Acessibilidade / Reportar erro

“VAMOS BRINCAR DE COMPOR?” EXPERIÊNCIAS COM CRIAÇÃO NA EDUCAÇÃO MUSICAL FORMAL

“Let’s play composing?” Experiments with creation in formal music education

RESUMO:

O artigo analisa experiências na docência em música no ensino fundamental em duas escolas no sul do Brasil, compreendendo a criação como foco e condição para tal. Foram distribuídos instrumentos e produtos musicais, tecnologias de gravação e outras objetivações artísticas como material para os alunos produzirem um novo produto. O processo de criação foi analisado a partir de observações e conversas informais registradas em diário, áudio e vídeo. O processo de criação pode produzir músicas e criar laços de reciprocidade, autoestima e autonomia, fortalecendo singular e coletivamente os sujeitos.

Palavras-chave:
Educação musical; Processo de criação; Composição

ABSTRACT:

The article analyzes the experiences of teaching Music in Elementary School in two schools of southern Brazil, understanding the creation as focus and condition for such. Instruments and musical products, recording technologies and other artistic objectifications were distributed as material for students to produce a new product. The creation process was analyzed by observations and informal conversations recorded in diary, audio and video. The creative process can produce music and create bonds of reciprocity, self-esteem and autonomy, singularly and collectively strengthening the subjects

Keywords:
Musical education; Creation process; Composition

INTRODUÇÃO

Este artigo analisa duas experiências no campo da prática docente no ensino fundamental na área da música, em duas escolas da rede municipal de ensino no sul do Brasil, compreendendo as práticas e processos de criação como foco e condição para experiências no contexto da educação. As experiências foram compostas da distribuição de instrumentos e produtos musicais aos alunos, disponibilização de tecnologias de gravação, mixagem e outras elaborações do produto musical para que, de forma coletiva e mediada em um processo intersubjetivo, eles pudessem ter as condições para a produção de um novo produto. A partir de tais condições, eles produziram sua própria leitura do material disponibilizado, leitura possível por intermédio de suas relações semioticamente mediadas, de forma que pudemos vislumbrar a criação de um novo produto através da coletivização da atividade.

Os resultados da análise dessas intervenções, realizada com a totalidade do material, apontaram para uma experiência de ensinar e aprender no campo da educação musical como potencializadora dos sujeitos coletivos e dos processos de reinvenção. Este artigo foca estes dois eixos de análise, a coletivização e a criação, sem dividi-los, discorrendo acerca dos mesmos como duas facetas de um só processo, no qual a criação e a experiência coletiva se fazem mutuamente constitutivas.

Nos processos de criação, os conhecimentos técnicos puderam ser desconstruídos e recombinados (VYGOTSKY, 2009VYGOTSKY, L.S. Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico. Apresentação e comentários de Ana Luiza Smolka. Tradução de Zoia Prestes. São Paulo: Ática , 2009.; MAHEIRIE, 2003MAHEIRIE, K. Processo de criação no fazer musical: uma objetivação da subjetividade, a partir dos trabalhos de Sartre e Vygotsky. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 8, n. 2, p. 147-153, 2003. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-73722003000200016
http://dx.doi.org/10.1590/S1413-73722003...
; MAHEIRIE; ZANELLA, 2017MAHEIRIE, K.; ZANELLA, A.V. Imagination and creative activity: Ontological and epistemological principles of Vygotsky’s contributions. In: RATNER, C.; SILVA, D.N.H. (orgs.). Vygotsky and Marx: Toward a Marxist Psychology. Londres e Nova York: Routledge; Taylor & Francis Group, 2017. v. 1. p. 161-172.), produzindo um novo antes não imaginado, no qual eles se reconheceram como sujeitos do fazer, do criar e do produto musical gravado e gerado pelo processo. A criação, já amplamente teorizada por Vygotsky (2009VYGOTSKY, L.S. Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico. Apresentação e comentários de Ana Luiza Smolka. Tradução de Zoia Prestes. São Paulo: Ática , 2009.), é uma condição ontológica no humano (PINO, 2006PINO, A. A produção imaginária e a formação do sentido estético: reflexões úteis para uma educação humana. Pró-Posições, v. 17, n. 2, p. 47-69, 2006.) que, apesar de apoiar-se intensamente na memória, só se faz possível por sua capacidade imaginativa e recombinadora, já que “o cérebro não é apenas o órgão que conserva e reproduz nossa experiência anterior, mas também o que combina e reelabora, de forma criadora, elementos da experiência anterior, erigindo novas situações e novo comportamento” (VYGOTSKY, 2009VYGOTSKY, L.S. Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico. Apresentação e comentários de Ana Luiza Smolka. Tradução de Zoia Prestes. São Paulo: Ática , 2009., p. 14).

Para Vygotsky (2009VYGOTSKY, L.S. Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico. Apresentação e comentários de Ana Luiza Smolka. Tradução de Zoia Prestes. São Paulo: Ática , 2009.), a brincadeira da criança não é uma pura recordação das cenas que viveu, pois toda criança é capaz de uma reelaboração criativa do que vivenciou. É recombinando e resignificando que novas bases são inventadas em um movimento afetivo-volitivo (VYGOTSKY, 1992VIGOTSKY, L.S. Pensamiento y Palabra. Madri: Visor, 1992. (Obras Escogidas, 2).), apontando para novas ações e novos sentidos no campo da vida. Toda imaginação sempre toma seus elementos da realidade e das experiências passadas, mas os ultrapassa e transcende, de maneira particular e coletiva ao mesmo tempo, articulando o novo ao já vivido, a imaginação ao real, a reflexão e as emoções em um único movimento.

Ao combinar os elementos da realidade, a criança já está inventando uma nova composição, a qual pode ser mais ou menos complexa, dependendo do conjunto de experiências que pôde vivenciar, de sua diversidade e riqueza, de suas mediações, das relações intersubjetivas e na aposta da capacidade criativa de todo ser humano.

Pela lente da psicologia histórico-cultural, compreendemos que essa aposta se fez possível na experiência que aqui se descreverá, uma vez que os processos de criação foram mediados pelas relações intersubjetivas das crianças com seus colegas, com o estagiário e o professor, produzindo ações inovadoras na escola e na vida, aumentando a compreensão de sua própria capacidade de se objetivar musicalmente e de se entrelaçar coletivamente nessa produção. Sentimentos de pertencimento, cooperação e solidariedade mediaram relações grupais e foram criando laços de reciprocidade facilitadores para os processos de criação e para a construção de experiências de trabalho coletivo. Tais experiências, da forma como aconteceram, possibilitaram práticas democráticas de tomada de decisões, apontando para ensaios da vida coletiva e da participação social em trabalhos conjuntos.

Analisando as pesquisas sobre a criatividade na educação, Beineke (2009BEINEKE, V. Processos intersubjetivos na composição musical de crianças: um estudo sobre a aprendizagem criativa. 2009. 289 f. Tese (Doutorado em Música) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009.) destaca que as investigações na área da educação musical que focalizam a composição revelam uma multiplicidade de abordagens teóricas com enfoque nos processos e produtos composicionais, concepções dos professores, contextos de ensino e aprendizagem e aspectos subjetivos de significação musical pelas crianças. Nossa investigação vem se somar ao conjunto de investigações já existentes e aborda, sob o enfoque histórico-cultural, a criação como um processo que culmina em um produto, o qual se faz possível por meio da apropriação do que já existe, de sua desconstrução e recombinação, tornando a nova objetivação marcada por subjetividades no exercício da potência do comum.

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa qualitativa de modalidade interventiva, na qual focamos o processo de criação em torno de experiências no ensino formal da disciplina regular de música, do segundo, terceiro e quarto anos do ensino fundamental, durante um semestre. Acompanhamos e analisamos o processo de criação, utilizando como recursos a observação e as conversas informais, com 58 crianças de 7 a 9 anos, registradas em diário de campo. Um registro em áudio e vídeo também foi utilizado, mais especificamente na construção do produto musical que culminou do próprio processo de trabalho realizado. Os encontros, em número de oito a dez, aconteceram no segundo semestre de 2014.

Para o processo de construção dos produtos finais foram disponibilizados instrumentos musicais, livros de literatura, músicas diversas e outros produtos artísticos que pudessem servir de material base para a posterior criação. Aulas específicas de música foram ministradas para as três turmas pertencentes a duas escolas que participaram deste estudo, servindo de conhecimento técnico para que fosse apropriado e reconfigurado pelas relações de ensinar e aprender ali estabelecidas.

As duas escolas onde este estudo se desenvolveu apresentavam características e condições diferentes, apesar de apresentarem resultados muito semelhantes. Trabalhamos com duas turmas (turma 21 com 23 alunos e turma 32 com 9 alunos) na primeira escola, chamada aqui de escola A, e uma turma (turma 42 com 26 alunos) na escola B.

Na escola A, com a turma 21, foi disponibilizado um conhecimento em torno de técnicas e conceitos musicais, assim como livros de poemas, poesias e histórias para que, a partir deles, os alunos interpretassem e brincassem com sua decomposição e recomposição, mudando o sentido dos poemas e adicionando palavras que achassem interessantes para o produto final, conforme desejassem. Na turma 32 da escola A, sugeriu-se que os alunos compusessem letras de sua própria autoria, o que foi recebido por eles com muito entusiasmo.

Na escola B, a turma 42 foi dividida em 4 grupos de 6 a 8 alunos e foi realizado um trabalho semelhante ao da turma 21 da escola A. Para as atividades propostas foram disponibilizados poemas nos quais os alunos poderiam usar as palavras que melhor coubessem para a métrica musical, podendo utilizar o poema ou apenas o tema que ele suscitava.

Em todas as turmas foi realizada uma conversa inicial, por meio da qual surgiam as primeiras ideias para a letra com rima e ritmo, para apresentações à turma e gravações dessas primeiras ideias musicais, a partir das quais produziam novos ensaios, onde surgiam os primeiros contornos melódicos.

Conhecimentos técnicos da área musical foram disponibilizados aos alunos, assim como técnicas de ensaio, mixagem e gravação, de forma lúdica. Sempre que possível, os resultados foram registrados em diário de campo, em áudio e vídeo. Tais conhecimentos técnicos se fizeram imprescindíveis para que os alunos pudessem observar, escutar e ver, enfim, para se apropriar e, em seguida, reconfigurá-los em outra ordem. Conhecimentos técnicos anteriormente apropriados são a base para a imaginação, a qual pode lançá-los em devires para novas produções.

As informações produzidas nesta investigação foram trabalhadas a partir da psicologia histórico-cultural, por uma análise na qual emergiram duas categorias, uma mais voltada para os elementos do processo da criação em si e outra mais voltada à mediação e produção do coletivo em tal processo. Buscamos as ações situadas socialmente (­ROCHA-COUTINHO, 1998ROCHA-COUTINHO, M.L. A Análise do Discurso em Psicologia: algumas questões, problemas e limites. In: SOUZA, L. de.; FREITAS, M.F.Q.; RODRIGUES, M.M.P. (orgs.). Psicologia: reflexões (im)pertinentes. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.), entendidas como ato social e apreendidas nas cenas da situação da pesquisa. Tal compreensão denota que o conhecimento produzido depende das informações objetivas do contexto, mas também das relações entre os acontecimentos e as cenas que nós construímos a respeito deles.

Estivemos atentos às linguagens musicais, verbais e escritas, compreendendo-as como mutuamente constitutivas e objetivadas pelo pensamento já transformado, uma vez que a linguagem não é o simples reflexo do pensamento, mas sua transformação, sua realização (­VYGOTSKY, 1992VIGOTSKY, L.S. Pensamiento y Palabra. Madri: Visor, 1992. (Obras Escogidas, 2).; MAHEIRIE et al., 2015MAHEIRIE, K.; SMOLKA, A.L.B.; STRAPPAZZON, A.L.; CARVALHO, C.S.; MASSARO, F.K. Imaginação e processos de criação na perspectiva histórico-cultural: análise de uma experiência. Estudos de Psicologia, v. 32, n. 1, p. 49-61, 2015. http://dx.doi.org/10.1590/0103-166X2015000100005
http://dx.doi.org/10.1590/0103-166X20150...
).

RESULTADOS

A escola A não possuía sala especifica para as artes, mas após conversar com a diretora sobre a necessidade de um espaço especifico para as aulas, passamos a dividir o laboratório de ciências, que se transformou em sala de música quando não era usado pela professora de laboratório. Nessa escola havia uma caixa com 50 flautas profissionais e um kit fornecido pelo governo federal conhecido como “bandinha rítmica”, com instrumentos que se assemelhavam a brinquedos. Na escola B, onde já havíamos atuado em 2013, havia uma sala específica para artes, com uma boa quantidade de instrumentos de percussão, xilofones, flautas, violão, teclado e aparelhagem de som.

Após as observações e o desenvolvimento de um planejamento que envolvia canto, flauta doce, percussão e contextualização de gêneros e ritmos musicais diversos, passamos a fazer atividades que envolviam a criatividade e composição nas duas escolas, mostrando aos alunos que eles eram capazes de criar suas próprias músicas. Para França e Swanwick (2002FRANÇA, C.C.; SWANWICK, K. Composição, apreciação e performance na educação musical: teoria, pesquisa e pratica. Revista Em Pauta, v. 13, n. 21, p. 5-41, 2002.), a composição apresenta-se como um processo essencial na música, sendo que esse “é o processo pelo qual toda e qualquer obra musical é gerada” (FRANÇA; SWANWICK, 2002FRANÇA, C.C.; SWANWICK, K. Composição, apreciação e performance na educação musical: teoria, pesquisa e pratica. Revista Em Pauta, v. 13, n. 21, p. 5-41, 2002., p. 8). Os autores contextualizam e definem composição como processo e produto dentro da visão abrangente da educação musical. Destacam também a importância de experiências com composição para os alunos expressarem “sua própria voz nessa forma de discurso simbólico” (FRANÇA; SWANWICK, 2002FRANÇA, C.C.; SWANWICK, K. Composição, apreciação e performance na educação musical: teoria, pesquisa e pratica. Revista Em Pauta, v. 13, n. 21, p. 5-41, 2002., p. 10), sendo interessante ressaltar o conceito abrangente de composição na educação musical, indo “desde pequenas ‘falas’ improvisadas até projetos mais elaborados que podem durar várias aulas para serem cumpridos” (FRANÇA; SWANWICK, 2002FRANÇA, C.C.; SWANWICK, K. Composição, apreciação e performance na educação musical: teoria, pesquisa e pratica. Revista Em Pauta, v. 13, n. 21, p. 5-41, 2002., p. 10).

Para Souza (2004SOUZA, J. Educação musical e práticas sociais. Revista da ABEM, Porto Alegre, v. 12, n. 10, p. 7-11, mar. 2004.), essas práticas implicam aprendizagem de elementos musicais, ao mesmo tempo em que possibilitam o aumento da autoestima das crianças e jovens. Por isso, a autora ressalta a importância de se estabelecer uma relação mais próxima, visando conhecer os alunos e valorizar seus conhecimentos prévios. Ou seja, “pensar sobre seus olhares em relação à música no espaço escolar, são proposições para pensar essa disciplina” (SOUZA, 2004SOUZA, J. Educação musical e práticas sociais. Revista da ABEM, Porto Alegre, v. 12, n. 10, p. 7-11, mar. 2004., p. 9).

Trabalhar a docência na perspectiva da igualdade das inteligências (RANCIÈRE, 2002RANCIÈRE, J. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.) é compreender que o processo de aprendizagem ocorre por meio da aventura de interpretar signos e relacioná-los com as experiências anteriores de vida. Todo ser humano ou, como Rancière (2012RANCIÈRE, J. O espectador emancipado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.) afirma, todo ser falante traduz signos em outros signos, ou seja, todo ser falante pensa, traduz e interpreta, da forma como pode, o que lhe é oferecido. É essa capacidade que faz da igualdade um princípio do qual partimos e temos constantemente que verificar. É somente sobre a igualdade como princípio que a desigualdade se instaura, distribuindo capacidades, partilhando lugares sociais e produzindo danos no corpo social. É pelo pressuposto da igualdade de inteligências que apostamos na produção do conhecimento como uma aventura intelectual, na qual todos e qualquer um podem traduzir, pensar, imaginar e criar algo novo.

Na escola A, onde estávamos atuando pela primeira vez, a proposta de atividades envolvendo composição foi realizada em duas turmas. A turma 32 teve a participação de um estagiário do curso de licenciatura em música2 2 . O trabalho realizado com a turma 32 da escola A teve a parceria de Mauro Borguezan - que, na época, era estagiário do curso de licenciatura em música - durante todo o semestre dessa intervenção. . Nessa turma havia nove alunos, um deles diagnosticado com autismo, o que proporcionou um atendimento mais individualizado. Nela, nós criamos dois grupos, inicialmente trabalhando em separado, divididos para as atividades propostas. Na turma 21 havia 23 alunos, 1 deles também diagnosticado com autismo, mas nesse caso não houve divisão da turma, de forma que todos os alunos participaram da composição juntos. Nos dois casos, os alunos tinham auxiliar de educação especial.

Na escola B, a turma 42 tinha 26 alunos, sendo um com síndrome de Down, sem auxiliar de educação especial. Já havíamos trabalhado com boa parte desses alunos no ano anterior, mas entraram novos alunos de outras escolas e de outro turno, o que nos obrigou a rever alguns conceitos básicos acerca da música e de como tocar os instrumentos. Nesse caso, dividimos a sala em quatro grupos de seis alunos, em média.

Depois de apresentar a proposta de atividade à turma 32 da escola A, elaboramos um planejamento em que focalizávamos a composição musical em dois grupos a partir de poemas de um livro de Eva Furnari (2003FURNARI, E. Assim assado. São Paulo: Moderna, 2003.), intitulado Assim Assado. Na proposta, os grupos poderiam mudar o sentido dos poemas e adicionar palavras que achassem interessantes para o produto final. Após o surgimento das primeiras ideias musicais, começamos a discussão sobre o conceito de métrica musical e rima e que palavras poderiam ser modificadas para facilitar a pronúncia com o ritmo proposto. Ou seja, durante o processo de ensaio e de gravação, as letras ainda sofriam as modificações que os alunos considerassem necessárias.

Com a turma 21 da escola A, sugerimos que compusessem letras de autoria deles mesmos. O resultado foi muito interessante, pois envolveu uma efetiva participação dos alunos, inclusive em horários fora de aula. Quando indagados acerca da necessidade de produção das letras, uma das alunas disse “eu já tenho professor!”, e sugeriu que essa letra fosse colocada no quadro para que a turma pudesse modificar e acrescentar frases ou palavras, para que depois fosse musicada por todos da turma, apontando para a coletivização e autonomia da produção. Ao criarem coletivamente, os sujeitos ampliam suas possibilidades, pois ativam a memória coletiva (HALBWACHS, 2013HALBWACHS, M. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. 2. ed. São Paulo: Centauro, 2013.), ampliam a potência de suas ações e desnaturalizam ideias em torno da genialidade na criação. A produção coletiva marca o NÓS na ação, no pensamento e na afetividade, já que o sentimento de pertencimento a um coletivo fortalece cada um, ao mesmo tempo em que fortalece o próprio coletivo.

Na escola B, a turma 42 foi dividida em 4 grupos de 6 a 8 alunos. Para essa atividade usamos poemas do livro É Tudo Invenção, de Ricardo Silvestrin (2005SILVESTRIN, R. É tudo invenção. São Paulo: Ática, 2005.), o qual discorre de forma lúdica que tudo na vida é fruto de invenções, em uma linguagem poética. Nesse caso, os alunos escolheram temas e palavras que consideraram melhor para a métrica musical.

Aqui, ao relacionarmos o objetivo dessa obra ao trabalho teórico da criação, afirmamos que a criação “não existe apenas quando se criam grandes obras históricas, mas por toda parte em que o homem imagina, combina e cria algo novo, mesmo que esse novo se pareça a um grãozinho” (VYGOTSKY, 2009VYGOTSKY, L.S. Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico. Apresentação e comentários de Ana Luiza Smolka. Tradução de Zoia Prestes. São Paulo: Ática , 2009., p. 15). Tal ideia desnaturaliza crenças nas quais a criação é propriedade de um sujeito privilegiado por seus “dons”.

Em todas as experiências das três turmas trabalhadas, realizamos uma roda de conversa na qual surgiam as primeiras ideias de letra com rima e ritmo, e fizemos apresentações à turma. Em seguida, gravávamos as primeiras ideias musicais para posterior audição dentro e fora do contexto de aula, para depois realizarmos novos ensaios, onde surgiam os primeiros contornos melódicos. Sobre as composições feitas em sala, os depoimentos dos alunos deixaram em evidência a importância do trabalho em grupo. Eles nos contaram que fazer as músicas com os amigos era muito melhor, afirmando haver uma divisão de responsabilidades entre os colegas, produzindo um sentimento de cooperação e pertencimento ao grupo.

Finalizando a etapa na qual usamos os poemas de livro com as turmas 32 e 42 e o poema escrito pelos próprios alunos na turma 21, partimos para a etapa seguinte do nosso planejamento, que previa a gravação das músicas com as composições musicais dos alunos. ­Pensamos que, nesse processo, as composições dos pequenos grupos poderiam deixar de “pertencer” a um grupo específico e que, à medida que a turma toda participasse da gravação, todos iriam se apropriando das músicas, as quais se tornariam as músicas da turma. Assim feito,

se levarmos em conta a presença da imaginação coletiva, que une todos esses grãozinhos não raro insignificantes da criação individual, veremos que grande parte de tudo o que foi criado pela humanidade pertence exatamente ao trabalho criador anônimo de inventores desconhecidos (VYGOTSKY, 2009VYGOTSKY, L.S. Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico. Apresentação e comentários de Ana Luiza Smolka. Tradução de Zoia Prestes. São Paulo: Ática , 2009., p. 16).

Os pequenos grupos foram cedendo espaço ao grande grupo, criando laços de reciprocidade coletiva e ganhando espaço na direção de pertencimento a um NÓS. Podemos afirmar, a partir daí, que eles se reconheceram como artistas e compositores criando a sua música, reafirmando a criação como condição de todo e qualquer ser humano.

Para a gravação das composições, usamos um recurso de gravação “multipista” chamado “Garage Band”, disponível em smartfones. Nesse sistema de gravação, primeiro se grava uma “guia” com voz e violão acompanhada de um metrônomo, para depois gravar os instrumentos e vozes, um de cada vez. Essa técnica é semelhante às gravações profissionais em estúdio.

Nesse momento, as turmas tiveram a oportunidade de saber como é gravada a maioria das músicas de seus artistas preferidos e que ouvem em seu cotidiano. A captação das vozes e instrumentos foram todas realizadas em sala durante as aulas, com a participação de todos os alunos em todas as músicas. A mixagem foi realizada fora da escola em ambiente doméstico, mas com posterior audição dos alunos, momento no qual eles puderam participar da construção do produto final. A turma 21 gravou uma música, a turma 32 gravou 2 músicas e a turma 42 gravou um CD com 6 músicas, todas de autoria própria. Os alunos aprimoraram suas noções sobre forma musical, percebendo atentamente onde deveriam cantar uma ou outra parte das canções, e apuraram a sensibilidade com relação às dinâmicas musicais, além do contato com técnicas de mixagem e gravação.

Os resultados apontaram para uma experiência de ensinar e aprender no campo da educação musical como fortalecedora dos sujeitos coletivos e dos processos de reinvenção. Compreendemos, sob essa ótica, que a música transforma os sentidos num todo organizado e inteligível,

objetivado em sons que se articulam sobre os fragmentos de silêncio. A especificidade deste processo faz da música o produto de um trabalho altamente elaborado, no qual o conhecimento dos elementos acústicos se alia à criatividade com que o sujeito articula, processa e elabora os elementos da percepção, imaginação e reflexão, de maneira afetiva (MAHEIRIE, 2003MAHEIRIE, K. Processo de criação no fazer musical: uma objetivação da subjetividade, a partir dos trabalhos de Sartre e Vygotsky. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 8, n. 2, p. 147-153, 2003. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-73722003000200016
http://dx.doi.org/10.1590/S1413-73722003...
, p. 152).

Tal experiência se fez possível, uma vez que foi mediada pelas relações intersubjetivas com colegas, estagiário e professor, produzindo experiências horizontalizadas e emancipadoras, nas quais os alunos puderam avançar em seus conhecimentos técnicos e se ver como capazes de produzir novas objetivações musicais. A emancipação, aqui, deve ser compreendida com base no trabalho de Rancière (2012RANCIÈRE, J. O espectador emancipado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.), no qual emancipar é reconhecer no outro sua capacidade de interpretação e de autoria em relação à produção do conhecimento, seja cotidiano, científico ou artístico. Para esse autor, artistas e pesquisadores constroem cenas de exposição de seus trabalhos para a aventura intelectual do outro, cujo efeito é imprevisível, pois exige narradores e tradutores ou intérpretes capazes de produzir sua própria aventura.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apostar nas capacidades intelectuais e artísticas dos sujeitos é partir do pressuposto que todos podem criar e toda criação, sendo ou não realizada coletivamente, é social. Foi apostando na igualdade das inteligências e na potência do coletivo que essa intervenção foi realizada. Sua singularidade consiste em compreender as subjetividades a partir do social e do coletivo, reafirmando a ideia de que toda ação é uma objetivação mediada pelo outro, produzida intersubjetivamente, onde uma objetividade musical pode servir de enlace na construção de um nós e no fortalecimento do eu.

Percebemos que os alunos que participaram deste trabalho foram se comprometendo com a composição das músicas, de forma que seu envolvimento e compromisso foram crescendo no desenrolar de todo o processo. Entendemos que tal engajamento pode estar relacionado com a forma como foram significando e ressignificando as atividades musicais, como elas foram adquirindo sentidos singulares e coletivos para os alunos. Houve uma modificação clara na forma como foram significando seus lugares no campo social, quando perceberam que suas vozes estavam sendo ouvidas, respeitadas e valorizadas nos trabalhos. Além disso, houve a valorização de seu repertório e experiências musicais, através da construção de um processo colaborativo de trabalho que valorizou a criatividade no contexto escolar formal e fortaleceu laços de reciprocidade de ações, pensamentos e afetos coletivos.

Essas experiências nos reafirmam que é possível construir uma relação mais horizontalizada entre professores e estudantes, entre sujeitos que criam, produzem e escutam sonoridades, facilitando a troca de experiências e compartilhando ideias de música. Além disso, trouxe também a perspectiva de que quanto mais aproximarmos a realidade cotidiana dos alunos à realidade da escola e a vivência musical dos alunos à realidade dos músicos, podemos possibilitar maior autonomia nas relações de ensinar e aprender, dentro e além das tomadas de decisões musicais.

Tais experiências nos ensinam sobre ensinar e aprender, nos apontam caminhos e nos abrem os possíveis na direção de outros fazeres, para além do que já fazemos. Elas nos ensinam também a qualificação da escuta do outro e sua forma de significar a música. Não menos importante é a possibilidade de nos indicar caminhos profícuos na direção da construção de coletivos, na força do comum, de estar juntos, de seus desdobramentos, aproximando o humano daquilo que ele pode como condição de sua espécie, quando se reúne de forma conectada.

REFERÊNCIAS

  • BEINEKE, V. Processos intersubjetivos na composição musical de crianças: um estudo sobre a aprendizagem criativa 2009. 289 f. Tese (Doutorado em Música) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009.
  • FRANÇA, C.C.; SWANWICK, K. Composição, apreciação e performance na educação musical: teoria, pesquisa e pratica. Revista Em Pauta, v. 13, n. 21, p. 5-41, 2002.
  • FURNARI, E. Assim assado São Paulo: Moderna, 2003.
  • HALBWACHS, M. A memória coletiva Tradução de Beatriz Sidou. 2. ed. São Paulo: Centauro, 2013.
  • MAHEIRIE, K. Processo de criação no fazer musical: uma objetivação da subjetividade, a partir dos trabalhos de Sartre e Vygotsky. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 8, n. 2, p. 147-153, 2003. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-73722003000200016
    » http://dx.doi.org/10.1590/S1413-73722003000200016
  • MAHEIRIE, K.; SMOLKA, A.L.B.; STRAPPAZZON, A.L.; CARVALHO, C.S.; MASSARO, F.K. Imaginação e processos de criação na perspectiva histórico-cultural: análise de uma experiência. Estudos de Psicologia, v. 32, n. 1, p. 49-61, 2015. http://dx.doi.org/10.1590/0103-166X2015000100005
    » http://dx.doi.org/10.1590/0103-166X2015000100005
  • MAHEIRIE, K.; ZANELLA, A.V. Imagination and creative activity: Ontological and epistemological principles of Vygotsky’s contributions. In: RATNER, C.; SILVA, D.N.H. (orgs.). Vygotsky and Marx: Toward a Marxist Psychology. Londres e Nova York: Routledge; Taylor & Francis Group, 2017. v. 1. p. 161-172.
  • PINO, A. A produção imaginária e a formação do sentido estético: reflexões úteis para uma educação humana. Pró-Posições, v. 17, n. 2, p. 47-69, 2006.
  • RANCIÈRE, J. O espectador emancipado São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.
  • RANCIÈRE, J. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
  • ROCHA-COUTINHO, M.L. A Análise do Discurso em Psicologia: algumas questões, problemas e limites. In: SOUZA, L. de.; FREITAS, M.F.Q.; RODRIGUES, M.M.P. (orgs.). Psicologia: reflexões (im)pertinentes São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.
  • SILVESTRIN, R. É tudo invenção São Paulo: Ática, 2005.
  • SOUZA, J. Educação musical e práticas sociais. Revista da ABEM, Porto Alegre, v. 12, n. 10, p. 7-11, mar. 2004.
  • VIGOTSKY, L.S. Pensamiento y Palabra Madri: Visor, 1992. (Obras Escogidas, 2).
  • VYGOTSKY, L.S. Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico. Apresentação e comentários de Ana Luiza Smolka. Tradução de Zoia Prestes. São Paulo: Ática , 2009.

NOTAS

  • 2
    . O trabalho realizado com a turma 32 da escola A teve a parceria de Mauro Borguezan - que, na época, era estagiário do curso de licenciatura em música - durante todo o semestre dessa intervenção.

NOTAS

  • 1
    . Neste artigo, a grafia do nome de Vigotski respeita a que lhe corresponde na obra utilizada e citada neste trabalho.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    24 Ago 2018
  • Aceito
    11 Dez 2018
CEDES - Centro de Estudos Educação e Sociedade Caixa Postal 6022 - Unicamp, 13084-971 Campinas SP - Brazil, Tel. / Fax: (55 19) 3289 - 1598 / 7539 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: revistas.cedes@linceu.com.br