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Pagando pelo crime: fraudes no seguro DPVAT e seus impactos à sociedade

Resumo

O objetivo é avaliar o peso do pagamento de sinistros fraudulentos do seguro DPVAT pela seguradora Líder, consórcio de seguradoras privadas que administram o produto. Utilizando a Teoria da Credibilidade Atuarial em dados oficiais, analisou-se a discrepância das sinistralidades do DPVAT relativamente aos diferentes seguros privados de automóveis, proxies da formação ideal de prêmios, por possuírem melhores sistemas de controle e prevenção de fraudes. Os resultados apontaram diferenças significantes entre os valores. Adicionalmente, em dois cenários contrafactuais estimou-se: (i) qual seria o prêmio do DPVAT caso fossem expurgados os efeitos das fraudes, de modo a avaliar se a heterogeneidade verificada poderia ser explicada pelo volume de fraudes comprovadas; (ii) o potencial volume financeiro economizado pela sociedade caso as fraudes tivessem sido expurgadas desde 2006. É possível afirmar que não apenas a sinistralidade do produto teria sido reduzida, como também o preço repassado aos segurados. Finalmente, as estimativas apontam que a sociedade teria economizado mais de R$15 bilhões em 14 anos.

Palavras-chave:
seguro DPVAT; fraudes; índices de sinistralidade; teoria da credibilidade atuarial

Abstract

The goal of this paper is to assess the weight of fraudulent claim payments of DPVAT insurance by the insurer Líder, a consortium of private insurers who manage this product. Using the Actuarial Credibility Theory, and a official database, the discrepancy between the DPVAT claims ratio and the claims ratios of other private automobile insurance lines of business, proxies for the ideal premium formation for having better system of frauds detection and prevention. The results indicate significant differences among the values. Additionally, in two counterfactual scenarios, it was estimated: (i) what would be the value of the DPVAT premium in case the fraud effects were purged, aiming to analyze whether the verified heterogeneity could be explained by the volume of proven frauds; (ii) the financial volume that could potentially be saved by society in case the frauds were subtracted since 2006. It is possible to affirm that not only would the DPVAT’s claims ratio be reduced, but also the premiums paid by the insured. Finally, the estimates suggest that society could have saved over BRL 15 billion in 14 years.

Keywords:
DPVAT insurance; frauds; claims ratio; actuarial credibility theory

1. Introdução

O desvio de conduta e as questões éticas atreladas ao comportamento fazem parte da essência da humanidade, e fazem com que pessoas estejam mais ou menos suscetíveis a quebrar regras, infringir leis e cometer crimes. A literatura de Behavioral Ethics aponta tanto para fatores individuais como contextuais que influenciam comportamentos antiéticos (Treviño et al., 2006Treviño, L. K., Weaver, G. R., & Reynolds, S. J. (2006). Behavioral ethics in organizations: a review. Journal of Management, 32(6), 951-990. https://doi.org/10.1177/0149206306294258
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). Dentre os fatores comportamentais, os principais em tomadas de decisão envolvendo questões éticas são intenção, julgamento e conscientização, variáveis demográficas e comportamento ético (Craft, 2013Craft, J. L. (2013). A review of the empirical ethical decision-making literature: 2004-2011. Journal of Business Ethics, 117(2), 221-259. https://doi.org/10.1007/s10551-012-1518-9
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).

Podem existir diversas motivações para se cometer fraudes, mais especificamente fraudes leves - as quais não empregam métodos violentos -, entre elas pressão, oportunidade e racionalização (Gouvêa & Avanço, 2006Gouvêa, P. E., & Avanço, L. (2006). Ética e fraudes contábeis. Revista de Ciências Jurídicas, 7(1), 85-91. https://doi.org/10.17921/2448-2129.2006v7n1p%25p
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). Quando se trata da atividade seguradora, pode-se ligar essas questões aos conceitos de assimetria informacional e risco moral - este último sendo possivelmente o menos concreto dentre os diversos tipos de risco a que a entidade está sujeita, justamente por envolver decisões e comportamento humanos, não observáveis e imprevisíveis (Okura, 2013Okura, M. (2013). The relationship between moral hazard and insurance fraud. The Journal of Risk Finance, 14(2), 120-128. https://doi.org/10.1108/15265941311301161
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; Rowell & Connelly, 2012Rowell, D., & Connelly, L. B. (2012). A history of the term “Moral Hazard”. Journal of Risk and Insurance, 79(4), 1051-1075. https://doi.org/10.1111/j.1539-6975.2011.01448.x
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).

Toda e qualquer fraude é caracterizada pela quebra do pressuposto de boa-fé do contrato, mentira ou omissão deliberada dos fatos por parte dos agentes econômicos, tendo como objetivo o ganho financeiro à custa da outra parte (Contador, 2011Contador, C. (2011). A fraude no seguro: aspectos econômicos 1. Revista Brasileira de Risco e Seguro, 7(13), 87-104. https://www.rbrs.com.br/arquivos/rbrs_13_4.pdf
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). A fraude no seguro, da perspectiva do segurado, pode ser envolver seguros de propriedade, automóveis, vida, negócios e saúde, e pode ser realizada em vários níveis, desde a “fabricação da perda” até diversos níveis de exagero de sua magnitude (Boyer, 2007Boyer, M. M. (2007). Resistance (to fraud) is futile. The Journal of Risk and Insurance, 74(2), 461-492. https://doi.org/10.1111/j.1539-6975.2007.00221.x
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). As fraudes foram descritas como o segundo maior crime de colarinho branco dos EUA, atrás apenas da sonegação de impostos (Miyazaki, 2009Miyazaki, A. D. (2009). Perceived ethicality of insurance claim fraud: Do higher deductibles lead to lower ethical standards? Journal of Business Ethics, 87(4), 589-598. https://doi.org/10.1007/s10551-008-9960-4
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).

Apesar de em muitos desses casos haver ciência do ato ilícito também por parte da seguradora, as fraudes frequentemente não são denunciadas ou não são comprovadas, por diversos motivos (Macedo et al., 2021Macedo, A. M., Cardoso, C. V., Marques, J. S. Neto, & Cunha, C. A. da C. B. da. (2021). Car insurance fraud: The role of vehicle repair workshops. International Journal of Law, Crime and Justice, 65, 100456. https://doi.org/10.1016/j.ijlcj.2021.100456
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; Perez & Wing, 2019Perez, V., & Wing, C. (2019). Should we do more to police medicaid fraud? Evidence on the intended and unintended consequences of expanded enforcement. American Journal of Health Economics, 5(4), 481-508. https://doi.org/10.1162/ajhe_a_00130
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; Severino & Peng, 2021Severino, M. K., & Peng, Y. (2021). Machine learning algorithms for fraud prediction in property insurance: Empirical evidence using real-world microdata. Machine Learning with Applications, 5, 100074. https://doi.org/10.1016/j.mlwa.2021.100074
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). Ademais, a fraude gera prejuízos não apenas para a empresa, mas também para toda a sociedade, uma vez que encarece o produto de seguro para todos os mutuários, não sendo essa consequência exclusiva aos fraudadores (Tennyson & Salsas-Forn, 2002Tennyson, S., & Salsas-Forn, P. (2002). Claims auditing in automobile insurance: fraud detection and deterrence objectives. Journal of Risk and Insurance, 69(3), 289-308. https://doi.org/10.1111/1539-6975.00024
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). Outras consequências das fraudes incluem a decadência da qualidade dos produtos e serviços (Akerlof, 1970Akerlof, G. A. (1970). The market for “lemons”: quality uncertainty and the market mechanism. The Quarterly Journal of Economics, 84(3), 488-500. https://doi.org/10.2307/1879431
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).

Para exemplificar uma experiência brasileira, somente em 2018 foi registrado, segundo relatório divulgado pela CNSeg8 8 Quantificação da fraude no mercado de seguros brasileiro, SQF - Sistema de Quantificação de Fraudes, Relatório Completo, 2018 - https://www.editoraroncarati.com.br/v2/phocadownload/CNseg_quantificacao_da_fraude.pdf , o valor de R$5,13 bilhões em sinistros sob suspeita de fraude (15,6% em relação ao total de sinistros ocorridos), dos quais 14% (R$720 milhões) foram detectadas, investigadas e comprovadas. O relatório mostra que o seguro DPVAT - Danos Pessoais causados por Veículos Automotores de via Terrestre - apresentou a relação mais elevada de fraudes comprovadas por sinistros ocorridos entre os produtos analisados: 6,1% dos prêmios arrecadados com o produto, representando um valor de R$115,8 milhões em relação ao total de R$1,9 bilhão. Por essa razão, o DPVAT é o objeto de atenção deste trabalho.

Houve em 2019 grande discussão acerca de uma possível extinção do seguro DPVAT, que, apesar de não ter sido concretizada, gerou maior cobertura da mídia sobre o evento, levando maiores informações sobre o produto à população. É possível conjecturar explicações para a eventual descontinuidade do DPVAT: entre elas a grande incidência de fraudes, denúncias de corrupção, má gestão de recursos, e o monopólio da Seguradora Líder, administradora única do produto. Foi proposta a MP904/20199 9 Medida Provisória n° 904, de 2019 (Extinção do DPVAT e do DPEM) https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/139756 , que chegou a entrar em vigor, mas não foi votada a tempo, perdendo a validade no início do ano de 2020.

Juntamente a essa medida, foi avaliada a quebra de monopólio da seguradora10 10 Susep terá estudo sobre quebra de monopólio do DPVAT https://valor.globo.com/financas/noticia/2019/12/30/susep-tera-estudo-sobre-quebra-de-monopolio-do-dpvat.ghtml , e consequente abertura de mercado para a cobertura. A Seguradora Líder - gestora dos seguros DPVAT - não é, por definição, uma entidade seguradora comum, mas sim um consórcio composto por diversas companhias seguradoras. Apesar da alta incidência de fraudes, o relatório da CNSeg11 11 Quantificação da fraude no mercado de seguros brasileiro, SQF - Sistema de Quantificação de Fraudes, Relatório Completo, 2018 - https://www.editoraroncarati.com.br/v2/phocadownload/CNseg_quantificacao_da_fraude.pdf mostra que a Líder apresenta resultados positivos com o produto, sugerindo que pode haver certo desconhecimento da população sobre o direito à cobertura. A medida12 12 https://valor.globo.com/financas/noticia/2019/12/30/susep-tera-estudo-sobre-quebra-de-monopolio-do-dpvat.ghtml foi aprovada pelo Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP) e deveria ter sido apresentada pela SUSEP até agosto de 2020.

Há grande escassez de trabalhos quantitativos sobre o DPVAT. Em um dos raros casos, Duarte e Santos Júnior (2015Duarte, F. C. de L., & Santos, L. C. Júnior. (2015). Análise estatística e atuarial do mercado de seguro DPVAT. Revista Evidenciação Contábil & Finanças, 3(3), 55-67. https://periodicos.ufpb.br/index.php/recfin/article/view/26622
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) buscaram prever resultados operacionais da Seguradora Líder, a partir de índices tradicionais do mercado segurador, utilizando técnicas de séries temporais. Contudo, os autores não tratam o efeito das fraudes sobre os dois principais pilares desse arranjo contratual: prêmios e sinistros. Essa é exatamente a lacuna que se pretender explorar.

Este trabalho tem como objetivo investigar o peso dos pagamentos de sinistros fraudulentos nas despesas da Seguradora Líder, ao (i) mensurar o impacto da modelagem peculiar desse seguro, frente ao que ocorre com os demais produtos de seguro de automóveis, por meio de comparações dos prêmios de credibilidade, medidos pela Teoria da Credibilidade - técnica inexplorada em artigos brasileiros - e;(ii) estimar quanto os segurados pagam a mais pelo produto em função das fraudes cometidas, em relação ao que seria um prêmio ideal, com a menor incidência possível de fraudes.

Para isso, serão utilizados como proxies da formação ideal de prêmios os dados públicos do mercado de seguro de automóveis de diferentes ramos operados por seguradoras privadas, as quais possuem melhores sistemas de controle em prevenção de fraudes em comparação ao DPVAT. Utilizando a evolução histórica dos índices de sinistralidade (base tarifária atuarialmente justa de seguros) dos ramos privados, serão estimados os prêmios ideais utilizando a Teoria da Credibilidade Atuarial. Desse modo, será possível quantificar o peso das fraudes sobre o custeio social do seguro obrigatório.

2. O DPVAT

O seguro de Danos Pessoais causados por Veículos Automotores de via Terrestre (DPVAT) foi previsto originalmente no Decreto-Lei nº 73/1966, e depois disciplinado pela Lei nº 6.194/1974. É um produto de contratação compulsória a todos os proprietários de automóvel no Brasil, pago anualmente no momento do licenciamento anual, e tem por objetivo custear as indenizações provocadas a vítimas de acidentes de trânsito. O fato de ser uma cobertura obrigatória, além de suas outras características incomuns, faz com que seja um produto de seguro bastante peculiar.

O produto é inteiramente administrado pela Seguradora Líder, que detém o monopólio desse mercado. O Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP), pela Resolução n°154/2006, determinou a constituição de dois Consórcios específicos a serem administrados por uma seguradora especializada, na qualidade de líder. Para atender a essa exigência, foi criada a Seguradora Líder do Consórcio do Seguro DPVAT S.A.​, ou simplesmente Seguradora Líder-DPVAT, pela Portaria n°2.797/2007. Tal consórcio é formado pelas principais companhias seguradoras de automóveis, em razão proporcional à participação de cada uma no mercado de seguros privados de automóveis.

Primeiramente, a natureza obrigatória do seguro limita a autonomia da vontade do comprador, ao não permitir que o segurado escolha a quantia a ser segurada (Borges & Oliveira, 2018Borges, D. da C. L., & Oliveira, E. D. (2018). Autonomia da vontade, responsabilidade civil e monopólio no seguro obrigatório automotor no Brasil e na União Europeia. Revista Brasileira de Direito Civil, 18, 75-102. https://rbdcivil.ibdcivil.org.br/rbdc/article/view/306
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). Isto é, despreza aspectos psicológicos importantes da demanda por seguro, como o nível de aversão ou propensão ao risco dos indivíduos (Laas et al., 2016Laas, D., Schmeiser, H., & Wagner, J. (2016). Empirical findings on motor insurance pricing in Germany, Austria and Switzerland. The Geneva Papers on Risk and Insurance - Issues and Practice, 41(3), 398-431. https://doi.org/10.1057/gpp.2015.30
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). Além disso, não há a possibilidade de escolha de qual seguradora será adquirido, devido ao monopólio.

O arcabouço regulatório do DPVAT impede que determinadas ferramentas de controle comuns às seguradoras privadas sejam utilizadas, como a seleção de melhores riscos, possível taxação adicional (descontos) para riscos maiores (menores) nem franquias dedutíveis, implicando custo zero ao acesso à indenização. Mesmo os mecanismos de combate e prevenção a fraudes são muito recentes. Segundo o site oficial da Seguradora Líder, somente a partir de 2017 foram implementadas estratégias de prevenção, detecção e investigação de fraudes na administração do DPVAT e, como se observa, ainda não foram suficientes para coibir a ocorrência de fraudes.

Existem três tipos de indenização: por morte, invalidez permanente e Despesas De Assistência Médica e Suplementares (DAMS). O valor da indenização por morte é fixo: R$13.500,00. Para invalidez permanente, indeniza-se até R$13.500,00, dependendo da intensidade e repercussão da lesão no corpo da vítima, baseado em tabela prevista em lei. Já as despesas médicas e hospitalares são reembolsadas em função dos gastos pela vítima em seu tratamento, limitados a R$ 2.700,00. Todos os valores são relativamente baixos quando comparados às coberturas oferecidas no mercado privado de seguros de automóveis, considerando planos securitários análogos. Todavia, não são averiguadas as condições, circunstâncias ou severidade da ocorrência, apenas o estado da vítima. Ademais, a monta é paga independentemente de averiguação de culpa, e mesmo que seja observado algum excludente do princípio de causalidade, como fortuito ou força maior (Borges & Oliveira, 2018Borges, D. da C. L., & Oliveira, E. D. (2018). Autonomia da vontade, responsabilidade civil e monopólio no seguro obrigatório automotor no Brasil e na União Europeia. Revista Brasileira de Direito Civil, 18, 75-102. https://rbdcivil.ibdcivil.org.br/rbdc/article/view/306
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).

De acordo com relatório da própria Seguradora Líder13 13 Relatório Anual 2019 - Seguradora Líder - DPVAT https://www.seguradoralider.com.br/Documents/Relatorio-Anual-2019.pdf , em 2019 foi pago o total de 353.232 indenizações, das quais 11% foram por Morte, 67% por Invalidez Permanente e 22% por DAMS. Foram identificadas 6.435 fraudes no ano, das quais, não surpreendentemente, 75% pela cobertura de invalidez permanente, 16% por despesas médicas e 9% por morte. O estado com maior incidência de fraudes foi o Ceará, com 25% das incidências.

Destaca-se que esse desenho não é exclusivo ao Brasil. A União Europeia (UE) também possui regulamentação que torna obrigatório um seguro de danos causados por automóveis. Há uniformidade entre as leis e restrições de trânsito dos países membros, sendo objeto de legislação desde 1972 (Borges & Oliveira, 2018Borges, D. da C. L., & Oliveira, E. D. (2018). Autonomia da vontade, responsabilidade civil e monopólio no seguro obrigatório automotor no Brasil e na União Europeia. Revista Brasileira de Direito Civil, 18, 75-102. https://rbdcivil.ibdcivil.org.br/rbdc/article/view/306
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). A diretriz abrange os valores mínimos a serem indenizados (€1.000.000 por vítima ou €5.000.000 independentemente do número de vítimas em caso de acidente pessoal, e €1.000.000 por ocorrência em caso de danos à propriedade) e tem como foco principal a reparação aos danos causados, garantindo a indenização mesmo a vítimas de acidentes causados por condutores não identificados e de diferentes países. A norma também contempla como segurados todos os passageiros do veículo, ao invés de apenas o condutor.

Apesar das semelhanças com o desenho brasileiro, a regulação europeia não cria um produto exclusivo a ser operado por um consórcio monopolista. O objetivo na UE é uniformizar os produtos oferecidos pelas diferentes seguradoras nos diferentes países membros do bloco e garantir o amparo e pagamento às vítimas independentemente de região e instituição, diminuindo a burocracia envolvida. A diretriz também não limita que o produto seja comercializado por uma instituição específica, permitindo ao segurado que escolha uma companhia e negocie o melhor preço de acordo com suas preferências e histórico de sinistros.

3. Referencial teórico

Ao tratar dos aspectos de risco moral, deve-se sempre iniciar a base teórica pelo seminal artigo de Akerlof (1970Akerlof, G. A. (1970). The market for “lemons”: quality uncertainty and the market mechanism. The Quarterly Journal of Economics, 84(3), 488-500. https://doi.org/10.2307/1879431
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), pioneiro em determinar os custos econômicos da desonestidade em um ambiente de incerteza. Neste trabalho, o autor utiliza-se do mercado automobilístico no qual há conhecimento por parte dos vendedores, mas não por parte dos compradores, da qualidade de um automóvel novo, para discutir o conceito de assimetria informacional. Conclui-se que modelos econômicos que se baseiam na confiança necessitam de garantias informais e não escritas como pré-condições para a produção e comércio. Todavia, a distinção entre boa e má qualidade é inerente aos negócios, e isso explica o mecanismo de formação de preços de muitas transações econômicas, sendo a incerteza um dos aspectos mais importantes.

Com abordagem similar, mas examinando especificamente o mercado segurador, Rothschild e Stiglitz (1976Rothschild, M., & Stiglitz, J. (1976). Equilibrium in competitive insurance markets : an essay on the economics of imperfect information. The Quarterly Journal of Economics, 90(4), 629-649. https://doi.org/10.2307/1885326
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) analisaram mercados competitivos nos quais as características dos produtos comercializados não eram totalmente conhecidas por pelo menos uma das partes da transação. Os autores demonstraram não apenas que um equilíbrio competitivo pode não existir, mas também que, quando existe, pode possuir propriedades estranhas, e que uma pequena porção de informações imperfeitas pode ter um impacto significativo em mercados competitivos. Além disso, observaram que, em uma situação de assimetria informacional, o equilíbrio dos preços de análises competitivas convencionais, por si só, não era mais viável. Finalmente, a estrutura de equilíbrio de mercado, assim como sua existência, dependia de um número de pressupostos que necessitavam de informações perfeitas, e que, mesmo sob condições plausíveis, o equilíbrio por vezes não existia.

Stellwagen (1927Stellwagen, H. P. (1927). Automobile insurance. The ANNALS of the American Academy of Political and Social Science, 130(1), 154-162. https://doi.org/10.1177/000271622713000123
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, p. 161) define o risco moral como “aquele que contempla as intangíveis fragilidades e propensões as quais não podem ser medidas por nenhum método de precificação, e não pode ser levado em conta previamente por requisição de taxa sobre o prêmio”. Em Varian (2015Varian, H. R. (2015). Microeconomia: uma abordagem moderna (9th ed.). Elsevier.) é possível entender melhor o efeito do risco moral nos aspectos microeconômicos do seguro: em um mercado com risco moral, o equilíbrio de mercado será afetado pelo racionamento da oferta, porque as empresas não estarão dispostas a se exporem ao risco oculto. Mais ainda: ofertar mais significa, necessariamente, alterar a disposição dos clientes em relação a seus comportamentos frente ao risco.

Baseando-se nesse conceito, Boyer e Peter (2020Boyer, M. M., & Peter, R. (2020). Insurance fraud in a rothschild-stiglitz world. Journal of Risk and Insurance, 87(1), 117-142. https://doi.org/10.1111/jori.12264
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) analisam conjuntamente a seleção adversa e a fraude em seguros em um mercado de seguros competitivo, em um cenário no qual os agentes possuem conhecimento prévio da sua probabilidade de sofrer um acidente. Utilizam a metodologia de Rothschild e Stiglitz (1976Rothschild, M., & Stiglitz, J. (1976). Equilibrium in competitive insurance markets : an essay on the economics of imperfect information. The Quarterly Journal of Economics, 90(4), 629-649. https://doi.org/10.2307/1885326
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) para demonstrar que riscos altos serão totalmente cobertos, enquanto riscos baixos poderão ser excluídos do mercado. Demonstraram, também, que para um custo moderado de auditoria, riscos baixos serão racionalizados, e isso aumenta o valor total de fraudes na economia.

Mudanças unilaterais de comportamento são bastante tratadas em relação ao seguro saúde, principalmente atreladas ao conceito de risco moral. Maia et al. (2012Maia, A. C., Andrade, M. V., & Feres, F. L. C. (2012). Risco moral no contexto de perda da cobertura de seguro. 12o Congresso USP de Controladoria e Contabilidade.) discutem o risco moral decorrente de mudanças no comportamento dos consumidores, sobretudo quando possuem cobertura de proteção securitária. Mais especificamente, a probabilidade de sobreuso do seguro em face de conhecimento da ocorrência iminente da perda do plano. Por meio de testes empíricos, observou-se um aumento significante na utilização dos benefícios, principalmente em consultas e exames diagnósticos nos meses antecedentes à saída dos segurados. Há vasta literatura na área de Saúde abordando problemas de risco moral, mas que, apesar de muito relevante, não é o ponto principal deste trabalho.

Uma vez apresentados os fatores de assimetria informacional, risco moral e seleção adversa, podemos então relacioná-los ao ponto central de discussão - as fraudes em seguros, sua motivação, seus impactos e medidas de prevenção e combate. Para adentrar nesse assunto, a literatura de Behavioral Ethics é adequada, uma vez que ela busca, com um viés de negócios, explicar os comportamentos éticos e tomadas de decisão que envolvem dilemas morais, seus custos e benefícios.

Craft (2013Craft, J. L. (2013). A review of the empirical ethical decision-making literature: 2004-2011. Journal of Business Ethics, 117(2), 221-259. https://doi.org/10.1007/s10551-012-1518-9
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), por exemplo, observa que dentre os fatores comportamentais, os principais em tomadas de decisão envolvendo questões éticas são intenção, julgamento e conscientização, variáveis demográficas e comportamento ético, sendo que este último vem sendo cada vez menos observado. Já Treviño et al. (2006Treviño, L. K., Weaver, G. R., & Reynolds, S. J. (2006). Behavioral ethics in organizations: a review. Journal of Management, 32(6), 951-990. https://doi.org/10.1177/0149206306294258
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) apontam que os indivíduos podem ser divididos em dois grupos - utilitários, que focam nos fins de tomadas de decisão, e formalistas, que focam nos meios - e que, portanto, possuem diferentes abordagens para as questões identificadas como questões éticas, ou seja, conflitos com alta intensidade moral.

Segundo Gouvêa e Avanço (2006Gouvêa, P. E., & Avanço, L. (2006). Ética e fraudes contábeis. Revista de Ciências Jurídicas, 7(1), 85-91. https://doi.org/10.17921/2448-2129.2006v7n1p%25p
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), podem existir diversas motivações para se cometer fraudes, mais especificamente fraudes leves - as quais não empregam métodos violentos -, entre elas pressão, oportunidade e racionalização. A primeira diz respeito à necessidade, seja ela qual for, que envolva a obtenção de recursos monetários: quitação de dívidas, instabilidade financeira ou emocional, por exemplo. A segunda refere-se a brechas em contratos, situações que podem passar por despercebidas ou que sejam de difícil comprovação. E a terceira permite ao fraudador justificar seu ato ilícito.

O estudo de Miyazaki (2009Miyazaki, A. D. (2009). Perceived ethicality of insurance claim fraud: Do higher deductibles lead to lower ethical standards? Journal of Business Ethics, 87(4), 589-598. https://doi.org/10.1007/s10551-008-9960-4
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) procura entender o motivo pelo qual muitas pessoas acham aceitável cometer fraudes leves no seguro, como apresentar valores maiores do que os da perda real, e o que poderia mudar essa percepção. Seus resultados mostram que, apesar de um alto volume de recursos ser aplicado no combate às fraudes, a maioria dessas iniciativas são focadas em identificar os fraudadores, e não o motivo de tal comportamento e, portanto, não trabalham em uma mudança de atitude em relação às fraudes. Iniciativas públicas foram identificadas como um dos maiores obstáculos para reduzir atividades fraudulentas, e a mudança de percepção do público é vista como uma solução potencial, porém parcial.

Tratando de medidas de prevenção e combate, Derrig (2002Derrig, R. A. (2002). Insurance fraud. The Journal of Risk and Insurance, 69(3), 271-287. https://doi.org/https://doi.org/10.1111/1539-6975.00026
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) discorre sobre as precauções adotadas pelas companhias - as quais, em sua maioria, têm a tendência de investir a mínima quantia possível em investigações de sinistros e aquisição de informações adicionais. Algumas das práticas incluem exames médicos independentes, reconstrução de acidentes, depoimentos, negociações e, em última instância, recorrer a processos judiciais.

Um jeito plausível e já praticado pelo mercado de reduzir e coibir fraudes, sobretudo no seguro automobilístico, é a implementação das chamadas franquias dedutíveis (Kaas et al., 2008Kaas, R., Goovaerts, M., Dhaene, J., & Denuit, M. (2008). Modern actuarial risk theory: using R (2nd ed.). Springer. https://doi.org/10.1007/978-3-540-70998-5
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). Trata-se da imposição de um valor (fixo ou como proporção do sinistro) com o qual o segurado se responsabiliza em arcar na ocorrência de um sinistro. Ou seja, trata-se da parcela do risco que não será transferida para a seguradora. Assim, “ao fazer com que os consumidores paguem parte da indenização, as companhias de seguros podem assegurar que eles tenham sempre um incentivo para tomar um pouco de cuidado” (Varian, 2015Varian, H. R. (2015). Microeconomia: uma abordagem moderna (9th ed.). Elsevier., p. 765). Schmidt (1961Schmidt, R. F. (1961). Does a deductible curb moral hazard? The Journal of Insurance, 28(3), 89-92. https://doi.org/10.2307/250379
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) avalia o quanto é válida a ideia de que franquias dedutíveis coíbem o risco moral, diante de alguns fatores diferentes, chegando à conclusão de que as franquias apenas possuem efeito na coibição de somente um desses fatores: a perseguição demasiada zelosa de pequenos créditos legítimos.

Smith e Head (1978Smith, M. L., & Head, G. L. (1978). Guidelines for insurers in pricing deductibles. The Journal of Risk and Insurance, 45(2), 217-238. https://doi.org/10.2307/251673
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), por sua vez, analisam o processo de precificação de tais franquias, devendo esse procedimento seguir algumas diretrizes com base em seus objetivos de negócio e aspectos técnicos. Sob o primeiro aspecto, as franquias devem cumprir o papel de minimizar a seleção adversa, repassar alguma parte dos custos do seguro ao segurado, dissuadir sinistros prejudiciais, manter as cobranças sobre o risco, minimizar a insatisfação do segurado e considerar as posições fiscais do segurado. Sob o segundo, considera-se a natureza de falta de dados com as quais se precifica o prêmio, o efeito da inflação e as consequências da franquia nos custos operacionais.

Mais recentemente, Wang et al. (2008Wang, J. L., Chung, C.-F., & Tzeng, L. Y. (2008). An empirical analysis of the effects of increasing deductibles on moral hazard. Journal of Risk and Insurance, 75(3), 551-566. https://doi.org/10.1111/j.1539-6975.2008.00274.x
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) utilizaram as franquias dedutíveis no mercado automobilístico taiwanês para analisar os efeitos, tanto da assimetria informacional, quanto do risco moral na precificação dos seguros desse ramo. Seus resultados confirmam a existência de assimetria informacional no mercado segurador, e evidenciam também que as franquias dedutíveis possuem efeito positivo no controle do risco moral, e que os efeitos da seleção adversa são mínimos.

Para tornar possível a detecção e a definição do custo de monitoramento, é imprescindível a utilização de metodologias corretas. Dentre muitas possíveis, Cowell et al. (2007Cowell, R. G., Verrall, R. J., & Yoon, Y. K. (2007). Modeling operational risk with bayesian networks. The Journal of Risk and Insurance, 74(4), 795-827. https://doi.org/10.1111/j.1539-6975.2007.00235.x
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) utilizam o método Bayesiano com a finalidade de modelar os riscos operacionais das seguradoras. Especificamente, os autores utilizam redes bayesianas para modelar o custo de um pagamento fraudulento, combinando diversas variáveis para determinar a probabilidade do custo final do sinistro indevido. Dentre elas, a experiência prévia do subscritor, o controle dos acionamentos de sinistros e a probabilidade da detecção da fraude, elementos fundamentais para a precificação dos contratos de seguros.

Ainda sobre sistemas de detecção de fraudes, Brockett et al. (1998Brockett, P. L., Xia, X., & Derrig, R. A. (1998). Using Kohonen’s self-organizing feature map to uncover automobile bodily injury claims Fraud. The Journal of Risk and Insurance, 65(2), 245-274. https://doi.org/10.2307/253535
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) criaram um mecanismo de classificação de fraudes no seguro de danos pessoais em acidentes automobilísticos, mais especificamente com a aplicação de redes neurais, baseadas nos Mapas Auto Organizáveis de Kohonen, para a construção de um sistema que utilizasse coleções de indicadores de fraudes como classificação. Concluíram que é possível utilizar esse método para a identificação e classificação das fraudes e ele, além disso, se mostrou mais eficaz do que os métodos já utilizados, identificando fraudes que não haviam sido previamente identificadas. Okura (2013Okura, M. (2013). The relationship between moral hazard and insurance fraud. The Journal of Risk Finance, 14(2), 120-128. https://doi.org/10.1108/15265941311301161
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) examinou a relação entre risco moral e fraude de seguro, mostrando como o esforço do segurado para reduzir a probabilidade de acidentes muda quando a seguradora aumenta seu investimento na prevenção de fraudes em seguros.

Mesmo na literatura internacional, são raros os trabalhos que adotam a Teoria da Credibilidade em apreçamento de apólices. Pai et al. (2015Pai, J., Boyd, M., & Porth, L. (2015). Insurance premium calculation using credibility analysis: an example from livestock mortality insurance. Journal of Risk and Insurance, 82(2), 341-357. https://doi.org/10.1111/jori.12024
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) utilizam tal abordagem na avaliação do seguro de mortalidade de gado suíno. Por tratar-se de um produto relativamente novo e que depende de inúmeras variáveis, como região geográfica, doenças contagiosas, e até mesmo risco moral por parte dos pecuaristas, o estudo utilizou essa metodologia como maneira de identificar fatores explicativos visando obter maior precisão no processo de tarifação.

Notadamente, no contexto brasileiro há grande escassez de artigos acadêmicos que abordem esse assunto com profundidade e assertividade factual. Um exemplo disso é Contador (2011Contador, C. (2011). A fraude no seguro: aspectos econômicos 1. Revista Brasileira de Risco e Seguro, 7(13), 87-104. https://www.rbrs.com.br/arquivos/rbrs_13_4.pdf
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), o mais completo acerca de fraudes em seguros, e ainda assim o trata com viés microeconômico. Aponta pontos relevantes, como o fato de que “o seguro DPVAT é certamente o mais vulnerável à fraude profissional, pois os trâmites burocráticos são simples, o judiciário, pró-acidentado, e as indenizações, pagas sem dificuldades”, mas não se aprofunda na verificação de tal afirmação. Talvez pela falta de fontes confiáveis para a busca de textos, ou pela inexistência de dados específicos a esses temas, há lacunas a serem preenchidas. Este trabalho propõe preencher algumas delas, inclusive utilizando o necessário arcabouço atuarial.

4. Metodologia

De acordo com a teoria atuarial de precificação de contratos de seguros, espera-se que a definição prospectiva do valor de prêmio de seguro expresse a evolução futura dos sinistros (Bowers et al., 1997Bowers, N. L., Gerber, H. U., Hickman, J. C., Jones, D. A., & Nesbitt, C. J. (1997). Actuarial mathematics (2nd ed.). The Society of Actuaries. https://doi.org/10.1080/03610928908830089
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; Klugman et al, 2012Klugman, S. A., Panjer, H. H., & Willmot, G. E. (2012). Loss models: from data to decisions (4th ed.). Wiley.). Contudo, usualmente utiliza-se a experiência prévia de sinistros de uma seguradora para formar tal expectativa (Kaas et al., 2008Kaas, R., Goovaerts, M., Dhaene, J., & Denuit, M. (2008). Modern actuarial risk theory: using R (2nd ed.). Springer. https://doi.org/10.1007/978-3-540-70998-5
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). É, portanto, esperado que carteira com grandes dispêndios com sinistros fraudulentos possuam prêmios significantemente maiores do que um teórico valor ideal, quando comparado a carteira com pouca ou nenhuma experiência de fraude (Boyer & Peter, 2020Boyer, M. M., & Peter, R. (2020). Insurance fraud in a rothschild-stiglitz world. Journal of Risk and Insurance, 87(1), 117-142. https://doi.org/10.1111/jori.12264
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; Contador, 2011Contador, C. (2011). A fraude no seguro: aspectos econômicos 1. Revista Brasileira de Risco e Seguro, 7(13), 87-104. https://www.rbrs.com.br/arquivos/rbrs_13_4.pdf
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). Tal avaliação será feita por meio da Teoria da Credibilidade, amplamente difundida na área atuarial (Pai et al., 2015Pai, J., Boyd, M., & Porth, L. (2015). Insurance premium calculation using credibility analysis: an example from livestock mortality insurance. Journal of Risk and Insurance, 82(2), 341-357. https://doi.org/10.1111/jori.12024
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).

Kaas et al. (2008Kaas, R., Goovaerts, M., Dhaene, J., & Denuit, M. (2008). Modern actuarial risk theory: using R (2nd ed.). Springer. https://doi.org/10.1007/978-3-540-70998-5
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) descrevem a Teoria da Credibilidade como um sistema de precificação por experiência mista para determinar o valor do prêmio puro de seguro considerando não apenas a experiência individual, como também a experiência coletiva de carteiras de coberturas similares. Utiliza-se esse método quando se quer estimar o valor do prêmio baseado em uma amostra real e conhecida, porém não grande o suficiente para que possa ser generalizada para aplicação a todos os casos. É feita, então, uma ponderação entre o valor esperado considerando a experiência prévia de sinistros (X-j) e um chamado prêmio de manual (X-), que se refere a um prêmio estatisticamente mais consolidado, calculado com uma base experimental mais ampla, dotadas de características semelhantes à amostra estudada, porém mais robusta. Sua fórmula dá-se por:

P C = z j X - j + 1 - z j X - (1)

em que PC é chamado de Prêmio de Credibilidade, e Zj é chamado de fator de credibilidade, expressa o quão crível é a experiência individual da carteiraj, assumindo valor entre 0 e 1, sendo que quanto mais próximo de 1, maior sua credibilidade. Esse valor, de acordo com a Lei dos Grandes Números, é obtido por meio de uma aproximação à distribuição Normal.

Neste trabalho, o prêmio de manual (X-) expressará um hipotético prêmio ideal. Ou seja, uma estimativa do prêmio ideal com melhor monitoramento e detecção às fraudes, representado pelo prêmio de produtos de seguro automóvel dos ramos privados Acidentes Pessoais de Passageiros (APP), Automóvel-Casco e Responsabilidade Civil Facultativa de Veículos (RCFV). Já o valor da amostra (X-j), dados reais do setor para os anos de 2006 a 2020, para assim verificar o impacto das fraudes no prêmio de seguro. Quanto mais próximo de 0 for o valor encontrado para Zj, mais próximo o prêmio ideal estaria da experiência do mercado segurador. No exato oposto, Zj próximo a 1, mais crível é a própria experiência, sinalizando alta consistência histórica.

4.1. Modelo de Bühlmann-Straub

Com o modelo de Bühlmann-Straub, é possível aperfeiçoar a equação do prêmio de credibilidade, considerando cada variável Xj como uma carteira com dinâmica estocástica em diversos períodos. Assim, Xjt representa a medida de sinistralidade da carteira j, j = 1,2,...,J, no ano t, t = 1,2,...,T, com todas as carteiras estão expostas a cada período. Assume-se que o padrão dos sinistros possa ser resumido pela estatística média da célula (mj) e um valor aleatório de ruído branco. Assim, as variáveis aleatórias (v.a.)Xjt são independentes entre carteiras e com distribuição N (mj,s2). Define-se a variável Xjt como:

X j t = m + Ξ j + Ξ j t , j = 1 , . . . , J , t = 1 , . . . , T (2)

em que os efeitos fixos Ξj das carteiras são independentes e identicamente distribuídas (iid), com média E[Ξj]= 0 e Var[Ξj]=ɑ, assim como as variáveis aleatórias Ξjt são também iidcom média E[Ξjt]= 0 e Var[Ξjt]= s2/wjt,para quaisquer j e t. Nesse modelo, wjt representa o peso de cada variável Xjt que, por sua vez, corresponde à precisão relativa de cada observação. Ademais, assume-se que as v.a. Ξj são independentes de Ξjt.

Como o objetivo é avaliar se todas as experiências são homogêneas ou não, realiza-se a Análise de Variância (ANOVA). Em caso de rejeição da hipótese nula (médias iguais), têm-se evidências para concluir que haverá maior variação entre as médias individuais X-jt e a média geral das observações X-. Assim, estimam-se as seguintes quantidades:

SSB - Soma dos Quadrados Entre Grupos:

S S B = j = 1 J T ( X j - - X - ) ² . (3)

Prova-se que, sob a hipótese nula, a variável SSB possui média (J - 1)s2. Como não se sabe o valor de s², utiliza-se o segundo parâmetro para estimar seu valor, como segue:

SSW - Soma dos Quadrados Dentro dos Grupos:

S S W = j = 1 J t = 1 T T ( X j t - X - j ) ² (4)

que, por sua vez, possui média J(T-1)s². Ao dividir SSB por J-1, e SSW por J(T - 1), obtêm-se duas novas quantidades: MSB (Quadrados Médio Entre Grupos) e MSW (Quadrados Médio Dentro dos Grupos), que são estimadores não enviesados para a distância média entre as carteiras (MSB) e para a dispersão média temporal dentro da mesma carteira (MSW).

1. Com essas novas quantidades, realiza-se o teste-F, que indica a rejeição da hipótese nula se o valor de MSB for significantemente superior ao valor de MSW.

F = M S B M S W = 1 J - 1 j = 1 J T ( X j - - X - ) ² 1 J ( T - 1 ) j = 1 J t = 1 T T ( X j t - X - j ) ² (5)

Sob a hipótese nula, a variável SSB dividida por s2 possui distribuição χ2(J−1), enquanto a SSW dividida pelo mesmo denominador possui distribuição χ2(J(T −1)), e essas duas variáveis são independentes. Assim, a estatística F possui distribuição de Fisher-Snedecor, com (J−1,J(T −1)) graus de liberdade. Assim, a significância estatística pode ser auferida.

A fim de encontrar o melhor preditor linear homogêneo não enviesado hitXit do prêmio de risco m+Ξj, minimiza-se seu MSE (Erro Quadrático Médio), utilizando os seguintes estimadores:

w j Σ = t = 1 T w j t (6)

w Σ Σ = j = 1 J w j Σ (7)

z j = a w j Σ s 2 + a w j Σ (8)

z Σ = j = 1 J z j (9)

X j w = t = 1 T w j t w j Σ X j T (10)

X w w = j = 1 J w j Σ w Σ Σ X j w (11)

X z w = j = 1 J z j z Σ X j w (12)

Dispondo dessas estatísticas, estima-se a importância relativa de cada ramo securitário no portfólio conjunto das carteiras (wjΣ), com o intuito de estimar o fator de credibilidade 𝑧 𝑗 de cada uma das linhas de negócio.

4.2. Estimativas dos parâmetros pelo modelo de Bühlmann-Straub

Os estimadores de credibilidade são baseados nos parâmetros m, a e s2. Os dois últimos são calculados com base na soma ponderada dos quadrados dentro (SSW) e na soma ponderada dos quadrados entre (SSB):

S S W = j , t w j t ( X j t - X j w ) ² (13)

S S B = j w j Σ ( X j w - X w w ) ² (14)

Assim, as estimativas dos parâmetros do modelo são obtidas das seguintes formas:

m ~ = X w w (15)

s 2 ~ = 1 J ( T - 1 ) j , t w j t X j t - X j w 2 (16)

a ~ = j w j Σ X j w - X w w 2 - ( J - 1 ) s 2 ~ w Σ Σ - j w 2 j Σ / w Σ Σ (17)

z ~ = 1 - M S W M S B (18)

em que ã é a estimativa da variância dentro de cada ramo, s2~ é a estimativa da variância total do conjunto de todas as carteiras, m~ estima a média global dentre todas as carteiras e z, por fim, o vetor dos fatores de credibilidade de cada ramo. A implementação integral desse modelo foi feita no software estatístico R.

5. Análise de resultados

5.1. Os dados e análise descritiva

Neste trabalho foram utilizadas bases de dados públicas do setor segurador brasileiro, extraídas do Sistema de Estatísticas da Superintendência de Seguros Privados (SES-SUSEP), em julho/2020. Da base, foram obtidos os valores de prêmios ganhos e sinistros ocorridos dos ramos 0520 (Acidentes Pessoais de Passageiros-APP), 0531 (Automóvel-Casco), 0553 (Responsabilidade Civil Facultativa Veículos-RCFV) e 0588 (DPVAT).

Visando mitigar eventuais disparidades temporais de eventos geradores em regime de competência contábil na forma de caixa, os dados mensais disponíveis na base SES-SUSEP foram agrupados em bases semestrais, desde janeiro/2006 até junho/2020. Tal opção metodológica é uma hipótese simplificadora que visa reduzir as oscilações nos índices de sinistralidade em virtude da alocação pro rata temporis do prêmio e/ou efetivo desembolso da indenização por parte da seguradora, suavizando o efeito safra, peculiar dessa indústria (Areias & Carvalho, 2021Areias, C. A. C., & Carvalho, J. V. F. (2021). Reinsurance in the supplementary health: a counterfactual study on the impacts of reinsurance treaties adoption by healthcare plans operators in Brazil. Brazilian Business Review, 18(2), 217-235. https://doi.org/10.15728/bbr.2021.18.2.6
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; Euphasio Junior & Carvalho, 2022Euphasio, J. W. Junior, & Carvalho, J. V. F. (2022). Reinsurance and solvency capital: mitigating insurance companies’ ruin probability. Revista de Administração Contemporânea, 26(1), e200191. https://doi.org/10.1590/1982-7849rac2022200191.en
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). Geralmente, os seguros de automóveis são vendidos e renovados no meio ou no fim do ano, e o DPVAT possui picos de arrecadação em janeiro, que é o mês de licenciamento obrigatório de veículos no Brasil. Todos os resultados também foram gerados usando os dados mensais, produzindo resultados muito similares aos aqui apresentados. Caso seja de interesse, os autores podem enviar mediante requisição.

Desses valores, foram calculados os índices de sinistralidade (sinistros ocorridos divididos pelos prêmios ganhos, tradicional medida de desempenho de carteiras de seguros, que compõe a base tarifária para prêmios atuarialmente justos) de cada período. A Figura 1 apresenta a evolução histórica dos índices de sinistralidade de cada ramo.

Figura 1
Evolução temporal dos índices de sinistralidade por ramo (2006-2020)

Figura 2
Evolução temporal do volume de prêmios e sinistros e do índice de sinistralidade do ramo DPVAT (2006-2020)

Analisando a Figura 1, o comparativo entre os ramos evidencia que o ramo DPVAT apresenta índices de sinistralidade histórica consistentemente mais elevados que os demais ramos exclusivos do mercado segurador privado. Isso pode ser um resultado explicado pelo fato de o DPVAT ser um seguro obrigatório a todos os proprietários de veículos, administrado por um consórcio monopolista de empresas privadas constituído pelo CNSP. O extenso tamanho de sua carteira, a obrigatoriedade e a natureza do produto tornam mais difícil a seleção de riscos, fiscalização e monitoramento em relação às fraudes. Além disso, não possuem incentivo suficiente para fazer este monitoramento, como é o caso das seguradoras privadas.

Afinal, como mostra a Figura 2, em todos os semestres, a Seguradora Líder teve resultado operacional superavitário. A única notável exceção foi a acentuada e progressiva redução de prêmios arrecadados em 2019, resultando na súbita elevação do índice de sinistralidade em 2020. Tais fatos estão relacionados à discussão de extinção do produto proposta pelo governo no segundo semestre de 2019. A Medida Provisória 904/2019 chegou a ser publicada, extinguindo o produto temporariamente, mas não foi votada a tempo e foi então anulada. O resultado foi a enorme queda na arrecadação, já que muitas pessoas deixaram de pagar a taxa, e dos segurados que pagaram, alguns requisitaram estorno.

Ademais, pela sua natureza, o preço do DPVAT não é passível de ajustes em relação a diversos fatores típicos de produtos de seguro, como aversão ao risco de possíveis consumidores, carregamentos adicionais para maiores riscos, entre outros, uma vez que é obrigatório a todos os segurados de maneira uniforme (variando apenas por categoria de veículo). Assim, não é possível subscrever cada risco individualmente, dificultando a identificação de perfis mais ou menos propensos ao risco, além de possíveis fraudadores mais evidentes.

5.2. Resultados da estimação do modelo de Bühlmann-Straub

Pela Tabela 1, como o p-valor é inferior a qualquer nível de significância, conclui-se haver evidências estatisticamente significantes para afirmar que os padrões dos ramos são distintos entre si. Portanto, há embasamento para se estimar os prêmios de credibilidade por meio do modelo de Bühlmann-Straub, admitindo a heterogeneidade estrita entre as carteiras, usando as Equações 6 a 18.

Tabela 1
Teste de homogeneidade de padrões médios (ANOVA)
Tabela 2
Resultados das estimativas obtidas para o modelo de Bühlmann-Straub

De acordo com a Tabela 2, nota-se que os valores de z para todos os casos são próximos de 1, mas não idênticos. Esse resultado evidencia elevada consistência histórica de cada um dos ramos. Como esperado, o prêmio de credibilidade (pr), aqui entendido como o índice de sinistralidade, calculado para o DPVAT, foi mais elevado que os demais, porque nele se espera maior incidência de fraudes do que no padrão dos ramos de seguros privados. Em especial, deve-se atentar para o fato de que o prêmio de credibilidade (índice de sinistralidade) para o ramo 0531 foi 25,54% inferior ao prêmio de credibilidade do DPVAT. Já o ramo 0553 apresentou índice de sinistralidade 25,012% inferior ao prêmio de credibilidade do DPVAT.

Na seção seguinte será analisado se essa diferença observada (redução da ordem de 25%) nos prêmios de credibilidade (índices de sinistralidade) entre os ramos pode ser explicada pela alta incidência de fraudes do ramo DPVAT. Ou seja, será avaliado o seguinte cenário contrafactual: caso fosse possível efetuar a exclusão integral de valores fraudulentos, seria o índice de sinistralidade do seguro do DPVAT similar ao dos demais ramos?

5.3. Cenário contrafactual 1: calculando o preço ideal de prêmio do DPVAT pela exclusão das fraudes

Como previamente justificado, como padrão ideal de funcionamento foram tomados os ramos de seguro privados. Especificamente, os ramos de Cascos (0531) e Responsabilidade Civil Facultativa de Veículos (0553), os quais apresentam características indenizatórias análogas ao DPVAT, tendo como eventos geradores de indenização os acidentes de trânsito. Caso a hipótese central deste trabalho seja válida, ao subtrair dos custos de sinistros do DPVAT os valores das fraudes, seu valor de prêmio deve tornar-se equivalente aos demais. Dessa forma, a diferença observada entre os índices de sinistralidade - a base tarifária dos prêmios atuarialmente justos - seria integralmente justificada pelas fraudes, excluindo a possibilidade de haver diferenças entre os desempenhos das carteiras dadas por outros motivos.

A Equação 19, a seguir, expressa o prêmio estatístico, por meio do produto entre a probabilidade média e a severidade média, de maneira a obter o valor atuarialmente justo:

P E = Q u a n t i d a d e d e s i n i s t r o s T o t a l d e u n i d a d e s e x p o s t a s a o r i s c o × P r e j u í z o T o t a l Q u a n t i d a d e d e S i n i s t r o s P E = P r e j u í z o T o t a l T o t a l d e u n i d a d e s e x p o s t a s a o r i s c o (19)

Dos relatórios oficiais foram extraídas as informações sobre constantes na Tabela 3.

Tabela 3
Valores e quantidades de Sinistros Ocorridos e fraudes comprovadas.

Para este exercício contrafactual, assume-se que os valores de fraudes identificadas e devidamente comprovadas pela Seguradora Líder já foram subtraídos do valor fornecido à SUSEP. Desse modo, os valores relativos a fraudes observados na Tabela 3 referem-se à soma dos valores comprovados pela Líder com os valores de fraudes comprovadas fornecidos pelo relatório da CNSeg. Com isso, foi calculado o Prêmio Estatístico do seguro DPVAT em dois cenários diferentes, com e sem fraudes. Os resultados estão na Tabela 4.

Tabela 4
Valores e quantidades de Sinistros Ocorridos e fraudes comprovadas

Portanto, os resultados indicam que o Prêmio Estatístico livre de fraudes teria uma redução de 25,9%. Essa ordem de grandeza é bastante próxima do diferencial observado na seção anterior entre os prêmios de credibilidade (índices de sinistralidade) estimados para o DPVAT e os demais ramos de seguros privados. Deve-se sempre atentar ao fato de que os seguros privados comercializados por seguradoras individualmente possuem diversos mecanismos de combate, detecção de fraudes. Como práticas adotadas, pode-se citar a possibilidade de selecionar e de subscrever melhores riscos, sistemas de taxação adicional (descontos) para riscos maiores (menores), via sistema bonus-malus e franquias dedutíveis. Nada disso está à disposição da Seguradora Líder.

Por fim, deve-se ressaltar evidente esforço da Seguradora Líder no emprego das melhores técnicas de identificação e detecção de fraudes. Em seu próprio site oficial, ela informa que foram realizados “(...) pesados investimentos na modernização de sistemas, com uso de tecnologias avançadas de análise de bancos de dados, integradas a sistemas de inteligência artificial. Hoje, todos os pedidos de indenização do Seguro DPVAT recebem monitoramento contínuo, sendo avaliados por softwares de inteligência artificial, que contêm ferramentas de filtros sistêmicos de ocorrências suspeitas, além de controle de risco”. No entanto, ainda que as estratégias tenham sido implementadas em 2017, é difícil verificar a real efetividade de tais medidas, mesmo para 2019. Especialmente dadas às dimensões da carteira e das indenizações solicitadas, e à manutenção dos critérios de elegibilidade e concessão.

5.4. Cenário contrafactual 2: ajustes retrospectivos nos prêmios e sinistros

O objetivo principal desta seção é estimar o volume total de recursos que poderiam ser economizados pela sociedade caso as fraudes pudessem ter sido expurgadas, no período entre 2006 e 2020. Para operacionalizar o exercício, foi calculada a nova sinistralidade da carteira, proporcionalmente às reduções estimadas (25,9%). Desse modo, foram também ajustados todos os valores da série temporal - prêmios e sinistros semestrais -, obtendo-se as novas séries:

Figura 3
Evolução temporal dos índices de sinistralidade de cada ramo, por semestre, com sinistralidade ajustada do DPVAT (2006-2020)

Figura 4
Evolução temporal do volume de prêmios, de sinistros e do índice de sinistralidade ajustados para o ramo DPVAT (2006-2020)

A Figura 3 evidencia que a redução de 25% no índice de sinistralidade do DPVAT, em razão da eliminação das fraudes, conduziria esse ramo a apresentar desempenho absolutamente similar aos dos ramos análogos do mercado de seguros privados: 64,9%. A Figura 4 apresenta como teria sido a trajetória temporal de ambas as séries temporais financeiras (i.e., prêmios e sinistros), segundo a mesma redução, produzindo sempre o índice de sinistralidade de 64,9%.

Em seguida, foi calculado o novo volume agregado de prêmios de cada período, desde o primeiro semestre de 2006 até o primeiro de 2020. Todos os valores foram trazidos a valor presente de junho/2020, utilizando o IPCA como deflator. Como estimativa, foi obtido o valor total de R$15.488.676.127,08.

Tal valor superior a R$15 bilhões poderia ter sido economizado pela sociedade, em função da redução dos prêmios do seguro obrigatório sob a hipótese de as fraudes terem sido expurgadas. Seria esse o valor economizado se os mecanismos de combate às fraudes tivessem sido efetivamente adotados pela seguradora Líder, ou, em outras palavras, caso a sinistralidade média do produto tivesse padrão similar aos dos ramos de produtos análogos de automóvel do mercado de seguros privados.

Essa monta não é desprezível, especialmente em um momento em que o país enfrenta grave crise econômica após anos de recessão e crescimento medíocre. Após ter sido necessária a Reforma da Previdência, aprovada em 2019, para mitigar sucessivos déficits do setor público, o Brasil viu-se diante da necessidade de concessão de auxílio emergencial à população como estímulo econômico no contexto da pandemia da Covid-19. Apenas para dimensionar a relevância dessa ordem de grandeza, é metade do dispêndio total anual14 14 Boletim Resultado do Tesouro Nacional, dez/2019 https://www.tesourotransparente.gov.br/publicacoes/boletim-resultado-do-tesouro-nacional-rtn/2019/12?ano_selecionado=2019 do governo federal com o principal programa social, o Bolsa Família, foi de R$30,36 bilhões em 2018 e R$32,94 bilhões em 2019.

6. Considerações Finais

Este trabalho buscou analisar o peso social dos pagamentos indevidos do DPVAT ocasionados por fraudes, seu impacto na sinistralidade do produto e, consequentemente, no valor do prêmio repassado ao segurado. Os resultados mostraram evidências estatísticas para afirmar que as carteiras são heterogêneas, diante da discrepância do índice de sinistralidade do DPVAT em relação aos produtos análogos de automóvel do mercado privado de seguros, usando a Teoria de Credibilidade Atuarial por meio do modelo de Bühlmann-Straub. O prêmio de credibilidade para os ramos de Automóvel-Casco e de Responsabilidade Civil Facultativa de Veículos foram 25,54% e 25,012%, respectivamente, inferiores ao prêmio de credibilidade do DPVAT.

No primeiro cenário contrafactual, procedeu-se à estimação do que seria o prêmio do DPVAT em um cenário hipotético no qual não haveria fraudes, emulando a situação na qual as fraudes pudessem ser controladas e monitoradas com a mesma eficácia dos produtos ofertados por seguradoras privadas. Os resultados indicam que o prêmio atuarialmente justo livre de fraudes teria uma redução de 25,9%. Essa ordem de grandeza é bastante próxima do diferencial observado entre os prêmios de credibilidade estimados para o DPVAT e os demais ramos de seguros privados.

Já no segundo cenário contrafactual, foi estimada a economia agregada para a sociedade, caso as fraudes pudessem ser deduzidas dos prêmios, se a sinistralidade média do produto tivesse padrão similar aos dos ramos de produtos análogos de automóvel do mercado de seguros privados. Como resultado, foram obtidos expressivos R$15 bilhões que estariam à disposição da sociedade para alocar livremente conforme as preferências individuais. Isso mostra a relevância e urgência de se adotar mecanismos de combate e prevenção às fraudes pela seguradora Líder.

Apesar de ter alcançado resultados importantes, este trabalho apresenta limitações. Entre elas, pode ser citada a falta de acesso aos microdados das seguradoras (da Líder, inclusive), o que forçou a utilização somente dos dados públicos do regulador, que são agregados e com os sinistros reconhecidos contabilmente em regime de caixa, não por competência. Os microdados possibilitariam maior profundidade analítica das fraudes ocorridas em seguros de automóveis, principalmente a respeito da periodicidade e recorrência, além de possibilitar o estudo das motivações por trás dessas fraudes. Sugere-se que tais aspectos sejam analisados em futuros estudos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Nov-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    04 Ago 2021
  • Revisado
    28 Nov 2021
  • Aceito
    28 Nov 2021
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