pinturas anteriores, enquanto seu contemporâneo François Boucher permite-se deixar os seios da jovem a mostra (Figura 6).4 4 Ver o apartado do artigo de Marie Fontana (s/d) sobre o mito de Europa na arte europeia da coleção Textes fondateurs do Réseau Canopé da Académie de Paris, disponível em: http://crdp.ac-paris.fr/parcours/fondateurs/index.php/category/le-mythe-deurope. Acesso em 16 de junho de 2022. É especialmente interessante como as aparições do mito se estendem para além do século XIX. Félix Vallotton, em 1908, e Max Beckmann, em 1933, são alguns dos pintores que se ocupam da representação pictórica do mito no século XX. Em ambos, Europa segue completamente desnuda.

Figura 3 -
TICIANO, The rape of Europa, c. 1559-1562. Óleo sobre tela. Isabella Stewart Gardner Museum. Imagem disponível em: https://www.gardnermuseum.org/experience/collection/10978#. Acesso em: 16 jun. 2022.

Figura 4 -
VERONESE, Paolo. Il ratto di Europa. c. 1570-1580. Óleo sobre tela. Palazzo Ducale. Imagem disponível em: https://www.visitmuve.it/it/galleria-delle-opere/paolo-veronese-il-ratto-di-europa/. Acesso em: 16 jun. 2022.

Figura 5 -
LECLERC, Sébastien. L’enlèvement d’Europe, c. 1714. Óleo sobre tela. Musée des beaux-arts. Imagem disponível em: http://ressources.louvrelens.fr/EXPLOITATION/oeuvre-ba-p-486.aspx. Acesso em: 16 jun. 2022.

Figura 6 -
BOUCHER, François. L’enlèvement d’Europe, c. 1747. Óleo sobre tela. Musée du Louvre. Imagem disponível em: https://collections.louvre.fr/en/ark:/53355/cl010066442. Acesso em: 16 jun. 2022.

O que é seguro dizer é que o corpo de Europa vinha caminhando para sua desnudez definitiva desde o renascimento.5 5 Sobre a crise da representação do corpo no fièn-de-siecle francês, ver Moraes, 2017. Moreau consuma a apropriação erótica da tradição clássica que há muito se ansiava. Dessa forma, ele ressalta no mito a sensualidade e a potência erótica em detrimento da dimensão agônica. Tendo isso em vista, a representação de Darío se inserta muito mais nessa trajetória do corpo da jovem rumo ao desnudamento do que a melancólica imagem do roubo que estava representada, por exemplo, na obra central do poeta latino Ovídio, Metamorfoses, e que havia servido de base para os pintores do renascimento (THAMOS, 2012THAMOS, Marcos. O rapto de Europa: uma comparação entre Ovídio e Ticiano. CASA - Cadernos de Semiótica Aplicada, v. 10, n. 2, p. 1-16, 2012.). A sensação de desterro e pavor pelo rapto, vistas em Ticiano e Veronese, é substituída pelo olhar apaixonado em Boucher ou a cumplicidade sedutora em Moreau. A amargura presente nas Metamorfoses, assentada no desespero da princesa sequestrada, move-se para o interesse no desejo erótico de Júpiter. A sedução pela beleza justifica a ação de Júpiter, que terminaria fundando uma cultura.

Contemporâneo de Darío e tão ávido pela modernidade quanto ele, o poeta cubano Julián del Casal dedicou uma série de poemas a Gustave Moreau em uma seção intitulada “Mi museo ideal” em seu livro Nieve, de 1892, recuperando as pinturas do francês em poemas ecfráticos. O saqueio do arquivo europeu é bastante evidente e provocativo desde o título da seção. A palavra poética recompõe as telas de Moreau - vistas por Casal apenas por reproduções fotográficas - constituindo um museu particular, objeto de contemplação. Os sonetos não apenas rendem homenagens, mas são os responsáveis por dar forma ao anseio de chegar perto do arquivo que está distante e que de fato Casal jamais conheceria. Uma das pinturas de Moreau sobre o mito de Europa é recuperada por Casal no soneto “Júpiter y Europa”, mesmo nome da tela.

En la playa fenicia, a las boreales radiaciones del astro matutino, surgió Europa del piélago marino, envuelta de la espuma en los cendales. Júpiter, tras los ásperos breñales, acéchala a la orilla del camino y, elevando su cuerpo alabastrino, intérnanse entre oscuros chaparrales. Mientras al borde de la ruta larga alza la plebe su clamor sonoro, mirándola surgir de la onda amarga, desnuda va sobre su blanco toro que, enardecido por la amante carga, erige hacia el azul los cuernos de oro. (CASAL, 2007CASAL, Julián del. Nieve. Páginas de Vida. Poesía y prosa. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 2007., p. 115).6 6 Em tradução nossa: “Na praia fenícia, nas boreais / radiações do astro matutino, / surgiu Europa do pélago marinho, / evollta da espuma dos cendais. // Júpiter, atrás dos bosques, / a espreita nas margens do caminho, / e, elevando seu corpo alabastrino, / se internam entre escuros chaparrais. // Enquanto na beira da rota longa / alça a plebe seu clamor sonoro, / vendo-a surgir da onda amarga, // desnuda vai sobre o branco touro / que, enfurecido pela amada carga, / levanta ao azul os cornos de ouro”.

O soneto se articula em torno a algumas cenas que ultrapassam a tela de Moreau e mostram uma recuperação da narrativa mítica. Saída das águas de uma praia fenícia, a jovem Europa emerge como a Vênus de Botticelli e é objeto da contemplação do olhar de Júpiter, já transformado em touro. Os dois primeiros quartetos, privilegiando sequências narrativas, constroem o corpo da protagonista como sedutor e encoberto, culminando no sequestro empreendido pelo deus lascivo. O touro é comparado ao alabastro, metáfora plástica que ecoa o gosto parnasiano por esse tipo de imagem.

No terceto final, o corpo da jovem toma a centralidade que toda a representação do mito no século XIX lhe conferiu: já está nua como no quadro que inspirara o soneto. No entanto, chama a atenção como Casal se distancia da esterilidade de Moreau. No corpo enardecido do touro pela amante carregada é possível ler o ânimo sexual que motivara o rapto. Os corpos nus se tocam, alimentando o furor do raptor. Muito mais arrebatado que a troca de olhares cumplices do quadro de Moreau, a excitação de Júpiter transfigurada se consuma no erigir dos chifres para o mar, que, amor cromático dos modernistas, é azul - como L’Art c’est l’azur, nas palavras de Victor Hugo (1864HUGO, Victor. William Shakespeare. Paris: Lacroix, 1864., p. 427).

Lezama Lima em ensaio dedicado ao modernista cubano afirma que: “Uma das maiores delícias que Casal nos dá é quando consegue combinar essas energias sexuais respaldadas por uma paisagem líquida” (1988LEZAMA LIMA, José. Julián del Casal. In: LEZAMA LIMA, José. Confluencias. La Habana: Letras cubanas, 1988. p. 181-205., p. 188). O terceto final do poema é mostra fundamental do procedimento identificado por Lezama. O mar como rota de fuga possibilitará que o amor se consume.7 7 Há que se ter em conta que em diversas representações do mito na pintura o mar é privilegiado para recortar a narrativa. Ele é central em todas as pinturas que referimos até aqui. Assim como Moreau, a cena é de sedução, transformando a violação em cumplicidade de amantes. No entanto, Casal adensa esse aspecto ao rechear a cena da “energia sexual” de que fala Lezama.

Se o último terceto se concentra na representação do desejo luxurioso de Júpiter, o penúltimo, preparação para o voo, concebe uma imagem curiosa: o clamor sonoro da plebe. Na tela de Moreau de 1868 (Figura 1), que dá nome ao poema, não há qualquer plateia possível, mas se tomarmos a releitura que o pintor francês faz no quadro de 1869 (Figura 2) é possível ver à esquerda, assemelhando-se à versão de Ticiano, o movimento daqueles que seguem o touro. A plateia é bastante mais difusa que a de Ticiano e distante de outra representação célebre do mito: a de Rembrandt (Figura 7), em que as testemunhas do rapto expressam um claro gesto de pavor. Nesse sentido, podemos pensar na plebe como testemunhas do sequestro.

Figura 7 -
REMBRANDT. The Abduction of Europa, 1632. Óleo sobre painel. J. Paul Getty Museum. Imagem disponível em: https://www.getty.edu/art/collection/object/103QS8. Acesso em: 16 jun. 2022.

A palavra plebe, no entanto, é interessante porque reduz o que seriam testemunhas ligadas a uma linhagem real fenícia a uma classe social inferior. Esse aspecto pode ser lido, dentro da obra de Casal e no contexto do modernismo, como produto do fato de nunca chegar “a entender a necessidade inescapável de ir às multidões” (KANZEPOLSKY, 2019KANZEPOLSKY, Adriana. “Una sombra terrible”: enfermedad y muerte o lo no dicho en la correspondencia de Julián del Casal. ALEA: Estudos Neolatinos, v. 21, n. 1, p. 283-304, 2019., p. 276, nota 4), selada na visão de que a arte é apreciada por poucos e avessa às multidões que começavam a se avolumar no século XIX, exasperando a sensibilidade dos artistas modernistas (MONTALDO, 1995MONTALDO, Graciela. La sensibilidade amenazada: tendencias del modernismo latinoamericano. Caracas: Planeta Venezuela, 1995.). É interessante como o rapto se consuma apesar do clamor: Júpiter o ignora, e o poema saúda o rapto com um terceto final que, como já analisamos, consuma o império da luxúria do deus transmutado. Assim, o clamor da plebe é inútil, não reverbera, porque deve dobrar-se ao império da beleza, e o artista, como criador de coisas belas,8 8 A definição é feita por Oscar Wilde no prefácio a seu Dorian Gray: “O artista é o criador de coisas belas. Revelar a arte e ocultar o artista é a finalidade da arte” (2012, p. 5). Wilde também é um dos escritores apreciados por Rubén Darío e seus contemporâneos e será um dos perfis biografados pelo poeta nicaraguense em seu já mencionado livro Los raros. a contemplará. Lembremos que o mito termina na fundação do continente europeu e, se quisermos expandi-lo, na fundação da tradição.

Partindo de um claro interesse ecfrático, é notório como o poema de Casal extrapola os limites da cena representada pela pintura de Moreau. O erotismo colérico, a introdução do mar como elemento central e a imaginação das vozes que se ressentem pela perda da jovem são elementos que transbordam o horizonte da pintura que serve de inspiração ao poema. Aqui o gesto de saqueio do arquivo europeu termina invariavelmente na distorção criadora de que fala Molloy. Reler e reescrever, nesse caso, o quadro europeu é via de acesso não para submeter-se, mas para buscar uma forma em que possa florescer o estilo do poeta.

Se pensarmos em “Caracol” de Darío à luz desse poema de Casal, podemos perceber que é ainda mais radical a maneira com que ele opera com o arquivo. Em primeiro lugar, o imaginário comum dos poetas modernistas salta aos olhos. Encontrando na “Grecia de Francia” um vasto arcabouço de imagens, Darío e Casal recuperam não o mito nas fontes clássicas, mas justamente o resgate francês. No entanto, opera-se aí a leitura voraz. Não se fala desde França, mas do continente americano. A imagem do eco em “Caracol” serve como metáfora central para pensar a relação que Darío vai encenar com a tradição e que também está exposta nos procedimentos de Casal em seu soneto.

Para pensar no eco como imagem central do poema, dois aspectos do objeto que lhe dá título devem ser revelados: sua materialidade luxuosa e o som que é capaz de gerar. Nessa junção, aparece outro aspecto central do modernismo hispano-americano: elementos caros ao parnasianismo e ao simbolismo aparecem convocados apesar de serem estéticas que haviam se sucedido na Europa. Para pensar outro exemplo do trânsito indistinto entre as duas escolas, basta lembrar-se das páginas de Los raros, de Darío, dedicadas a Leconte de Lisle, “príncipe do Parnaso”, e a Paul Verlaine, cuja alma era “eco de celestes ou profanas músicas” (DARÍO, 1905DARÍO, Rubén. Los raros. Barcelona: Casa Editorial Maucci, 1905. , p. 27 e 46). O gosto pelo elemento musical, do simbolismo, e o gosto pelo escultórico, do parnasianismo, se fundem aqui na imagem do caracol. É ele capaz de reverberar sons e melodias, assim como encarna o preciosismo do objeto, da beleza que se impregna na forma.

A duplicidade na construção do caracol rege também outros elementos do poema. O verbo tocar amplia o sentido duplo do objeto, utilizando-se de sua ambiguidade. Na cena, Europa toca em dois sentidos: reconhece com as mãos o preciosismo do objeto, mas também o utiliza para emitir sons, fazer música. Também o nome da princesa parece sugerir certa ambiguidade, ela é a princesa sequestrada que sente e faz música com o caracol e atende pelo nome do continente de onde emana a tradição apreciada pelo eu-lírico. Europa é, a um só tempo, o passado suspenso do mito e o presente, é a linhagem de uma tradição iniciada e encarnação da moderna poesia que se escuta.

Também o azul, cor que representa o ideal artístico (mais uma vez deve-se pensar na máxima “L’Art c’est l’azur”, de Victor Hugo), aparece invocado no poema de várias maneiras. É o azul do mar, das minas, e também guardado à ambiguidade do celeste touro, estabelecendo uma ponte de sentidos entre o elemento divino, vindo dos céus, e o croma do ideal. O caracol, centro dessa impregnação de imagens que remetem ao fazer poético, é, na leitura de Octavio Paz, “símbolo de correspondência universal”, que por sua capacidade de reverberar é “o vaivém rítmico, o giro daquelas imagens em que o mundo se revela e se esconde, se diz e se cala” (1983PAZ, Octavio. El caracol y la sirena. In: PAZ, Octavio. Fundación y disidencia (Obras Completas). México: FCE, 1983. p. 137-171. Tomo 3., p. 170).

A tradição lhe chega pelo mar, ele não a busca, é como um chamado. No caracol, o eu-lírico escuta o mito dos argonautas, representado no primeiro terceto, que parecia estar ausente de som, mas deve ser lembrado que ali estava Orfeu. Quão belo deve ter sido embalado o sonho de Jasón que podia suspirar enquanto Orfeu tocava a mais bela lira do mundo antigo? Darío recupera do mito o som e quando ele não está presente, como é o caso do sequestro de Europa, ele planta o objeto musical.

Como bem identifica Irina Garbatzky, a operação estrutural de Darío é colocar em primeiro plano “o paradoxo existente entre originalidade e cópia como uma questão absolutamente moderna e ao introduzir as dimensões criativas e muito singulares dos processos de tradução e imitação” (GARBATZKY, 2017GARBATZKY, Irina. Blanco sobre blanco. El jardín de los poetas. Revista de teoría y crítica de poesía latinoamericana, v. III, n. 5, p. 123-133, 2017., p. 125). Essa operação é nítida em “Caracol” quando observamos que a leitura do mito é voraz e faz com que ele desvie e profane a cena para sua busca, sua própria inquietação. Permitir-se recolorir o touro alabastrino é o signo mais evidente desse procedimento.

É nessa teia de sentidos que a imagem do eco amplia sua dimensão: o caracol reproduz o som, mas numa reverberação, passando por obstáculos que vão debilitando sua limpidez. A tradição, assim, não se recebe numa escuta clara, mas numa aproximação pelo eco do que foi uma voz. O acesso material dos poetas modernistas à tradição dá pista dessas clivagens: Casal, por exemplo, conheceu os quadros de Moreau por cópias fotografas por Joris-Karl Huysmans, nunca tendo visto um original (MONTERO, 1989MONTERO, Oscar. Las ordalías del sujeto: “Mi museo ideal” y “Marfiles viejos” de Julián del Casal. Revista Iberoamericana, v. LV, n. 146-147, p. 287-306, 1989., p. 289). É eco de uma imagem, a reverberação fotográfica do que seria uma pintura. Em “Caracol” também se coloca a impossibilidade de relacionar-se de maneira direta com esse arquivo pela diferença (ou pela falta).

O terceto final abre espaço para a escuta de si, pois permite entrever, no rumor do espiral, a descoberta de si mesmo no espaço habitado pela tradição, afinal, se entendemos o caracol como signo da poesia, o toque de Europa adquire novo sentido: o “divino” fazer poético do velho continente. É no devir da criação que o vazio permite escutar a si mesmo. O caracol “é seu corpo e sua poesia”, diz Paz (1983PAZ, Octavio. El caracol y la sirena. In: PAZ, Octavio. Fundación y disidencia (Obras Completas). México: FCE, 1983. p. 137-171. Tomo 3., p. 170). Assim, o verso final, entre parênteses, parece desestabilizar o terceto e abrir a rigidez do soneto como forma. Siebenmann (1969SIEBENMANN, Gustav. Sobre la musicalidad de la palabra poética. Disquisiciones aplicadas a algunos poemas de Rubén Darío. Romanistisches Jahrbuch, v. 20, p. 304-321, 1969., p. 316) ao comentar o poema faz uma apreciação interessante: quando aproximamos o ouvido de um caracol o rumor que se escuta é o fluxo de sangue do próprio corpo, reverberado pelos espirais. O dado é interessante pois arremata o sentido último do poema: o que se escuta reverberar no eco da tradição? O som do coração daquele que, invariavelmente, ao escutá-lo, cria.

É significativo que o poema esteja oferecido ao poeta espanhol contemporâneo Antonio Machado. Depois da recusa veemente que os escritores do século XIX tiverem frente à arte espanhola, é no entresséculos, e fundamentalmente na figura de Ruben Darío, que não só desponta um gesto conciliador, mas uma tentativa de estabelecer vínculos. É interessante que se opera uma inversão nesse contexto: o modernismo hispano-americano torna-se a referência para a prática poética espanhola (ZANETTI, 1994ZANETTI, Susana. Modernidad y religación: una perspectiva continental (1880-1916). In: PIZARRO, Ana (org.). América Latina: palavra, literatura e cultura. São Paulo: Memorial da América Latina, 1994. p. 491-534., p. 531). A ex-metrópole é que vai beber no despontar de uma tradição na ex-colônia que está perseguindo sua forma. O vínculo com a Europa aparece desenhado desde a dedicatória do poema, mas ele é de outra natureza: não é a declaração apaixonada à França como a que aparece em “Divagación”, é uma relação muito mais horizontal, trata-se de um gesto de expansão da cofradía de artistas na fundação de uma nova poesia. É necessário lembrar que são os tempos do desastre español, selado em 1898 com a perda de sua última colônia: a ilha de Cuba. Espanha não é mais um império, é a Europa periférica.

A busca pelo elemento francês, que a princípio poderia sugerir a passagem da dependência da tradição espanhola à francesa, se mostra mais complexa. A ânsia dos escritores modernistas, incluídos aí os espanhóis, era adentrar a cultura moderna que parecia encontrar na França oitocentista seu emblema mais bem acabado. Nesse sentido, para poder submergir nessa tal experiência moderna, é necessário “ser francês”, pois “A França, como mediação, (...) permite uma tradução latino-americana de formas, imagens e desejos modernos. A cultura de Dario é latino-americanamente francesa.” (SISKIND, 2016SISKIND, Mariano. El universalismo francés de Darío y las cartografías mundiales del modernismo. In: SISKIND, Mariano. Deseos cosmopolitas: modernidad global y literatura. Buenos Aires: FCE, 2016. p. 245-290. , p. 280). O gosto pelo elemento francês é o elemento que dará a passagem para o mundo, para a modernidade uma vez que, nesse contexto, ser moderno é sinônimo de ser francês. A dedicatória a Machado ganha, assim, ares de convite, como a de uma voz poética que convida outras à escuta de si mesmo nos silêncios da tradição.

O modernismo, “estética do luxo e da morte” (PAZ, 1983PAZ, Octavio. El caracol y la sirena. In: PAZ, Octavio. Fundación y disidencia (Obras Completas). México: FCE, 1983. p. 137-171. Tomo 3., p. 147), criada pela “acumulação de toda espécie de objetos estranhos” (PAZ, 1983PAZ, Octavio. El caracol y la sirena. In: PAZ, Octavio. Fundación y disidencia (Obras Completas). México: FCE, 1983. p. 137-171. Tomo 3., p. 143), revela sua profunda ânsia de modernidade advinda de uma profunda consciência da singularidade da criação poética. É no saqueio operado por Darío, Casal e seus contemporâneos que se inaugura a modernidade do verso em língua espanhola. O que a crítica vem mostrando nos últimos dois séculos é que a poesia do autor de “Caracol” não é imitação menor do fin-de-siècle, mas que o saqueio, a leitura voraz e a tradução desse arquivo possibilitaram seu gesto fundador. Retomando as ideias de Molloy que nos nortearam,

Dependencia, en este caso, no significa una estricta observancia del modelo o una forma servil de imitatio, sino referencia a una combinación, a menudo incongruente, de textos posibles que sirven al escritor de impulso literario y le permiten proyectarse al vacío de la escritura, aun cuando esa escritura concierne directamente al yo. (MOLLOY, 1996MOLLOY, Sylvia. El lector con el libro en la mano. In: MOLLOY, Sylvia. Actos de Presencia. México: Fondo de Cultura Económica, 1996. p. 25-52., p. 27).9 9 Em tradução nossa: “Dependência, neste caso, não significa uma estrita observância do modelo ou uma forma servil de imitatio, mas sim referência a uma combinação, muitas vezes incongruente, de textos possíveis que servem de impulso literário ao escritor e permitem que ele se projete no vazio da escrita, ainda que essa escrita diga respeito diretamente ao eu”.

Molloy se refere especialmente a autobiografia quando fala da escritura del yo, mas sua formulação pode ser pensada no estudo da apropriação do arquivo pela voz poética de Darío. “Minha literatura é minha em mim”, diz o poeta nas “Palabras liminares” de seu livro Prosas profanas (1977DARÍO, Rubén. Poesía completa. Caracas: Ayacucho. 1977., p. 179). Por ser tão sua em si, a literatura de Darío é um exemplo do desvio criador, da apropriação da tradição europeia que não se traslada intocada. Seu touro é azul-celeste, sua Europa é musicista, seu coração tem a forma de caracol e guarda o mistério não apenas do delirar das liras do passado, mas dos sons do presente, da criação em plena modernidade.

Referências

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    » http://crdp.ac-paris.fr/parcours/fondateurs/index.php/category/le-mythe-deurope
  • GARBATZKY, Irina. Blanco sobre blanco. El jardín de los poetas. Revista de teoría y crítica de poesía latinoamericana, v. III, n. 5, p. 123-133, 2017.
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  • VALERA, Juan. Carta-prólogo de Juan Valera. In: DARÍO, Rubén. Azul Madrid: Editora Alba, 1988. p. 19-41.
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  • WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray Trad. Paulo Schiller. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
  • ZANETTI, Susana. Modernidad y religación: una perspectiva continental (1880-1916). In: PIZARRO, Ana (org.). América Latina: palavra, literatura e cultura. São Paulo: Memorial da América Latina, 1994. p. 491-534.
  • 1
    Em tradução nossa: “Na praia encontrei um caracol de ouro / maciço e revestido das pérolas mais finas; / Europa o tocou com suas mãos divinas / quando cruzou as ondas sobre o celeste touro. // Levei a meus lábios o caracol sonoro / e suscitei o eco das alvoradas marinhas, / o aproximei a meus ouvidos e as azuis minas, / me contaram em voz baixa seu secreto tesouro. // Assim o sal me chega dos ventos amargos / que em suas içadas velas sentiu a nau Argos / quando amaram os astros o sonho de Jasão. // e ouço um rumor de ondas e um incógnito acento / e uma profunda maré e um misterioso vento... / (o caracol a forma tem de um coração.)”.
  • 2
    Em tradução nossa: “Vens? Me chega aqui, pois suspiras, / um sopro das mágicas fragrancias / que fizeram os delírios das liras / nas Grécias, nas Romas e nas Franças. // (...) Amo mais que a Grécia dos gregos / a Grécia da França, porque a França, / o eco dos Risos e dos Jogos, / seu mais doce licor Vênus derrama”.
  • 3
    Em seu célebre poema “Yo persigo una forma”, é possível ler “Yo persigo una forma que no encuentra mi estilo, / botón de pensamiento que busca ser la rosa; / se anuncia con un beso que en mis labios se posa / el abrazo imposible de la Venus de Milo” [em tradução nossa: Eu persigo uma forma que não encontra meu estilo, / botão de pensamento que busca ser a rosa; / se anuncia com um beijo que em meus lábios se pousa / o abraço impossível da Vênus de Milo] DARÍO, 1977DARÍO, Rubén. Poesía completa. Caracas: Ayacucho. 1977., p. 240). Nos versos é possível ver que a referência à Deusa não busca tratar de seus atributos míticos, mas da estátua grega encontrada no início do século XIX, sem os braços, na cidade de Milo e em posse do Museu do Louvre desde então. Tomando de modo irreverente a deusa pela estátua, Darío mais uma vez ancora o mapa da tradição greco-latina na França moderna.
  • 4
    Ver o apartado do artigo de Marie Fontana (s/dFONTANA, Marie (org.). Le mythe d’Europe. Textes fondateurs. Paris: Académie de Paris, s/d. Disponível em: http://crdp.ac-paris.fr/parcours/fondateurs/index.php/category/le-mythe-deurope . Acesso em: 21 maio 2022.
    http://crdp.ac-paris.fr/parcours/fondate...
    ) sobre o mito de Europa na arte europeia da coleção Textes fondateurs do Réseau Canopé da Académie de Paris, disponível em: http://crdp.ac-paris.fr/parcours/fondateurs/index.php/category/le-mythe-deurope. Acesso em 16 de junho de 2022. É especialmente interessante como as aparições do mito se estendem para além do século XIX. Félix Vallotton, em 1908, e Max Beckmann, em 1933, são alguns dos pintores que se ocupam da representação pictórica do mito no século XX. Em ambos, Europa segue completamente desnuda.
  • 5
    Sobre a crise da representação do corpo no fièn-de-siecle francês, ver Moraes, 2017MORAES, Eliane Robert. O peso da cabeça. In: MORAES, Eliane Robert. O corpo impossível. São Paulo: Iluminuras, 2017. p. 25-36. .
  • 6
    Em tradução nossa: “Na praia fenícia, nas boreais / radiações do astro matutino, / surgiu Europa do pélago marinho, / evollta da espuma dos cendais. // Júpiter, atrás dos bosques, / a espreita nas margens do caminho, / e, elevando seu corpo alabastrino, / se internam entre escuros chaparrais. // Enquanto na beira da rota longa / alça a plebe seu clamor sonoro, / vendo-a surgir da onda amarga, // desnuda vai sobre o branco touro / que, enfurecido pela amada carga, / levanta ao azul os cornos de ouro”.
  • 7
    Há que se ter em conta que em diversas representações do mito na pintura o mar é privilegiado para recortar a narrativa. Ele é central em todas as pinturas que referimos até aqui.
  • 8
    A definição é feita por Oscar Wilde no prefácio a seu Dorian Gray: “O artista é o criador de coisas belas. Revelar a arte e ocultar o artista é a finalidade da arte” (2012WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. Trad. Paulo Schiller. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., p. 5). Wilde também é um dos escritores apreciados por Rubén Darío e seus contemporâneos e será um dos perfis biografados pelo poeta nicaraguense em seu já mencionado livro Los raros.
  • 9
    Em tradução nossa: “Dependência, neste caso, não significa uma estrita observância do modelo ou uma forma servil de imitatio, mas sim referência a uma combinação, muitas vezes incongruente, de textos possíveis que servem de impulso literário ao escritor e permitem que ele se projete no vazio da escrita, ainda que essa escrita diga respeito diretamente ao eu”.

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Parecer Final dos Editores

Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    24 Abr 2022
  • Aceito
    30 Jun 2022
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