Open-access Conservação e qualidade de filés de grumatã (Prochilodus lineatus) após diferentes períodos de depuração e congelamento

Resumo

O objetivo deste estudo foi avaliar as características físico-químicas, microbiológicas, sensoriais e de qualidade de carne de filés de grumatã após diferentes períodos de depuração (0, 48, 72 e 96 h) e congelamento (0, 2, 4 e 6 meses). Os peixes coletados em barragem foram distribuídos em tanques em uma densidade de 3,8 Kg m3 -1. Após os períodos de depuração todos os peixes foram filetados e as amostras de filé foram estocadas (-18°C) até serem analisadas. Menor conteúdo de gordura foi encontrado nos peixes submetidos a depuração por 48 e 96 h comparado aqueles não depurados e depurados por 72 h. Proteína muscular foi preservada nos tratamentos 48 e 96 h. Staphylococcus coagulase-positiva, coliformes a 45ºC e Salmonella spp. não foram observados nos filés, mas microorganismos mesófilos aeróbios e coliformes a 35ºC foram encontrados. A análise sensorial não demonstrou diferenças significativas nos atributos aparência, cor, textura, sabor e aceitação global. Durante o congelamento, os valores de pH, Bases Nitrogenadas Voláteis Totais (BVNT), peróxidos e Substâncias Reativas ao Ácido Tiobarbitúrico (TBARS) foram avaliados em amostras de filé a cada dois meses. Os valores de pH aumentaram após quatro meses de estocagem. Os valores de BVNT variaram nos filés dos peixes depurados por 48 e 96 h. Os valores de peróxidos aumentaram a partir do quarto mês de congelamento e no sexto mês os valores mais altos foram observados. Para TBARS, valores altos foram encontrados em filés de peixes não depurados e menores valores nos tratamentos depurados. Assim, a depuração mostrou ser mais eficiente para manter a qualidade de filés de grumatã armazenados congelados.

Palavras-chave: Off-flavor; Sabor; Odor; Oxidação lipídica; Análise sensorial

Abstract

The aim of this study was to evaluate the physicochemical, microbiological, sensory and meat quality characteristics of grumatã fillets after different depuration (0, 48, 72 and 96 h) periods and frozen storage (0, 2, 4 and 6 months). The fish collected in a dam were distributed in tanks at a density of 3.8 kg m3 -1. After depuration periods, all fish were filleted and the fillet samples stored (−18 °C) until analyses. Lower fat content was found in fish submitted to depuration for 48 and 96 h compared to the non-depurated and those depurated for 72 h. Muscle protein was preserved in 48 and 96 h treatments. Coagulase-positive Staphylococcus, coliforms at 45 °C and Salmonella spp. were not observed in the fillets, but aerobic mesophilic microorganisms and coliforms at 35 ºC were detected. Sensory analysis showed no significant differences in appearance, colour, texture, flavour attributes and overall acceptance. During frozen storage, pH, total volatile basic nitrogen (TVB-N), peroxide and thiobarbituric acid reactive substance (TBARS) values were evaluated in fillet samples every two months. The pH values increased up to four months of storage. The TVB-N values ranged in fillets from fish depurated for 48 and 96 h. Peroxide values increased from the fourth month of storage, with the highest values observed in the sixth month. For TBARS values, increased values were found in fillets from non-depurated fish and lower values in other depuration periods. Thus, depuration is more efficient in maintaining the quality of grumatã fillets in frozen storage.

Keywords: Off-flavor; Flavor; Odor; Lipid oxidation; Sensory analysis

Introdução

No Brasil, o crescimento da aquicultura está relacionado à demanda por alimentos saudáveis, uma vez que a carne de peixes possui alto teor de aminoácidos essenciais, alta digestibilidade, ácidos graxos poliinsaturados e baixo colesterol(1). Porém, a disponibilidade de uma espécie de peixe não representa alta aceitação e consumo por parte dos consumidores. Um exemplo é o grumatã ou curimbatá (Prochilodus lineatus), uma das espécies mais comumente encontradas e pescadas nos rios brasileiros(2). Devido à presença de espinhos intramusculares, sabor da carne desagradável e odor indesejável, há baixa aceitação pelos consumidores.

Devido ao seu hábito alimentar detritívoro-iliófago, o grumatã é conhecido como 'papa-terra'. Bactérias e fungos fazem parte de sua dieta e são responsáveis pela produção de geosmina e 2-metilisoborneol (MIB), compostos que causam sabor de terra e mofo, também conhecido como off-flavor. Geosmina e MIB são absorvidos pelas brânquias, intestino ou pele dos peixes e podem ser acumulados no tecido adiposo(3). O grumatã pode ser classificado como uma espécie moderadamente gorda, devido à presença de gordura que varia de 5 a 10%. Esse conteúdo pode contribuir para o sabor de terra, mofo e odor indesejável da carne(4). Como alternativa para suavizar o off-flavor, pode ser aplicado um processo de depuração, etapa em que os peixes são mantidos em jejum em tanques com água limpa e corrente antes do abate.

Embora o peixe passe por períodos de depuração, uma série de alterações físicas, químicas, bioquímicas e microbiológicas ocorrem após o abate. Essas alterações começam com ação enzimática endógena nos músculos (autólise), associada a fatores intrínsecos que determinam a deterioração dos peixes, como a presença de grande quantidade de água e nutrientes na carne, lipídios insaturados, pH próximo da neutralidade e atividade de microorganismos(1). Além disso, o alto grau de insaturação dos ácidos graxos na carne dos peixes é responsável pela suscetibilidade à oxidação lipídica. Portanto, durante o armazenamento do peixe, análises devem ser realizadas para monitorar e avaliar sua qualidade. Assim, o objetivo deste estudo foi avaliar as características físico-químicas, microbiológicas, sensoriais e de qualidade da carne de grumatã após diferentes períodos de depuração (0, 48, 72 e 96 h) e armazenamento congelado (0, 2, 4 e 6 meses).

Material e métodos

A licença para coleta de animais silvestres foi concedida pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (protocolo 47353/2). Todos os procedimentos que envolveram animais, coleta de carnes e análises sensoriais foram aprovados pelo Comitê de Ética em Pesquisa, da Universidade Federal do Pampa (número 1.013.479, CAAE protocolo número 39982314.0.0000.5323).

Os grumatãs (Prochilodus lineatus) foram coletados em uma barragem localizada no município de Uruguaiana, estado do Rio Grande do Sul, Brasil (29° 34' 47.3" S; 56° 50' 39.1" W), fora do período reprodutivo da espécie. Os peixes foram capturados com rede de malha de 7 cm e transportados (caixa de transporte com capacidade de 250 L) para o Centro de Tecnologia de Pesca e Aquicultura, da Universidade Federal do Pampa. Vinte e um peixes (machos e fêmeas) foram pesados ​(1,89 ± 0,47 kg) e medidos (45,22 ± 2,39 cm) individualmente. Destes, seis exemplares foram abatidos imediatamente para constituir o tratamento 0 h (sem depuração). Os outros 15 exemplares foram distribuídos aleatoriamente em três tanques, com aproximadamente 2100 L (cinco peixes por tanque), com fluxo contínuo de água e uma biomassa remanescente próxima a 3,8 kg m3 -1 para a etapa de depuração. Os períodos de depuração foram 48 h, 72 h e 96 h. No presente estudo, o período de depuração de 24 h não foi realizado devido aos nossos resultados anteriores(4), que não mostraram diferenças nas características sensoriais dos filés de grumatã, pois pode ser considerado um período de depuração muito curto.

Durante a depuração, os parâmetros de qualidade da água dos tanques foram analisados diariamente, obtendo-se os seguintes valores médios: vasão: 4,67 ± 0,9 L min-1; temperatura: 23,53 ± 0,37 °C; oxigênio dissolvido: 5,38 ± 1,22 mg L-1 e amônia total: 0.05933 ± 0.026 mg L-1. Ao final do período, também foram avaliados a alcalinidade, dureza, pH, condutividade e turbidez. Os valores médios encontrados foram: 201,67 e 121,33 mg L-1 CaCO3; 7,74 unidades; 661,367 µS cm-1 and 0 unidades nefelométricas de turbidez, respectivamente.

Todos os animais foram abatidos por hipotermia (água:gelo 1:1) e pesados para cálculo da perda de peso (%). Os filés foram retirados e pesados para determinar o seu rendimento (%). Os filés foram lavados em água corrente e, posteriormente, em água contendo 10 ppm de cloro. As amostras dos filés foram armazenadas em sacos plásticos a −18 °C por 30 dias até serem utilizadas para avaliação da composição físico-química, microbiológica e análise sensorial. Subamostras também foram armazenadas a −18 °C para medição da conservação do filé em zero (inicial), dois, quatro e seis meses de armazenamento. As análises físico-químicas de matéria seca (105 °C/24 h), cinzas (500 °C/4 h) e proteína bruta (N × 6,25 pelo método micro-Kjeldahl) foram determinadas de acordo com os métodos propostos pela Association of Official Analytical Chemists(5). A gordura foi extraída e quantificada pelo método de extração a frio proposto por Bligh e Dyer(6).

A qualidade microbiológica dos filés foi avaliada de acordo com as metodologias propostas pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento(7). Foi determinada a quantidade de coliformes a 35 °C e 45 °C, Staphylococcus coagulase-positiva, Salmonella spp., microrganismos aeróbios mesófilos, bolores e leveduras.

Para a análise sensorial, um total de 73 julgadores não treinados (52% homens e 48% mulheres), com idade entre 18 e 60 anos, avaliaram as amostras. Aproximadamente, 10 g de amostra de filé foram embaladas em papel alumínio, cozidas em forno elétrico (250 °C por 15 min) e imediatamente oferecidas aos julgadores. Água e biscoitos água e sal foram fornecidos para limpar o paladar entre as amostras. O teste de aceitação foi realizado por meio de uma escala hedônica de sete pontos, variando de 1 = desgostei muitíssimo a 7 = gostei muitíssimo. Cada julgador foi solicitado a avaliar a aparência, cor, textura, sabor e aceitação geral das amostras de filé, conforme proposto por Dutcosky(8).

Para avaliar a qualidade da carne, as amostras armazenadas a −18 °C foram analisadas aos meses zero, dois, quatro e seis de armazenamento. O pH (potencial hidrogeniônico) foi medido usando um medidor portátil de pH de carne (Akso Produtos Eletronic, Rio Grande do Sul, Brasil). Para determinar as bases nitrogenadas voláteis totais (BNVT)(9), 50 g de amostra de filé foram homogeneizadas em solução de ácido tricloroacético 5% (1:3 p:v) por 1 min. Em seguida, 10 mL de filtrado foram transferidos para um tubo de destilação e foram adicionados 1 g de óxido de magnésio e 20 mL de água. O produto destilado (100 mL) foi recebido em solução de ácido bórico e indicador misto e titulado com solução de ácido sulfúrico 0,01 N para a determinação de amônia e aminas voláteis.

Substâncias reativas ao ácido tiobarbitúrico (TBARS) foram avaliadas de acordo com Buege e Aust(10). Para essa análise, uma amostra (1 g) foi homogeneizada em solução cloreto de potássio 1,15% (1:5 p:v) e, depois, centrifugada (10 min a 3.000 rpm). O sobrenadante (0,75 mL) foi incubado em banho de água (100 °C/15 min) com solução de ácido tricloroacético 30% e ácido tiobarbitúrico 0,67%. Após aquecimento, foi adicionado álcool n-butílico (1,5 mL) para extrair o produto colorido. A absorvância foi medida a 535 nm. A curva padrão foi construída usando solução de malonildialdeído (MDA) (0,6 to 12 nmol).

Os peróxidos foram determinados de acordo com Chapman e Mackay(11). Inicialmente, a gordura foi extraída das amostras de filé(6). Depois, amostras de gordura (200 µL) foram dissolvidas em solução de benzeno:metanol (70:30 v:v), seguido da adição de tiocianato de amônio 30% (10 µL) e cloreto ferroso (10 µL). As amostras foram incubadas a 50 °C durante 2 min e avaliadas a 520 nm. A curva padrão foi construída usando solução de ferro (0,7 to 7,1 µmol).

Em relação à análise estatística, os dados de análises físico-químicas e sensoriais foram analisados através de análise de variância (ANOVA) de uma via. Os valores médios foram comparados pelo teste de Tukey (p < 0,05). Os dados de qualidade da carne foram analisados usando ANOVA de duas vias (período de depuração e meses de armazenamento). As médias foram comparadas usando o teste de Tukey (p < 0,05). O software Statistica version 7.0(12) foi utilizado para realizar as análises estatísticas.

Resultados e Discussão

Os dados da perda de peso e rendimento de filé são mostrados na Tabela 1. Todos os peixes que foram depurados tiveram perda de peso. Esse comportamento está relacionado à redução do conteúdo intestinal e, provavelmente, da gordura corporal, o que pode influenciar no rendimento do filé. Em relação a esse rendimento, os peixes não depurados renderam 45,8% e os peixes depurados variaram de 36,5 a 40%. Devido ao formato fusiforme de seu corpo, o grumatã apresenta maior rendimento de filé em comparação com outras espécies, como a tilápia, que possui corpo comprimido e rendimento de filé variando de 28 a 31%(13). Além disso, o rendimento do filé também está relacionado ao método de filetagem aplicado e à habilidade do filetador.

Tabela 1
Perda de peso, rendimento de filé e composição fisico-química de filés de Prochilodus lineotus após diferentes períodos de depuração

Para a composição físico-química (Tabela 1), os peixes submetidos a 48 e 96 h de depuração apresentaram menor teor de matéria seca (MS) do que os depurados por 72 h. Nesses tratamentos, maior teor de cinzas e proteína bruta e menor teor de gordura também foram encontrados em relação aos demais tratamentos (0 e 72 h). Em filés de exemplares de P. cearensis, capturados em barragens de março a julho (peso médio: 400 g), foram registrados valores de 23,7% de MS, 5,4% de cinzas, 78% de proteína bruta e 16% de gordura (dados com base em MS)(14). Esses valores são semelhantes aos encontrados nos filés de grumatã depurados por 48 e 96 h. No entanto, a gordura e a MS (umidade) são os componentes mais sujeitos a alterações na carne. A umidade e a gordura variam de acordo com a dieta fornecida, idade e tamanho dos peixes, sexo, estágio reprodutivo, parte do corpo analisada, época do ano e temperatura da água(15). Os exemplares deste estudo foram capturados em barragem, um ambiente lêntico com alta disponibilidade de alimentos, e encontravam-se na fase adulta, fatores que contribuíram para o alto acúmulo de gordura corporal, visto que os valores encontrados neste estudo variaram de 3 a 7,8%, em base úmida, ou 12,1 a 23,9% em MS.

Além das variações naturais na composição da carne entre diferentes exemplares durante os períodos de depuração, as mudanças observadas nos teores de gordura e proteína bruta dos filés também podem estar relacionadas ao uso de constituintes corporais, como glicogênio, proteína e triglicerídeos, que fornecem um suprimento de energia durante os períodos de jejum. Nas primeiras horas, em situação de privação alimentar, o glicogênio hepático é degradado para liberar glicose aos tecidos corporais. Esgotadas as reservas de glicogênio, o fígado passa a adotar a via da gliconeogênese, convertendo os substratos precursores - aminoácidos (degradados da proteína muscular), glicerol (oxidação dos triglicerídeos do tecido adiposo) e lactato (metabolismo anaeróbico das hemácias) - em glicose(16). Em períodos mais longos (3 a 4 dias de jejum), a proteólise muscular que fornece aminoácidos para a gliconeogênese diminui porque a reserva de proteína é limitada. Nessa condição, os ácidos graxos mobilizados do tecido adiposo são utilizados na síntese de corpos cetônicos e representam uma energia alternativa à glicose para tecidos extra-hepáticos, como células nervosas do sistema nervoso central e células musculares(17). Assim, no presente estudo, essas rotas metabólicas podem ter influenciado também o teor de proteína e gordura da carne, em peixes que permaneceram em jejum durante os períodos de depuração (principalmente por 48 e 96 h).

A análise microbiológica mostrou a presença de microrganismos aeróbios mesófilos nas amostras de filé (UFC g-1): 0 h: 1,3 x 103; 48 h: 1,0 x 103; 72 h: 1,4 x 103 and 96 h: 3,0 x 103. Coliformes a 35 °C também foram detectados em todos os tratamentos (NMP g-1): 0 h: 2,3 x 101; 48 h: 4,6 x 102; 72 h: 1,1 x 103 and 96 h: 4,6 x 102. A contagem de bolores e leveduras, Staphylococcus coagulase-positiva, coliformes a 45 °C e Salmonella spp., não foi observada nas amostras de filé. De acordo com a RDC n. 12 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA)(18), as análises microbiológicas obrigatórias para avaliação de pescado fresco requerem a determinação de Staphylococcus coagulase-positiva e Salmonella ssp., a fim de garantir as condições sanitárias desse produto. Assim, os resultados aqui obtidos estão de acordo com os valores estabelecidos na RDC n.12. De acordo com a legislação brasileira, as análises de microrganismos aeróbios mesófilos e coliformes a 35 °C não são obrigatórias, mas sua determinação é importante para indicar a eficácia das boas práticas de fabricação (limpeza, desinfecção e controle de temperatura). Os microrganismos aqui detectados (baixas contagens) devem ser eliminados por processos de cozimento aplicados antes da análise sensorial.

Em relação aos atributos de aparência, cor, textura, sabor e aceitação geral, não foram encontradas diferenças significativas nos filés de grumatã depurados por diferentes períodos (Tabela 2). Para todos os atributos, nos diferentes períodos de depuração, as pontuações foram "gostei moderadamente". Esses resultados mostram que a carne de grumatã teve alta aceitação por julgadores não treinados.

Tabela 2
Análise sensorial em filés de Prochilodus lineatus após diferentes períodos de depuração

Em um estudo com exemplares de grumatã coletados em barragem e depurados por até 120 h(4), foi relatada alta aceitação para todos os atributos e as pontuações foram 'nem gostei nem desgostei' e 'gostei moderadamente'. No entanto, a aceitação das amostras de filé pelos consumidores foi maior para os peixes depurados por 96 h (15%) em comparação com os não depurados. A aceitação do consumidor depende da sensibilidade de cada indivíduo e é influenciada por hábitos e padrões culturais. Além disso, a eliminação de substâncias características de off-flavor durante a depuração depende da intensidade inicial de deposição dessas moléculas no tecido adiposo e, consequentemente, do teor de gordura do peixe(3). Assim, o grumatã, caracterizado como 'moderadamente gordo', tende a depositar mais geosmina e MIB do que espécies 'magras', como tilápia e pirarucu(19). Dessa forma, a eliminação dessas moléculas pode demorar mais do que os períodos avaliados no presente estudo. Além disso, a sensibilidade à avaliação das características sensoriais varia entre consumidores treinados e não treinados. Por exemplo, em um estudo realizado com amostras de Salmo salar (salmão), consumidores treinados definiram um período de 10 a 15 dias em água livre de geosmina e MIB como necessário para atingir o nível mais baixo de moléculas causadoras de off-flavor na carne de peixe(20).

Os valores de pH são mostrados na Figura 1A. Valores maiores foram observados em amostra de filé de peixes submetidos a 48 h de depuração em relação aos não depurados, desde o período inicial. A mesma tendência foi observada em filés de peixes submetidos a 72 h de depuração, após quatro meses de armazenamento. O filé de grumatã depurado por 96 h apresentou valores de pH semelhantes aos não depurados em todos os períodos de análise.

Figura 1
(A) pH; (B) Bases Nitrogenadas Volateis Totais; (C) Peroxidos e (D) valores de TBARS em filés de Prochilodus lineatus após diferentes períodos de depuração. Resultados estão expressos como média ± desvio padrão (n = 4). Letras minúsculas indicam diferenças significativas entre os tratamentos dentro do mesmo período (no mês) pelo teste de Tukey (p <0.05). Letras maiúsculas indicam diferenças significativas entre os meses, dentro do mesmo tratamento, pelo teste de Tukey (p <0,05). Fonte: Elaboração própria (2019).

Os valores de pH e BNVT são os principais parâmetros químicos usados para determinar o grau de frescor nos peixes(21). Valores mais baixos de pH são alcançados após o estágio de rigor mortis, como resultado da quebra anaeróbia de glicogênio em ácido lático, e contribuem para retardar a deterioração dos peixes(1). Em peixes mantidos refrigerados ou congelados, o pH aumenta devido aos processos de deterioração autolítica, bacteriana e oxidativa de proteínas, gorduras, vitaminas e minerais, que geram moléculas alcalinas e alteram as características e o valor nutricional(1,22). No presente estudo, os valores de pH aumentaram para todos os períodos de depuração durante o armazenamento. No entanto, o aumento foi mais expressivo nos filés de peixes depurados por 48 h. Tais processos de degradação de compostos amino e outras moléculas podem ocorrer de forma mais intensa neste tratamento, o que pode estar relacionado ao maior teor de proteína nos filés. De acordo com a legislação brasileira, o valor de pH da carne de peixe deve ser inferior a 7,0 para ser considerado como produto fresco(23). Além disso, mesmo com o aumento do pH durante o armazenamento congelado, os filés de grumatã ficaram dentro dos limites estabelecidos pela legislação em todos os tratamentos.

Após seis meses de congelamento, o valor de pH nos filés de grumatã atingiu valores próximos aos iniciais para todos os períodos de depuração avaliados (0, 48, 72 e 96 h). Uma variação de valores também foi observada em outro estudo realizado com amostras de tilápia em armazenamento congelado, o que pode estar associado às alterações químicas que ocorrem na carne durante o armazenamento (dissolução de CO2 no músculo do peixe ou produção de bases nitrogenadas voláteis)(24). Assim, entre os períodos de depuração, 96 h parece proporcionar melhores resultados de pH para contribuir com o frescor da carne, não havendo diferenças entre os valores dos peixes não depurados, que são sempre menores durante o armazenamento congelado. Para uma avaliação mais precisa quanto à qualidade da carne de peixes, o pH deve ser considerado em conjunto com outros parâmetros.

Em relação as BNVT (Figura 1B), no período inicial e aos quatro meses de armazenamento, não foram encontradas diferenças entre os períodos de depuração. Após dois meses de armazenamento, um valor reduzido foi observado nos filés de peixes depurados por 96 h em relação aos demais períodos. Após seis meses, os filés de peixes depurados por 48 h apresentaram valor superior aos não depurados, não havendo diferenças significativas entre os demais períodos de depuração.

As BNVT são produzidas por enzimas endógenas à carne e têm origem bacteriana em peixes, atuando principalmente sobre peptídeos, aminoácidos livres, óxido de trimetilamina, creatina, constituintes da fração de nitrogênio não protéico da carne, além de proteínas(9). As principais alterações causadas nos compostos de nitrogênio são a redução do óxido de trimetilamina para trimetilamina, a descarboxilação de aminoácidos resultando em aminas biogênicas (histamina, putrescina, cadaverina e outros) e a quebra da uréia liberando amônia(1,15). Os valores de BNVT correspondem às moléculas voláteis: amônia, trimetilamina e dimetilamina, resultantes da deterioração dos peixes(9). Peixes com excelente estado de frescor devem ter de 5-10 mg% de nitrogênio na forma de BNVT. No entanto, a legislação brasileira estabelece valores de até 30 mg% como aceitáveis para um produto ser considerado fresco(23). Assim, os filés de grumatã de todos os períodos de depuração e condições de armazenamento estiveram dentro dos limites estabelecidos pela legislação e podem ser considerados em bom estado de frescor. Além disso, esse resultado sugere que os filés podem ser armazenados por mais tempo. O conteúdo inicial de BNVT nos peixes é influenciado pela espécie de peixes e pelo manejo aplicado antes e após o abate, como processos tecnológicos para conservação da carne(9). Desta forma, espécimes de pirarucu (Arapaima gigas), abatidos e armazenados inteiros em gelo, apresentaram 6,65 mg% de BNVT em período inicial de armazenagem e 18,76 mg% após 36 dias(19). Filés de tilápia armazenados congelados apresentaram valor inicial de 12,6 mg% e aos 150 dias aumentaram para 21,9 mg% de BNVT, o que indica relação entre essas moléculas com a espécie e todos os manejos aplicados no pré e pós-abate(22).

Para a quantidade de peróxidos (Figura 1C), não foram encontradas alterações significativas entre os períodos de depuração e valores baixos foram observados em até dois meses de armazenamento. No quarto mês, os filés de peixes depurados por 48 h apresentaram menor valor de peróxidos em comparação com os depurados por 72 e 96 h. No sexto mês, maiores valores foram encontrados nos filés de peixes submetidos a 48 e 72 h de depuração, com diferenças entre os não depurados e os depurados por 96 h.

O peixe é muito suscetível à oxidação lipídica devido ao alto teor de gorduras e/ou ácidos graxos insaturados nos tecidos, que estão sujeitos à ação de agentes oxidantes, como oxigênio, metais e peróxidos com geração de substâncias altamente reativas (radicais livres) e ácidos graxos. Consequentemente, seu valor nutricional pode ser reduzido devido ao processo oxidativo(25). Esses processos também alteram as proteínas musculares e as propriedades sensoriais, como cor, aroma, sabor e textura da carne(1). O hidroperóxido, medido como o valor do peróxido, é o principal produto da oxidação de lipídios na carne. Os hidroperóxidos são compostos instáveis e sua quebra gera moléculas voláteis, como aldeídos, cetonas e álcoois que alteram, entre outras características, o aroma da carne. Essas moléculas voláteis representam o segundo estágio no processo de oxidação de lipídios(26). Assim, no presente estudo, a formação de hidroperóxidos nos filés ocorreu de forma mais intensa após quatro meses e se intensificou após seis meses de armazenamento. O teor de gordura e a presença de pró-oxidantes podem ter contribuído para esse processo, que foi observado em todos os tratamentos. Em estudo com filés de tilápia (O. niloticus x T. mosambicus), Karami et al.(22) encontraram aumentos graduais nos valores de peróxidos após 150 dias de armazenamento congelado e mostraram que mecanismos oxidativos ocorrem mesmo durante o congelamento. Porém, em filés de truta arco-íris (Oncorhynchus mykiss) armazenados em gelo, durante os primeiros dias de armazenamento, foram observados maiores valores de peróxidos, o que indica que a oxidação lipídica ocorre mais rapidamente nessa condição(26).

Dados de TBARS são mostrados na Figura 1D. No período inicial, os valores de TBARS nos filés de grumatã variaram de 18,7 a 24,4 nmol MDA g-1, sem diferenças significativas entre os períodos de depuração. Após dois meses de armazenamento, valores elevados foram observados em peixes não depurados e depurados por 48 h e valores menores foram encontrados em peixes depurados por 72 e 96 h. Após quatro meses em armazenamento congelado, não foram encontradas diferenças significativas para nenhum dos períodos de depuração e os valores foram semelhantes aos relatados no período inicial. Por outro lado, no sexto mês de armazenamento, os filés de grumatã apresentaram maior teor de TBARS nos peixes não depurados em relação aos depurados. Em relação ao período inicial de armazenamento, o congelamento por até seis meses levou à maior formação de substâncias voláteis nos filés de peixes não depurados, sem diferenças significativas nos valores de TBARS entre os outros períodos de depuração (48, 72 e 96 h).

Os valores de TBARS representam moléculas voláteis que são formadas no segundo estágio da oxidação lipídica. O principal aldeído que reage com o ácido tiobarbitúrico para produzir cor é o malonildialdeído, no entanto outros aldeídos insaturados também são reativos(25). O aumento nos valores de TBARS durante o armazenamento congelado foi observado em todos os períodos de depuração e não pode ser evitado. Achados semelhantes foram relatados por Karami et al.(22) em um estudo com filés de tilápia em congelamento por 150 dias e Shi et al.(27) em filés de bagre do Canal congelados por até 24 semanas. Esses processos oxidativos que ocorrem em lipídios e proteínas alteram o valor nutricional e as características sensoriais, como sabor, odor, textura, perda de líquido e cor durante o armazenamento congelado(15). No presente estudo, foi encontrado menor aumento na formação de moléculas reativas ao ácido tiobarbitúrico na carne depurada de peixes, o que demonstra efeito positivo ou retardador da depuração sobre a oxidação lipídica em filés de grumatã em congelamento por até seis meses.

Conclusão

Embora os períodos de depuração aplicados não tenham alterado as características microbiológicas e sensoriais dos filés de grumatã, os parâmetros relacionados ao frescor, como pH, e os parâmetros relacionados à oxidação lipídica, como teor de TBARS, demonstraram que a aplicação da depuração pode ser considerada mais eficiente para conservação e qualidade dos filés de grumatã armazenados congelados, principalmente após 96 h de depuração.

Agradecimentos

Os autores agradecem ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) pelo aporte financeiro (processo número 404282/2016-4) e ao Professor Marcus V. M. Querol por ceder o local para coleta dos peixes.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    27 Mar 2020
  • Aceito
    27 Jul 2020
  • Publicado
    15 Out 2020
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