Acessibilidade / Reportar erro

Governança das Águas Subterrâneas e a Construção de Indicadores Jurídicos para os Estados Brasileiros

Resumo

A Constituição Federal de 1988 atribuiu aos Estados e ao Distrito Federal um papel de protagonismo na governança das águas subterrâneas, contudo, faltam estudos que avaliem a forma como esses entes conduzem o processo na perspectiva das políticas públicas nacionais. O objetivo deste artigo é identificar as obrigações jurídicas nacionais relacionadas à governança dessas águas e construir uma ferramenta que permita avaliar se elas foram incorporadas e aplicadas pelos Estados. A metodologia utilizada foi a análise documental e a realização de entrevistas. A legislação federal garantiu um standard de mecanismos para a gestão estadual, a partir dos quais foi possível estruturar o Sistema de Avaliação de Governança das Águas Subterrâneas (Sagas), composto por 48 indicadores principais e 25 subordinados. O Sagas é um esforço metodológico que visa criar um indicador jurídico que gere dados comparáveis e sistematizados sobre esse ambiente de governança estadual, permitindo identificar as fragilidades da gestão.

Palavras-chave:
Governança das águas subterrâneas; indicadores jurídicos; legislação federal; Estados brasileiros

Abstract

The 1988 Brazilian Federal Constitution granted a leading role in groundwater governance to the states and the Federal District. However, there are no studies evaluating how these entities conducted this process from a national public policy perspective. The present article aims to identify national legal obligations related to groundwater governance and develop a tool to determine whether the states have appropriately implemented them. Our methodology includes document analysis and interviews. The federal legislation provided standard mechanisms for state management, allowing for structuring a Groundwater Governance Assessment System (SAGAS: the acronym in Portuguese) that comprises 48 primary and 25 secondary indicators. SAGAS is a methodological effort to create a legal indicator to generate comparable and systematized data on states’ environment of governance to help identify management weaknesses.

Keywords:
Groundwater governance; legal indicators; federal legislation; Brazilian states

Resumen

La Constitución Federal de 1988 asignó a los Estados y al Distrito Federal un rol protagónico en la gobernanza del agua subterránea, sin embargo, faltan estudios que evalúen como estas entidades conducen ese proceso desde la perspectiva de las políticas federales. Este artículo pretende identificar las obligaciones jurídicas federales relacionadas con la gobernanza de estas aguas y construir una herramienta que permita evaluar si han sido incorporadas y aplicadas por los Estados. La metodología utilizada fue el análisis de documentos y entrevistas. La legislación federal garantizó un estándar de mecanismos de gestión estatal, a partir de los cuales se estructuro el Sistema de Evaluación de la Gobernanza de Aguas Subterráneas (SAGAS), compuesto por 48 indicadores principales y 25 subordinados. SAGAS es un esfuerzo metodológico que idealiza un indicador jurídico que genere datos comparables y sistematizados sobre el ambiente de la gobernanza en los Estados, permitiendo identificar las debilidades de la gestión.

Palabras-clave:
Gobernanza del agua subterránea; indicadores jurídicos; legislación federal; Estados brasileños

Introdução

As águas subterrâneas são fundamentais à segurança hídrica nacional e aos ecossistemas. Apesar disso, faltam estudos que avaliem se elas foram, realmente, inseridas nas políticas públicas e, em caso positivo, a forma como isso ocorreu (FERNANDES, 2019FERNANDES, L. C. S. Panorama do arcabouço legal das águas subterrâneas do Brasil. Revista de Direito Ambiental, v. 94, 2019, pp. 339-378.). No Brasil, a Constituição Federal de 1988 (CF/88) garantiu aos Estados o domínio das águas subterrâneas (art. 26, I), além de lhes atribuir as competências concorrente (art. 24), residual (art. 25, § 1º), suplementar (art. 24, § 2º) e comum (art. 23, VI) (FERNANDES, 2019; VILLAR; GRANZIERA, 2020VILLAR, P. C.; GRANZIERA, M. L. M. Curso de Direito de Águas à luz da governança. Brasília: Agência Nacional de Águas, 2020.).

Por conta desses atributos, os Estados e o Distrito Federal são os principais responsáveis pela gestão das águas subterrâneas, mesmo quando elas ultrapassam os limites estaduais ou as fronteiras nacionais1 1 - Não se pretende, aqui, discutir a competência em matéria de águas subterrâneas, tema já abordado por diversos autores (CAMARGO; RIBEIRO, 2009; FERNANDES, 2019; VILLAR; GRANZIERA, 2020). . Essa gestão deve observar as normas federais, pois a União detém competência privativa para legislar sobre o Direito de Águas (art. 22, IV, da CF/88) (FERNANDES, 2019FERNANDES, L. C. S. Panorama do arcabouço legal das águas subterrâneas do Brasil. Revista de Direito Ambiental, v. 94, 2019, pp. 339-378.; VILLAR; GRANZIERA, 2020VILLAR, P. C.; GRANZIERA, M. L. M. Curso de Direito de Águas à luz da governança. Brasília: Agência Nacional de Águas, 2020.). Além disso, os Estados deveriam buscar formas de incorporar os municípios, os quais detêm a competência para promover o uso do solo e o ordenamento territorial (art. 30, VIII, da CF/88) (SOUZA, 2012SOUZA, L. C. O município como partícipe na proteção das águas subterrâneas no Brasil. Boletín Geológico y Minero, v. 123, 2012, pp. 377-388.).

Os Estados e o Distrito Federal são os responsáveis por estabelecer a infraestrutura institucional dos Sistemas Estaduais de Gerenciamento de Recursos Hídricos, bem como as políticas estaduais para os seus recursos hídricos, além de conduzir a implantação dos instrumentos de gestão hídrica (FERNANDES, 2019FERNANDES, L. C. S. Panorama do arcabouço legal das águas subterrâneas do Brasil. Revista de Direito Ambiental, v. 94, 2019, pp. 339-378.). Apesar disso, faltam estudos que comprovem a presença de um ambiente favorável à governança dessas águas no âmbito estadual (CONICELLI; HIRATA, 2017CONICELLI, B. P.; HIRATA, R. Novos paradigmas na gestão das águas subterrâneas. In: XIX Congresso Brasileiro de Águas Subterrâneas. 2016. Anais... Campinas, SP, 2017.; OSPINA, 2018OSPINA, D. A. C. Indicadores para a integração da gestão das águas subterrâneas e o planejamento de uso e ocupação do solo. 2018. 186 f. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de São Carlos, campus São Carlos. São Carlos, 2018.; FERNANDES, 2019).

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE (2018) aponta a necessidade de melhorar a governança das águas no Brasil, que é marcada por diversas lacunas. Esse estudo destaca a falta de coordenação entre Estados e a União, a limitação do quadro institucional e da aplicação dos instrumentos de gestão, porém não entra no detalhamento de como isso ocorre nos Estados e muito menos em relação às águas subterrâneas.

Construir um instrumento para avaliar a governança dos recursos hídricos é um desafio diante da dificuldade de defini-la, bem como determinar as suas características, prioridades e metas (WOODHOUSE; MULLER, 2017WOODHOUSE, P.; MULLER, M. Water Governance - An historical perspective on current debates. World Development, v. 92, abr. 2017, pp. 225-241.). As particularidades das águas subterrâneas tornam essa tarefa mais difícil ante a sua invisibilidade social e o predomínio das abordagens das Ciências da Terra e da Engenharia (ZAGONARI, 2010ZAGONARI, F. Sustainable, just, equal and optimal Groundwater Management Strategies to Cope with Climate Change: insights from Brazil. Water Resources Management, v. 24, n. 13, 2010, pp. 3731-3756. doi:10.1007/s11269-010-9630-z
https://doi.org/10.1007/s11269-010-9630-...
). A construção de indicadores ou as análises dessas águas centraram-se em dados hidrogeológicos, tais como: qualidade da água e presença de contaminantes; quantidade e taxas de uso, de produtividade de poços ou de recarga; e vulnerabilidade dos aquíferos ou sua interação com os ecossistemas (VRBA; LIPPONEN, 2007VRBA, J.; LIPPONEN, A. Groundwater Resources Sustainability Indicators. IHP VI Series on Groundwater. Paris: Unesco, n. 14, 2007.; HIRATA; SUHOGUSOFF; FERNANDES, 2007HIRATA, R.; SUHOGUSOFF, A.; FERNANDES, A. Groundwater resources in the State of São Paulo (Brazil). An. Acad. Bras. Cienc. Rio de Janeiro, v. 79, n. 1, 2007, pp. 141-152.; PEREZ et al., 2015PEREZ, M. et al. Sustainability indicators of groundwater resources in the central area of Santa Fe Province, Argentina. Environ. Earth Sci, v. 73, 2015, pp. 2671-2682.; KORBEL; HOSE, 2017KORBEL, K. L.; HOSE, G. C. The weighted groundwater health index: improving the monitoring and management of groundwater resources. Ecological Indicators, v. 75, 2017, pp. 164-181.). Tais indicadores priorizaram a avaliação da situação do aquífero e não do ambiente político, institucional ou jurídico, responsável por sua governança. Excluídos os estudos provenientes do campo das Ciências da Terra e Engenharias, restaram poucas pesquisas sobre a forma de operacionalização desse ambiente nos Estados brasileiros, pois a literatura preferiu explorar os aspectos transfronteiriços da governança, com destaque ao Aquífero Guarani (SANTOS; RIBEIRO, 2016SANTOS, C. L. S.; RIBEIRO, W. C. Sistema Aquífero Guarani em bases eletrônicas de artigos científicos. Ar@cne. Barcelona, v. 208, 2016, pp. 1-30.).

Bohn, Goetten e Primo (2014BOHN, N.; GOETTEN, W. J.; PRIMO, A. Governança da água subterrânea no Estado do Rio Grande do Sul. REGA. Porto Alegre, v. 11, n. 1, 2014, pp. 33-43.), Goetten (2015) e Ramos (2017RAMOS, C. A. Avaliação da governança da água subterrânea nos Estados de Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais. 193 f. Dissertação (Mestrado em Engenharia Ambiental) - Engenharia Ambiental, Fundação Universidade Regional de Blumenau. Blumenau, SC, 2017.) realizaram uma avaliação preliminar desse ambiente de governança nos Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás, com base em um checklist proposto por Foster et al. (2009). Já Fernandes e Oliveira (2018aFERNANDES, L. C. S.; OLIVEIRA, E. (Orgs). Coletânea de Legislação das Águas Subterrâneas do Brasil - Região Sudeste. São Paulo: IAS, v. 1, 2018a.bcd) fizeram uma coletânea da legislação das águas subterrâneas das regiões Sudeste, Norte, Sul e Centro-Oeste do Brasil. Por sua vez, Fernandes (2019) publicou um artigo com um panorama sobre as normas estaduais, enquanto Ospina (2018OSPINA, D. A. C. Indicadores para a integração da gestão das águas subterrâneas e o planejamento de uso e ocupação do solo. 2018. 186 f. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de São Carlos, campus São Carlos. São Carlos, 2018.) desenvolveu um conjunto de princípios e descritores para fundamentar indicadores que permitam avaliar o processo de gestão local de águas subterrâneas.

Diante dessa constatação surgiram as seguintes perguntas: a) como avaliar a governança estadual das águas subterrâneas diante da falta de referências sobre a situação estadual? e b) quais critérios deveriam ser contemplados para avaliar de forma objetiva e comparável esse ambiente institucional, político e jurídico? A partir daí, os autores estabeleceram a hipótese de que um ambiente favorável à governança estadual das águas subterrâneas deveria, pelo menos, incorporar e aplicar as obrigações previstas na legislação federal.

Nessa perspectiva, o objetivo deste artigo é identificar as obrigações jurídicas federais relacionadas à governança dessas águas e construir uma ferramenta que avalie se tais obrigações foram devidamente incorporadas e aplicadas pelos Estados. O uso do Direito como parâmetro de construção de indicadores se justifica na medida em que estabelece a “estrutura, limites, regras e processos em que se dá a ação governamental”, e assume um papel-chave na governança das águas, pois regulamenta a conduta do poder público, da sociedade e dos agentes privados (COSENS et al., 2017COSENS B. A. et al. The role of law in adaptive governance. Ecol. Soc. Wolfville, v. 22, n. 1, 2017, pp. 1-30., p. 1). A metodologia utilizada foi a análise documental da literatura e da legislação federal, bem como a realização de entrevistas semiestruturadas com especialistas. O artigo estrutura-se em quatro partes: a primeira contextualiza a discussão sobre a governança das águas subterrâneas e o papel das normas; a segunda justifica a criação de indicadores jurídicos para avaliar esse ambiente de governança; a terceira apresenta a ferramenta denominada Sistema de Avaliação da Governança das Águas Subterrâneas (Sagas); e, por fim, tem-se as considerações finais.

A Governança das Águas Subterrâneas e o papel do Direito

A discussão sobre a governança das águas é marcada por diversos conceitos (WOODHOUSE; MULLER, 2017WOODHOUSE, P.; MULLER, M. Water Governance - An historical perspective on current debates. World Development, v. 92, abr. 2017, pp. 225-241.; HAVEKES et al., 2016HAVEKES, H.; HOFSTRA, M.; KERK, A.; TEEUWEN, V. D.; CLEEF, R. V.; OOSTERLOO, K. Building blocks for good water governance. The Hague: Water Governance Center, 2016.; LAUTZE et al., 2011LAUTZE, J. et al. Putting the cart before the horse: water governance and IWRM. Natural Resources Forum, v. 35, n. 1, 2011, pp. 1-8.) e abordagens, tais como: governança adaptativa, capacidade adaptativa, aprendizagem social, gestão integrada de recursos hídricos; gestão dos recursos naturais de base comunitária, governança multinível, governança policêntrica, governança triangular, nexo água-alimento-energia, governança efetiva, entre outros (RIBEIRO; JOHNSSON, 2018RIBEIRO, N. B.; JOHNSSON, R. M. F. Discussions on water governance: patterns and common paths. Ambient. Soc. São Paulo, v. 21, 2018, e01252.). Não há consenso a respeito do conceito de governança das águas. De forma geral, a expressão abarca a ideia dos processos, instituições e atores envolvidos na tomada de decisão relacionada ao aproveitamento e uso dos recursos hídricos (LAUTZE et al., 2011). Para fins deste estudo, a governança das águas subterrâneas é entendida como “a estrutura composta pelas leis, regulamentos e costumes relacionados à sua gestão, bem como os processos de envolvimento do setor público, do setor privado e da sociedade civil na gestão.” (MEGDAL et al., 2015MEGDAL, S. B.; GERLAK, A.; VARADY, R.; HUANG, L. Groundwater governance in the United States: common priorities and challenges. Groundwater 53, 2015, pp. 677-684., p. 678).

A literatura ressalta a importância da governança conjunta das águas (KORBEL; HOSE, 2017KORBEL, K. L.; HOSE, G. C. The weighted groundwater health index: improving the monitoring and management of groundwater resources. Ecological Indicators, v. 75, 2017, pp. 164-181.; MOLLE; LÓPEZ-GUNN; VAN STEENBERGEN, 2018MOLLE, F.; LÓPEZ-GUNN, E.; VAN STEENBERGEN, F. The local and national politics of groundwater overexploitation. Water Alternatives, v. 11, n. 3, 2018, pp. 445-457.). Contudo, as políticas públicas não deram a devida atenção às águas subterrâneas, o que ficou conhecido na literatura como “hidroesquizofrenia hídrica” (JARVIS et al., 2005JARVIS, T. W. et al. International borders, groundwater flow and hydroschizophrenia. Groundwater, v. 43, n. 5, 2005, pp. 764-770.). Esse fenômeno se justifica em razão dos seguintes fatores: a) invisibilidade social das águas subterrâneas; b) desconhecimento do funcionamento dos aquíferos; c) percepção cultural de que essas águas se vinculam ao direito de propriedade do solo; d) facilidade e conveniência de perfurar um poço; e) natureza de recurso comum (recursos não excludentes, mas rivais); f) dificuldades de fiscalização; e g) falta de pressão popular para gerir essas águas (JARVIS et al., 2005; MADANI; DINAR, 2012MADANI, K.; DINAR, A. Non-cooperative institutions for sustainable common pool resource management: application to groundwater. Ecological Economics, v. 74, 2012, pp. 34-45.; VILLAR, 2016VILLAR, P. C. Groundwater and the right to water in a context of crisis. Ambient. soc. [online], v. 19, n. 1, 2016, pp. 85-102.). A ideia de “hidroesquizofrenia” deveria ser ampliada, pois ela não se restringe apenas ao fato de priorizar as águas superficiais em detrimento das águas subterrâneas. A gestão enfrenta dificuldades em incorporar outros elementos que compõe o ciclo hidrológico, como por exemplo as águas meteóricas, as águas atmosféricas e as florestas geradoras de umidade.

Dentro dessa perspectiva, a partir de 2005 percebeu-se um aumento da literatura que trata da governança das águas subterrâneas (MOLLE; LÓPEZ-GUNN; VAN STEENBERGEN, 2018MOLLE, F.; LÓPEZ-GUNN, E.; VAN STEENBERGEN, F. The local and national politics of groundwater overexploitation. Water Alternatives, v. 11, n. 3, 2018, pp. 445-457.). A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura - FAO (2016, p. 12) desdobrou essa governança em quatro componentes: a) quadro jurídico e regulamentar eficaz e articulado; b) conhecimento preciso e compartilhado dos sistemas aquíferos e a conscientização social; c) estrutura institucional caracterizada pela liderança, organizações sólidas e capacitadas, envolvimento permanente dos atores sociais e mecanismos de trabalho para coordenar as águas subterrâneas com outros setores; d) políticas, planos, finanças e estruturas de incentivo alinhadas com os objetivos da sociedade.

O Direito possui importância conceitual e operacional dentro da governança (GARBACCIO; PRIEUR; DENNY, 2018GARBACCIO, G. L.; PRIEUR, M.; DENNY, D. M. T. Revising environmental law through the paradigm of governance. Veredas do Direito. Belo Horizonte, v. 15, n. 31, jan./abr. 2018, pp. 11- 36.), sendo que as normas, regulamentos e costumes moldam a forma como essas águas são gerenciadas e utilizadas (MEGDAL et al., 2015MEGDAL, S. B.; GERLAK, A.; VARADY, R.; HUANG, L. Groundwater governance in the United States: common priorities and challenges. Groundwater 53, 2015, pp. 677-684.). Combinado com a ação política e social, o Direito se estrutura como um instrumento de compromisso e coordenação institucional com o objetivo de: a) garantir legitimidade, participação, moralidade, transparência e equidade da gestão; b) promover a equidade na distribuição dos benefícios e ônus referentes à gestão dos recursos hídricos; c) criar espaços de mediação de conflitos; d) estabelecer os estudos obrigatórios que vão fundamentar o processo decisório; e) estimular a participação e controle social das políticas públicas e do processo de tomada de decisão; f) incentivar comportamentos que visem à sustentabilidade; g) desencorajar condutas que degradam o ambiente ou promovam o uso irracional do recurso; h) coordenar as expectativas da sociedade em relação ao uso dos recursos hídricos e ambientais; i) delimitar os direitos e obrigações dos usuários e da sociedade em relação ao meio ambiente; e j) estabelecer as condições da responsabilidade ambiental e as sanções aplicáveis (WORLD BANK, 2017).

A forma como se estabelecem as leis, os regulamentos e os costumes reproduz “o resultado combinado de muitos pontos de vista, valores, sistemas de conhecimento, tipos de informação e lutas pelo poder” (COSENS et al., 2017COSENS B. A. et al. The role of law in adaptive governance. Ecol. Soc. Wolfville, v. 22, n. 1, 2017, pp. 1-30., p. 1). A construção e a aplicação das normas são reflexo de um processo contínuo de governança (GARBACCIO; PRIEUR; DENNY, 2018GARBACCIO, G. L.; PRIEUR, M.; DENNY, D. M. T. Revising environmental law through the paradigm of governance. Veredas do Direito. Belo Horizonte, v. 15, n. 31, jan./abr. 2018, pp. 11- 36.). A Figura 1 sintetiza os principais mecanismos destinados à proteção das águas subterrâneas, presentes na literatura internacional e diretamente relacionados à atividade jurídica. Esses instrumentos se dividem em: mecanismos para gestão das águas; mecanismos específicos para a gestão das águas subterrâneas; e mecanismos correlacionados (MOLLE; LÓPEZ-GUNN; VAN STEENBERGEN, 2018MOLLE, F.; LÓPEZ-GUNN, E.; VAN STEENBERGEN, F. The local and national politics of groundwater overexploitation. Water Alternatives, v. 11, n. 3, 2018, pp. 445-457.). A literatura e os gestores apontam que a ausência de leis e regulamentos é uma dificuldade, porém, o principal problema é a falta de sua implementação e cumprimento (MOLE; CLOSAS, 2019).

Figura 1
Mecanismos diretos e indiretos de gestão das águas subterrâneas

No Brasil, além da carência de informações sobre as águas subterrâneas e aquíferos (CONICELLI; HIRATA, 2017CONICELLI, B. P.; HIRATA, R. Novos paradigmas na gestão das águas subterrâneas. In: XIX Congresso Brasileiro de Águas Subterrâneas. 2016. Anais... Campinas, SP, 2017.), faltam estudos sobre a forma como o Direito de Águas incorporou tais mecanismos, principalmente os específicos para as águas subterrâneas, ou a maneira como os Estados os regulamentaram e implementaram. A relação dessas águas com o solo, ambiente e os setores usuários exige que a análise normativa vá além da política hídrica, incorporando outras políticas correlacionadas (VILLAR, 2016VILLAR, P. C. Groundwater and the right to water in a context of crisis. Ambient. soc. [online], v. 19, n. 1, 2016, pp. 85-102.).

A implementação e o cumprimento desse direito enfrenta diversos desafios, os quais ultrapassam a normatização: a) indisponibilidade dos meios para cumprir as normas (equipamentos, orçamento, pessoal, incentivos, treinamento, etc.); b) falta de aplicação das sanções em virtude de uma cultura de violação e fracasso do Estado em fiscalizar grandes áreas, com milhares de pontos dispersos de uso; c) fraude, suborno, corrupção e aplicação seletiva da lei; d) adulteração dos medidores; e) pressão política de usuários; e f) falta de vontade política motivada por interesses particulares, conflitos com outros entes administrativos, poderes consolidados e clientelismo político, problemas burocráticos e contradições intersetoriais; ou, ainda, g) o otimismo a respeito da disponibilidade e subestimação da demanda (MOLE; CLOSAS, 2019).

A Legislação Federal como base para a construção de um indicador de Governança Estadual de Águas Subterrâneas

As normas são um produto da civilização humana (BOBBIO, 1992BOBBIO, N. A era dos direitos. Tradução de Carlos N. Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992.). Nesse cenário, as regras jurídicas vão além do texto, pois representam uma manifestação social que busca controlar coercitivamente os comportamentos, de forma a atingir um objetivo (GARBACCIO; PRIEUR; DENNY, 2018GARBACCIO, G. L.; PRIEUR, M.; DENNY, D. M. T. Revising environmental law through the paradigm of governance. Veredas do Direito. Belo Horizonte, v. 15, n. 31, jan./abr. 2018, pp. 11- 36.). Sua forma, conteúdo, interpretação e aplicação revelam jogos de poder e lutas sociais (BOBBIO, 1992). Apesar de sua importância em influenciar o comportamento humano e as instituições, faltam iniciativas que avaliem a sua efetividade (MEKOUAR; PRIEUR, 2019MEKOUAR, M. A.; PRIEUR, M. Measuring the effectivity of environmental law through legal indicators in the context of francophone Africa. Revista de Direitos Difusos, v. 71, n. 1, 2019, pp. 9-37.).

Os relatórios governamentais não costumam apresentar indicadores legais que avaliem o alcance e a aplicabilidade das leis e seus regulamentos, restringindo-se a citá-los, sem discriminar as obrigações impostas ou o seu nível de aplicação. Essa lacuna faz com que os gestores e a opinião pública subestimem ou neguem o peso da lei e sua utilidade. A literatura reconhece esse problema e as dificuldades metodológicas para superá-lo (MEKOUAR; PRIEUR, 2019MEKOUAR, M. A.; PRIEUR, M. Measuring the effectivity of environmental law through legal indicators in the context of francophone Africa. Revista de Direitos Difusos, v. 71, n. 1, 2019, pp. 9-37.; PRIEUR, 2017).

Indicadores jurídicos, portanto, contribuiriam para avaliar a performance de determinados componentes de um sistema legal, analisando os seguintes aspectos das normas: a) existência; b) validade; c) entrada em vigor; d) invocabilidade; e) conhecimento sobre sua existência; f) sua substância; g) progresso ou retrocesso; h) precisão do seu conteúdo; i) controle administrativo; j) controle jurisdicional; l) previsão de sanções; e m) aplicação das sanções (PRIEUR, 2017PRIEUR, M. Elaboration d’outils de l’effectivité du droit de l’environnement: les indicateurs juridiques. Québec: Institut de la Francophonie pour le Développement Durable, 2017.).

A partir dessas análises seria possível: a) demonstrar o papel do Direito nas políticas públicas; b) fornecer informações sobre a aplicação da lei e fundamentar reformas; c) chamar a atenção das autoridades públicas e da sociedade a respeito das deficiências e retrocessos da lei; d) permitir que a sociedade e autoridades públicas estejam informados sobre a utilização do Direito como elemento de sucesso ou fracasso das políticas; e) dar ao público uma visão concreta sobre a aplicação desse direito; f) conduzir estudos que agreguem indicadores jurídicos e científicos de forma a avaliar as políticas públicas (PRIEUR, 2017PRIEUR, M. Elaboration d’outils de l’effectivité du droit de l’environnement: les indicateurs juridiques. Québec: Institut de la Francophonie pour le Développement Durable, 2017.; FAO 2016).

A criação de indicadores jurídicos para as águas subterrâneas colaboraria com a obtenção de informações gerais sobre a situação, tendências e características das políticas públicas estaduais sobre o tema. Alguns estudos internacionais (FOSTER et al., 2010FOSTER, S. et al. Groundwater Governance: conceptual framework for assessment of provisions and needs. GW-Mate Strategic Overview Series. World Bank, n. 1, 2010.; PIETERSEN et al., 2012PIETERSEN, K. et al. Groundwater governance in South Africa: a status assessment. Water SA. Pretoria, v. 38, n. 3, jan. 2012, pp. 453-459.; MUMMA et al., 2011MUMMA, A. et al. Kenya groundwater governance: case study. Water papers. Washington: World Bank, 2011.; GARDUÑO et al., 2011GARDUÑO, H. et al. India groundwater governance: case study. Water papers. Washington: World Bank, 2011.) e nacionais (BOHN; GOETTEN; PRIMO, 2014BOHN, N.; GOETTEN, W. J.; PRIMO, A. Governança da água subterrânea no Estado do Rio Grande do Sul. REGA. Porto Alegre, v. 11, n. 1, 2014, pp. 33-43.; GOETTEN, 2015; RAMOS, 2017RAMOS, C. A. Avaliação da governança da água subterrânea nos Estados de Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais. 193 f. Dissertação (Mestrado em Engenharia Ambiental) - Engenharia Ambiental, Fundação Universidade Regional de Blumenau. Blumenau, SC, 2017.) buscaram verificar se a lei incorpora aspectos considerados fundamentais para a gestão, tais como o licenciamento ambiental, os planos de bacia hidrográfica, outorga e cobrança pelo uso.

A criação de indicadores a partir da lei nacional brasileira e seus regulamentos (decretos e resoluções do Conselho Nacional de Recursos Hídricos - CNRH e do Conselho Nacional de Meio Ambiente - Conama) permitiria verificar o standard da governança federal, bem como os mecanismos ou estratégias de gestão disponibilizados aos Estados. Além disso, ao escolher o direito pátrio seria possível realizar uma análise focada em aspectos uniformes e dotados de normatividade aplicáveis aos Estados, cujo descumprimento enseja responsabilização.

Segundo Fernandes (2019FERNANDES, L. C. S. Panorama do arcabouço legal das águas subterrâneas do Brasil. Revista de Direito Ambiental, v. 94, 2019, pp. 339-378.), todas as Unidades da Federação possuem políticas de recursos hídricos, mas apenas 12 editaram leis específicas sobre águas subterrâneas: São Paulo, Minas Gerais, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Distrito Federal, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Alagoas, Pernambuco, Maranhão e Pará. A autora destaca a necessidade de regulamentar essas águas nos outros Estados. A identificação dessas normas estaduais gerais ou específicas representa um avanço no estado da arte do conhecimento. Porém, falta uma análise da forma como elas incluíram e aplicaram esses mecanismos obrigatórios de gestão.

A conformação do Sistema de Avaliação de Governança das Águas Subterrâneas (Sagas)

O primeiro passo para a criação de um indicador jurídico foi a análise da legislação hídrica federal. Além da CF/88 foram consultadas as seguintes leis e regulamentos: Lei 9.433/1997 (Política Nacional de Recursos Hídricos); Decreto nº 10.000/2019 (regulamenta o CNRH); Resoluções do CNRH nº 5/2000 (formação e funcionamento dos comitês de bacia); nº 15/2001 (Diretrizes gerais da gestão de águas subterrâneas); nº 22/2002 (Diretrizes para a inserção das águas subterrâneas nos planos de recursos hídricos); nº 76/2007 (Integração entre a extração dessas águas com as águas minerais, termais, gasosas, potáveis de mesa ou destinadas a fins balneários); nº 91/2008 (Enquadramento dos corpos de águas superficiais e subterrâneas); nº 92/2008 (Critérios e procedimentos gerais para a proteção e conservação das águas subterrâneas); nº 107/2010 (Rede Nacional de Monitoramento Integrado Qualitativo e Quantitativo de Águas Subterrâneas), nº 126/2011 (Diretrizes para o cadastro de usuários de recursos hídricos e integração das bases de dados; e nº 153/2013 (Critérios e diretrizes para a Recarga Artificial). Também foram utilizadas as Resoluções Conama nº 237/1997 (Licenciamento ambiental); nº 396/2008 (Enquadramento das águas subterrâneas) e nº 420/2009 (Critérios e valores orientadores de qualidade do solo e gerenciamento de áreas contaminadas)2 2 - O uso das Resoluções do CNRH se fundamenta na prerrogativa legal de estabelecer diretrizes complementares à implementação da Lei nº 9.433/1997 e de seus instrumentos (art. 35), já as do Conama no art. 6º, II, § 1º e 8º, VII, da Lei nº 6.938/1981 e no art. 10 da Lei nº 9.433/1997. .

Como a gestão das águas subterrâneas está diretamente vinculada ao uso do solo, do ambiente e das políticas que regulam a atividade dos usuários hídricos, foram incorporados os seguintes diplomas legais na sua análise: Lei nº 4.504/1964 (Estatuto da Terra), Lei Complementar (LC) nº 140/2011; Lei nº 6.938/1981 (Política Ambiental); Lei nº 8.171/1991 (Política Agrícola), Lei nº 11.445/2007 (Política de Saneamento), Lei nº 12.187/2009 (Política de Mudança do Clima), Lei nº 12.305/2010 (Política de Resíduos Sólidos), Lei nº 12.527/2011 (Acesso à Informação), Lei nº 12.651/2012 (novo Código Florestal), Lei nº 12.787/2013 (Política de Irrigação), e o Decreto nº 4.297/2002 (regulamenta o Zoneamento Econômico Ecológico - ZEE).

Apesar dessas normas terem sido concebidas como estruturas setorizadas, marcadas por princípios, objetivos, arranjos institucionais e instrumentos de gestão específicos, sua implementação deveria ocorrer de forma integrada. Elas atribuem competências aos três entes da Federação, o que exige clareza sobre a responsabilidade atribuída a cada ente e a necessidade de cooperação institucional para a sua implementação. O foco do estudo são as obrigações estaduais, por isso não se incluíram as de competência do município, como as relacionadas ao uso e ocupação do solo (Lei nº 10.257/2001) ou vinculadas à prestação do serviço de saneamento (Lei nº 11.445/2007). As obrigações relacionadas ao desenvolvimento de atividades poluidoras foram contempladas no eixo ambiental.

A partir das obrigações identificadas foram estabelecidos os critérios do Sistema de Avaliação de Governança das Águas Subterrâneas (Sagas), que utilizou a estrutura visual do checklist desenvolvido por Foster et al. (2010FOSTER, S. et al. Groundwater Governance: conceptual framework for assessment of provisions and needs. GW-Mate Strategic Overview Series. World Bank, n. 1, 2010.), o qual divide a governança em quatro dimensões: técnica; operacional, institucional e coordenação político-interinstitucional. Os critérios do Sagas, porém, se fundamentam exclusivamente em obrigações jurídicas presentes na lei federal e em seus regulamentos (decretos ou resoluções do CNRH ou Conama). A literatura possui distintas estratégias de gestão, as quais não têm o caráter geral, abstrato e vinculante da norma jurídica (PRIEUR, 2017PRIEUR, M. Elaboration d’outils de l’effectivité du droit de l’environnement: les indicateurs juridiques. Québec: Institut de la Francophonie pour le Développement Durable, 2017.). Em razão dessa opção metodológica, todas as obrigações foram consideradas equivalentes, pois necessitam ser cumpridas.

O Sagas é dividido em colunas (vide Tabela 1), sendo que na primeira constam quatro dimensões; na segunda e terceira colunas estão discriminadas a numeração e os respectivos indicadores jurídicos; da quarta à sétima coluna se encontram as variáveis de aplicação e suas respectivas pontuações; na oitava consta a fundamentação legal. Neste caso, o tópico da fundamentação legal foi utilizado para justificar os critérios federais, entretanto, quando aplicado aos Estados, esse campo deve embasar a resposta adotada por quem aplicou o checklist.

Existem dois conjuntos de respostas nas variáveis de aplicação, aos quais é possível atribuir nota única que varia de 0 a 3. A pontuação é feita da seguinte forma: nota “zero” quando o critério é classificado como “Inexiste” (IN) ou “Sem Previsão Legal” (SP) na legislação estadual; “1” (um) ponto se existir “Previsão Legal” (PL); “2” (dois) pontos no caso de “Regulamentação Legal” (RL)3 3 - O critério “RL” é adotado nos casos em que a regulamentação é o ponto central para permitir a implementação do mecanismo de gestão. ou “Em Elaboração” (EE)4 4 - O critério “EE” é utilizado nos casos de mecanismos com processo de implantação complexo que depende de estudos técnicos, participação de atores ou cuja operacionalização demande a espacialização em um território. ; e “3” (três) pontos se “Implantado” (IP). Nos critérios subordinados, a avaliação se dá pela atribuição de uma resposta negativa (Não) ou afirmativa (Sim). Atribui-se “0” (zero) às respostas negativas ou “1” (um) para respostas afirmativas. Se o critério principal for “IN” ou “SP”, atribui-se resposta negativa ao subordinado; contudo, se o principal for classificado como “EE”, mas existirem casos práticos já implantados, é possível usá-los como parâmetro para verificar a resposta do critério subordinado.

No total, são 48 indicadores principais e 25 indicadores subordinados, os quais totalizam uma pontuação máxima de 169 pontos, dividida em 144 pontos para os principais e 25 para os subordinados, conforme demonstra a Tabela 1. Os indicadores principais correspondem às obrigações-chave da legislação, enquanto os subordinados remetem a aspectos ou procedimentos que deveriam ser observados no cumprimento do principal. Os indicadores subordinados mantêm o número do principal, acrescido de uma letra, seguindo a ordem alfabética.

A estrutura do Sagas é dividida em quatro dimensões, a saber: a) Técnica - com 11 indicadores principais; b) Operacional-Legal - com 13 indicadores principais (39 pontos) e 3 subordinados (três pontos) c); Institucional-Legal - com 7 indicadores principais (21 pontos) e 8 subordinados (oito pontos); Coordenação Político-Institucional - com 17 indicadores principais (51 pontos) e 14 subordinados (14 pontos), os quais se subdividem em três eixos: meio ambiente (oito principais e três subordinados); saneamento (três principais e sete subordinados); e agricultura (seis principais e quatro subordinados).

Ainda que se considere apenas a legislação de recursos hídricos percebe-se um certo grau de autonomia entre as dimensões técnica, operacional-legal e institucional-legal. Por exemplo, pode-se afirmar que a existência de estudos não garante ou condiciona a operacionalização dos instrumentos contidos na dimensão operacional-legal. Paralelamente, a operacionalização dos instrumentos pode ocorrer sem a existência dos estudos previstos na dimensão técnica. Esse é o caso da outorga de direito de uso das águas subterrâneas, concedida em bacias sem estudos aprofundados sobre o tema.

Tabela 1
Proposta de um Sistema de Avaliação da Governança das Águas Subterrâneas com base na Legislação

Nas discussões sobre a aplicação do Sagas, com especialistas, percebeu-se que a pontuação de alguns critérios poderia gerar dúvidas, exigindo a elaboração do Quadro 1, que traz instruções específicas.

Quadro 1
Instruções específicas de aplicação dos critérios

A atribuição de uma pontuação inferior a “3” (três) evidencia a não conformidade legal, o que demanda ações corretivas ou eventual reflexão sobre a sua adequação para a governança. A pontuação máxima demonstra que o indicador foi aplicado, porém, não é o seu objetivo determinar o grau de eficácia ou eficiência. Essa avaliação só é possível no âmbito de pesquisas qualitativas que ultrapassem os aspectos jurídicos do indicador (PRIEUR, 2017PRIEUR, M. Elaboration d’outils de l’effectivité du droit de l’environnement: les indicateurs juridiques. Québec: Institut de la Francophonie pour le Développement Durable, 2017.).

Para facilitar a visualização dos resultados optou-se por criar categorias de classificação em relação às pontuações obtidas no contexto global e nas dimensões. Esse tipo de estratégia é utilizado nos indicadores técnicos com o fim de avaliar a vulnerabilidade de aquíferos a cargas contaminantes, como é caso dos métodos Groundwater Overall Depth (GOD) e Pollutant Origin, Surcharge (POSH) (FOSTER; HIRATA, 1988FOSTER, S.; HIRATA, R. Groundwater pollution risk assessment: a methodology using available data. 2. ed. LIMA: Pan American Sanitary Engineering and Environmental Science Center (CEPIS/PAHO/WHO). 91p, 1988.; FOSTER et al., 2002).

Por se tratar de uma pesquisa qualitativa, que avalia o panorama geral da situação dos critérios, sem investigar a qualidade de sua implementação, optou-se por criar apenas três intervalos de classificação da governança estadual, baseados em quartis. Se os resultados dos Estados estiverem localizados no quartil superior, com uma pontuação total ou por dimensão maior ou igual a 75%, entende-se que há bom desempenho; se a pontuação estiver no quartil da mediana superior, isto é, for maior ou igual a 50%, o desempenho é moderado; caso a pontuação esteja no quartil da mediana inferior ou no primeiro quartil, isto é, se menor do que 50%, o desempenho será baixo. Espera-se um desempenho de distribuição com tendência central (maior ou igual a 50%), pois os critérios do Sagas decorrem de obrigações impostas aos Estados por políticas instituídas nas décadas de 1990 ou 2000.

Essa classificação deve ser aplicada à pontuação global e específica de cada dimensão e eixo. A aplicação específica nas dimensões é importante pois revela os pontos mais frágeis da governança. Quando a pontuação global ou das dimensões for igual ou superior a 75%, percebe-se que há um esforço consistente em construir um ambiente propício à governança das águas subterrâneas, respeitando as diretrizes federais. Não há garantias que ações sejam suficientes, porém pode-se afirmar que há vontade política de atingi-la, além de instrumentos e instituições capazes de operacionalizá-la, ainda que sejam necessários ajustes.

Por outro lado, se a pontuação for inferior a 75%, mas igual ou superior a 50%, entende-se que o Estado tem desempenho mediano. O seu comprometimento com a governança é questionável, mas há um processo de operacionalização das instituições e dos instrumentos necessários para promover a governança, embora aquém do esperado. Se a pontuação for inferior a 50%, considera-se que o Estado tem baixo desempenho, com graves deficiências na implementação das obrigações legais, gerando um ambiente de governança inadequado para as águas.

Considerações finais

A legislação federal brasileira estruturou uma ampla proposta de gestão estadual para águas subterrâneas, dotada de mecanismos diretos ou indiretos, os quais são reconhecidos internacionalmente como benéficos aos recursos hídricos. Se estabeleceu um standard básico para a gestão dos aquíferos, com diretrizes sobre os estudos a serem produzidos, os instrumentos a serem aplicados e o formato e a competência das instituições e dos entes federativos.

Nesse arcabouço jurídico, os Estados são os responsáveis por incorporar o pacto de governança federal e promover o controle e a gestão das águas subterrâneas. A autonomia estadual vinculada às normas de direito de águas federais restringe a adoção de medidas que proporcionem aos usuários um papel mais protagonista, conforme defende parte da literatura (vide Figura 1), a exemplo dos mecanismos de gestão comunitária ou de usuários de poços ou, ainda, da distribuição de quotas de água entre si. Outra constatação é que apesar da literatura indicar a falta de estudos técnicos sobre águas subterrâneas, a legislação nacional traz aos Estados a obrigatoriedade de sua realização.

O Sagas constitui um esforço no sentido de gerar um indicador jurídico que levante dados comparáveis e sistematizados do ambiente de governança em relação à sua estrutura jurídica e nível de implementação. A sistematização de 48 indicadores principais e 25 subordinados demonstra a existência de um robusto quadro normativo federal, cuja operacionalização dependerá dos Estados. A restrita literatura sobre sua atuação indica fragilidades relacionadas à existência e aplicação da lei, porém, não se tem ideia da dimensão do problema, por exemplo, quais dessas obrigações existentes foram previstas, reguladas e implementadas pelos Estados.

No processo de construção do Sagas foi possível identificar as principais obrigações jurídicas que compõem o Pacto Nacional de Governança das Águas Subterrâneas (vide Tabela 1). Sua aplicação permitiria verificar o nível de recepção e implementação dessas obrigações, o que contribuiria para verificar as fragilidades de gestão e estabelecer metas direcionadas às áreas sensíveis, seja diretamente relacionada às políticas hídricas ou às áreas correlacionadas (saneamento, agricultura e meio ambiente). Ao sinalizar tais fragilidades incentiva-se a transparência da gestão e o controle social por parte da sociedade civil.

Agradecimentos

Este trabalho foi realizado com o apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq (Processo nº 406314/2016-0) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP (Processo nº 2020/15434-0).

Aos pareceristas que avaliaram esse artigo por suas contribuições e ao corpo editorial da revista pelo apoio no processo de submissão e avaliação.

References

  • BOBBIO, N. A era dos direitos. Tradução de Carlos N. Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
  • BOHN, N.; GOETTEN, W. J.; PRIMO, A. Governança da água subterrânea no Estado do Rio Grande do Sul. REGA. Porto Alegre, v. 11, n. 1, 2014, pp. 33-43.
  • CAMARGO, E.; RIBEIRO, E. A proteção jurídica das águas subterrâneas no Brasil. In: RIBEIRO, W. C. (Org.). Governança da Água no Brasil: uma visão interdisciplinar. São Paulo: Annablume/Fapesp/CNPq, 2009.
  • CONICELLI, B. P.; HIRATA, R. Novos paradigmas na gestão das águas subterrâneas. In: XIX Congresso Brasileiro de Águas Subterrâneas. 2016. Anais... Campinas, SP, 2017.
  • COSENS B. A. et al. The role of law in adaptive governance. Ecol. Soc. Wolfville, v. 22, n. 1, 2017, pp. 1-30.
  • FAO. Food and Agriculture Organization of the United Nations. Final evaluation of the Groundwater Governance: a global framework for action. Roma, 2016.
  • FERNANDES, L. C. S. Panorama do arcabouço legal das águas subterrâneas do Brasil. Revista de Direito Ambiental, v. 94, 2019, pp. 339-378.
  • FERNANDES, L. C. S.; OLIVEIRA, E. (Orgs). Coletânea de Legislação das Águas Subterrâneas do Brasil - Região Sudeste. São Paulo: IAS, v. 1, 2018a.
  • FERNANDES, L. C. S.; OLIVEIRA, E. (Orgs). Coletânea de Legislação das Águas Subterrâneas do Brasil. Região Norte. São Paulo: IAS, v. 5, 2018b.
  • FERNANDES, L. C. S.; OLIVEIRA, E. (Orgs). Coletânea de Legislação das Águas Subterrâneas do Brasil. Região Sul. São Paulo: IAS, v. 2, 2018c.
  • FERNANDES, L. C. S.; OLIVEIRA, E. (Orgs). Coletânea de Legislação das Águas Subterrâneas do Brasil. Região Centro-Oeste. São Paulo: IAS, v. 3, 2018d.
  • FOSTER, S.; HIRATA, R. Groundwater pollution risk assessment: a methodology using available data. 2. ed. LIMA: Pan American Sanitary Engineering and Environmental Science Center (CEPIS/PAHO/WHO). 91p, 1988.
  • FOSTER, S. et al. Groundwater Governance: conceptual framework for assessment of provisions and needs. GW-Mate Strategic Overview Series. World Bank, n. 1, 2010.
  • FOSTER, S. et al. Groundwater Quality Protection: a guide for water utilities, municipal authorities and environmental agencies. Washington: The International Bank for Reconstruction and Development/The World Bank, 2002.
  • GARBACCIO, G. L.; PRIEUR, M.; DENNY, D. M. T. Revising environmental law through the paradigm of governance. Veredas do Direito. Belo Horizonte, v. 15, n. 31, jan./abr. 2018, pp. 11- 36.
  • GARDUÑO, H. et al. India groundwater governance: case study. Water papers. Washington: World Bank, 2011.
  • GOETTEN, W. J. Avaliação da governança da água subterrânea nos Estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. 317 f. Dissertação (Mestrado em Engenharia Ambiental) - Engenharia Ambiental, Fundação Universidade Regional de Blumenau. Blumenau, SC, 2015.
  • HAVEKES, H.; HOFSTRA, M.; KERK, A.; TEEUWEN, V. D.; CLEEF, R. V.; OOSTERLOO, K. Building blocks for good water governance. The Hague: Water Governance Center, 2016.
  • HIRATA, R.; SUHOGUSOFF, A.; FERNANDES, A. Groundwater resources in the State of São Paulo (Brazil). An. Acad. Bras. Cienc. Rio de Janeiro, v. 79, n. 1, 2007, pp. 141-152.
  • JARVIS, T. W. et al. International borders, groundwater flow and hydroschizophrenia. Groundwater, v. 43, n. 5, 2005, pp. 764-770.
  • KORBEL, K. L.; HOSE, G. C. The weighted groundwater health index: improving the monitoring and management of groundwater resources. Ecological Indicators, v. 75, 2017, pp. 164-181.
  • LAUTZE, J. et al. Putting the cart before the horse: water governance and IWRM. Natural Resources Forum, v. 35, n. 1, 2011, pp. 1-8.
  • MADANI, K.; DINAR, A. Non-cooperative institutions for sustainable common pool resource management: application to groundwater. Ecological Economics, v. 74, 2012, pp. 34-45.
  • MEGDAL, S. B.; GERLAK, A.; VARADY, R.; HUANG, L. Groundwater governance in the United States: common priorities and challenges. Groundwater 53, 2015, pp. 677-684.
  • MEKOUAR, M. A.; PRIEUR, M. Measuring the effectivity of environmental law through legal indicators in the context of francophone Africa. Revista de Direitos Difusos, v. 71, n. 1, 2019, pp. 9-37.
  • MOLLE, F.; CLOSAS, A. Why is state‐centered groundwater governance largely ineffective? A review. Wiley Interdisciplinary Reviews: Water, 2019. doi:10.1002/wat2.1395.
    » https://doi.org/10.1002/wat2.1395
  • MOLLE, F.; LÓPEZ-GUNN, E.; VAN STEENBERGEN, F. The local and national politics of groundwater overexploitation. Water Alternatives, v. 11, n. 3, 2018, pp. 445-457.
  • MUMMA, A. et al. Kenya groundwater governance: case study. Water papers. Washington: World Bank, 2011.
  • OECD. Water Resources Governance in Brazil, OECD Studies on Water, OECD Publishing, Paris, 2015.
  • OSPINA, D. A. C. Indicadores para a integração da gestão das águas subterrâneas e o planejamento de uso e ocupação do solo. 2018. 186 f. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de São Carlos, campus São Carlos. São Carlos, 2018.
  • PEREZ, M. et al. Sustainability indicators of groundwater resources in the central area of Santa Fe Province, Argentina. Environ. Earth Sci, v. 73, 2015, pp. 2671-2682.
  • PIETERSEN, K. et al. Groundwater governance in South Africa: a status assessment. Water SA. Pretoria, v. 38, n. 3, jan. 2012, pp. 453-459.
  • PRIEUR, M. Elaboration d’outils de l’effectivité du droit de l’environnement: les indicateurs juridiques. Québec: Institut de la Francophonie pour le Développement Durable, 2017.
  • RAMOS, C. A. Avaliação da governança da água subterrânea nos Estados de Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais. 193 f. Dissertação (Mestrado em Engenharia Ambiental) - Engenharia Ambiental, Fundação Universidade Regional de Blumenau. Blumenau, SC, 2017.
  • RIBEIRO, N. B.; JOHNSSON, R. M. F. Discussions on water governance: patterns and common paths. Ambient. Soc. São Paulo, v. 21, 2018, e01252.
  • SANTOS, C. L. S.; RIBEIRO, W. C. Sistema Aquífero Guarani em bases eletrônicas de artigos científicos. Ar@cne. Barcelona, v. 208, 2016, pp. 1-30.
  • SOUZA, L. C. O município como partícipe na proteção das águas subterrâneas no Brasil. Boletín Geológico y Minero, v. 123, 2012, pp. 377-388.
  • VILLAR, P. C. Groundwater and the right to water in a context of crisis. Ambient. soc. [online], v. 19, n. 1, 2016, pp. 85-102.
  • VILLAR, P. C.; GRANZIERA, M. L. M. Curso de Direito de Águas à luz da governança. Brasília: Agência Nacional de Águas, 2020.
  • VRBA, J.; LIPPONEN, A. Groundwater Resources Sustainability Indicators. IHP VI Series on Groundwater. Paris: Unesco, n. 14, 2007.
  • WOODHOUSE, P.; MULLER, M. Water Governance - An historical perspective on current debates. World Development, v. 92, abr. 2017, pp. 225-241.
  • WORLD BANK. World Development Report 2017: Governance and the Law. Washington, DC: World Bank, 2017.
  • ZAGONARI, F. Sustainable, just, equal and optimal Groundwater Management Strategies to Cope with Climate Change: insights from Brazil. Water Resources Management, v. 24, n. 13, 2010, pp. 3731-3756. doi:10.1007/s11269-010-9630-z
    » https://doi.org/10.1007/s11269-010-9630-z
  • 1
    - Não se pretende, aqui, discutir a competência em matéria de águas subterrâneas, tema já abordado por diversos autores (CAMARGO; RIBEIRO, 2009; FERNANDES, 2019; VILLAR; GRANZIERA, 2020).
  • 2
    - O uso das Resoluções do CNRH se fundamenta na prerrogativa legal de estabelecer diretrizes complementares à implementação da Lei nº 9.433/1997 e de seus instrumentos (art. 35), já as do Conama no art. 6º, II, § 1º e 8º, VII, da Lei nº 6.938/1981 e no art. 10 da Lei nº 9.433/1997.
  • 3
    - O critério “RL” é adotado nos casos em que a regulamentação é o ponto central para permitir a implementação do mecanismo de gestão.
  • 4
    - O critério “EE” é utilizado nos casos de mecanismos com processo de implantação complexo que depende de estudos técnicos, participação de atores ou cuja operacionalização demande a espacialização em um território.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    13 Abr 2020
  • Aceito
    13 Nov 2021
ANPPAS - Revista Ambiente e Sociedade Anppas / Revista Ambiente e Sociedade - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistaambienteesociedade@gmail.com