Acessibilidade / Reportar erro

Vivências, Percepções e Concepções de Estudantes com Deficiência Visual nas Aulas de Matemática: os desafios subjacentes ao processo de inclusão escolar

Experiences, Perceptions, and Conceptions of Students with Visual Impairment in Mathematics Classes: the challenges underlying the process of school inclusion

Resumo

Este artigo apresenta as vivências, percepções e concepções de três estudantes do Ensino Médio (EM) com Deficiência Visual (DV), de três unidades distintas de uma mesma rede pública de ensino. Com o suporte referencial das ideias que defendem a institucionalização e a consolidação dos processos de inclusão por meio do desenvolvimento de políticas, culturas e práticas inclusivas, foram realizadas entrevistas semiestruturadas, em busca de um panorama holístico das questões que envolvem a disponibilização e a utilização (ou não) de recursos didáticos e de Tecnologia Assistiva, as estratégias e metodologias aplicadas no ensino de Matemática e as questões que permeiam o Atendimento Educacional Especializado (AEE). Como resultado, observa-se avanço no acesso às escolas e na disponibilização de materiais e recursos adequados à escolarização dos estudantes com DV, embora tais recursos não sejam empregados nas aulas regulares. Além disso, o despreparo docente e a falta de profissionais com formação em Educação Especial nas escolas investigadas levam os alunos a desempenhar o papel de ouvintes nas salas de aula. Observam-se, ainda, as avaliações com nível inferior àquelas propostas aos demais alunos, além de um papel substitutivo do AEE, retomando, assim, o modelo de integração, teoricamente já superado na educação brasileira. Ao dar voz aos estudantes, espera-se que os relatos de suas experiências possam contribuir para aprofundar os debates e as reflexões acerca do processo de inclusão e, acima de tudo, promover equidade nas aulas de Matemática aos alunos com DV.

Educação Inclusiva; Ensino de Matemática; Deficiência Visual

Abstract

This paper presents the experiences, perceptions, and conceptions of three High School students with Visual Impairment (VI), from three different units of the same public-school system. With the referential support of the ideas that defend the institutionalization and the consolidation of inclusion processes through the development of inclusion policies, cultures, and practices, we carried out semi-structured interviews, in search of a holistic scene on the issues involving availability and use (or not) of didactic resources and Assistive Technology, the strategies and methodologies followed in Mathematics teaching, and the issues that pervade Special Education Support Service (SESS). As a result, advances are noticed in terms of access to schools and the availability of materials and resources suitable for the schooling of students with VI, although these are not used in regular classes. In addition, the teachers’ unpreparedness and the lack of professionals trained in Special Education in the researched schools lead students to play the role of listeners in classroom. We also noted assessments with a lower level than those proposed to other students, in addition to a substitute role by SESS, thus resuming the integration model, theoretically already surpassed in Brazilian education. By giving a voice to the students, we hope that the reports of their experiences can contribute to deepen the debates and reflections on the inclusion process and, above all, promote equity in Math classes for students with VI.

Inclusive Education; Mathematics Education; Visual Impairment

1 Introdução

Apoiado nas vertentes que entendem o ensino de Matemática em uma perspectiva mais ampla, como uma ciência social, levando em consideração os aspectos legais, as necessidades e as singularidades dos alunos com deficiência, este trabalho busca investigar, sob o ponto de vista de três estudantes com Deficiência Visual (DV), de três unidades escolares de uma mesma rede pública de ensino, suas vivências, percepções e concepções sobre o processo de inclusão nas aulas de Matemática. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Plataforma Brasil e contou com a anuência da instituição investigada e com a concordância dos estudantes em contribuir com a investigação, por meio da assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Como aporte teórico, apresenta-se pesquisas que também tiveram a finalidade de dar voz a estudantes com DV acerca de seus processos de inclusão ( ROSA, 2017ROSA, F. M. C. Histórias de vida de alunos com deficiência visual e de suas mães: um estudo em Educação Matemática Inclusiva. 2017. 259 f. Tese (Doutorado em Educação Matemática) — Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” — Unesp, Rio Claro, 2017. ; SILVA; CABRAL; SALES, 2018), bem como as ideias de Booth e Ainscow (2011)BOOTH, T.; AINSCOW, M. Index para Inclusão: desenvolvendo a aprendizagem e a participação na escola. Tradução de Mônica Pereira dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: LaPEADE, 2011. , no trabalho intitulado “O Index para a inclusão: desenvolvendo a aprendizagem e a participação nas escolas”, que, embora tenha sido organizado e publicado na Inglaterra, vem sendo utilizado, no Brasil, desde 2007, em diferentes contextos, para além das escolas. O Index apresenta três dimensões principais, aqui consideradas pilares para o desenvolvimento e a consolidação de um processo de inclusão: (I) culturas inclusivas, (II) políticas inclusivas e (III) práticas inclusivas.

Booth e Ainscow (2011)BOOTH, T.; AINSCOW, M. Index para Inclusão: desenvolvendo a aprendizagem e a participação na escola. Tradução de Mônica Pereira dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: LaPEADE, 2011. defendem que essas três dimensões precisam desenvolver-se e consolidar-se de forma articulada, mas destacam que os movimentos inclusivos devem basear-se, em primeiro lugar, em valores inclusivos. Desse modo, caminhar na direção de um projeto inclusivo envolve relacionar ações com valores, o que transcende a ideia de apenas atender às determinações legais. Significa, entre outros aspectos, respeitar as diferenças entre crianças, adultos e pessoas com deficiência, e fazer uso de suas experiências e histórias de vida como um recurso para a aprendizagem, possibilitando, assim, que todos possam delinear e traçar caminhos que conduzam a iniciativas e ações. Implica, ainda, oferecer condições adequadas ao desenvolvimento dos estudantes, oferecendo, acima de tudo, recursos materiais e humanos, além de metodologias que não os impeçam de participar das atividades escolares, principalmente das aulas de Matemática, o foco desta investigação.

No que se refere à educação inclusiva, este trabalho se propõe a analisar a inclusão na perspectiva do direito universal à educação, discutindo e propondo medidas e ações para um ensino de Matemática voltado a uma orientação inclusiva, mais eficaz e menos excludente. Desse modo, é importante destacar que, por orientação inclusiva, entendem-se os esforços empreendidos pela sociedade no sentido de minimizar ou eliminar as barreiras que impedem as pessoas com deficiência e/ou com necessidades especiais, temporárias ou permanentes, de exercer plenamente seus direitos como pessoas e cidadãs. Acredita-se, portanto, que direitos não podem ser desrespeitados, sobretudo em função de diferenças, identidades de gênero, etnias, condições sociais, situações familiares, religião ou habilidades acadêmicas. Entende-se que incluir abrange diferentes formas de pensar, e esse termo pode ser sinônimo de processo, movimento, práticas, ideias, valores, recomendações, leis e políticas .

Sobre os estudantes que pertencem ao público-alvo da Educação Especial, a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPI) ( BRASIL, 2008BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília, 2008. ) considera aqueles que apresentam impedimento de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, que, em interação com diversas barreiras, possam ter restringida sua participação plena e efetiva na escola e na sociedade. A PNEEPI também inclui os estudantes com altas habilidades/superdotação e que demonstram potencial elevado em qualquer uma das seguintes áreas, isoladas ou combinadas: intelectual, acadêmica, de liderança, psicomotricidade e artes. Todavia, considerando a educação como uma questão de direitos humanos, defende-se, neste artigo, a necessidade de contextualização dos espaços escolares e de seus estudantes, observando-se os aspectos psicossociais, como uma ação premente para se definirem os estudantes que compõem o público-alvo da Educação Especial e que podem ser afetados por ações temporárias ou permanentes. Desse modo, propõe-se que as definições não se devem esgotar na mera categorização e nas especificações atribuídas a um quadro de deficiências, transtornos, distúrbios e aptidões, conforme aponta a PNEEPI.

Para esta pesquisa, o Index ( BOOTH; AINSCOW, 2011BOOTH, T.; AINSCOW, M. Index para Inclusão: desenvolvendo a aprendizagem e a participação na escola. Tradução de Mônica Pereira dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: LaPEADE, 2011. ) foi utilizado como aporte teórico e metodológico, uma vez que as perguntas apresentadas aos estudantes entrevistados foram formuladas com base nas três dimensões propostas pelos autores ingleses. Elaborou-se um questionário com questões abertas, de caráter exploratório, possibilitando liberdade aos entrevistados para discorrerem sobre o assunto sugerido. A coleta de dados se deu em 2020, e os dados foram analisados sob os princípios da Análise de Conteúdo ( MORAES, 1999MORAES, R. Análise de conteúdo. Revista Educação, Porto Alegre, v. 22, n. 37, p. 7-32, 1999. ).

São apresentados e discutidos trechos das contribuições dos estudantes, notadamente no que se refere às estratégias e aos métodos empregados nas aulas de Matemática, a disponibilização e a utilização (ou não) de recursos didáticos e Tecnologia Assistiva (TA), bem como o papel desempenhado pelo Atendimento Educacional Especializado (AEE) nas atividades de ensino. Em seguida, apresentamos suas contribuições para a melhoria das condições de ensino ofertada em suas escolas, mas, também, para aprofundar as discussões na literatura e, por conseguinte, contribuir para que outras redes de ensino ensejem ações mais efetivas na educação de estudantes com DV.

Os resultados apontam para uma realidade em que os alunos desempenham o papel de ouvintes nas aulas. Verifica-se que a adoção do Sistema Braille como meio de leitura e escrita, bem como o emprego de estratégias e metodologias que possibilitem o aprendizado de Matemática, não se fazem presentes nesse espaço de aprendizagem, aplicando-se, em seu lugar, o papel substitutivo da AEE. E, embora as escolas disponibilizem recursos importantes e essenciais aos alunos com DV, tais recursos não são utilizados por falta de profissionais com formação em Educação Especial (EE) ou em virtude do despreparo e das dificuldades do docente em utilizá-los nas aulas regulares.

Por fim, destaca-se que as questões abordadas por nossos entrevistados – aqui denominados colaboradores – devem ser enfrentadas não só como demandas, mas, também, como verdadeiros desafios para a escola e a sociedade, uma vez que, embora ratifiquem a ideia de que estamos avançando no direito ao acesso, ainda há muito a ser feito para que os alunos possam aprender de forma mais equânime e em consonância com o que preconizam as leis, orientações e recomendações legais para suprir suas necessidades. Por meio das diferentes ideias, vivências e concepções compartilhadas, espera-se que os resultados apresentados e discutidos promovam reflexões e avanços sobre os diferentes aspectos que permeiam o ensino e a aprendizagem de Matemática a estudantes com DV.

2 Com a palavra, os estudantes

Entre os diversos trabalhos da literatura que se propuseram a dar voz a estudantes com DV, incluídos em escolas regulares, escolhemos dois ( ROSA, 2017ROSA, F. M. C. Histórias de vida de alunos com deficiência visual e de suas mães: um estudo em Educação Matemática Inclusiva. 2017. 259 f. Tese (Doutorado em Educação Matemática) — Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” — Unesp, Rio Claro, 2017. ; SILVA; CABRAL; SALES, 2018) que oferecem contribuições importantes para a literatura e para esta pesquisa. Rosa (2017ROSA, F. M. C. Histórias de vida de alunos com deficiência visual e de suas mães: um estudo em Educação Matemática Inclusiva. 2017. 259 f. Tese (Doutorado em Educação Matemática) — Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” — Unesp, Rio Claro, 2017. , p. 9) buscou “esboçar uma compreensão sobre como os alunos e seus responsáveis legais, em suas vidas pessoais e durante sua formação escolar, percebem o processo de escolarização no contexto da Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva”. A autora descreve a história oral como percurso metodológico e recorre à narrativa como o meio pelo qual obtém as falas de seus entrevistados, ouvindo tanto os alunos como seus responsáveis a respeito de toda a trajetória de escolarização vivenciada por eles.

De acordo com Rosa, um traço marcante e que se fez presente em todas as histórias foi a luta das famílias para garantir atendimento à saúde e escolarização para os filhos com DV, o que se deu de forma bem distinta, devido às condições financeiras de cada uma delas. Conforme se observa nas falas dos entrevistados pela autora, o Sistema Braille praticamente não era utilizado nas escolas pelas quais passaram e foi pouco estimulado, uma vez que os professores não o conheciam. Além disso, poucas vezes tiveram acesso à oportunidade de utilizar os recursos adequados às suas necessidades educacionais, relatando, ainda, momentos de isolamento nas aulas de Matemática.

Em relação aos conteúdos e às disciplinas, os alunos mencionaram a liberação , por exemplo, das aulas de Física, Desenho Geométrico e Educação Física, além de terem vivenciado situações de exclusão em outras atividades escolares. Em suas palavras, eles consideravam errada essa distinção, justificando que a DV não é um entrave para esse aprendizado: “ Eu fiquei muito irada, porque eu acho que Ótica é uma coisa que dá para a gente aprender, a gente simplesmente foi expulso da aula, a gente não faz prova de Ótica, não aprende Ótica ” ( ROSA, 2017ROSA, F. M. C. Histórias de vida de alunos com deficiência visual e de suas mães: um estudo em Educação Matemática Inclusiva. 2017. 259 f. Tese (Doutorado em Educação Matemática) — Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” — Unesp, Rio Claro, 2017. , p. 86, grifos do original). A situação só não foi pior porque seus familiares contrataram professores particulares, e até mesmo mediadores, para atuar nas escolas de seus filhos. Além disso, relataram a compra de equipamentos e recursos didáticos, como, por exemplo, o Multiplano, para que pudessem utilizar na escola – esse recurso, inclusive, foi doado à instituição após a escolarização de um dos entrevistados.

Situações semelhantes foram apresentadas pelos estudantes entrevistados por Silva, Cabral e Sales (2018, p. 4), no artigo intitulado Percepções de Alunos Cegos sobre sua Formação: contribuições no ensino e aprendizagem de Matemática em classes inclusivas . As autoras ratificam o que a literatura já vem discutindo nos últimos anos, citando que a criação de leis e decretos não tem sido suficiente para consolidar espaços que favoreçam um ensino voltado à diversidade e à inclusão, que “requerem, dentre outras coisas, propostas pedagógicas diferenciadas que proporcionem acesso ao ensino e à aprendizagem, dando oportunidade de igualdade para todos os alunos, com adaptações necessárias que privilegiem a diferença de cada educando”.

Os relatos dos dois alunos entrevistados pelos autores apontaram experiências distintas, sobretudo porque um dos estudantes narrou que a maior parte de suas aulas de Matemática era realizada sem qualquer recurso que o auxiliasse na compreensão dos conteúdos e símbolos matemáticos. De acordo com ele, a situação só melhorou quando sua mãe passou a assumir o papel de fiscalizadora de sua escolarização no ambiente escolar. A carência de conhecimento acerca da DV e das especificidades e singularidades dos alunos também foi relatada pelo estudante, observando que, desde os primeiros anos de escolaridade, foi sua mãe quem se empenhou em conhecer e estudar a metodologia da inclusão , tendo, inclusive, aprendido o Sistema Braille para melhor auxiliá-lo no processo de alfabetização. Em suas palavras, não ter ideia do que fazer é o pior que pode acontecer a qualquer aluno com deficiência: “ o que eu observo é que o professor chega comigo e sempre diz que não sabe o que fazer. Isso é muito ruim, acho que o professor não saber o que fazer, e está despreparado, isso é o pior que pode acontecer para o aluno ” (SILVA; CABRAL; SALES, 2018, p. 8, grifos do original).

Os resultados do trabalho apontam para um processo de inclusão (na realidade investigada) ainda bem distante da condição ideal, aludindo ao despreparo da escola e destacando os cuidados que os sistemas de ensino devem tomar para que a educação não tenha por finalidade tão somente a função de socializar o aluno com deficiência, mas, também, a de oferecer real oportunidade ao seu desenvolvimento. Nesse sentido, os sistemas de ensino devem tentar democratizar as oportunidades disponibilizadas aos alunos, ainda que os professores não tenham contado, eles próprios, com uma formação adequada.

A fragilidade e a falta de oportunidades para que os professores adquiram outros/novos conhecimentos em Educação Especial (EE) têm surtido efeito negativo, como, por exemplo: (i) não dispensar atenção adequada ao aluno em sala de aula; (ii) não empregar recursos capazes de promover acessibilidade ao conteúdo ministrado, transferindo, dessa forma, a responsabilidade pela tarefa de ensinar ao atendimento especializado, fora da sala de aula, de modo a retomar, na prática, um modelo de integração aparentemente já superado na educação brasileira.

Em linhas gerais, os trabalhos citados apontam inúmeros problemas nas escolas, como, por exemplo: (i) o isolamento nas aulas de Matemática; (ii) a ausência do Sistema Braille como meio de comunicação; (iii) a ausência de materiais e recursos que possibilitem aos alunos acessibilidade aos conteúdos; (iv) a falta de atendimento especializado; (v) a ausência de profissionais com formação em EE. Essas e outras investigações realizadas junto a estudantes com DV apontam, ainda, o papel que eles assumem como ouvintes nas salas de aula, com o conteúdo sendo abordado por meio de aulas teóricas, sem lhes dar acesso a desenhos, esquemas, gráficos ou tabelas nas aulas de Matemática. Assim, torna-se premente a necessidade de se tomarem outros rumos, outros caminhos, em busca de debates que possam conduzir a ações mais efetivas em relação às práticas inclusivas nas aulas de Matemática.

3 Buscando outros caminhos

Como alternativa às fragilidades da educação de pessoas com DV, apresentadas em diversas pesquisas, e diante da necessidade de seguirmos por novos caminhos, apontamos, neste artigo, as ideias de Booth e Ainscow (2011)BOOTH, T.; AINSCOW, M. Index para Inclusão: desenvolvendo a aprendizagem e a participação na escola. Tradução de Mônica Pereira dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: LaPEADE, 2011. , os quais defendem que os processos de inclusão devem basear-se no desenvolvimento e na consolidação de três pilares: políticas inclusivas, práticas inclusivas e culturas inclusivas . As culturas dizem respeito às crenças e aos valores compartilhados e postos em prática pelos atores que norteiam essas políticas. Tais políticas referem-se ao respeito às – e ao cumprimento das – determinações legais e aos investimentos que possibilitam essas ações. As práticas, por sua vez, dialogam com as ações voltadas à minimização das barreiras à aprendizagem e à participação de todos no ambiente escolar, devendo estar articuladas com as outras duas dimensões.

Embora imersos em outra cultura, Booth e Ainscow (2011BOOTH, T.; AINSCOW, M. Index para Inclusão: desenvolvendo a aprendizagem e a participação na escola. Tradução de Mônica Pereira dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: LaPEADE, 2011. , p. 1) se apoiam em valores e ideias que sugerem ações compatíveis com qualquer realidade, em especial a brasileira, e isso pode ser observado quando eles defendem que o Index é um “recurso para o desenvolvimento de escolas. Um documento abrangente que pode ajudar todos a encontrarem seus próprios passos em direção ao desenvolvimento de seus ambientes”. Neste trabalho, focalizam-se as contribuições dos entrevistados em relação às políticas e práticas inclusivas (dois pilares propostos pelo Index ), em busca de ações mais efetivas para a inclusão de estudantes com DV nas aulas de Matemática.

Sobre os aspectos das políticas, espera-se que a escola se organize legal, estrutural e administrativamente, com vistas a assegurar que os processos de inclusão possam ser postos em prática. Nesse sentido, é preciso observar quais são os recursos – materiais e humanos – ofertados pelas escolas aos alunos, professores e demais profissionais, a fim de ampliar sua capacidade de responder à diversidade. Em relação aos alunos com DV, por exemplo, nessa dimensão, espera-se que as ações possam ser postas em prática de modo que a escola adquira recursos e equipamentos, como, por exemplo, impressora Braille, computadores, notebooks ou tablets com softwares de acessibilidade, bengalas, Soroban e outros recursos de Tecnologia Assistiva (TA) fundamentais às pessoas com DV e previstos nas recomendações oficiais (políticas, portarias, decretos, notas técnicas, entre outras). Nessa dimensão, espera-se, ainda, que a escola disponha de docentes e profissionais em geral com formação adequada ao atendimento de pessoas com DV, e que se organize para que seus professores realizem cursos de formação continuada que os preparem para atuar junto a esses alunos.

Já em relação às práticas, essa dimensão se refere à construção de currículos para todos, bem como ao desenvolvimento e ao aprimoramento daquilo que se ensina e se aprende – e a forma como se ensina e se aprende – em busca de se refletir valores e políticas inclusivas ( BOOTH; AINSCOW, 2011BOOTH, T.; AINSCOW, M. Index para Inclusão: desenvolvendo a aprendizagem e a participação na escola. Tradução de Mônica Pereira dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: LaPEADE, 2011. ). Em outras palavras, significa dizer que o desenvolvimento de práticas inclusivas perpassa um modelo colaborativo de atuação, uma vez que, sozinho, o professor não tem autonomia para modificar o projeto político-pedagógico da escola, de modo a transformar um currículo historicamente pensado na normalidade em outro, que valorize e respeite a diferença como premissa.

Quando pensamos em práticas pedagógicas que possam atender a todos, tem-se em mente o desenvolvimento de um planejamento que possa levar para a sala de aula igualdade de condições no que se refere ao aprendizado. Nesse sentido, alunos com DV, por exemplo, necessitam de textos em braille ou em formato ampliado e, sempre que possível, de recursos de TA, materiais e modelos táteis que lhes possibilitem a materialização de conceitos e procedimentos inerentes ao desenvolvimento dos conteúdos de Matemática. As avaliações devem ter caráter formativo, e não se pode conceber que os estudantes sejam excluídos de atividades e do aprendizado de determinados conteúdos, uma vez que isso coloca a deficiência à frente de suas capacidades e potencialidades.

Incluir envolve pôr em prática ações que reduzam a exclusão. Envolve, igualmente, (i) mudança arquitetônica dos espaços escolares, (ii) adoção e utilização de recursos de TA, (iii) emprego de metodologias de ensino que privilegiem a participação efetiva de todos, (iv) promoção de ações formativas e (v) apoio à qualificação profissional de todos os atores escolares. Envolve (re)pensar o currículo escolar, que, historicamente, não foi concebido para despertar o interesse de alunos e crianças em geral, limitando-se a atender a determinados grupos da sociedade. Reduzir barreiras e minimizar os processos de exclusão significam (re)pensar o currículo com base em direitos globais, como sugerem Booth e Ainscow (2011)BOOTH, T.; AINSCOW, M. Index para Inclusão: desenvolvendo a aprendizagem e a participação na escola. Tradução de Mônica Pereira dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: LaPEADE, 2011. , como se observa, em síntese, no Quadro 1 , a seguir:

Quadro 1
: Repensando o currículo escolar.

O currículo baseado em direitos globais não se propõe a substituir o currículo tradicional, da mesma forma que o Index também não propõe a criação de outras/novas disciplinas. A ideia é que as questões relacionadas aos direitos globais estejam presentes na discussão de todas as disciplinas escolares, por meio de projetos integradores e interdisciplinares, bem como de ações institucionais. Além de proporcionar a inserção de temas contemporâneos no currículo tradicional, o Index confere à escola um senso de direção e define um destino. Assim, é utilizado neste trabalho como corrente teórico-metodológica, servindo de aporte para a elaboração das questões apresentadas nas entrevistas semiestruturadas e para a constituição das categorias de análise dos dados coletados, conforme se explicita a seguir.

4 Percursos metodológicos

A pesquisa tem uma abordagem qualitativa, e a coleta de dados se deu por meio de entrevistas semiestruturadas. Foram entrevistados três estudantes de Matemática, de três unidades distintas de uma mesma rede pública de ensino, e as entrevistas foram realizadas por meio de videoconferências gravadas em uma plataforma de streaming , em 2020.

Chegou-se aos estudantes por intermédio de colegas professores que atuavam com eles na rede de ensino escolhida para investigação, e as entrevistas duraram cerca de sessenta minutos cada, transcorrendo em clima amistoso (uma espécie de bate-papo), e os três se mostraram felizes em participar e poder contribuir com a pesquisa, de acordo com suas palavras.

Para esta investigação, as entrevistas tiveram um caráter exploratório, com questões abertas, concedendo liberdade aos entrevistados para discorrer sobre o tema sugerido dentro de uma conversa informal. Boni e Quaresma (2005)BONI, V.; QUARESMA, S. J. Aprendendo a entrevistar: como fazer entrevistas em Ciências Sociais. Em tese, Florianópolis, v. 2, n. 1, p. 68-80, 2005. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/emtese/article/view/18027/16976. Acesso em: Jan 2018.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/emt...
denominam esse tipo de entrevista como semiestruturada , uma vez que possibilita que outros questionamentos possam ser levantados ao longo da conversa, e enseja a possibilidade de, no momento oportuno, formular pontos adicionais. De acordo com Haguette (1997, apudBoni; Quaresma, 2005BONI, V.; QUARESMA, S. J. Aprendendo a entrevistar: como fazer entrevistas em Ciências Sociais. Em tese, Florianópolis, v. 2, n. 1, p. 68-80, 2005. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/emtese/article/view/18027/16976. Acesso em: Jan 2018.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/emt...
, p. 86), a entrevista é definida como um “processo de interação social entre duas pessoas em que uma delas, o entrevistador, tem por objetivo a obtenção de informações por parte do outro, o entrevistado”. Essas informações podem ser objetivas ou subjetivas e estão relacionadas com valores, crenças, atitudes e, principalmente, com a opinião dos sujeitos entrevistados.

Foi nesse contexto de interação social que a pesquisa buscou reunir as experiências dos estudantes envolvidos, com vistas a contribuir para um ensino que contemple a participação efetiva dos alunos com DV nas aulas. Foi elaborado um questionário contendo cerca de trinta perguntas, distribuídas em quatro unidades de investigação e inspiradas nas ideias de Booth e Ainscow (2011)BOOTH, T.; AINSCOW, M. Index para Inclusão: desenvolvendo a aprendizagem e a participação na escola. Tradução de Mônica Pereira dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: LaPEADE, 2011.: (I) contextualização dos atores; (II) estabelecimento de culturas inclusivas; (III) instituição de práticas pedagógicas inclusivas; (IV) formulação de políticas de inclusão.

A primeira unidade se propõe a caracterizar o entrevistado, situando-o no contexto da pesquisa, diante dos objetivos da investigação. A segunda está relacionada à dimensão cultural apontada por Booth e Ainscow (2011)BOOTH, T.; AINSCOW, M. Index para Inclusão: desenvolvendo a aprendizagem e a participação na escola. Tradução de Mônica Pereira dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: LaPEADE, 2011. , quando citam que todos são bem-vindos ao espaço escolar, cooperando, respeitando-se e ajudando-se mutuamente. A escola deve buscar implementar um modelo de cidadania e democracia, com o estabelecimento de valores inclusivos que sejam difundidos, praticados e compartilhados por todos. A terceira unidade foi pensada com o propósito de abarcar as questões relacionadas ao desenvolvimento de práticas inclusivas desencadeadas e desenvolvidas pela escola e pelo professor em sua sala de aula. As ações pedagógicas, os recursos disponíveis e utilizados, bem como as avaliações, mostram-se fundamentais no processo de inclusão.

Por fim, a quarta unidade objetivava buscar informações relacionadas às políticas de inclusão implementadas pelas escolas dos investigados. A escola deve ser responsável por atender às determinações e orientações legais, buscar recursos e conduzir um processo de escolarização no qual os estudantes possam participar de todos os espaços e atividades escolares. Grupos de estudos e reuniões pedagógicas/formativas devem ser organizados para que se discutam direitos e deveres. Além disso, deve-se procurar implementar ações coordenadas com todos os entes escolares, sempre privilegiando os processos de inclusão.

Para descrever, discutir e interpretar os dados, foram utilizados os pilares da Análise de Conteúdo ( MORAES, 1999MORAES, R. Análise de conteúdo. Revista Educação, Porto Alegre, v. 22, n. 37, p. 7-32, 1999. ). Para Moraes, esse processo se desdobra em cinco etapas: (1) preparação das informações, (2) transformação do conteúdo em unidades, (3) categorização, (4) descrição e (5) interpretação. De acordo com esse autor, a interpretação constitui um passo imprescindível em todos os momentos da análise de conteúdo, e apresenta duas vertentes: (a) a primeira está relacionada a uma fundamentação teórica, definida a priori ; (b) a segunda está constituída com base nos próprios dados coletados e categorias de análise definidas. Na primeira vertente, a interpretação se dá por meio dos significados expressos nas categorias, confrontados com a fundamentação teórica escolhida. Na segunda vertente, a teoria emerge dos dados e informações oriundos das categorias de análise, em que a própria construção da teoria se dá por meio de interpretações. Ainda segundo esse autor, “teorização, interpretação e compreensão constituem um movimento circular em que, a cada retomada do ciclo, se procura atingir maior profundidade na análise” ( MORAES, 1999MORAES, R. Análise de conteúdo. Revista Educação, Porto Alegre, v. 22, n. 37, p. 7-32, 1999. , p. 9).

Neste trabalho, acredita-se que há um pouco de cada vertente, uma vez que as unidades de investigação surgiram de uma fundamentação teórica escolhida a priori ( BOOTH; AINSCOW, 2011BOOTH, T.; AINSCOW, M. Index para Inclusão: desenvolvendo a aprendizagem e a participação na escola. Tradução de Mônica Pereira dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: LaPEADE, 2011. ). No entanto, as categorias emergiram da interpretação dos dados coletados, da revisão de literatura e dos documentos e preceitos oficiais que norteiam a educação inclusiva. Portanto, as análises e discussões foram construídas com base nas entrevistas, apoiadas nas ideias de Moraes (1999)MORAES, R. Análise de conteúdo. Revista Educação, Porto Alegre, v. 22, n. 37, p. 7-32, 1999. , mas sem a preocupação de seguir, à risca, todas as etapas apontadas por esse autor, visto que a intenção era investigar as situações naturais do dia a dia, com o propósito de descrevê-las e problematizá-las, sem a pretensão, contudo, de produzir modelos teóricos.

Captar a maneira como os participantes encaram as questões que estão sendo abordadas permite a compreensão do contexto, com a finalidade de discutir, refletir e problematizar as questões levantadas. Entre as dez categorias de análise que emergiram das falas dos estudantes, destacamos aqui, três delas: (a) o ensino de Matemática; (b) os recursos materiais e humanos disponibilizados e utilizados nas aulas de Matemática; (c) o papel do Atendimento Educacional Especializado (AEE). Foram atribuídos nomes fictícios aos estudantes – identificados como Pedro, Paula e Bia. Também se optou por discorrer sobre essas três categorias em um texto corrido, sem distinções entre as temáticas abordadas em cada uma delas. Apresentamos excertos dos diálogos, trazendo trechos inteiros das narrativas de nossos colaboradores, sobretudo para que o leitor tenha uma visão mais holística do cenário escolar sob o ponto de vista desses atores.

5 Resultados e discussões

Pedro cursou todo o EM na mesma escola e, na ocasião da entrevista, tinha vinte anos de idade e cursava o primeiro ano de graduação em uma instituição pública federal. Ele tem albinismo, doença que se caracteriza pela ausência de melanina na pele e na retina. Por essa razão, Pedro tem fotofobia, e a luminosidade é um fator que agrava seu quadro de baixa visão. Também, tem astigmatismo e miopia, e sua condição visual pode ser resumida em algumas palavras por ele mesmo: “ Tudo isso me atrapalha muito ” (Entrevista com colaborador, 2020).

Paula tinha dezoito anos e cursava o terceiro ano do EM à época da entrevista. Ela ficou cega devido ao excesso de luz que recebeu na incubadora, logo após seu nascimento e, aos 5 anos, perdeu a visão total do olho direito. Pouco tempo depois, perdeu, também, a visão do olho esquerdo. “ No jardim de infância, tentaram usar a tinta comigo, mas eu só enxergava vultos ” (Entrevista com colaboradora, 2020). Ela é a única cega de sua família, estudou todo o Ensino Fundamental (EF) no Instituto Benjamin Constant (IBC) e frequenta a mesma escola desde o início do EM.

Bia tinha dezoito anos e cursava o terceiro ano do EM à época da entrevista. Ela ficou cega devido a um retinoblastoma. “ Nasci com um câncer na retina. Nasci cega de um olho e perdi a visão do outro aos 6 anos .” Ela é a única cega da família, estudou todo o EF no IBC e frequenta a mesma escola desde o início do EM. De acordo com ela, desde pequena já tinha autonomia para realizar suas atividades escolares: “ Meus pais dizem que, quando eu era pequena, gostava de fazer tudo sozinha. Raramente precisava ou pedia ajuda. Só quando tinha que fazer colagem ou coisas mais visuais mesmo ” (Entrevista com colaboradora, 2020).

5.1 O ensino e a aprendizagem de Matemática, a utilização de recursos e o AEE

Ensinar e aprender são verbos distintos, que envolvem conhecimentos, procedimentos, atitudes e ações de todos os entes escolares, não estando, assim, focalizados apenas na figura do professor e dos alunos. Em outras palavras, todos na escola ensinam e todos aprendem. Quando se pensa no ensino de Matemática para alunos com DV, não há um único caminho, um único roteiro ou um único plano organizado e estruturado que possam nortear o trabalho dos professores. Por outro lado, é possível encontrar, nas recomendações oficiais, em capítulos e livros, em artigos científicos e relatos de experiências, reflexões teóricas e práticas que discutem a adoção de recursos materiais e humanos e de TA para o ensino da disciplina a esse público.

Nessa direção, Bernardo, Garcez e Santos (2019) apresentam alguns desses recursos que consideram indispensáveis ao ensino de Matemática para alunos com DV, e que precisam ser levados em consideração, sob o risco de excluir a participação dos alunos nas aulas. Em se tratando de alunos cegos, os autores apontam o uso do Sistema Braille e do Código Matemático Unificado (CMU) ( BRASIL, 2006BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Secretaria de Educação Especial. Código matemático unificado para a língua portuguesa. Brasília, 2006. ), que é um manual de autoria do Ministério da Educação (MEC) contendo toda a simbologia matemática em Braille, desde as operações mais elementares até aquelas utilizadas nos cursos de graduação na área de Ciências Exatas. Também apontam o Soroban, o Geoplano, o Multiplano e a produção de materiais grafotáteis como ferramentas importantes, que proporcionam acesso ao conteúdo e possibilitam uma participação mais efetiva desses estudantes nas aulas de Matemática.

Igualmente, há uma publicação oficial do MEC, intitulada “Atendimento Educacional Especializado – Deficiência Visual” ( BRASIL, 2007BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Secretaria de Educação Especial. Atendimento Educacional Especializado: deficiência visual. Brasília, 2007. ), uma espécie de manual que promove a ideia de aprendizagem participativa e colaborativa, bem como propõe mudanças no atendimento educacional de pessoas com DV. Nesse material, que tem como uma de suas autoras uma professora cega, é possível encontrar questões que caracterizam a deficiência visual (cegueira e baixa visão), além de uma série de orientações destinadas ao atendimento desses estudantes, como, por exemplo, a importância dos recursos óticos e o emprego do Sistema Braille.

Em se tratando de estudantes com baixa visão, pode parecer que as dificuldades educativas sejam menores do que aquelas apresentadas por alunos cegos, pois é comum a ideia de que o emprego de letras ampliadas seria suficiente para lhes dar acesso aos textos e ao conteúdo escrito. No entanto, cada estudante com baixa visão apresenta suas particularidades, e isso pode representar uma dificuldade a mais para o trabalho docente a ser realizado com esses alunos, impossibilitando a adoção de uma única estratégia definida. Existem alunos que não se adaptam a letras aumentadas; outros, por sua vez, apresentam dificuldade com determinados contrastes; e muitos ainda têm dificuldade para ler o que escrevem, pois, eventualmente, o tamanho das letras escritas não é suficiente para o ato de leitura.

Entre nossos colaboradores, Pedro é um estudante com baixa visão que, em suas palavras, tinha a Matemática como uma de suas disciplinas preferidas. Ele cita, carinhosamente, seu apreço pelos professores de Matemática do EM e relata não ter tido muitos problemas com a disciplina em sua escolarização. Comenta que se sentava na frente e tinha autorização para fotografar as aulas com seu aparelho de celular, recurso que lhe possibilitava ampliar as figuras, os gráficos e os desenhos feitos no quadro. De acordo com ele, algumas vezes recebia textos com as letras ampliadas nas aulas de Matemática, mas não foi destinatário de nenhum outro tipo de ajuda técnica voltado às suas necessidades. Embora relate não ter tido dificuldade com a Matemática, Pedro revela que as avaliações eram diferentes daquelas aplicadas aos demais alunos e muito mais fáceis.

Pedro: O conteúdo nas aulas é o mesmo. Mas nas provas eles tiravam muita coisa. No primeiro ano foi muito fácil, muito, ao extremo. Mas todos os professores de Matemática que eu tive foram muito bons. O relacionamento com eles era bom. Tranquilo. Nas aulas, alguns professores me deixavam tirar foto do quadro e, às vezes, eu recebia material ampliado também (Entrevista com colaborador, 2020).

Paula e Bia relatam desempenhar o papel de ouvintes nas aulas, em suas respectivas unidades escolares, raramente participando das atividades e discussões propostas.

Bia: Eu não tinha muita participação em nada. Quando eu tinha dúvida, eu perguntava. Embora algumas vezes eu não estivesse entendendo nada. Eram dois professores de Matemática. Um me dava um pouco mais de atenção e o outro não ligava para mim. O que gostava de me ajudar dizia que no final da aula ele ia me explicar. Daí ele se sentava do meu lado e me auxiliava e, às vezes, eu conseguia entender melhor. Nas atividades, eu era apenas encaixada para não ficar de fora. De vez em quando, eu me juntava com uma amiga que me ajudava. Ela fazia e eu ajudava. Mas eu não escrevia nada. Ela entregava para o professor e colocava meu nome (Entrevista com colaboradora, 2020).

Paula: A gente não faz nada. A gente não faz as tarefas junto com os outros, porque o nosso conteúdo é mais atrasado que o deles. Nós temos uma lista específica nossa. A gente não pega livro. Assim, Exatas é mais complicado que Humanas, então a gente não pega nada que os demais pegam, não. Não há interação! (Entrevista com colaboradora, 2020).

Paula cita atraso em relação ao conteúdo, pois os alunos com DV discutem os conteúdos de Matemática no AEE, após sua abordagem nas aulas regulares. Os três relataram a existência do AEE em suas unidades escolares e, de acordo com eles, é nesse espaço que recebem orientações individualizadas ou em pequenos grupos, mais direcionadas aos conteúdos de Matemática. É também no AEE que realizam as provas trimestrais e outras atividades de avaliação, sempre à parte dos demais alunos da turma. As escolas de Pedro, Paula e Bia chamam o AEE de Núcleo de Atendimento a Pessoas com Necessidades Específicas (NAPNE) – em geral, coordenado por um professor que se encontra fora das atividades de sala de aula. O NAPNE dispõe de funcionários responsáveis pela adaptação e a transcrição de textos para o Sistema Braille e, de acordo com os três colaboradores, dispõe de materiais e recursos, como, por exemplo, notebooks , linha Braille, impressora Braille, Multiplano, materiais táteis, mapas em relevo, sólidos geométricos em acrílico e outros recursos, eventualmente empregados pelos professores nos horários de atendimento. Esse é um relato importante, pois demonstra que a escola oferece material e recursos adequados à educação de pessoas com DV, situação ainda precária em muitas escolas brasileiras.

Sobre o AEE, a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva ( BRASIL, 2008BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília, 2008. ) destaca que as atividades desenvolvidas nesse atendimento se diferenciam daquelas realizadas na sala de aula comum, não substituindo a escolarização. De acordo com o documento, esse atendimento complementa e/ou suplementa a formação dos alunos com vistas à autonomia e à independência na escola e fora dela. O AEE deve disponibilizar programas de enriquecimento curricular, o ensino de linguagens e códigos específicos de comunicação e recursos de TA. Além disso, ressalta a importância desse atendimento se desenvolver de modo articulado com a proposta pedagógica do ensino comum.

A oferta de materiais e recursos adequados representa um dos pilares propostos por Booth e Ainscow (2011)BOOTH, T.; AINSCOW, M. Index para Inclusão: desenvolvendo a aprendizagem e a participação na escola. Tradução de Mônica Pereira dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: LaPEADE, 2011. no segmento das políticas inclusivas, uma vez que envolve investimentos. Espera-se, portanto, que as escolas se organizem estrutural e administrativamente, de modo a se tornarem acessíveis nas esferas física e pedagógica, com vistas a assegurar que os ideais de inclusão possam ser colocados em prática. Nessa dimensão, espera-se, ainda, que a escola possa contar com professores e profissionais que tenham formação em Educação Especial (formação adequada ao atendimento de seus estudantes), bem como se organizar para que outros profissionais interessados tenham condições de se preparar adequadamente para atender aos seus alunos.

Outro ponto importante, assinalado pelos estudantes, refere-se a que, em suas unidades escolares, os mesmos professores que ministram aulas de matemática nas turmas regulares atendem aos alunos no AEE, no contraturno das atividades regulares, o que não acontece com as demais disciplinas. Com isso, o atendimento se apresenta de modo articulado com a proposta curricular da turma regular, que não diferencia os conteúdos ministrados aos alunos com DV. Considera-se esse um ponto bastante positivo, mas, por outro lado, observa-se ausência de profissionais com formação em EE nas unidades – fato também apontado pelos três estudantes quando declararam desconhecer a presença desses profissionais, uma vez que nunca foram abordados ou atendidos por eles.

Como ponto de fragilidade, as experiências relatadas por nossos colaboradores revelam que o AEE não é exatamente uma opção ou um programa que complemente/suplemente as aulas regulares. Em suas palavras, é nesse espaço que o aprendizado se estabelece e que eles podem contar com atendimento direcionado às suas necessidades e singularidades. Portanto, o AEE revela-se um substitutivo para as aulas comuns – é nesse atendimento, que acontece uma vez por semana, que eles trabalham alguns conteúdos discutidos nos quatro tempos de aula das turmas regulares.

Pedro: O NAPNE oferece horários para o atendimento, tipo o horário das turmas. Depende da sua turma. Depende muito do aluno, do professor, da disponibilidade do professor e de quanto o professor estava a fim de ajudar. Não é obrigado a ir. Eu mesmo nunca fui porque não precisava (Entrevista com colaborador, 2020).

Paula: O NAPNE é assim (...) você vai se quiser, se estiver precisando né (...) Tanto que muitos deficientes não aparecem. Eu, como preciso, eu vou. Então, assim, a aula está lá. Se você quiser aprender, você vai. Se não quiser, a responsabilidade é totalmente sua. O atendimento é no contraturno, e cada dia da semana tem um horário para cada disciplina. Em uma ocasião, nós tivemos o primeiro atendimento duas semanas antes da prova. Porque lá eles são assim. Ah, eles têm que fazer prova. Eles precisam fazer prova (...) Mas cadê o material de assistência? Cadê o atendimento no NAPNE? Só que é assim: aula e NAPNE. Não dá pra fazer outras atividade (Entrevista com colaboradora, 2020).

Bia: O NAPNE tem os horários das aulas. Por exemplo, segunda Português, terça Geografia etc. Tem os horários que cabem na agenda do professor e, então, você escolhe as aulas. O recomendado é você ir a todas. Então, eu escolhi as que eu tinha mais dificuldades, que eram Química, Matemática e Física. Não é obrigado a ir. Mas as aulas lá só começam um tempo depois, porque eles têm que ver os horários disponíveis dos professores. Em nenhum início de ano tem atendimento no NAPNE (Entrevista com colaboradora, 2020).

Diante desses relatos, é interessante observar que a escola disponibiliza aos alunos recursos didáticos e de TA, e que o NAPNE funciona como local de referência para os alunos com deficiência, diferentemente do que citaram os estudantes investigados por Silva, Cabral e Sales (2018) em suas escolas. Isso aponta, de forma nítida, para um avanço (nessas unidades escolares) rumo à implementação de políticas de inclusão, uma vez que se acredita tratar-se de um processo em curso, de uma estrada a ser percorrida. No entanto, no que se refere à acessibilidade física e estrutural (temática que também faz parte do pilar de consolidação das políticas de inclusão), os alunos mencionaram muitos problemas.

Bia: Nada acessível. Eu tive pânico nos primeiros meses. Tinha muitas escadas e degraus sem nenhum aviso. É acessível para cadeirante porque tem rampas. Porém, para DV, deixa bem a desejar. Não tem nada em Braille (Entrevista com colaboradora, 2020).

Paula: Não. A gente não tem piso tátil. Os elevadores estão quebrados. A rampa fica fechada. Então eu vou de escada. Sozinha. A minha mãe me leva até a entrada da escola, só. Nos intervalos, eu nem saio da sala, para não me arriscar (Entrevista com colaboradora, 2020).

A dimensão política revela-se primordial, uma vez que se refere ao cumprimento de leis e recomendações oficiais, bem como à execução de investimentos e ações que irão proporcionar o desenvolvimento de culturas e práticas inclusivas no âmbito da escola, ou seja, é uma dimensão que irá possibilitar que as demais dimensões possam estabelecer-se e consolidar-se no espaço escolar. Não obstante, ainda nesse pilar, destaca-se a necessidade de se investir em recursos humanos, como, por exemplo, profissionais e professores com formação adequada ao atendimento dos alunos com DV e aos demais alunos com outras deficiências, uma vez que, sem esses profissionais, os recursos materiais ficam subutilizados, conforme se observa, em alguns momentos, nas falas de Pedro, Paula e Bia.

Sobre esses aspectos, Paula e Bia mencionaram falta: (i) de acesso aos conteúdos por meio de linguagem escrita adequada às suas necessidades (em Braille) e (ii) de recursos didáticos nas aulas regulares, o que nos leva a provocar no leitor a seguinte reflexão: é possível ensinar e aprender Matemática sem a leitura de textos, problemas e atividades que apresentem a linguagem e a simbologia matemática? Como apresentar e discutir ferramentas e procedimentos importantes para a resolução de problemas e a interpretação de gráficos e tabelas sem o recurso de textos escritos que exigem interpretação?

De forma geral, a leitura estimula a criatividade, trabalha a imaginação, exercita a memória, proporciona informação e é o meio pelo qual se adquire vocabulário, dinamizando o raciocínio e exercitando a interpretação de textos. Sem o acesso a materiais escritos em sala de aula, o aluno torna-se dependente de seus colegas, conforme apontaram Paula e Bia. Mais do que isso, é excluído dos debates e da participação efetiva no espaço da aula. Assim, o AEE passa a funcionar como substitutivo, e o excesso de atendimentos impede a participação dos alunos com DV em outras atividades oferecidas pela escola, como, por exemplo, as atividades esportivas e culturais. De acordo com Paula, “ é aula e NAPNE ”.

Perguntamos, então, como eles se apropriavam das aulas, como faziam o registro dos conteúdos para posteriores consultas e estudos, e de que forma faziam isso.

Bia: Às vezes eu levava o notebook para copiar. Eu copiava algumas aulas. Mas as de Geometria, eu não conseguia. Quando tinha desenhos, gráficos, aí não dava. Cheguei a usar a reglete, mas depois desisti, não tinha como acompanhar. Acho que nem sei mais escrever em Braille (Entrevista com colaboradora, 2020).

Paula: Nas aulas a gente não usa nada. A gente não faz nada. A gente só cumpre o horário mesmo. Eu cheguei a levar o computador para copiar, mas não consegui, então eu desisti e agora fico só escutando. Sinceramente, acho que nem sei mais escrever em Braille. Eu acho muito ruim, né, porque a gente esquece como escrever as coisas. Eu sinto muita falta do Braille (Entrevista com colaboradora, 2020).

Paula e Bia são cegas. Ambas tiveram o Sistema Braille como o meio pelo qual se alfabetizaram e tiveram acesso ao conteúdo de todas as disciplinas quando eram alunas do EF. O Braille está para o cego assim como o sistema de leitura e escrita em tinta está para as pessoas videntes, e seu uso está previsto em diferentes documentos oficiais que apresentam diretrizes e normas, sugerindo sua difusão em todas as modalidades de ensino e em todo o território nacional, conforme a Portaria nº 2.678 ( BRASIL, 2002BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Secretaria de Educação Especial. Grafia Braille para a língua portuguesa. Brasília, 2002. ). As falas de Paula e Bia demonstram que o uso do Braille não é uma opção para os alunos cegos em suas escolas, como forma de leitura e registro, visto que seus professores não empregam o sistema como meio de instrução e/ou comunicação com os alunos.

Embora as pessoas com deficiência tenham direito à educação inclusiva, garantida pela legislação e pelas políticas públicas, o que se percebe é que muitas práticas escolares, muitas vezes de forma não intencional, resultam em exclusão no próprio espaço escolar. Há uma série de motivos que levam o professor a não utilizar o Sistema Braille nas aulas, mas esse é um cuidado importante que precisa ser (re)pensado, uma vez que o Braille é um recurso de TA indispensável à pessoa com cegueira (BERNARDO; GARCEZ; SANTOS, 2018). Sem a utilização do Braille, questionamos de que forma eles tinham acesso à escrita e à simbologia matemática.

Bia: Então, era muito difícil. Às vezes eu ia para o NAPNE sem saber nada. Daí o professor tinha que pesquisar porque, na maioria das vezes, ele nem sabia como explicar e não tinha ninguém para ajudá-lo. No início, quando ainda usava o Braille, eu até escrevia alguns símbolos que eu conhecia, tipo o elevado, por exemplo, esse eu lembrava. Mas depois, com o computador, eu tinha que escrever as expressões e as coisas de Matemática por extenso (Entrevista com colaboradora, 2020).

Paula: Ah, o professor se vira mesmo para nos ajudar. Ele abre o computador e vai procurando as coisas. [Risos.] Ele não sabia nada de simbologia em Braille. Porque tudo que ele sabia foi a gente que ensinou. [Risos.] Então, praticamente não aprendi nada. Em Braille, só me lembro de algumas coisas que estudei no IBC (Entrevista com colaboradora, 2020).

De acordo com Bernardo, Garcez e Santos (2019), o Código Matemático Unificado para a Língua Portuguesa ( BRASIL, 2006BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Secretaria de Educação Especial. Código matemático unificado para a língua portuguesa. Brasília, 2006. ) é o documento oficial do MEC que oferece opções para a representação de símbolos matemáticos do sistema comum de ensino. Ele deve ser utilizado por transcritores, professores, usuários e pessoas envolvidas com a educação de alunos com DV, com o objetivo de elaborar textos em linguagem matemática. O CMU apresenta toda a grafia matemática em Braille, contendo, inclusive, uma simbologia avançada para alunos de graduação em Ciências Exatas. De acordo com o próprio CMU, foi a partir de 1998, por orientação da União Brasileira de Cegos, que se estabeleceram ações e estratégias para a implementação, em todo o país, de uma simbologia matemática unificada. Assim, consideramos que essa simbologia deve ser trabalhada pelo professor à medida que os conteúdos vão sendo desenvolvidos e, desse modo, parece imperiosa a presença de um profissional com formação em EE e preparado para esse atendimento, a fim de auxiliar os professores e alunos nesse quesito. Esse é um papel que poderia ser assumido pelo NAPNE, que aqui se configura como o setor de EE dentro da escola, ou pelo próprio professor, caso tivesse conhecimento específico para seu uso. Foram, então, questionados sobre a utilização de outros recursos, como, por exemplo, os materiais táteis:

Pedro: Nunca usei. Mas eu sei que o NAPNE tinha alguns materiais, tinha o multiplano e alguns sólidos, mas eu não ia para lá. Então também não usei (Entrevista com colaborador, 2020).

Paula: Nunca usei nenhum material tátil em relevo. Também não tinha nada feito à mão como tinha no IBC. Ah, já utilizei o multiplano no NAPNE. Também utilizei uns sólidos geométricos. Eu tive um professor que levava uns materiais. Ele que fez. Esse gostava tanto de trabalhar com a gente que até comprava materiais. A escola tem multiplano, mas ele usava o dele (Entrevista com colaboradora, 2020).

Bia: Relevo?? Não! No NAPNE tinha uns sólidos geométricos que eu usei, mas era em 3D. Nunca usei materiais táteis nas aulas (Entrevista com colaboradora, 2020).

Sobre a importância do tato para as pessoas cegas, Almeida (2014ALMEIDA, M. G. S. A importância da literatura como elemento de construção do imaginário da criança com deficiência visual. Rio de Janeiro: Instituto Benjamin Constant, 2014. 204 p. Disponível em: http://www.ibc.gov.br/images/conteudo/livros/miolos_livros/A-IMPORTANCIA-DA-LITERATURA.pdf. Acesso em: jun. 2020.
http://www.ibc.gov.br/images/conteudo/li...
, p. 44) assinala que “a criança cega, para aprender de fato, precisa vivenciar, experimentar, atuar sobre o objeto de sua aprendizagem. Tudo o que a rodeia deve chegar-lhe às mãos. Assim, juízos podem ser aflorados, conceitos podem ser construídos”. De acordo com essa autora, uma criança com cegueira precisa, fundamentalmente, dos sentidos remanescentes, em especial do tato, para se desenvolver e formar imagens mentais, sob o risco de não se apropriar corretamente dos conceitos e daquilo que lhe é ensinado.

Santos (2017)SANTOS, R. C. O processo de adaptação de tabelas e gráficos estatísticos em livros didáticos de matemática em braille. 2017. 176 f. Dissertação (Mestrado em Ensino de Matemática) — Instituto de Matemática, Universidade Federal do Rio de Janeiro — Rio de Janeiro, 2017. define os materiais grafotáteis como recursos usualmente empregados na adaptação de figuras, tabelas, gráficos, letras, numerais e símbolos, em uma leitura acessível à pessoa com DV. Esses materiais podem ser produzidos por meio de softwares livres e de impressora Braille, mas também de forma artesanal pelo professor. Há também a possibilidade de serem reproduzidos no Thermoform, uma máquina que faz reproduções em relevo utilizando película de PVC, por meio do processo denominado termovácuo , que possibilita a reprodução em larga escala e a preços baixos.

Uma característica interessante e um dos pontos fortes dos materiais artesanais é que exigem, acima de tudo, o uso da criatividade por parte do professor ao confeccioná-los. No entanto, é necessário conhecer algumas características de seu público-alvo, tendo em vista que alguns materiais podem mostrar-se inapropriados, como, por exemplo, aqueles confeccionados com lixas para a produção de texturas destinadas a alunos cegos. O conhecimento básico do Sistema Braille também é um requisito importante, mas que pode ser compensado com o apoio institucional de profissionais especializados. Sem o acesso a textos e atividades em Braille e aos materiais táteis, os alunos passam a desempenhar o papel de ouvintes nas aulas de Matemática, deixando de participar das discussões e atividades propostas, conforme relatam Pedro, Paula e Bia.

Diante de tantos problemas e dificuldades, nota-se um descompasso entre a disponibilização e a utilização dos recursos nas aulas regulares. Os recursos estão presentes nas escolas de Pedro, Paula e Bia, mas não são utilizados. Os alunos citam o despreparo dos professores e a ausência de profissionais com formação em EE. Desse modo, tal situação faz com que, nas aulas de Matemática, o conteúdo seja transmitido, exclusivamente, por meio oral. As fragilidades nas estratégias de ensino não se devem somente às dificuldades dos professores, uma vez que cabe à escola oferecer oportunidades de formação continuada aos seus profissionais.

Essas dificuldades e fragilidades comprometem o desenvolvimento e a consolidação de práticas inclusivas. Booth e Ainscow (2011)BOOTH, T.; AINSCOW, M. Index para Inclusão: desenvolvendo a aprendizagem e a participação na escola. Tradução de Mônica Pereira dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: LaPEADE, 2011. apontam que caminhar para o desenvolvimento dessas práticas implica: (i) a construção de currículos voltados a todos, (ii) o desenvolvimento e o aprimoramento daquilo que se ensina e se aprende, bem como (iii) a forma como se ensina e se aprende, de modo a refletir as políticas e os valores inclusivos. Em outras palavras, o desenvolvimento de práticas inclusivas perpassa um modelo colaborativo de atuação, uma vez que, sozinho, o professor não tem autonomia para transformar um currículo historicamente pensado na normalidade em outro que valorize e respeite a diferença como premissa.

Quando se pensa em práticas pedagógicas que possam atender a todos, tem-se em mente o desenvolvimento de um planejamento que possa levar para a sala de aula igualdade de condições no aprendizado (equidade). Com cenários inadequados à aprendizagem, da forma como relatada pelos três colaboradores, questionou-se como se dava o processo avaliativo, uma vez que eles mencionaram um bom desempenho em Matemática, sem sequer terem ficado em recuperação nos dois primeiros anos do EM. De acordo com eles, as avaliações são realizadas no NAPNE, por meio de computador e com um tempo extra para sua finalização. São empregados os mesmos parâmetros adotados em relação aos demais alunos, porém as questões são diferentes, uma vez que são basicamente teóricas e exigem apenas a aplicação de fórmulas. Sobre esse aspecto, é importante destacar que as pessoas com DV são capazes de utilizar computadores, pois há softwares denominados leitores de tela , os quais possibilitam acessibilidade a quase todo o conteúdo de computadores e sítios da internet, desde que construídos de forma acessível.

Os leitores de tela também estão presentes nos celulares, o que faz com que as pessoas com DV utilizem com desenvoltura aplicativos de mensagens, redes sociais, jogos e outros, com limitação apenas no acesso às imagens, porventura não audiodescritas. Essa é exatamente uma das limitações dos leitores de tela, ou seja, as imagens. Outra dificuldade consiste na leitura da simbologia matemática, desenhos e gráficos que não se mostram acessíveis aos estudantes por meio desses leitores (por enquanto), o que faz do material tátil um elemento tão essencial aos alunos, conforme já citado. Assim, essas limitações fazem com que as avaliações realizadas no computador estejam adstritas às questões teóricas.

Pedro: Eu fazia separado da turma e escrevia em tinta mesmo. Só que era muito mais fácil. Nunca tive dificuldade. Eu diria que 2/3 da prova do pessoal. Eu não acho isso uma parada boa. A prova não era adaptada assim. Era mais fácil mesmo. Tipo, eles trocavam as questões, os números. A questão de a prova ser diferente, isso eu acho ruim, é tipo assim, cara, você tá ali pra ser preparado. O Enem não tem prova diferente. Como é que você vai pegar ali e ter uma parada diferente? Vai chegar no Enem e vai tomar uma pancada. Então eu acho muito errado (Entrevista com colaborador, 2020).

Paula: As avaliações são no NAPNE. A gente tem 30 minutos a mais para fazer. A avaliação é adaptada. Não tem aquela coisa de... desenhe uma figura. Isso não tem. É só resolver continhas, jogar as fórmulas e acabou. No primeiro ano até tinha figura, mas no segundo ano o professor decidiu que não ia colocar mais figuras na nossa prova. Só ia cobrar as fórmulas. Porque a matéria é diferente, né? Eles reduzem a quantidade de cobrança. O professor mesmo falava que a prova era mais fácil. Não tem nada escondido de ninguém, não. A gente faz no nosso computador, conecta o pendrive, salva as respostas lá e entrega pro professor (Entrevista com colaboradora, 2020).

Bia: As avaliações são provas que são dadas em salas separadas. No primeiro ano eu escrevia na reglete e punção. Mas no Napne eles preferem o uso de tecnologia. Então, eles não gostam que a gente faça a prova em Braille. Eles preferem que a gente faça no computador e salve no pendrive e entregue para eles, porque daí eles imprimem e entregam para o professor corrigir. Então eu sentia essa pressão pra não fazer em Braille. Mas são muito mais fáceis que as dos demais (Entrevista com colaboradora, 2020).

Mas, com essa realidade, como você se autoavalia em Matemática?

Pedro: Eu nunca tive dificuldades, acho que fui bem.

Bia: Ah, eu acho que fui bem. Nunca fiquei de recuperação. Apesar de que a prova é bem mais fácil, né? Não cai um monte de coisas, então não dá pra dizer muito bem se sou boa ou não.

Paula: Assim, eu posso dizer que eu fui bem, eu me saía bem. Eu não falto às aulas. Muito raro. Por mais que a gente não aprenda as coisas na sala de aula, a gente tem o NAPNE, esse suporte. Eu conseguia fazer as provas de boa. Não tinha muita dificuldade. Nunca tirei uma nota vermelha, mas a minha turma sempre saía reclamando da prova (Entrevistas com colaboradores, 2020).

Por fim, pediu-se aos estudantes que manifestassem suas opiniões e sugestões com o propósito de melhorar os próprios processos de inclusão, mas pensando, essencialmente, em outras realidades e redes de ensino, sobretudo para viabilizar ações que permitam refletir e avançar nesses processos. Entre as falas mais significativas, destaca-se a necessidade de uma preocupação real com as pessoas com deficiência nas escolas, além de ações e atitudes que não as diferenciem dos demais alunos na prática das atividades. Citaram discordar, veementemente, das dispensas de conteúdos e atividades escolares, bem como da adoção do rótulo de aluno diferente , aluno do AEE.

Pedro: Meu sentimento hoje é daquele aluno que era incluído, mas aquele aluno que sempre era tachado como DV, e não como mais um aluno. Por exemplo, tinha a prova pra todo mundo e a prova para o pessoal do NAPNE. Eu não podia assistir às aulas de Desenho, aulas de Educação Física. Eu não sei se, em relação a isso, eu posso pensar em uma segregação, algo que tipo a gente tá ali, a gente faz parte daquilo ali, mas tem sempre aquele rótulo de deficiente, sabe? Para mim, a inclusão não significa igualdade, porque a igualdade acaba gerando exclusão (Entrevista com colaborador, 2020).

Mencionaram, também, a necessidade de se empregarem recursos e materiais que possibilitem acessibilidade ao conteúdo: uso do Braille, envio de textos com antecedência por e-mail , em um formato acessível, e questões relacionadas à acessibilidade física e estrutural. Todos mencionaram a necessidade de haver mais recursos humanos na escola. De acordo com eles, faltam professores e profissionais especializados, e a atuação docente em salas de aula com muitos alunos representa um grande desafio.

Bia: Na minha escola eu acho que existe uma tentativa de incluir que a gente tem que admirar. Tem professores que fazem mais coisas, mas tem professores que não fazem nada. Faltam profissionais, falta uma preocupação real com os deficientes. É difícil participar das aulas (Entrevista com colaboradora, 2020).

Paula: Eu contrataria mais profissionais e um professor coparticipador para a sala de aula. Não é culpa do professor. Às vezes ele quer ajudar, mas poxa, como ele vai fazer? Trinta alunos mais quatro deficientes? A inclusão é você se juntar com os demais alunos e discutir a respeito, é você ter a mesma matéria que os demais em sala. Isso é inclusão. Não vou dizer, professor, não use o quadro, mas eu acho que ele deveria ter uma preocupação com quem está ali. Se você não lutar muito, não consegue, acaba desistindo e saindo da escola, como já aconteceu. Se eu não tivesse me virado sozinha, não teria conseguido. Tem que ter muita força de vontade (Entrevista com colaboradora, 2020).

Sobre a presença de outros profissionais em sala de aula, a literatura apresenta o professor-colaborador como uma alternativa. De acordo com Marin e Maretti (2014)MARIN, M.; MARETTI, M. Ensino colaborativo: estratégias de ensino para a inclusão escolar. In: Seminário Internacional de Inclusão Escolar: práticas em diálogo, 1., 2014, Rio de Janeiro. Anais [...] Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro-UERJ, 2014. , a colaboração deve ser encarada como uma parceria entre o professor da turma regular e os professores com formação em EE. Assim, eles são capazes de compartilhar a responsabilidade pelo planejamento, a atuação e a avaliação das práticas pedagógicas, de modo a garantir que cada aluno tenha acesso ao mesmo conjunto de conhecimentos dos demais estudantes.

Igualmente, o ensino colaborativo proporciona a articulação entre os saberes da EE e do ensino comum, fazendo uso das habilidades dos dois professores, respeitando, assim, os conteúdos, o currículo escolar e as necessidades dos alunos. Mas parece que esse é mais um grande desafio para as escolas públicas, que dependem de recursos financeiros para contratações e das ações políticas de outras instâncias. Além disso, tal proposta demanda uma mudança de paradigma, pois envolve a ideia de haver dois professores atuando de forma articulada numa mesma sala de aula.

6 Considerações finais

Do que se observa na literatura e com base nas estatísticas dos censos escolares, conclui-se que o acesso à escola foi um dos principais avanços e conquistas das pessoas com deficiência nos últimos anos. Contudo, acredita-se que a inclusão nos espaços escolares pressupõe um processo longo, contínuo e sempre em (re)construção, um processo que deve estar focado no ensino, nas condições e oportunidades de aprendizagem oferecidas aos alunos em detrimento as suas limitações, aparentemente intransponíveis, ou devido à deficiência que apresentam. Portanto, incluir é muito mais do que possibilitar acesso às escolas ou promover o convívio social, abarcando a necessidade de se garantirem condições adequadas aos estudantes, a fim de que possam aprender e se desenvolver.

Além disso, é necessário ocorrer uma (re)estruturação física, estrutural e pedagógica dos espaços escolares, além da urgência em se (re)pensarem os cursos de licenciatura e formação continuada daqueles que já atuam nas escolas, com o fim de assegurar que os estudantes com deficiência tenham condições de concluir seus estudos com mais autonomia, equidade e protagonismo nas salas de aula.

Não há dúvida de que, em um cenário ideal, todas as escolas do país deveriam adotar princípios mais humanizados e verdadeiramente inclusivos em relação a todos, mas, infelizmente, a realidade é outra. As escolas convivem com múltiplos problemas, como estrutura precária, repetência, acentuada evasão de alunos, desvalorização e baixos salários dos professores, além da falta de apoio à qualificação e ao aperfeiçoamento profissional de todo o corpo docente, técnico e administrativo, o que certamente contribui para o aumento da crise institucional da educação.

Nesse sentido, nota-se que as recomendações legais representam, em geral, abstrações daquilo que é politicamente desejado, com uma grande lacuna entre teoria e prática. As leis, as portarias e os decretos entram em vigor, mas não se sabe de que forma implementá-los, de onde virão os recursos necessários à sua execução, tampouco de que maneira se dará a fiscalização das instituições que não os cumprem.

Nossa percepção – e a de muitos outros pesquisadores – é de que a EE é um importante instrumento colaborativo, tanto para a formação e a qualificação de profissionais como para as ações pedagógicas em sala de aula, com vistas à (re)conceitualização das necessidades educacionais especiais em uma perspectiva inclusiva. No entanto, o AEE nas escolas inclusivas não deve substituir as aulas regulares comuns, como destacaram Pedro, Paula e Bia em suas experiências escolares, sob o risco de retornarmos a um modelo integrativo já superado em nossa educação, ao menos na teoria.

Nossos colaboradores mencionaram pontos importantes, como a oferta e a disponibilização de recursos em suas respectivas realidades escolares, a preocupação de seus professores em melhor prestar-lhes atendimento, embora, no AEE, destacado dos demais estudantes, e o fato destes serem os responsáveis pelo atendimento, o que demonstra acesso aos mesmos conteúdos que os demais alunos. Esses são avanços que devem ser observados por outras redes de ensino. No entanto, os entrevistados apontaram problemas, fragilidades e dificuldades que estão sendo/foram superados com luta, perseverança e, acima de tudo, resiliência. Entre as principais contribuições, eles salientaram a importância e a necessidade de haver mais recursos humanos nas escolas, como professores e profissionais com formação em EE e melhores condições e oportunidades nas aulas de Matemática, além de acesso a recursos e materiais que tornem acessível o conteúdo dessa disciplina junto aos demais.

Ao se considerar uma sociedade culturalmente pensada por e para pessoas sem deficiência, espera-se que as contribuições possam colaborar para um ensino de Matemática mais equânime e inclusivo, sobretudo na perspectiva de proporcionar aos alunos equidade em seu processo de ensino e aprendizagem.

Referências

  • ALMEIDA, M. G. S. A importância da literatura como elemento de construção do imaginário da criança com deficiência visual. Rio de Janeiro: Instituto Benjamin Constant, 2014. 204 p. Disponível em: http://www.ibc.gov.br/images/conteudo/livros/miolos_livros/A-IMPORTANCIA-DA-LITERATURA.pdf Acesso em: jun. 2020.
    » http://www.ibc.gov.br/images/conteudo/livros/miolos_livros/A-IMPORTANCIA-DA-LITERATURA.pdf
  • BERNARDO, F. G.; GARCEZ, W. R.; SANTOS, R. C. Recursos e metodologias indispensáveis ao ensino de matemática para alunos com deficiência visual. Revista de Educação, Ciências e Matemática, Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, p. 23-42, jan./abr., 2019.
  • BONI, V.; QUARESMA, S. J. Aprendendo a entrevistar: como fazer entrevistas em Ciências Sociais. Em tese, Florianópolis, v. 2, n. 1, p. 68-80, 2005. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/emtese/article/view/18027/16976 Acesso em: Jan 2018.
    » https://periodicos.ufsc.br/index.php/emtese/article/view/18027/16976
  • BOOTH, T.; AINSCOW, M. Index para Inclusão: desenvolvendo a aprendizagem e a participação na escola. Tradução de Mônica Pereira dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: LaPEADE, 2011.
  • BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília, 2008.
  • BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Secretaria de Educação Especial. Atendimento Educacional Especializado: deficiência visual. Brasília, 2007.
  • BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Secretaria de Educação Especial. Código matemático unificado para a língua portuguesa. Brasília, 2006.
  • BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Secretaria de Educação Especial. Grafia Braille para a língua portuguesa. Brasília, 2002.
  • MARIN, M.; MARETTI, M. Ensino colaborativo: estratégias de ensino para a inclusão escolar. In: Seminário Internacional de Inclusão Escolar: práticas em diálogo, 1., 2014, Rio de Janeiro. Anais [...] Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro-UERJ, 2014.
  • MORAES, R. Análise de conteúdo. Revista Educação, Porto Alegre, v. 22, n. 37, p. 7-32, 1999.
  • ROSA, F. M. C. Histórias de vida de alunos com deficiência visual e de suas mães: um estudo em Educação Matemática Inclusiva. 2017. 259 f. Tese (Doutorado em Educação Matemática) — Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” — Unesp, Rio Claro, 2017.
  • SANTOS, R. C. O processo de adaptação de tabelas e gráficos estatísticos em livros didáticos de matemática em braille. 2017. 176 f. Dissertação (Mestrado em Ensino de Matemática) — Instituto de Matemática, Universidade Federal do Rio de Janeiro — Rio de Janeiro, 2017.
  • SILVA, A. M. C.; CABRAL, C. A. F.; SALES, E. R. Percepções de alunos cegos sobre sua formação: contribuições no ensino e aprendizagem de Matemática em classes inclusivas. Perspectivas da Educação Matemática, Mato Grosso do Sul, v. 11, n. 27, 2018.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    22 Maio 2021
  • Aceito
    13 Set 2021
UNESP - Universidade Estadual Paulista, Pró-Reitoria de Pesquisa, Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática Avenida 24-A, 1515, Caixa Postal 178, 13506-900 - Rio Claro - SP - Brazil
E-mail: bolema.contato@gmail.com