Acessibilidade / Reportar erro

Locais de mercado, diversidade e exclusão interseccional

Lugares de mercado, diversidad y exclusión interseccional

Resumo

Este artigo busca entender como a incidência da interseccionalidade opera dentro de locais de mercado que se apresentam como diversos ou abertos à diversidade - especificamente, lugares gays. Utiliza-se a abordagem interseccional para localizar posições minoritárias (o público gay masculino) em uma malha de relações que se estabelece em tais contextos (locais de mercado categorizados como gays). O artigo apresenta os resultados de um trabalho de campo conduzido por 2 anos (2015 e 2016) em 2 metrópoles, Porto Alegre e Montreal (Canadá), com base em entrevistas realizadas com 26 indivíduos. Os achados de pesquisa indicam o modo como a exclusão continua operando em categorias marginalizadas, mesmo dentro de lugares que ostensivamente recebem membros de categorias que já sofrem preconceito. Por fim, discute-se a implicação gerencial de como a expectativa de abertura à diversidade é contraintuitiva, já que quanto mais ampliada a oferta no local de mercado aberto à diversidade, maior a percepção de exclusão interseccional.

Palavras-chave:
Interseccionalidade; Lugar; Exclusão; Gay

Resumen

Este artículo busca entender cómo la incidencia de la interseccionalidad opera dentro de lugares de mercado que se presentan como diversos o abiertos a la diversidad - específicamente, lugares gays. Utilizamos el enfoque interseccional para ubicar posiciones minoritarias (el público gay masculino) en una malla de relaciones que se establecen dentro de tales contextos (lugares de mercado categorizados como gays). Ofrecemos los resultados de un trabajo de campo conducido por dos años (2015 y 2016) en dos metrópolis: Porto Alegre y Montreal (Canadá) con base en entrevistas realizadas a 26 individuos. Nuestros hallazgos indican cómo la exclusión continúa operando en categorías marginadas incluso dentro de lugares que ostensivamente reciben miembros de categorías que ya sufren prejuicio. Finalmente, discutimos la implicación gerencial de cómo la expectativa de apertura a la diversidad es contraintuitiva, ya que cuanto más ampliada es la oferta en el lugar de mercado abierto a la diversidad, mayor es la percepción de exclusión interseccional.

Palabras clave:
Interseccionalidad; Lugar; Exclusión; Gay

Abstract

This article aims to understand how the incidence of intersectionality operates within market-based places that present themselves as diverse or open to diversity. The study adopted the intersectional approach to locate minorities (the gay male public) within a network of relationships within this context (gay market-based places). The study involved a two-year-long (2015 and 2016) fieldwork conducted in two cities: Porto Alegre and Montreal, comprising 26 interviews. The findings show how the exclusion of marginalized categories occurs even within places that ostensibly cater to a public formed by such categories. Finally, the article discusses the managerial implication of how the expectation of open to diversity is counterintuitive, since the more broadened the offer in a market-based place, the bigger the perception of intersectional exclusion.

Keywords:
Intersectionality; Place; Exclusion; Gay

INTRODUÇÃO

Estudos envolvendo lugares e consumo analisam distintamente a forma como a exclusão ocorre dentro dos chamados locais de mercado com base na diferença (GOPALDAS e DEROY, 2015GOPALDAS, A.; DEROY, G. An intersectional approach to diversity. Consumption, Markets & Culture, v. 18, n. 4, p. 333-364, 2015. ). Quando a diferença se baseia em associação com grupos, o termo utilizado é discriminação em locais de mercado (CROCKETT, GRIER e WILLIAMS, 2003CROCKETT, D.; GRIER, S.; WILLIAMS, J. Coping with marketplace discrimination: an exploration of the experiences of black men. American Marketing Science Review, v. 2003, n. 4, p. 1-18, 2003.) - por exemplo, quando a associação com o grupo mulheres faz com que tal diferença implique a proibição de entrada de uma mulher em algum local. A Teoria Crítica Espacial analisa, adicionalmente, as diferenças que são reforçadas por negócios como entidades hegemônicas (SAATCIOGLU e OZANNE, 2013SAATCIOGLU, B.; OZANNE, J. A critical spatial approach to marketplace exclusion and inclusion. Journal of Public Policy & Marketing, v. 32, n. esp., p. 3232-3237, 2013. ). Tal abordagem crítica analisa a diferença e a exclusão em locais de mercado com atores hegemônicos (ofertantes) e atores vulneráveis (BAKER, GENTRY e RITTENBURG, 2005BAKER, S. M.; GENTRY, J. W.; RITTENBURG, T. L. Building understanding of the domain of consumer vulnerability. Journal of Macromarketing, v. 25, n. 2, p. 128-139, 2005. ; COMMURI e EKICI, 2008COMMURI, S.; EKICI, A. An enlargement of the notion of consumer vulnerability. Journal of Macromarketing, v. 28, n. 2, p. 183-186, 2008. ). Tais espaços apresentam sistemas de assimetria de poder que geram contextos de exclusão para consumidores vulneráveis. Portanto, o conceito de diferença na Teoria Crítica Espacial se apresenta entre atores hegemônicos e vulneráveis (SAATCIOGLU e CORUS, 2016).

No entanto, o conceito de diferença pode ser analisado em abordagens de exclusão mais amplas. A diferença, além da exclusão de vulneráveis por atores hegemônicos (SAATCIOGLU e CORUS, 2016SAATCIOGLU, B.; CORUS, C. Exploring spatial vulnerability: inequality and agency formulations in social space. Journal of Marketing Management, v. 32, n. 3-4, p. 230-251, 2016. ), pode ser tratada de modos distintos entre e dentro de disciplinas: a forma de tratamento pode ser unidimensional ou multidimensional (GOPALDAS e DEROY, 2015GOPALDAS, A.; DEROY, G. An intersectional approach to diversity. Consumption, Markets & Culture, v. 18, n. 4, p. 333-364, 2015. ). O tratamento unidimensional da diferença, que vem se tornando cada vez mais incomum, principalmente quando o tema é diversidade sexual, leva eam consideração uma característica isolada de um grupo discriminado. Tal característica isolada pode ser, por exemplo: renda (LANGLEY, 2014LANGLEY, P. Consuming credit. Consumption, Markets & Culture, v. 17, n. 5, p. 417-428, 2014. ); gênero (THOMPSON e HAYTKO, 1997THOMPSON, C.; HAYTKO, D. Speaking of fashion: consumers’ uses of fashion discourses and the appropriation of countervailing cultural meanings. Journal of Consumer Research, v. 24, n. 1, p. 15-42, 1997. ); sexualidade (KATES, 2000KATES, S. Out of the closet and out on the street! Gay men and their brand relationships. Psychology & Marketing, v. 17, n. 6, p. 493-513, 2000. , 2002KATES, S. The protean quality of subcultural consumption: an ethnographic account of gay consumers. Journal of Consumer Research, v. 29, n. 3, p. 383-399, 2002. ); raça e etnia (JAFARI e GOULDING, 2008JAFARI, A.; GOULDING, C. We are not terrorists: UK based Iranians, consumption practices and the torn self. Consumption, Markets & Culture, v. 11, n. 2, p. 73-91, 2008. ); corpos femininos (GURRIERI, PREVITE e BRACE-GOVAN, 2013GURRIERI, L.; PREVITE, J.; BRACE-GOVAN, J. Women’s bodies as sites of control: inadvertent stigma and exclusion in social marketing. Journal of Macromarketing, v. 33, n. 2, p. 128-143, 2013. ); ou aparência (SANGHVI e HODGES, 2015SANGHVI, M.; HODGES, N. Marketing the female politician: an exploration of gender and appearance. Journal of Marketing Management, v. 31, n. 15-16, p. 1676-1694, 2015. ).

Já em abordagens multidimensionais, a teoria normalmente combina mais de uma característica. Por exemplo, renda e gênero (AGIER e SZAFARZ, 2013AGIER, I.; SZAFARZ, A. Microfinance and gender: is there a glass ceiling on loan size? World Development, v. 42, p. 165-181, 2013. ; DENISSEN e SAGUY, 2014DENISSEN, A.; SAGUY, A. Gendered homophobia and the contradictions of workplace discrimination for women in the building trades. Gender & Society, v. 28, n. 3, p. 381-403, 2014. ; HUTTON, 2015HUTTON, M. Consuming stress: exploring hidden dimensions of consumption-related strain at the intersection of gender and poverty. Journal of Marketing Management, v.31, n. 15, p. 1-23, 2015.); idade, gênero e sexualidade (OLIVER e HYDE, 1993OLIVER, M. B.; HYDE, J. S. Gender differences in sexuality: a meta-analysis. Psychological Bulletin, v. 114, n. 1, p. 29-51, 1993.; BORGES e SCHOR, 2005BORGES, A. L. V.; SCHOR, N. Início da vida sexual na adolescência e relações de gênero: um estudo transversal em São Paulo, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 21, n. 2, p. 499-507, 2005. ; LINDAU, SCHUMM, LAUMANN et al., 2007LINDAU, S. et al. A study of sexuality and health among older adults in the United States. New England Journal of Medicine, v. 357, n. 8, p. 762-774, 2007. ); raça e gênero (CROCKETT, GRIER e WILLIAMS, 2003CROCKETT, D.; GRIER, S.; WILLIAMS, J. Coping with marketplace discrimination: an exploration of the experiences of black men. American Marketing Science Review, v. 2003, n. 4, p. 1-18, 2003.; ACKER, 2006ACKER, J. Inequality regimes gender, class, and race in organizations. Gender & Society, v. 20, n. 4, p. 441-464, 2006. ; CARR, SZYMANSKI, TAHA et al., 2014CARR, E. R. et al. Understanding the link between multiple oppressions and depression among African American women: the role of internalization. Psychology of Women Quarterly, v. 38, n. 2, p. 233-245, 2014. ); ou classe, etnia e gênero (CROCKETT e WALLENDORF, 1998CROCKETT, D.; WALLENDORF, M. Sociological perspectives on imposed school dress codes: consumption as attempted suppression of class and group symbolism. Journal of Macromarketing, v. 18, n. 2, p. 115-131, 1998. ; LISBOA, 2003LISBOA, T. Gênero, classe e etnia: trajetórias de vida de mulheres migrantes. Revista Katálysis, v. 6, n. 2, p. 251-252, 2003. ; ROSEMBERG e ANDRADE, 2008ROSEMBERG, F.; ANDRADE, L. F. Ação afirmativa no Ensino Superior brasileiro: a tensão entre raça/etnia e gênero. Cadernos Pagu, n. 31, p. 419-437, 2008. ).

Um dos paradigmas de pesquisa da abordagem multidimensional que leva em consideração um conjunto de opressões contextuais para indivíduos é a interseccionalidade (CRENSHAW, 1989CRENSHAW, K. Demarginalizing the intersection of race and sex: a black feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory and antiracist politics. The University of Chicago Legal Forum, v. 140, p. 139-167, 1989. ; COLLINS, 1990COLLINS, P. H. Black feminist thought: knowledge, consciousness, and the politics of empowerment. New York: Routledge, 1990.). A interseccionalidade é definida como a “interatividade de estruturas de identidade social como raça, classe e gênero ao gerar experiências de vida, especialmente experiências de privilégio e opressão” (GOPALDAS, 2013GOPALDAS, A. Intersectionality 101. Journal of Public Policy & Marketing, v. 32, p. 90-94, 2013. Special issue., p. 90, tradução nossa). A origem dessa abordagem é a observação de que raça e gênero afetam mulheres negras simultaneamente (CRENSHAW, 1989CRENSHAW, K. Demarginalizing the intersection of race and sex: a black feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory and antiracist politics. The University of Chicago Legal Forum, v. 140, p. 139-167, 1989. ).

Portanto, este artigo, utiliza o conceito de interseccionalidade para entender contextualmente como a exclusão se estabelece dentro de locais de mercado considerados abertos à diversidade. Mais especificamente, exploramos o fenômeno da incidência da interseccionalidade na exclusão dentro do contexto minoritário de homens gays. A escolha de tal categoria se dá pela necessidade de fronteiras categóricas para a construção de análise e conclusões específicas. Reconhecemos, no entanto, que diversas categorias recortam os campos estudados - unificadas sob a sigla LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais ou transgêneros). Nesse sentido, contribuímos para a proposição de Gopaldas (2013GOPALDAS, A. Intersectionality 101. Journal of Public Policy & Marketing, v. 32, p. 90-94, 2013. Special issue.) de que é necessária mais pesquisa sobre diversidade em marketing e consumo. Mostramos como a lógica exclusionária dos locais de mercado não pode ser reduzida puramente à ideia de uma lógica de livre mercado e segmentação sustentada no capital econômico e cultural dos consumidores (CASTILHOS e DOLBEC, 2017CASTILHOS, R.; DOLBEC, P. Conceptualizing spatial types: characteristics, transitions, and research avenues. Marketing Theory, v. 18, n. 2, p. 154-168, 2017. ).

Enquanto estudos envolvendo a dinâmica estrutural (DELOZIER e RODRIGUE, 1996DELOZIER, M.; RODRIGUE, J. Marketing to the homosexual (gay) market. Journal of Homosexuality, v. 31, n. 1-2, p. 203-212, 1996. ; KATES, 2000KATES, S. Out of the closet and out on the street! Gay men and their brand relationships. Psychology & Marketing, v. 17, n. 6, p. 493-513, 2000. , 2002; BETTANY, DOBSCHA, O’MALLEY et al., 2010BETTANY, S. et al. Moving beyond binary opposition: exploring the tapestry of gender in consumer research and marketing. Marketing Theory, v. 10, n. 1, p. 3-28, 2010. ) buscam entender como a exclusão se dá entre a categoria majoritária (sociedade) e minoritária (gays); este estudo busca, por meio da interseccionalidade (CRENSHAW, 1989CRENSHAW, K. Demarginalizing the intersection of race and sex: a black feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory and antiracist politics. The University of Chicago Legal Forum, v. 140, p. 139-167, 1989. ; COLLINS, 1990COLLINS, P. H. Black feminist thought: knowledge, consciousness, and the politics of empowerment. New York: Routledge, 1990.), mostrar como a exclusão opera internamente nas categorias minoritárias. Para tanto, unimos as categorias de consumidores e ofertantes (bares, restaurantes, saunas) considerados gays.

A pergunta de pesquisa adotada foi:

  • Como a incidência interseccional opera dentro de locais de mercado considerados gays?

Para entender tal exclusão, nosso campo está conectado com a sexualidade, interseccionada com raça, idade, renda. Os locais de pesquisa são os lugares gays - enquadrados emicamente como gays por nossos informantes -, em uma pesquisa de campo orientada ao descobrimento. Incluem-se aí: bares; clubes; saunas; restaurantes; vizinhanças; bairros e outros lugares comerciais na geografia de lugares gays. Os dados fazem parte de uma pesquisa de 2 anos (2015 e 2016), realizada no Brasil e no Canadá.

REVISÃO DE LITERATURA

Pesquisas evolvendo a sexualidade humana começaram a ser conduzidas no início do século XIX. No entanto, a maior parte desses primeiros estudos se concentrava no campo médico e clínico (LEZNOFF, 1954LEZNOFF, M. The homosexual in urban society. Montréal: McGill University, 1958.). Vagarosamente, em especial nos anos 1970 e 1980, os campos da sociologia e da geografia começam a conceitualizar os termos “espaço gay”, “gueto gay” e “lugares gays” (PODMORE, 2006PODMORE, J. Gone ‘underground’? Lesbian visibility and the consolidation of queer space in Montréal, Social & Cultural Geography, v. 7, n. 4, p. 595-625, 2006. ). O estudo de lugares e espaços comerciais também começou a florescer no campo da geografia a partir dos anos 1990 (PODMORE, 2006PODMORE, J. Gone ‘underground’? Lesbian visibility and the consolidation of queer space in Montréal, Social & Cultural Geography, v. 7, n. 4, p. 595-625, 2006. ). No marketing, os estudos interessados em gay como categoria cultural também aumentaram durante os anos 1990 e 2000 - sendo considerados negligenciados antes disso (KATES, 2000KATES, S. Out of the closet and out on the street! Gay men and their brand relationships. Psychology & Marketing, v. 17, n. 6, p. 493-513, 2000. ). Por exemplo, o Journal of Homosexuality lançou uma edição especial em 1996 intitulada “Gays, Lésbicas e Comportamento de Consumo”. No entanto, nossa pergunta de pesquisa não implica analisar como dois grupos (p. ex., “gays e sociedade”) se encontram na malha de relações focada no consumo - e sim como as relações intragrupo se estabelecem no comportamento de exclusão.

Para tal análise, utilizamos a abordagem da interseccionalidade - essa se baseia na premissa de que cada indivíduo está em uma posição individual marcada por duas ou mais categorias identitárias. Tais categorias operam simultaneamente (CRENSHAW, 1989CRENSHAW, K. Demarginalizing the intersection of race and sex: a black feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory and antiracist politics. The University of Chicago Legal Forum, v. 140, p. 139-167, 1989. , 1991; GOPALDAS e SIEBERT, 2018GOPALDAS, A.; SIEBERT, A. Women over 40, foreigners of color, and other missing persons in globalizing mediascapes: understanding marketing images as mirrors of intersectionality. Consumption, Markets & Culture, v. 21, n. 4, p. 323-346, 2018.). Portanto, os processos de exclusão raramente operam de modo singular. A interseccionalidade desloca a vivência e a experiência da exclusão para a mediação interna dos grupos minoritários, ou, nas palavras de Crenshaw (1991CRENSHAW, K. Mapping the margins: intersectionality, identity politics, and violence against women of color. Stanford Law Review, v. 43, n. 6, p. 1241-1299, 1991. , p. 1296, tradução nossa), a interseccionalidade (ao contrário da análise estrutural) é “mais útil como um meio de mediar as tensões entre as afirmações de identidades múltiplas e a necessidade constante de políticas intragrupais”.

Ou seja, a interseccionalidade se volta para a análise da exclusão interna nas categorias minoritárias. Estudos que utilizam a interseccionalidade possibilitam que os pesquisadores levem em consideração múltiplos sistemas de poder e estruturas que moldam as identidades. Utilizar a interseccionalidade resulta em uma abordagem multidimensional mais inclusiva, em suas conclusões, do que uma abordagem unidimensional. Além disso, também é considerada a única abordagem que reconhece a heterogeneidade de representações para categorias identitárias, ou, em outras palavras: a única abordagem que aborda a inclusão de categorias multidimensionais de exclusão (raça, gênero, etnia, idade...) (GOPALDAS e DEROY, 2015GOPALDAS, A.; DEROY, G. An intersectional approach to diversity. Consumption, Markets & Culture, v. 18, n. 4, p. 333-364, 2015. ). Tais categorias tendem a ser negligenciadas por movimentos sociais unidimensionais (p. ex. o feminismo unidimensional, que exclui a mulher negra, de acordo com COLLINS (1990COLLINS, P. H. Black feminist thought: knowledge, consciousness, and the politics of empowerment. New York: Routledge, 1990.)); bem como por desenhos de pesquisa unidimensionais.

Locais de mercado e exclusão

Com o alerta de desenhos de pesquisa multidimensionais de Gopaldas e DeRoy (2015GOPALDAS, A.; DEROY, G. An intersectional approach to diversity. Consumption, Markets & Culture, v. 18, n. 4, p. 333-364, 2015. ), apontamos que o estudo da exclusão estrutural e unidimensional em locais de mercado analisa a forma como os consumidores são restringidos em seu acesso ao varejo ou ao prestador de serviços ou, em outras palavras, a exclusão institucionalizada. Seja pelo Estado ou por empresas, tal exclusão institucional cria vulnerabilidade em transações nos locais de mercado (WANG e TIAN, 2013WANG, J.; TIAN, Q. Consumer vulnerability and marketplace exclusion: a case of rural migrants and financial services in China, Journal of Macromarketing, v. 34 n. 1, p. 45-56, 2013. ; KHARE e VARMAN, 2016KHARE, A.; VARMAN, R. Kafkaesque institutions at the base of the pyramid. Journal of Marketing Management, v. 32, n. 17-18, p. 1619-1646, 2016. ). Tal vulnerabilidade nasce de barreiras formadas por atores com posições de poder estrutural.

A análise de exclusão institucional indica a assimetria de poder os ofertantes e demandantes: sob as abordagens de exclusão do lado dos ofertantes, de acordo com Nakamura (2010NAKAMURA, D. Spatial competition and consumer exclusion: social welfare perspectives in central-place system. Letters in Spatial and Resource Sciences, v. 3, n. 3, p. 101-110, 2010. ) e Walker, Keane e Burke (2010WALKER, R.; KEANE, C.; BURKE, J. Disparities and access to healthy food in the United States: a review of food deserts literature. Health & Place, v. 16, n. 5, p. 876-884, 2010. ), esperam-se duas formas de exclusão de consumidores: a) as causadas pelo lado da oferta (p. ex., altos custos fixos para disponibilizar bens e serviços); e b) as causadas pelo lado da demanda (p. ex., consumidores com recursos ou informações insuficientes). No entanto, ambas as formas de exclusão dos consumidores, de acordo com Gopaldas e Siebert (2018GOPALDAS, A.; SIEBERT, A. Women over 40, foreigners of color, and other missing persons in globalizing mediascapes: understanding marketing images as mirrors of intersectionality. Consumption, Markets & Culture, v. 21, n. 4, p. 323-346, 2018.), advêm do amplo controle do aparato de oferta: os autores colocam tal controle como uma operação alimentada por “legados históricos, lógicas aspiracionais de marketing e uma distribuição de trabalhos discriminatórios em toda a indústria (industry-wide)” (GOPALDAS e SIEBERT, 2018GOPALDAS, A.; SIEBERT, A. Women over 40, foreigners of color, and other missing persons in globalizing mediascapes: understanding marketing images as mirrors of intersectionality. Consumption, Markets & Culture, v. 21, n. 4, p. 323-346, 2018., p. 4). Sobre tais formas de exclusão adicionamos, portanto, a preocupação interseccional: mesmo consumidores com recursos ou informações suficientes podem ser impedidos de consumir algum produto ou serviço.

Por isso, para este artigo, optamos por abordar a perspectiva dos consumidores em relação à oferta estabelecida em seus próprios contextos - lugares gays. Questionamos como os lugares em nosso campo participam da formulação das subjetividades dos consumidores gays. No servicescape, por exemplo, a malha de relações envolve as marcas em si como porteiras, modelos e corretoras de classe (DION e BORRAZ, 2017DION, D.; BORRAZ, S. Managing status: how luxury brands shape class subjectivities in the service encounter. Journal of Marketing, v. 81, n. 5, p. 67-85, 2017.). Se pensarmos em uma marca de luxo, tal marca pode agir como corretora daquilo que é “ser luxuoso”. O modelo teórico aponta que haverá um sinal daquilo que é o comportamento aceitável aos consumidores. No entanto, o modelo não consegue capturar aquilo que ocorre quando alguns consumidores são impedidos de participar de tal formulação subjetiva. Por exemplo, de que forma uma pessoa que participe de tal categoria identitária (p. ex., luxo, jovem, masculino) pode ser impedida de participar de tal formulação por ocupar - simultaneamente - outra categoria (CRENSHAW, 1989CRENSHAW, K. Demarginalizing the intersection of race and sex: a black feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory and antiracist politics. The University of Chicago Legal Forum, v. 140, p. 139-167, 1989. ; COLLINS, 1990COLLINS, P. H. Black feminist thought: knowledge, consciousness, and the politics of empowerment. New York: Routledge, 1990.; KHARE e VARMAN, 2016KHARE, A.; VARMAN, R. Kafkaesque institutions at the base of the pyramid. Journal of Marketing Management, v. 32, n. 17-18, p. 1619-1646, 2016. ). Esse é um tema essencial que move este estudo.

O impedimento de participação (exclusão) foi analisado em relação aos lugares gays, ou seja: a análise do lado de produtores ou de ofertantes. A exclusão com base no ofertante gerou o conceito de lugares-centrais (NAKAMURA, 2010NAKAMURA, D. Spatial competition and consumer exclusion: social welfare perspectives in central-place system. Letters in Spatial and Resource Sciences, v. 3, n. 3, p. 101-110, 2010. ; WALKER, KEANE e BURKE, 2010WALKER, R.; KEANE, C.; BURKE, J. Disparities and access to healthy food in the United States: a review of food deserts literature. Health & Place, v. 16, n. 5, p. 876-884, 2010. ). Os lugares-centrais são espaços de concentração de oferta, geralmente decididos pelos ofertantes, sem preocupação com os demandantes.

Ao posicionar os consumidores em uma abordagem multidimensional, buscamos conceitualizar como eles estão posicionados em relação à restrição de participação intragrupo (consumidores e locais de mercado gays). Ao invés de questionar a diferença entre as categorias questionamos, portanto, as diferenças dentro das categorias. Esse reposicionamento ajuda a entender a forma como alguns consumidores podem se encontrar restringidos em sua participação no local de mercado. Isso vai de encontro ao discutido por Castilhos e Dolbec (2017CASTILHOS, R.; DOLBEC, P. Conceptualizing spatial types: characteristics, transitions, and research avenues. Marketing Theory, v. 18, n. 2, p. 154-168, 2017. ): por um lado, respondemos ao chamado por mais pesquisa sobre práticas de exclusão em espaços de mercado - e, ao mesmo tempo, questionamos a posição teórica dos autores (CASTILHOS e DOLBEC, 2017CASTILHOS, R.; DOLBEC, P. Conceptualizing spatial types: characteristics, transitions, and research avenues. Marketing Theory, v. 18, n. 2, p. 154-168, 2017. ) de que a exclusão pode ser reduzida à lógica de livre mercado - que depende apenas do capital cultural e econômico dos consumidores.

MÉTODO

Uma etnografia multicampo (MARCUS, 1995MARCUS, G. Ethnography in/of the world system: the emergence of multi-sited ethnography. Annual Review of Anthropology, v. 24, p. 95-117, 1995. ; KJELDGAARD, CSABA e GER, 2006KJELDGAARD, D.; CSABA, F.; GER, G. Grasping the global: multi-sited ethnographic market studies. In: BELK, R. (Orgs). Handbook of Qualitative Research Methods in Marketing. Cheltenham: Edward Elgar Publishing, 2006. p. 521-533.) foi realizada em 2 metrópoles: Porto Alegre e Montreal. O trabalho de campo foi realizado nessas 2 cidades para: a) encontrar diferenças contextuais em campos que - embora diversos - dividem algumas intersecções relacionalmente construídas; e b) adicionar mais intersecções nos dados, como identidades transnacionais. Também selecionamos os 2 campos por possuírem organizações e políticas públicas de espaços de mercado diferentes: enquanto Montreal tem um conjunto de locais de mercado gays claramente delimitado (Gay Village), Porto Alegre tem um conjunto de lugares gays mais difuso e espalhado em sua geografia urbana (ver Figura 1).

A coleta de dados começou com uma imersão no campo, para mapear os lugares gays em ambas as cidades. Depois de uma coleta inicial, explorou-se o ambiente urbano de forma livre, prestando atenção aos marcadores sociais gays (casais gays em mesas, de mãos dadas na rua, bandeiras LGBT etc.).

Depois desse mapeamento, visitou-se, em Montreal, cada estabelecimento comercial dos dois lados da rua pelo comprimento de uma quadra. Em Porto Alegre, devido ao seu contexto não claramente delimitado, foram visitados prioritariamente os estabelecimentos do distrito emicamente conhecido como “bairro gay”. Finalmente, usando um procedimento similar ao de bola-de-neve, expandiu-se a coleta de informações ao: a) falar com clientes nos locais; e b) coletar materiais físicos que levassem de um lugar ao outro (no caso, panfletos, revistas, guias gays, pôsteres etc.). O foco em homens gays deste trabalho decorre da necessidade de criar fronteiras conceituais e empíricas da sexualidade, embora se reconheça, obviamente, que tais locais e espaços urbanos são entrecortados por outras posições e experiências LBTQ+ com frequência.

Embora a Figura 1 cristalize o procedimento de mapeamento, chamamos atenção para o fato de que esse processo sempre será iterativo, com idas e vindas, mudanças e novos encontros que necessitam de constante remapeamento.

Figura 1
Comparação de ambos os contextos: Porto Alegre e Montreal (2015-2016)

Foram empregadas diferentes técnicas de coleta de dados. As 26 entrevistas individuais foram conduzidas conforme a técnica de long interview (MCCRACKEN, 1988MCCRACKEN, G. The long interview. Newbury Park, CA: Sage, 1988. (Qualitative Research Methods Series n. 13).) e totalizaram cerca de 29 horas de áudio, transcritas em um total de 339 páginas de texto com espaçamento simples. As entrevistas foram conduzidas em português no Brasil e em inglês no Canadá. Posteriormente, uma mesa redonda foi organizada durante a semana PerversCité, em 13/08/2016, em conjunto com outro pesquisador, focado em Teoria Crítica Espacial. Essa mesa redonda, gravada e transcrita, contou com 12 participantes de diversas nacionalidades (mas todos residentes canadenses) identificados como LGBT. A conversa durou cerca de 2 horas. A temática da mesa redonda foi a construção de espaços LGBT fora do contexto noturno e com atendimento mais socializante e comunitário (menos voltado ao consumo de álcool e festas noturnas). Os locais apontados na mesa redonda auxiliaram o mapeamento de organizações não governamentais (ONGs) que poderiam ter escapado do método principal de exploração. No total, foram realizadas observações em 43 lugares - 22 em Montreal e 21 em Porto Alegre (apenas lugares não domésticos foram contabilizados e categorizados, como bares, cinemas, clubes noturnos, saunas, locadoras de vídeo, ONGs, restaurantes e clubes de striptease). As observações foram conduzidas pelo autor principal, sob o papel de observador participante. Os contatos com as equipes e os trabalhadores do local foram restritos à apresentação e explicação da visita do autor principal. O principal objetivo das observações foi a montagem e o mapeamento gráfico da dispersão e da malha urbana de lugares gays (ver Figura 1). Como objetivo secundário, a visitação possibilitou o recrutamento de participantes. Finalmente, o objetivo complementar foi observar os detalhes estruturais de acessibilidade e ambiente físico (iluminação, ruído, motivação principal para consumo dos clientes, decoração etc.). O tempo médio de permanência em cada lugar visitado foi de 40 minutos. Foram registradas notas de campo ao longo de todos os procedimentos de coleta. A Tabela 1 resume os perfis de todas as pessoas entrevistadas individualmente. Informações potencialmente identificadoras, como idade e nome, foram alteradas (sem significância que altere a interpretação).

Tabela 1
Perfis dos entrevistados

ACHADOS

Para organizar esta seção, optamos por separar as observações e os achados em cada cidade pesquisada - e a relação dos consumidores quanto à oferta. Assim, inicialmente se contextualiza a cidade e, a partir disso, apresentam-se os resultados decorrentes desse campo. Além disso, há subseções que buscam responder à pergunta de pesquisa.

Ao retornar à Figura 1, chamamos atenção para a dispersão geográfica dos lugares de consumo nos dois locais: enquanto Montreal apresenta uma área de ofertas de consumo gay altamente concentrada (o que NAKAMURA (2010NAKAMURA, D. Spatial competition and consumer exclusion: social welfare perspectives in central-place system. Letters in Spatial and Resource Sciences, v. 3, n. 3, p. 101-110, 2010. ) denomina sistema de locais-centrais), Porto Alegre apresenta grande dispersão geográfica em seu sistema de ofertas.

A exclusão interseccional em Montreal

Montreal possui uma área demarcada oficialmente como Gay Village, sancionada pelos governos municipal, provincial e nacional (HUNT e ZACHARIAS, 2008HUNT, M.; ZACHARIAS, J. Marketing the imaginary of Montréal’s (gay) village. Canadian Journal of Urban Research, v. 17 n. 1, p. 28-57, 2008.). Essa oferta regulamentada, portanto, surge como um destino turístico sancionado e aprovado por três esferas governamentais. A criação e delimitação da Gay Village ocorreu em um processo histórico: antes de sua criação, os locais gays se concentravam entre as ruas Peel e Stanley, no centro comercial da cidade - mas sofriam repressão policial constante na década de 1970 (PODMORE, 2006PODMORE, J. Gone ‘underground’? Lesbian visibility and the consolidation of queer space in Montréal, Social & Cultural Geography, v. 7, n. 4, p. 595-625, 2006. ). Montreal recebeu dois importantes eventos entre as décadas de 1960 e 70: a Expo 67 (evento mundial de entretenimento e arte) e as Olimpíadas de 1976. Em uma tentativa de limpar o centro da cidade, os estabelecimentos foram forçados a se realocar no distrito atual (HUNT e ZACHARIAS, 2008) - que era uma seção na mesma rua, mas afastada do centro e considerada barata e abandonada. Tal realocação não foi aceita sem conflito e vários protestos ocorreram no final da década de 1970 e no início da década de 1980 (HUNT e ZACHARIAS, 2008).

Exclusão como espetáculo

A delimitação específica gera um problema que Hunt e Zacharias (2008HUNT, M.; ZACHARIAS, J. Marketing the imaginary of Montréal’s (gay) village. Canadian Journal of Urban Research, v. 17 n. 1, p. 28-57, 2008.) denominam homonormatização. Este termo se refere a uma força homogeneizante de ofertas e de possibilidades de consumo que rege as práticas e expressões aceitáveis dentro do ambiente sancionado oficialmente. De certo modo, o surgimento do distrito gay em Montreal criou um espetáculo palatável ao turista heterossexual. Um espaço de observação dos consumidores gays.

Aaron: Sim, no verão tem os fogos de artifício, mas… E você vê um monte de - tipo - pessoas hétero passando pela Village e indo pra casa, indo para… hã… passando pela Village, porque é uma avenida de pedestres - eles fecham a avenida [no verão] - então é tipo um zoológico. Eu não gosto.

Entrevistador: O que você quis dizer com “zoológico”?

Aaron: [...] Eles acham que os gays são estranhos - quer dizer, sabe…

Entrevistador: Sim…

Aaron: Ou você vê gente fazendo as despedidas de solteiro, e passando pela Village como se fosse “vergonhoso”, sei lá. [...] Se alguém te leva para a Village em sua despedida de solteiro é pra causar vergonha, certo?

O excerto acima demonstra como a concentração sancionada e regulada pelo Estado criou uma oferta mais ampla do que o esperado - ou um destino turístico (ao invés de diversão para o público gay), que implica uma entrada indesejada de consumidores ou visitantes heterossexuais que avaliam sua passagem pela Village como uma visita “ao zoológico” (Aaron). A mesma homonormatização (HUNT e ZACHARIAS, 2008HUNT, M.; ZACHARIAS, J. Marketing the imaginary of Montréal’s (gay) village. Canadian Journal of Urban Research, v. 17 n. 1, p. 28-57, 2008.) também implica a normatização de intersecções.

Portanto, uma das formas de operação da exclusão interseccional se encontra na criação de benefícios sancionados e ampliados: ao criar uma Gay Village, o poder público também rege e normatiza os comportamentos aceitáveis e os não aceitáveis. Ademais, normatiza o consumidor preferencial - turistas e pessoas com renda para participar do espetáculo. A próxima subseção explora o modo como as intersecções são segmentadas pelos ofertantes e percebidas como restritivas pelos entrevistados.

Exclusão por meio da segmentação de mercado palatável

A experiência de Saul na Village mostra como a oferta sancionada e homonormatizada (HUNT e ZACHARIAS, 2008HUNT, M.; ZACHARIAS, J. Marketing the imaginary of Montréal’s (gay) village. Canadian Journal of Urban Research, v. 17 n. 1, p. 28-57, 2008.) acaba por excluir as intersecções “próximas do fundo [da pirâmide]” (Saul) que visitam o espaço e os locais. Do mesmo modo, Russel percebe um distanciamento etário por parte da equipe dos bares na Village, que se apresenta na forma educada e polida de tratamento com pessoas de maior idade (“vous” ao invés de “tu”, no francês quebequense). No entanto, os locais específicos procuram definir melhor sua oferta e restringir seu posicionamento - isso implica facilidade de consumo para alguns participantes (NAKAMURA, 2010NAKAMURA, D. Spatial competition and consumer exclusion: social welfare perspectives in central-place system. Letters in Spatial and Resource Sciences, v. 3, n. 3, p. 101-110, 2010. ; CASTILHOS e DOLBEC, 2017CASTILHOS, R.; DOLBEC, P. Conceptualizing spatial types: characteristics, transitions, and research avenues. Marketing Theory, v. 18, n. 2, p. 154-168, 2017. ), mas restrição para outros.

Saul: Não importa onde eu for - eu já estive em duas cidades, em diferentes províncias. Eu vou te dizer: Toronto e Montreal. E… Eu pensei que em Montreal seria melhor, mas é a mesma merda. Porque as pessoas… Há uma merda de hierarquia quando você vai pra Village, e eu estou próximo do fundo [dela].

Entrevistador: Porque você se sente perto do fundo?

Saul: Porque você está no topo se você é jovem e branco. Esse é o topo da pirâmide gay. Não, tipo, esses são o topo… o topo da pirâmide. [...] Porque eles são tão oprimidos [sarcástico], pois são brancos, e machos, e gays que… sabe? Eles vão pra Village e pessoas… pessoas negr… Finalmente alguém está abaixo deles, sabe? Eles têm que ser maldosos. Eles têm que dar a opinião deles sobre esses carinhas negros, sobre esses carinhas asiáticos. Eles são mais populares, eles são mais procurados. Eles têm muito valor na Village, e eles andam desse jeito mesmo, e me tratam desse jeito mesmo.

Entrevistador: Mas você se sente desconectado, de alguma forma, da juventude gay hoje em dia?

Russel: Sim.

Entrevistador: Porque você se sente desconectado?

[...]

Russel: Bem, tem um certo ponto... E foi o Jacques quem começou a falar isso pra mim - tem um ponto quando, no francês, o pessoal da equipe [do bar] começa a te chamar de vous.

Entrevistador: Ah... Sim... O educado...

Russel: O “tu” educado [em francês].

Ahmed, um dos participantes de Montreal, fala sobre a segmentação dos clubes percebida durante suas incursões na Village. Segundo ele, sua preferência é um clube que cobra entrada e, portanto, é menos movimentado. Como um participante relativamente jovem, muçulmano e parcialmente dentro do armário, Ahmed tem motivos para evitar a Village, visto que sua presença em clubes e bares gays pode colocar sua identidade em risco de ser descoberta. Assim, sua presença na Village se resume a beber com amigos em um bar (o que, segundo ele, pode ser usado como desculpa para estar no local - “estava apenas acompanhando meus amigos”) ou frequentar o clube que ele denominou seu favorito, que atende um público mais jovem e não é tão movimentado. Sua intersecção étnica (árabe) - em si - não impede sua participação em tais locais e Ahmed não citou preconceito racial em toda sua entrevista - no entanto, o receio de que outras pessoas árabes o reconhecessem e “delatassem” sua sexualidade para pares religiosos ou étnicos se torna um processo exclusionário.

A oferta estrita e o risco de estigmatização

De modo mais extremo, Brice relata um sentimento parecido com o de Ahmed em relação a um local que tem um benefício muito mais estrito: uma sauna gay. Como homem dentro do armário, enquanto ainda era casado, Brice restringia suas incursões em locais gays à visitação de saunas. Os benefícios do serviço ofertado, extremamente limitados, ficam claros em seu excerto. E, em conjunto com Benjamin, que alerta para a forma como a oferta para bares é controlada por donos hétero e interessados unicamente em dinheiro, reforça a posição de Brice:

Brice: Você não vai lá para socializar. Você vai lá por uma razão, sabe? E você aguenta aqueles lençóis quase transparentes, e aquelas toalhas rasgadas, sabe? E... E... hã... o leiaute horrível do lugar, por que... você precisa da liberação sexual e física. E é... bem, rápido e eficiente. Então, sim - eu costumava ir antes de me separar e divorciar [de minha ex-esposa], e depois, quer dizer... O horário mais ocupado dessas saunas é várias vezes às três da manhã depois que os clubes fecharam. Se você não encontrou ninguém para levar pra casa, você vai pra sauna. E você encontra alguém lá.

Benjamin: Bem, de algumas formas nada mudou [o participante tem cerca de 80 anos] - há uma certa consistência em alguns ambientes - até as marcas das bebidas não mudam. Agora tem uns coquetéis bobinhos, sabe? Alguns bons… hã… A decoração… É hã… Depende. Meu ponto é que os bares gays tendem a ser baratos, sujos, e malcuidados. Isso porque eles nem mesmo são propriedade de pessoas gays de respeito - muitos deles são propriedade de pessoas hétero que querem explorar [exploitative owners] seus clientes gays, sem sentir nada a não ser desprezo [contempt] por seus clientes. Hã… Mas… Enquanto eles ganham um dinheiro fácil e as pessoas vêm para beber eles estão satisfeitos.

Já Lilian, organizadora social de um movimento ligado à sexualidade, relata a forma de organização de eventos para arrecadar dinheiro e custear as ações de seu movimento. Ela explica que o movimento, com uma esperada necessidade de dinheiro, organiza regularmente algumas festas e cita o que denomina “auditoria radical de acessibilidade”:

Entrevistador: E que tipos de práticas você usa para assegurar que as pessoas saberão que [o espaço das festas organizadas por vocês] é aberto?

Lilian: [...] É sobre, tipo, ser responsável e transparente no processo [de seleção de lugar]. [...] Nas páginas dos eventos, é tudo sobre especificar, saca? Tipo, algumas vezes é tão simples quanto mencionar que nós estamos em… Hã… Território indígena [nota: ela usa a primeira-nação específica - Mohawk]. Esse tipo de coisa, sabe?

[...]

Lilian: Ou, tipo, que é importante avisar que é um território não cedido, e não é nosso território… Lá é… Mesmo que não seja, tipo - é uma festa, no fim das contas. É uma balada. Pelo menos reconhecer que é território não cedido é importante - eu acho, tipo, fazer… Por exemplo, a última festa que organizamos nós fizemos, tipo, uma auditoria radical de acessibilidade - que é uma coisa que fazem em outro projeto - outro grupo começou, e isso significa, tipo, medir - tomar medidas do espaço [ativamente], e realmente especificar o quão acessível o espaço é, então… Dizer que o espaço é acessível é uma coisa, mas mostrar que você está trabalhando ativamente e tentando abrir espaço para essas pessoas realmente dizendo pra elas [ênfase] o quão acessível o espaço é, é importante. Eu acho que conseguir diversidade no grupo de DJs, tipo, conseguir DJs que não são todos iguais, ou as mesmas pessoas a cada festa - conseguir gente nova… Hã… E daí… Eu… Eu acho que, é, então eu acho que é sobre ser transparente e mostrar o processo de pensamento, e como você está abordando [a organização desses] eventos. Então, tipo, mencionar o que está rolando, o que está acontecendo, enquanto você vai pensando nisso.

Desse modo, enquanto Brice e Ahmed sofrem o risco de estigmatização por fazerem parte de categorias minoritárias (Brice pela idade, Ahmed pela etnia), Lilian busca agir sobre tal risco ao promover uma ação específica para garantir acessibilidade. A oferta estrita, no caso de Brice, Benjamin e Ahmed, cria uma constante necessidade de resignar-se com algo que é considerado negativo. No caso de Brice, resignar-se com o serviço ruim oferecido pelas saunas. No caso de Benjamin, resignar-se com o “dono hétero” que explora seus clientes gays. No caso de Ahmed, o risco de ser flagrado em um ambiente que o coloque em uma categoria estigmatizada entre muçulmanos. Lilian, no entanto, age concretamente para evitar tal percepção nas pessoas que frequentam as festas organizadas por seu movimento.

Como a exclusão opera em Montreal

De modo geral, Montreal apresentou um ambiente mais homonormatizado (HUNT e ZACHARIAS, 2008HUNT, M.; ZACHARIAS, J. Marketing the imaginary of Montréal’s (gay) village. Canadian Journal of Urban Research, v. 17 n. 1, p. 28-57, 2008.) e com um padrão de construção e ampliação de benefícios. Esse padrão fez da cidade um destino palatável ao público turístico, mas resultou na exclusão de consumidores gays, que se sentem em um zoológico. Mesmo que lugares específicos ofereçam benefícios mais restritos - como no caso de Brice - algumas intersecções ainda são restringidas (p. ex., a participação de um homem gay dentro do armário em uma sauna ou bar pode colocar seu estado em risco - ser “descoberto” e “delatado”). Os benefícios de socialização em bares, no caso de Benjamin - no entanto -, geram a crítica da exploração do dinheiro gay pelo dono hétero. Tal apresentação contextual gerou exclusões do ponto de vista da oferta que afetaram o modo como os participantes entenderam, experimentaram e praticaram atos de consumo. A exclusão opera, em Montreal, por meio de 3 mecanismos: a) a criação de um espetáculo; b) a criação de locais segmentados; e c) a oferta que oferece riscos para algumas intersecções.

A exclusão interseccional em Porto Alegre

Do ponto de vista de Porto Alegre, sua apresentação difusa dos locais de mercado gay (ver Figura 1) oferece maior risco para os consumidores - pois não há regulamentação em nenhum nível (municipal, estadual ou nacional) para a criação de distritos gays. Tal risco se concentra, na narrativa dos participantes, em preocupações quanto à segurança física e psicológica ao circular na cena noturna da cidade. O bairro, conhecido como reduto ou ponto gay (Cidade Baixa) é conhecido, assim, de modo êmico pelos participantes, mas não há política específica que o demarque oficialmente. A coleta e estruturação de lugares gays na cidade começou com a Nuances, uma organização com mais de 25 anos de existência (BARROSO, 2007BARROSO, F. L. A. Jornal do Nuances: a prática midiática de uma ONG de Porto Alegre-RS para o confronto político entre o “gay classe média” e a” bicha bafona”. 2007. Tese (Doutorado em Ciências da computação) - Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, 2007.). A organização lança compilações recorrentes de locais considerados gays na cidade e compila um mapa para difundir entre seu público.

Exclusão advinda da exclusividade

Dado o contexto de locais de mercado difusos, Porto Alegre apresenta sua homonormatização (HUNT e ZACHARIAS, 2008HUNT, M.; ZACHARIAS, J. Marketing the imaginary of Montréal’s (gay) village. Canadian Journal of Urban Research, v. 17 n. 1, p. 28-57, 2008.) de modo diferenciado em relação a Montreal: a normatização ocorre em locais específicos e não em destinos turísticos de forma mais ampla. Um dos locais é classificado como destino excludente por um dos participantes que não ocupa muitas das intersecções minoritárias. Ricardo é um rapaz jovem, branco, cursa pós-graduação e tem alta renda discricionária:

Ricardo: É que o gay econômico [participante usa a categoria econômica como “O gay que participa da atividade econômica”, ou de alto poder aquisitivo], esse do Nova Olaria, era o Jetsetter de Porto Alegre. Era o cara do Bela Vista, que viaja pra Europa, é o cara que tá lá - é o cara que achou um espaço com um cafezinho supertransado, ajeitadinho, um Guion, uma coisa alternativa, como se fosse Paris, não sei o que - supercult... E aí começou a vir aqueles caras estigmatizados, emos, cabelo preto, etc. e tal... Que ele não gostava - que não faz parte do perfil dele, da identidade gay que ele tem, e aí ele saiu dali.

A narrativa de Ricardo, quanto à exclusão por conta de intersecções minoritárias presentes em um espaço aberto ao público, continua de modo mais elucidativo (de sua posição privilegiada) ao falar sobre o Posto 8, na praia de Ipanema, no Rio de Janeiro. A seleção desse excerto, embora escape do campo imediato, ajuda a entender a forma como a oferta ampliada em locais se transforma em excludente, do ponto de vista interseccional:

Ricardo: Eu tava te falando te falando justamente disso, de diversidade: tu aceitar esse carinha lá, que é gay, da periferia - tu vai aceitar ele no teu espaço junto contigo? Não. Talvez esses gays internacionais que estão lá no Posto 8, lá em Ipanema, se começar a vir a tigrada, o favelado, ele não vai se sentir à vontade - porque ele se sente a vontade ali? Porque literalmente, desses anos que eu morei no Rio, nos dois primeiros, eu... praticamente vivi naquele Posto ali.

Entrevistador: No Posto Oito?

Ricardo: É. Porque daí eu tava nessa coisa, nesse deslumbre, de conhecer, conhecer caras de fora, de ver quem... como é que será que é se relacionar com alguém - fiquei com um cara russo, com um cara tcheco, já fiquei com americano, com italiano.

A falta de políticas públicas que delimitem espaços de destino turístico em Porto Alegre não se aplica ao excerto acima. No entanto, tal diferença indica como um espaço claramente delimitado enquanto oferta turística para homens gays afluentes, que viajam para consumir em um espaço turístico como o Posto 8, é formulado emicamente: na narrativa de Ricardo, o espaço com ampla oferta de experiências turísticas se torna um lugar em que gays afluentes não se sentirão à vontade.

Benefícios estritos como possível escapismo

Por outro lado, a difusão de locais de consumo gays em Porto Alegre possibilita uma oferta mais direta em alguns estabelecimentos, com um benefício mais limitado. Roberto, rapaz negro e de baixa renda, relata a liberdade que sentiu ao visitar um dos bares da região norte de Porto Alegre. Tal região é emicamente conhecida como um espaço mais voltado à sexualidade. Vários dos espaços da zona norte da cidade oferecem dark rooms e um estabelecimento próximo à maior sauna gay da cidade é conhecido como bar da classe operária (nas palavras de Ricardo, bar de “pedreiros”) entre os participantes.

Roberto escolheu, como primeiro lugar para visitar, o estabelecimento emicamente conhecido como bar da classe operária. Ao mesmo tempo, os bares citados durante sua entrevista são, em sua maioria, aqueles da zona norte da cidade, com concentração de oferta e benefícios mais restritos (focados na sexualidade). De modo semelhante, Rebecca também cita o mesmo local em sua entrevista. Como travesti, ela reclama da diminuição de espaços que recebem sua intersecção. Em primeiro lugar, cita sua idade (“estou velha”) para explicar porque parou de frequentar a vida noturna. Depois, volta-se ao fator da oferta específica de espaços.

Rebecca: É, mas não existe um lugar específico - é festas... [...] Mas boates específicas, que eu acho interessante pra quem trabalha com show, não tem mais. Como em São Paulo: São Paulo tem [várias] boates, uma drag sai dali, ou uma drag vai ali, ou uma travesti que faz show, vai pra tal lugar, faz show ali, termina o show - se coincide o horário vai [em outro] - eu fazia muito isso em Porto Alegre quando nós tínhamos várias casas [...] mas não tem mais - casas assim. Só festas específicas.

Em seu julgamento de públicos que frequentam os locais, Roberto também faz uma comparação entre os locais com benefícios mais estritos e avalia a participação de pessoas que, por estarem em posições de esconder sua sexualidade, restringem seu consumo de lugares gays às saunas:

Roberto: Mas eu não sei te dizer que público... Porque na verdade é o mesmo que frequenta as festas também. E tem vários caras casados, tipo, enrustidos, e tal... Que vão por prazer.

Entrevistador: Tu achas que a sauna tem mais isso?

Roberto: Muito. Tem muito mais que festa. Porque a exposição é menor.

Entrevistador: A exposição é menor na sauna?

Roberto: Sim, na sauna que festa, com certeza.

Entrevistador: Que interessante.

Roberto: Então, nossa, o que mais tem é cara enrustido - cara que vai lá só pra transar e ir embora, e pronto. Principalmente na semana. E olha que eu nunca fui na semana. Mas todo mundo me disse - que o que mais tem é cara casado, que saiu do trabalho e foi direto pra lá [risos].

Já Gil, um homem jovem, negro, e que nasceu no Nordeste - recentemente se realocou em Porto Alegre para assumir um cargo público - alerta que só frequenta os locais virtuais (aplicativos para marcar encontros). Sua entrevista mostrou uma avaliação de que o Rio Grande do Sul é mais “machista e homofóbico” do que seu estado de origem. Gil inclusive revela, durante sua entrevista, que o deslocamento para a cidade, a mudança e suas experiências alteraram seu modo de analisar a própria cor:

Gil: Não, antes... Eu... Eu... Antes de vir pra cá [Rio Grande do Sul], na verdade, a... a minha identidade...

Entrevistador: Desculpa, qual é a tua identidade?

Gil: A minha identidade como negro... A minha identidade como negro eu só assimilei aqui.

Entrevistador: Aqui em Porto Alegre?

Gil: Não, aqui no estado. Aqui foi que alguém me chamou pela primeira vez de negro, aí eu fiquei pensando “será que eu sou negro?” [risos]. Porque assim, lá no Nordeste, negro, ele é aquele negro “azul” [refere-se aos negros com tons de pele mais escuros].

O deslocamento (mudança) e a hostilidade percebidos por Gil se repetem ao longo de sua narrativa e, lentamente, a cidade de Porto Alegre e o Estado do Rio Grande do Sul, como um todo, descortinam-se como um ambiente pouco receptivo a ele. Mesmo com uma posição de renda mais confortável do que Roberto, por exemplo, Gil continua excluído de um ambiente por percebê-lo negativamente. Logo, Gil e Roberto corroboram a noção de que, em ambas as posições interseccionais: a) os locais mais abertos a receber pessoas em intersecções minoritárias são justamente os que oferecem benefícios mais restritos (bares da zona norte); e b) mesmo posições minoritárias que gozam de uma renda discricionária mais alta se sentem em ambientes hostis e não consomem em lugares com benefícios ampliados.

Logo, a exclusão em locais de mercado considerados abertos à diversidade opera, em Porto Alegre, por meio de: a) ofertas baseadas em exclusividade; e b) por meio de benefícios ampliados, que podem ser entendidos como contextos hostis - mesmo para consumidores com renda discricionária alta. A exclusão opera de modo interseccional, já que algumas intersecções estarão em posição minoritária mesmo que os consumidores participem de outra intersecção.

CONCLUSÕES

A interseccionalidade vem se tornando uma ferramenta analítica primária para teorizar identidade e opressão (NASH, 2008NASH, J. Re-thinking Intersectionality. Feminist Review, n. 89, p. 1-15, 1995.; HANKIVSKY e CORMIER, 2011HANKIVSKY, O.; CORMIER, R. Intersectionality and public policy: some lessons from existing models. Political Research Quarterly, v. 64, n. 1, p. 217-229, 2011. ). Com este artigo, teorizamos tais preocupações identitárias e de processos de exclusão, além de ligá-las aos benefícios ofertados em ambientes de mercado.

As duas cidades pesquisadas apresentaram, embora emergentes de contextos distintos, um arcabouço de ofertas: por um lado, homonormatizadas em sua concentração específica e geográfica (Gay Village), por outro, normatizadas por atores de mercado (bares, saunas, e clubes). Saatcioglu e Corus (2016SAATCIOGLU, B.; CORUS, C. Exploring spatial vulnerability: inequality and agency formulations in social space. Journal of Marketing Management, v. 32, n. 3-4, p. 230-251, 2016. ) classificam o estado de desequilíbrio de relações entre atores de mercado de vulnerabilidade. Tal estado ocorre quando o controle deixa de estar na mão de indivíduos. Acrescentamos, no entanto, que tal controle pode ser interseccionalmente negado a alguns indivíduos - mesmo que tais indivíduos detenham controle de capital financeiro, cultural ou até simbólico, continuarão interseccionalmente impedidos de consumir lugares (SAATCIOGLU e CORUS, 2016SAATCIOGLU, B.; CORUS, C. Exploring spatial vulnerability: inequality and agency formulations in social space. Journal of Marketing Management, v. 32, n. 3-4, p. 230-251, 2016. ).

Sob a luz do conceito de lugares-centrais (NAKAMURA, 2010NAKAMURA, D. Spatial competition and consumer exclusion: social welfare perspectives in central-place system. Letters in Spatial and Resource Sciences, v. 3, n. 3, p. 101-110, 2010. ) e de dificuldade de acesso para as populações suburbanas ou pobres (WALKER, KEANE e BURKE, 2010WALKER, R.; KEANE, C.; BURKE, J. Disparities and access to healthy food in the United States: a review of food deserts literature. Health & Place, v. 16, n. 5, p. 876-884, 2010. ), adicionamos à literatura que mesmo para intersecções com capital cultural ou econômico alto (CASTILHOS e DOLBEC, 2017CASTILHOS, R.; DOLBEC, P. Conceptualizing spatial types: characteristics, transitions, and research avenues. Marketing Theory, v. 18, n. 2, p. 154-168, 2017. ), a restrição de acesso se mantém. Tal impedimento ocorre em locais com uma gama de benefícios ampliados, nos quais os consumidores procuram benefícios de modo mais homogêneo (destinos turísticos, locais noturnos para socialização). Em locais com benefícios mais restritos (saunas, lojas de livro, cafeterias), tais impedimentos interseccionais se tornam menos aparentes. Por exemplo, para alguns participantes, a renda alta não resolve o problema de sentir-se excluídos em ambientes hostis (Gil e Saul). No entanto, em locais que oferecem benefícios mais restritos (saunas, aplicativos on-line) ofereciam menor sensação de exclusão. Também adicionamos às conclusões de Gopaldas e Siebert (2018GOPALDAS, A.; SIEBERT, A. Women over 40, foreigners of color, and other missing persons in globalizing mediascapes: understanding marketing images as mirrors of intersectionality. Consumption, Markets & Culture, v. 21, n. 4, p. 323-346, 2018.) a noção de que além da exclusão ligada a duas ou mais intersecções, esperada em mídias, a oferta no espaço de mercado específico provoca tal exclusão, mesmo em ofertantes claramente e ostensivamente abertos à diversidade.

Portanto, a exclusão operou de modo interseccional (CRENSHAW, 1989CRENSHAW, K. Demarginalizing the intersection of race and sex: a black feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory and antiracist politics. The University of Chicago Legal Forum, v. 140, p. 139-167, 1989. ; COLLINS, 1990COLLINS, P. H. Black feminist thought: knowledge, consciousness, and the politics of empowerment. New York: Routledge, 1990.), respeitando os benefícios ofertados em lugares gays: em locais com benefício ampliado (p. ex., Gay Village como destino turístico, gastronômico, de socialização), a exclusão operou de modo mais intenso do que em locais de benefício restrito (saunas, aplicativos on-line, bares menos segmentados).

Duas iniciativas chamaram atenção durante o trabalho de campo e também surgem como implicações gerenciais propostas: a) a de terceiros atores como amenizadores de exclusão interseccional; e b) a de auditoria radical de acessibilidade.

A primeira se encaixa contextualmente em Porto Alegre: uma ONG privada que realiza treinamentos e proporciona certificações para locais de mercado, além de conferir um selo de acessibilidade LGBT para bares, restaurantes, cafés, boates e qualquer outro estabelecimento que passar por tal treinamento voluntário. Esse ator interveniente no contexto mercadológico ameniza o processo de exclusão interseccional ao destacar visualmente os espaços que passaram por processos de treinamento e especialização para receber as mais diversas intersecções que cruzam as categorias LGBT. Conclui-se que a disseminação de mais atores intervenientes no processo de certificação e treinamento em locais de mercado pode amenizar o sentimento de exclusão por parte de categorias minoritárias interseccionalmente.

A segunda é descrita por Lilian: o ato de auditoria ativa de acessibilidade, com disponibilização de fichas técnicas explícitas nas comunicações de eventos (LGBT ou outros). Lilian alertou para a necessidade de colocar, em números, quão acessível o espaço é - largura dos corredores, tamanho das cabines de banheiro, ângulo das rampas de acesso, lotação, direção de abertura das portas, altura de degraus, altura de balcões de atendimento, decibéis médios esperados para a festa ou evento, disponibilidade de bebidas não alcoólicas, horários de transporte público e transporte privado, treinamentos e especializações de segurança quanto à sensibilidade racial (para evitar situações de racismo institucional) e de gênero etc. Essas duas iniciativas, como implicações gerenciais, podem amenizar o problema da exclusão interseccional em espaços com uma gama de benefícios ampliados.

Como limitação deste estudo, apontamos o fato de que a escolha de recorte identitário (gay, ao invés da ampla categoria LGBT) pode inferir preocupações voltadas apenas ao público masculino cisgênero. Isso tem o potencial de dificultar o entendimento de mais invisibilidades identitárias operando no campo.

Para futuras pesquisas, indicamos o aprofundamento do entendimento de como a exclusão interseccional se dá quando a abordagem interseccional amplia o número de eixos identitários. Também consideramos a possibilidade de aprofundar o aspecto transcultural do estudo - a análise das geografias urbanas deste estudo não contemplou o aspecto de diferenças culturais. Reconhece-se que diferenças culturais influenciam as relações de mercado observadas, mas não foram contempladas nesta análise. Além disso, a limitação citada no parágrafo anterior também pode ser considerada uma oportunidade para nova pesquisa: a inclusão de mais categorias identitárias invisibilizadas (mulheres e homens trans, mulheres lésbicas, pessoas bissexuais) pode mostrar-se um caminho importante para ampliar o conhecimento da exclusão interseccional em espaços de mercado.

REFERÊNCIAS

  • ACKER, J. Inequality regimes gender, class, and race in organizations. Gender & Society, v. 20, n. 4, p. 441-464, 2006.
  • AGIER, I.; SZAFARZ, A. Microfinance and gender: is there a glass ceiling on loan size? World Development, v. 42, p. 165-181, 2013.
  • BAKER, S. M.; GENTRY, J. W.; RITTENBURG, T. L. Building understanding of the domain of consumer vulnerability. Journal of Macromarketing, v. 25, n. 2, p. 128-139, 2005.
  • BARROSO, F. L. A. Jornal do Nuances: a prática midiática de uma ONG de Porto Alegre-RS para o confronto político entre o “gay classe média” e a” bicha bafona”. 2007. Tese (Doutorado em Ciências da computação) - Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, 2007.
  • BETTANY, S. et al. Moving beyond binary opposition: exploring the tapestry of gender in consumer research and marketing. Marketing Theory, v. 10, n. 1, p. 3-28, 2010.
  • BORGES, A. L. V.; SCHOR, N. Início da vida sexual na adolescência e relações de gênero: um estudo transversal em São Paulo, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 21, n. 2, p. 499-507, 2005.
  • CARR, E. R. et al. Understanding the link between multiple oppressions and depression among African American women: the role of internalization. Psychology of Women Quarterly, v. 38, n. 2, p. 233-245, 2014.
  • CASTILHOS, R.; DOLBEC, P. Conceptualizing spatial types: characteristics, transitions, and research avenues. Marketing Theory, v. 18, n. 2, p. 154-168, 2017.
  • COLLINS, P. H. Black feminist thought: knowledge, consciousness, and the politics of empowerment. New York: Routledge, 1990.
  • COMMURI, S.; EKICI, A. An enlargement of the notion of consumer vulnerability. Journal of Macromarketing, v. 28, n. 2, p. 183-186, 2008.
  • CRENSHAW, K. Demarginalizing the intersection of race and sex: a black feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory and antiracist politics. The University of Chicago Legal Forum, v. 140, p. 139-167, 1989.
  • CRENSHAW, K. Mapping the margins: intersectionality, identity politics, and violence against women of color. Stanford Law Review, v. 43, n. 6, p. 1241-1299, 1991.
  • CROCKETT, D.; GRIER, S.; WILLIAMS, J. Coping with marketplace discrimination: an exploration of the experiences of black men. American Marketing Science Review, v. 2003, n. 4, p. 1-18, 2003.
  • CROCKETT, D.; WALLENDORF, M. Sociological perspectives on imposed school dress codes: consumption as attempted suppression of class and group symbolism. Journal of Macromarketing, v. 18, n. 2, p. 115-131, 1998.
  • DELOZIER, M.; RODRIGUE, J. Marketing to the homosexual (gay) market. Journal of Homosexuality, v. 31, n. 1-2, p. 203-212, 1996.
  • DENISSEN, A.; SAGUY, A. Gendered homophobia and the contradictions of workplace discrimination for women in the building trades. Gender & Society, v. 28, n. 3, p. 381-403, 2014.
  • DION, D.; BORRAZ, S. Managing status: how luxury brands shape class subjectivities in the service encounter. Journal of Marketing, v. 81, n. 5, p. 67-85, 2017.
  • GOPALDAS, A. Intersectionality 101. Journal of Public Policy & Marketing, v. 32, p. 90-94, 2013. Special issue.
  • GOPALDAS, A.; DEROY, G. An intersectional approach to diversity. Consumption, Markets & Culture, v. 18, n. 4, p. 333-364, 2015.
  • GOPALDAS, A.; SIEBERT, A. Women over 40, foreigners of color, and other missing persons in globalizing mediascapes: understanding marketing images as mirrors of intersectionality. Consumption, Markets & Culture, v. 21, n. 4, p. 323-346, 2018.
  • GURRIERI, L.; PREVITE, J.; BRACE-GOVAN, J. Women’s bodies as sites of control: inadvertent stigma and exclusion in social marketing. Journal of Macromarketing, v. 33, n. 2, p. 128-143, 2013.
  • HANKIVSKY, O.; CORMIER, R. Intersectionality and public policy: some lessons from existing models. Political Research Quarterly, v. 64, n. 1, p. 217-229, 2011.
  • HUNT, M.; ZACHARIAS, J. Marketing the imaginary of Montréal’s (gay) village. Canadian Journal of Urban Research, v. 17 n. 1, p. 28-57, 2008.
  • HUTTON, M. Consuming stress: exploring hidden dimensions of consumption-related strain at the intersection of gender and poverty. Journal of Marketing Management, v.31, n. 15, p. 1-23, 2015.
  • JAFARI, A.; GOULDING, C. We are not terrorists: UK based Iranians, consumption practices and the torn self. Consumption, Markets & Culture, v. 11, n. 2, p. 73-91, 2008.
  • KATES, S. Out of the closet and out on the street! Gay men and their brand relationships. Psychology & Marketing, v. 17, n. 6, p. 493-513, 2000.
  • KATES, S. The protean quality of subcultural consumption: an ethnographic account of gay consumers. Journal of Consumer Research, v. 29, n. 3, p. 383-399, 2002.
  • KHARE, A.; VARMAN, R. Kafkaesque institutions at the base of the pyramid. Journal of Marketing Management, v. 32, n. 17-18, p. 1619-1646, 2016.
  • KJELDGAARD, D.; CSABA, F.; GER, G. Grasping the global: multi-sited ethnographic market studies. In: BELK, R. (Orgs). Handbook of Qualitative Research Methods in Marketing. Cheltenham: Edward Elgar Publishing, 2006. p. 521-533.
  • LANGLEY, P. Consuming credit. Consumption, Markets & Culture, v. 17, n. 5, p. 417-428, 2014.
  • LEZNOFF, M. The homosexual in urban society. Montréal: McGill University, 1958.
  • LINDAU, S. et al. A study of sexuality and health among older adults in the United States. New England Journal of Medicine, v. 357, n. 8, p. 762-774, 2007.
  • LISBOA, T. Gênero, classe e etnia: trajetórias de vida de mulheres migrantes. Revista Katálysis, v. 6, n. 2, p. 251-252, 2003.
  • MARCUS, G. Ethnography in/of the world system: the emergence of multi-sited ethnography. Annual Review of Anthropology, v. 24, p. 95-117, 1995.
  • MCCRACKEN, G. The long interview. Newbury Park, CA: Sage, 1988. (Qualitative Research Methods Series n. 13).
  • NAKAMURA, D. Spatial competition and consumer exclusion: social welfare perspectives in central-place system. Letters in Spatial and Resource Sciences, v. 3, n. 3, p. 101-110, 2010.
  • NASH, J. Re-thinking Intersectionality. Feminist Review, n. 89, p. 1-15, 1995.
  • OLIVER, M. B.; HYDE, J. S. Gender differences in sexuality: a meta-analysis. Psychological Bulletin, v. 114, n. 1, p. 29-51, 1993.
  • PODMORE, J. Gone ‘underground’? Lesbian visibility and the consolidation of queer space in Montréal, Social & Cultural Geography, v. 7, n. 4, p. 595-625, 2006.
  • ROSEMBERG, F.; ANDRADE, L. F. Ação afirmativa no Ensino Superior brasileiro: a tensão entre raça/etnia e gênero. Cadernos Pagu, n. 31, p. 419-437, 2008.
  • SAATCIOGLU, B.; CORUS, C. Exploring spatial vulnerability: inequality and agency formulations in social space. Journal of Marketing Management, v. 32, n. 3-4, p. 230-251, 2016.
  • SAATCIOGLU, B.; OZANNE, J. A critical spatial approach to marketplace exclusion and inclusion. Journal of Public Policy & Marketing, v. 32, n. esp., p. 3232-3237, 2013.
  • SANGHVI, M.; HODGES, N. Marketing the female politician: an exploration of gender and appearance. Journal of Marketing Management, v. 31, n. 15-16, p. 1676-1694, 2015.
  • THOMPSON, C.; HAYTKO, D. Speaking of fashion: consumers’ uses of fashion discourses and the appropriation of countervailing cultural meanings. Journal of Consumer Research, v. 24, n. 1, p. 15-42, 1997.
  • WALKER, R.; KEANE, C.; BURKE, J. Disparities and access to healthy food in the United States: a review of food deserts literature. Health & Place, v. 16, n. 5, p. 876-884, 2010.
  • WANG, J.; TIAN, Q. Consumer vulnerability and marketplace exclusion: a case of rural migrants and financial services in China, Journal of Macromarketing, v. 34 n. 1, p. 45-56, 2013.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2020

Histórico

  • Recebido
    12 Jul 2018
  • Aceito
    04 Jan 2019
Fundação Getulio Vargas, Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas Rua Jornalista Orlando Dantas, 30 - sala 107, 22231-010 Rio de Janeiro/RJ Brasil, Tel.: (21) 3083-2731 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernosebape@fgv.br