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“Com quem estão seus filhos?” Discursos e práticas em autos judiciais e as condições de intersecção entre racismo, sexismo e colonialismo em uma ação penal

“With who are your children?” Speeches and practices in court records and the conditions of intersection between racism, sexism and colonialism in a prosecution

“¿Con quién estan sus hijos?” Discursos y prácticas en los expedientes judiciales y las condiciones de intersección entre racismo, sexismo y colonialismo en los procesos penales

Resumo:

Neste artigo, debato, a partir do pensamento de Fanon e da lente analítica da interseccionalidade, a relação entre racismo, sexismo e o sistema de justiça criminal brasileiro. Assumo como estudo de caso o processo de uma mulher namibiana, mãe solteira e HIV positiva que foi criminalizada pelo tráfico internacional de drogas no Brasil, destacando como raça, classe, gênero e colonialidade estiveram apresentados em seu julgamento. Proponho, com isso, que a não implicação de juízes às críticas que vêm sendo produzidas sobre o sistema penal, desde epistemologias afrodiaspóricas, está diretamente relacionada à forma como vantagens sistêmicas estão cristalizadas nesses espaços.

Palavras-chave
Interseccionalidade; Mulheres criminalizadas; Tráfico internacional de drogas; Sistema de justiça criminal

Abstract:

In this article, I discuss, based on Fanon’s thinking and the analytical lens of intersectionality, the relationship between racism, sexism and the Brazilian criminal justice system. I take as a case study the prosecution of a Namibian woman, single mother and HIV carrier who was criminalized by international drug trafficking in Brazil, highlighting how race, class, gender and coloniality were presented in her trial. I propose, therefore, that the non-implication of judges to the criticisms that have been produced about the penal system, from Afrodiasporic epistemologies, is directly related to the way in which systemic advantages are crystallized in these spaces.

Keywords
Intersectionality; Criminalized women; International drug trafficking; Criminal justice system

Resumen

En este artículo, basado en el pensamiento de Fanon y la lente analítica de la interseccionalidad, debato la relación entre racismo, sexismo y el sistema de justicia penal brasileño. Tomo como estudio el caso de una mujer nanibiana, madre soltera y portadora del vírus VIH que fue criminalizada por el tráfico internacional de drogas en Brasil, destacando cómo la raza, la clase, el género y la colonialidad fueron presentados a su juicio. Con esto, propongo que la no implicación de los jueces en las críticas que se han producido sobre el sistema penal, desde epistemologías afrodiaspóricas, está directamente relacionada con la forma en que las ventajas sistémicas se cristalizan en estos espacios.

Palabras clave
Interseccionalidad; Mujeres criminalizadas; Tráfico internacional de drogas; Sistema de justicia criminal

A aparente difusão, no Brasil, do pensamento feminista negro e de importantes chaves de análise, tais como a da interseccionalidade (Crenshaw 1989Crenshaw, Kimberlé. 1989. Demarginalizing the intersection of race and sex: a black feminist. Critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory and antiracist politics. University of Chicago Legal Forum 8 (1):139-167.), tem feito aflorar o debate sobre os limites e as possibilidades das agendas implementadas desde que se tornaram centrais para a reflexão sobre práticas e sujeitos. Nesse sentido, embora ambas impliquem em propostas que deslocam epistemologicamente para produzir alterações nas relações sociais, a matriz da branquitude cisheteropatriarcal que localiza, por exemplo, a maioria das burocracias estatais, deixa escancarada a forma como pode-se manter as dinâmicas de opressões em um país, ainda que o estado da arte da pesquisa sobre uma determinada agência esteja interpelado pelas críticas que estes aportes carregam.

No caso do sistema de justiça criminal brasileiro, o fenômeno do encarceramento em massa, encarado como um projeto político voltado, especialmente, contra pessoas negras, pobres e periféricas (Borges 2019Borges, Juliana. 2019. Encarceramento em massa. São Paulo: Pólen.), é um dos que vem sendo denunciado como orgânico à forma como raça, classe e gênero interagem, atualizando os dispositivos que naturalizam o fato de alguns corpos estarem mais vulneráveis à atuação policial e/ou judicial e sofrerem de forma mais brutal os efeitos necessários do aprisionamento.

E isso, especialmente, no que se refere à criminalização de mulheres, aos crimes relacionados à Lei 11.343/06. A política de drogas é o principal subterfúgio para o alijamento da condição humana de mulheres que buscam o mercado ilegal em decorrência do projeto neoliberal que intensifica a feminização da pobreza (Barragán et al. 2016Barragán, Margarita Aguinaga, Miriam Lang, Dunia M. Chavez, Alejandra Santillana. 2016. Pensar a partir do feminismo: críticas e alternativas ao desenvolvimento. In Descolonizar o imaginário: debates sobre o pós-extrativismo e alternativas ao desenvolvimento, organizado por Gerhard Dilger, Miriam Lang e Jorge Pereira Filho, 89-120. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo., 95). Sentenças por tráfico de drogas amontoam-se nos gabinetes, sem que magistradas(os) sejam tocadas(os) pelas histórias que os autos contam, o que faz refletir sobre a forma como as rupturas daquele deslocamento teórico-metodológico, promovido pelas chaves da interseccionalidade e o legado da teoria crítica da raça e do feminismo negro, não alcancem as estruturas densas que assentam práticas desde a magistratura. A efervescência no campo teórico que estes saberes representam e a manutenção das mesmas conjecturas em políticas, tais como a destacada, faz lembrar do jargão citado por Collins (2019Collins, Patricia H. 2019. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo Editorial., 64) “quanto mais as coisas mudam, mais continuam as mesmas”.

Neste artigo, procuro, primeiro, localizar o sistema de justiça criminal no contexto do racismo e sexismo brasileiro. Reflito, a partir do pensamento de Fanon, sobre a forma alienante como as hierarquias de raça interpelam relações de poder em países fundados pela empresa colonial. Depois, mobilizo a lente da interseccionalidade para pensar sobre a forma como as intersecções entre gênero, raça, classe e colonialidade atravessam mulheres não brancas nesses territórios, para problematizar como circundam contextos de criminalização do mercado ilícito de substâncias entorpecentes no Brasil. Escolho realizar um estudo de caso, analisando os documentos e gravações de duas audiências que integram os autos de uma ação penal, em que uma mulher namibiana foi criminalizada pelo tráfico internacional de drogas neste país.

A reflexão sobre o modo como realidades são apagadas pelos atores judiciais, a partir da escolha pelo que documentar e como agir em um ritual processual penal, traz à tona a relação entre judiciário e as estratégias de refinamento do racismo em território brasileiro. A não implicação de juízas(es) às críticas que vêm sendo produzidas sobre o sistema penal, desde epistemologias como as destacadas, está diretamente relacionada à forma como vantagens sistêmicas estão cristalizadas nesses espaços e como a austeridade vem sendo desde ali cultivada como “ethos institucional” (Flauzina e Pires 2020Flauzina, Ana e Thula Pires. 2020. Supremo Tribunal Federal e a naturalização da barbárie. Rev. Direito Práxis, 11 (2): 1211-1237. https://doi.org/10.1590/2179-8966/2020/50270.
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).

Racismo, colonialismo e o sistema de justiça criminal

Cindidas naquilo que Fanon (1968Fanon, Frantz. 1968. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., 28) constrói enquanto duas zonas, que se excluem reciprocamente, a colonização fez opor dois mundos através do racismo: o daqueles que colonizaram e dos povos onde a colonização aconteceu. Assim, para o aparelhamento do estado operar nas regiões colonizadas, instituindo a destruição e a interdição absoluta das formas originárias, a razão colonial impôs-se de modo profundo, assentando raça como um dispositivo que deu suporte ao escravismo e toda a série de alijamentos que se perpetuam.

Prolongando-se como um ethos a partir do qual as relações de poder foram se conformando, o “mito do negro-ruim”, nos países imbuídos pela lógica colonial, passou a fazer parte do inconsciente coletivo que transformou e transforma a existência de sujeitos não brancos (concebidos a partir do paradigma do homem branco) em afronta. Assim o racismo foi se alastrando enquanto um pacto de manutenção das elites, marcado pelo “desprezo, racismo que minimiza” (Fanon 1968Fanon, Frantz. 1968. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., 136). E, para o pensamento fanoniano, foi assumindo uma condição alienante, erigido através de uma “metaconsciência totalizadora, definidora do humano em termos puramente tautológicos, maniqueístas e essencialistas, como fruto de uma metavisão hegemônica” (Moore 2010Moore, Charles. 1978. “Negro sou, negro ficarei”. Prefácio. In Discurso sobre o colonialismo, organizado por Aimé Césaire, 7-38. Lisboa: Ed. Livraria Sá da Costa., 9).

Fanon propôs, com base nos próprios casos clínicos que teve contato como psiquiatra, que a loucura colonial estaria na fixação de um padrão que dividiu, entre a zona do ser (a do humano) e do não ser (não humano), sujeitos em função das representações resultantes da diferença ontológica entre brancos e não brancos. Produtor de delírio incutiu uma ordem de escravização permanente: “o preto, escravo de sua inferioridade, o branco, escravo de sua superioridade” (Fanon 2008Fanon, Frantz. 2008. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUfba., 66).

Nesse sentido, o trauma e a culpa como condição de existir foram sendo construídos pelas elites brancas, interessadas em manter-se no poder, como condição que deslocava sujeitos não brancos à zona do não ser. Como escreve Fanon (2008Fanon, Frantz. 2008. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUfba., 125): “o pecado é preto como a virtude é branca. Todos estes brancos reunidos, revólver nas mãos, não podem estar errados. Eu sou culpado. Não sei de quê, mas sinto que sou um miserável”.

Cindidas entre ser e não ser, a divisão das sociedades transcenderia os limites da alteridade; daí o principal marco da chave analítica da antinegritude e da importância de se pensar, a partir desse autor, sobre questões que emergem de regiões afrodiaspóricas e que podem ser indiciárias da forma como o racismo sofistica-se e capilariza-se até hoje, especialmente nas burocracias de estado.

É com base nesse referencial que busco refletir sobre algumas das condições para a implantação da ordem da supremacia branca, que só se mantém nas condições delirantes descritas, se a ilusão do universal, hegemônico, da narcísica condição excludente de acessar a humanidade for nutrida, permanentemente, pela naturalização das hierarquias raciais. E pelo aliciamento de órgãos de poder e de sujeitos que compõem os organismos estatais, como o sistema de justiça criminal, na ordem da divisão da humanidade em duas zonas.

Parto da percepção de que os processos de criminalização atualizam essa metaconsciência totalizadora, entendendo os cárceres como lugares que simbolizam práticas de abjeção que remetem à lógica do escravismo colonial e atualizam, simbólica e materialmente, os dispositivos a partir dos quais o racismo se mantém como âncora da seletividade do sistema penal. Processos que só se tornam possíveis porque programados em resposta ao desejo alienante de, em despejando corpos sem humanidade ao que os espaços de criminalização materializam, manter a elite branca cisheteronormativa nos órgãos de cúpula estatais. E que dimensionam “o racismo como pedra angular do estado brasileiro e de suas instituições jurídico-políticas” (Flauzina e Pires 2020Flauzina, Ana e Thula Pires. 2020. Supremo Tribunal Federal e a naturalização da barbárie. Rev. Direito Práxis, 11 (2): 1211-1237. https://doi.org/10.1590/2179-8966/2020/50270.
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, 1213).

Nesse sentido, a mentalidade obsidial que associa “criminalidade” e violência, preferencialmente, a corpos negros e que se difunde a partir das mais diferentes agências, é o que possibilita, também, o reforço da supremacia branca em atuações judiciais. Ainda, no caso dos delitos de drogas, a difusão ideológica de “traficantes de drogas” como referência das mais ontológicas condições do “mau” e a implantação da guerra como terror racial o que reinventa, a cada ação penal, a forma como o racismo se perpetua e possibilita a manutenção dos pactos da branquitude e do cisheteropatriarcado.

Racismo, sexismo e criminalização de mulheres

Se a antinegritude se alastrou de diversas formas nas sociedades coloniais, e é mantida na sua relação imediata com a perpetuação das vantagens nomeadas e não nomeadas que corpos brancos experimentam em nosso território, ela também recai diferencialmente contra mulheres e homens. Embora não tenha sido esse o foco de Fanon, o raciocínio dicotômico, pautado entre o universal e o hegemônico, também afetou corpos gendrados com distinção, atravessando “profundamente as mulheres colonizadas, em função da complexidade das intervenções que lhes sequestraram a humanidade” (Cardoso 2017Cardoso, Claudia P. 2017. Por uma epistemologia feminista negra do sul: experiências de mulheres negras e o feminismo negro no Brasil. Anais de Congresso - 13º Mundos de Mulheres e Fazendo Gênero 17 (11): 1-11., 1).

Mulheres negras transformaram-se, ao longo da intrusão colonial, no “outro feminino racializado” (Cardoso 2017Cardoso, Claudia P. 2017. Por uma epistemologia feminista negra do sul: experiências de mulheres negras e o feminismo negro no Brasil. Anais de Congresso - 13º Mundos de Mulheres e Fazendo Gênero 17 (11): 1-11., 1-2) e, assim, gênero também se construiu nessa relação como uma categoria relacionada ao colonialismo. Quer dizer, se o binarismo hierárquico é o que marca de plano a colonialidade, só cabe na divisão dos gêneros a relação entre homens e mulheres cisheterossexuaisbrancos não deficientes. Mulheres negras, nessa relação, estariam atravessadas pelos interpelamentos múltiplos da zona do não ser, já que

[…] na intersecção entre Mulher e negro há uma ausência onde deveria estar a mulher negra, precisamente porque nem mulher nem negro a incluem. A intersecção nos mostra um vazio. Por isso, uma vez que a interseccionalidade nos mostra o que se perde, ficamos com a tarefa de reconceitualizar a lógica da intersecção para, desse modo, evitar a separação das categorias existentes e o pensamento categorial. Somente ao perceber gênero e raça como tramados ou fundidos indissoluvelmente, podemos realmente ver as mulheres de cor. (Lugones 2020Lugones, María. 2020. Colonialidade e gênero. In Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais, organizado por Heloísa Buarque de Hollanda, 52-83. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo., 620).

Muitas autoras vêm, há décadas, pensando sobre os impactos da relação entre racismo e sexismo em países que vivem a colonialidade enquanto um projeto político, pontuando que, também por isso, não há como se falar em um sujeito único, universal, “mulher” (hooks 2015hooks, bell. 2015. Mulheres negras: moldando a teoria feminista. In Revista Brasileira de Ciência Política, 16 (1): 193-210.; Curiel 2014Curiel, Ochy. 2014. Construyendo metodologías feministas desde el feminismo decolonial. In Otras formas de (re)conocer. Reflexiones, herramientas y aplicaciones desde lainvestigación feminista, organizado por Irantzu Mendia Azkue, Marta Luxán, Matxalen Legarreta, Gloria Guzmán, Iker Zirion, Jokin Azpiazu Carballo, 45-70. Bilbao: Universidad del País Vasco-Hegoa-Simrf.) que possa ser a expressão das condições de gênero em um território. Descentralizar o gênero e pautar a descolonização dos saberes tem sido um movimento múltiplo na problematização das narrativas dos feminismos brancos hegemônicos dos países centrais. E assim se escancara que também os privilégios de raça e classe marcaram tradicionalmente os paradigmas que reivindicaram a posicionalidade dos gêneros nas relações de poder (Davis 2016Davis, Angela. 2016. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo Editorial., 20).

A nomeação da interligação entre os diferentes matizes de opressão, em articulações complexas, não hierarquizadas, que se sobrepõem e criam um estado de desigualdades e injustiças próprio – que constitui também o nodal para a sua revolução – é base da chave da interseccionalidade. Crenshaw (2002Crenshaw, Kimberlé. 2002. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas 10 (1): 171-188. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2002000100011.
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, 177), na sua militância ativa pelo direito do povo negro nos EUA, pensa nessa como uma forma de capturar as consequências da interação entre os eixos de subordinação e produzir estratégias de ruptura desse mesmo estado.

Há, neste movimento, um enorme compromisso com o diálogo contínuo entre pensamento e ação (Collins 2019Collins, Patricia H. 2019. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo Editorial., 75), ajustado à percepção da forma como a justiça social pode ser encarada desde essa virada. Isto é, denunciar as violências que o singular “mulher” produz e trazer para o centro das reflexões a racialização do patriarcado nas sociedades coloniais demanda a prospecção de pautas políticas que possam reivindicar sentidos outros para condições tais quais a da liberdade.

Por isso, os debates sobre as interconexões entre raça, classe, gênero, e sexualidade devem dar partida a mais que constatações retóricas. O apontamento das diversas esferas de negação do sentido de “ser” que mulheres não brancas experenciam está, em essência, alinhado ao compromisso que essa agenda tem com a justiça social (Collins 2019Collins, Patricia H. 2019. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo Editorial., 87). E é justamente na percepção da forma como difusão (do pensamento) e práticas (ações) distanciam-se que se tem escancarado problemas relacionados ao esvaziamento da categoria analítica da interseccionalidade.

Quer dizer, nomear que o racismo e o cisheteropatriarcado estão cruzados e propor que essa constante interação é sistêmica à indissociabilidade das estruturas que lhe fundam é parte do caminho que fratura toda uma tradição epistemológica em nossa região. E é nesse sentido que podemos dizer que a ferramenta da interseccionalidade destaca os mecanismos atribuíveis à manutenção da inseparabilidade dessas, referidas por Carla Akotirene (2019Akotirene, Carla. 2019. Interseccionalidade. São Paulo: Polén., 14), como “avenidas identitárias onde mulheres negras são repetidas vezes atingidas pelo cruzamento e sobreposição de gênero, raça e classe, modernos aparatos coloniais”.

Todavia, essa centralidade não se esgota na referência esvaziada, tal como vem sendo feito pelo “modismo acadêmico” (Akotirene 2019Akotirene, Carla. 2019. Interseccionalidade. São Paulo: Polén., 19), inclusive porque aqueles(as) que o fazem têm sido responsáveis por atribuir a sua instrumentalidade ao reforço das estruturas da branquitude. Falo aqui sobre a repetição, de forma “oca”, de expressões como “mulheres, raça e classe”, ou até “feminista interseccional”, que só têm deixado mais nebulosa a forma como estas encruzilhadas de opressão tornam-se, dia após dia, mais sofisticadas.

Daí a importância de trabalhar o seu conteúdo político epistêmico pensando-o como, em essência, emancipatório. Como afirma Patricia Collins (2017Collins, Patricia H. 2017. Se perdeu na tradução? Feminismo negro, interseccionalidade e política emancipatória. Parágrafo 5 (1): 6-17., 7):

A interseccionalidade pode ser vista como uma forma de investigação crítica e de práxis, precisamente, porque tem sido forjada por ideias de políticas emancipatórias de fora das instituições sociais poderosas, assim como essas ideias têm sido retomadas portais instituições (Collins e Bilge 2016Collins, Patricia H. e Sirma Bilge. 2016. Intersectionality. Cambridge: Polity). A eficácia das ideias centrais de interseccionalidade, em situações díspares politicamente, levanta questões importantes sobre a relevância do conhecimento para a luta por liberdade e iniciativas de justiça social.

Com esse convite, é possível também refletir sobre mecanismos de transcender os limites da academia neoliberal, a partir do debate sobre os espectros práticos das denúncias que podem formular-se desde este marco. Tomo esse como um objetivo geral para a exposição do caso concreto analisado, em que procuro pensar sobre algumas das contingências apresentadas no processo de uma mulher que foi criminalizada ao tentar ao fazer o transporte de cocaína do Brasil para a África do Sul, na Justiça Federal do Rio de Janeiro.

As vicissitudes que o caso destacado apresenta são indiciárias da forma como raça, classe, gênero e colonialidade se inscrevem no mercado ilícito das drogas. Nesse espaço, pretendo expor um fragmento dessa relação e problematizar o fato de que os registros documentais da ação penal promoveram um apagamento desta imanência. Assim, proponho o debate sobre como, em um espaço referido a “justiça”, o conteúdo dessas “encruzilhadas” organiza-se em maior ou menor alinhamento com a tradição da supremacia branca nas burocracias estatais.

A ação penal de Abena

O processo analisado foi extraído da amostragem de meu campo, enquanto pesquisadora do Ipea responsável pela análise de ações penais2 2 Processos que foram obtidos no âmbito da pesquisa em andamento “Política de drogas”, promovida pelo Ipea, ainda em fase de realização, a qual integro como “Assistente de pesquisa”. A ação penal do estudo de caso realizado não é sigilosa, mas deste e de todos os autos comentados suprimo os dados pessoais identificadores – tais quais nomes das partes, número do processo, Vara onde foi processado – para resguardar os direitos de todas as pessoas envolvidas. por tráfico de drogas que foram sentenciadas no primeiro semestre de 2019 no TRF-2. Inicialmente,3 3 Uma anotação metodológica: opto aqui por narrar a memória do caso de acordo com a organização do processo. Por isso, reconstituo os documentos na linha como desenvolveram-se na pasta dos autos. A temporalidade, assim, é determinada pela forma como os documentos foram originalmente organizados. esse processo4 4 Tribunal Regional Federal 2 (TRF2). 2018. Justiça Federal do Estado do Rio de Janeiro. Ação penal nº 5037287-10-2018.4.02.5101. Autor: Ministério Público Federal. Rio de Janeiro. despertou a minha atenção por uma das primeiras condições que estavam nele inscritas: a quantidade de drogas que foi apreendida com uma mulher, que chamarei de forma fictícia de Abena. Foram 9.770g de cocaína colocados no fundo falso de uma mala de viagem que fora despachada5 5 Analisei cerca de trinta processos judiciais que versavam sobre o tráfico internacional de drogas em dinâmicas similares, isto é, com substâncias entorpecentes sendo ocultadas em fundos falsos de malas, a média de quantidade girou em torno de 2.000g de substâncias apreendidas. e o registro dessa quantidade estava em um dos primeiros documentos que formavam a ação penal do caso, o chamado “auto de apreensão”, onde também constava o nome dela.

Junto com este, inaugurava o procedimento de investigação o termo de depoimento dos policiais federais que foram responsáveis pela apreensão e prisão em flagrante de Abena, dois homens.6 6 A narrativa dos dois agentes era bastante parecida: após detectarem a presença dos entorpecentes na mala, que passou por um scanner, verificaram com o sistema da operadora de vôos quem seria sua titular da bagagem e levaram-na para a sala da Polícia Federal. Lá, fizeram a abertura da mala em sua presença, perguntando se realmente havia despachado aquela bagagem (o que ela confirmou) e encontraram um pacote com uma substância esbranquiçada que foi levada à perícia e, posteriormente, testou positivo para cocaína. A reconstituição é uma tradução minha das falas dos dois agentes, que opto por não trazer a transcrição para não dispersar o foco de análise das vozes da mulher - como a praxe no sistema de justiça tende a negar. E só depois, como é de praxe na dinâmica desses autos, estava o termo de depoimento dela com o que nesses documentos consta como “qualificação”, algumas das condições socioeconômicas que importam para a agência policial e que são colhidas através da resposta a um questionário feito à pessoa que é conduzida a uma delegacia de polícia.

Com esse registro, descobrimos que Abena é uma mulher negra, da Namíbia, costureira, mãe, e que tinha, à época do fato, 32 anos. Ela contou para a autoridade policial e depois judicial, quando ouvida em audiência, que foi contratada por um homem, que temeria em identificar, para fazer o transporte de substâncias ilícitas as quais não tinha ideia de como seriam armazenadas, menos ainda da quantidade que seriam, pelo valor aproximado de $1.500,00 dólares. A tradução em português da sua sala ficou documentada no processo:

em relação a droga encontrada em suas malas, informa que tem receio de falar sobre os envolvidos por temer pela segurança de seus dois filhos que estão na África do Sul, em Forte Elizabete; que apenas pode informar que um homem buscou a interrogada no aeroporto e a levou para uma casa, que não sabe informar onde fica, e lá permaneceu por aproximadamente duas semanas, sem poder sair; que por não ter saído de casa, não tem como fornecer dados para identificar o local; que recebeu as duas malas, já preparadas e as levaria para a África do Sul; que desembarcaria em Maputo e de lá iria de carro para a África do Sul, onde receberia vinte mil Rands (moeda local), o equivalente a aproximadamente mil e quinhentos dólares, pela entrega das malas .7 7 Tribunal Regional Federal 2 (TRF2). 2018. Justiça Federal do Estado do Rio de Janeiro. Ação penal nº 5037287-10-2018.4.02.5101, p. 125. Autor: Ministério Público Federal. Rio de Janeiro.

A primeira vez que esteve em frente a um magistrado, acompanhada de uma promotora de justiça, um defensor público e um intérprete de inglês, foi três dias depois da sua prisão, no rito da chamada “audiência de custódia”. Organizada para que se avalie as condições do flagrante e a necessidade da manutenção da cautelar, segundo a recomendação internacional,8 8 Segundo o art. 7.5 da Convenção americana de direitos humanos. não deve antecipar a análise do mérito e por isso não deve o(a) magistrado(a) do caso perguntar sobre o fato com aparência de criminoso.

Na gravação deste ato, Abena aparece sentada diante de todos os atores, que se encontravam em palanque que a câmera não conseguia captar, e responde pacientemente às perguntas feitas dirigindo-se ao intérprete, que faria a tradução do que dizia. Este é um dos principais sujeitos deste ato, porque captava a entonação e os termos escolhidos por ela, dizendo sobre o que acontecera e sobre quem ela era, nessa substituição de vozes que é condição essencial ao caso. Abena, como estrangeira, não falou diretamente nem em sede policial nem judicial com qualquer autoridade e nas duas audiências analisadas, foi o mesmo intérprete quem a acompanhou: um homem branco que aparentava ser mais velho que ela e que não se apressava em tentar apresentar as versões das perguntas feitas e das respostas por ela dadas.

Sem demorar muito nos itens mais gerais da qualificação – inclusive, por isso, nem foi notado que ela respondia ao processo com um nome falso, o que usara em passaporte falso na tentativa de sair do país – o magistrado enfim perguntou a ela se tinha filhos. E a resposta foi “sim, dois, um de 07 e um de 13 anos”. A legislação brasileira foi recentemente modificada para ampliar as hipóteses de cabimento da prisão domiciliar para mulheres que sejam mães, por isso a pergunta consta do roteiro que todo magistrado deve seguir para analisar, ao final da audiência, o cabimento do aprisionamento. Todavia, cada juiz toma nota das respostas e a elas reage de forma bastante própria.

O juiz da custódia, que chamarei de João, logo que recebeu a notícia perguntou com quem estariam, e Abena disse não saber, já que não tinha conseguido falar com eles desde que chegara ao Brasil. Ela já havia informado, antes, que ficara por duas semanas em um hotel em São Paulo, em um quarto e sala de onde ficou em estado de privação de liberdade até que recebesse a mala e ordenassem que tentasse com ela sair do Brasil. Foi essa a informação que motivou uma sequência de perguntas sobre “por que as crianças ficaram sozinhas?”, “como as crianças estão?”.

Abena não sabia responder, disse que havia deixado a casa preparada e que o filho mais velho se comprometera a cuidar do mais novo;9 9 Explorando a maternidade de mulheres negras, um dos apontamentos de Patricia Hill Collins é este: “como frequentemente são responsáveis por irmãos mais novos, muitos homens negros aprendem a cuidar de crianças” (Collins 2019, 391). que era solteira e que sua mãe, avó das crianças, que era a pessoa que ajudava nos cuidados, morava há duas horas de distância de onde estavam residindo.

A audiência terminou com a acusação e a defesa, de forma bastante breve, falando sobre a necessidade da manutenção da prisão cautelar e a urgência da revogação, respectivamente, ambas utilizando-se de jargões jurídicos e referindo-se a dispositivos legais e, em nenhuma medida, tocando no caso concreto ou referindo-se às condições particulares de Abena. João decidiu pelo decreto de prisão e, na gravação, aparece dizendo que não era a condição de estrangeira que tinha sido fulcral, sim as “condições do caso concreto”. Os documentos que integram os autos não contam a experiência da audiência, que é referida como “gravada eletronicamente”. Aparece, depois da narrativa sobre o rito e a menção das alegações da defesa e acusação, a formalização da decisão que foi tomada no mesmo ato pelo magistrado:

[…] presentes indícios suficientes de autoria e materialidade, bem como preenchidos os requisitos do art. 313, do CPP, em combinação com art. 312, especialmente no que diz respeito à necessidade de garantia de aplicação da lei penal, haja vista que a presa não possui qualquer vínculo com o Brasil, aliado ao fato de a custodiada ter cometido delito cujo modus operandi indica a presença de organização criminosa.10 10 Tribunal Regional Federal 2 (TRF2). 2018. Justiça Federal do Estado do Rio de Janeiro. Ação penal nº 5037287-10-2018.4.02.5101, p. 61. Autor: Ministério Público Federal. Rio de Janeiro.

Os minutos de audiência fazem pensar sobre os mecanismos de inculcação da “culpa sobre a condição de existir”, referida por Fanon (2008Fanon, Frantz. 2008. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUfba., 125), apresentados através da facilidade com que se questionou a validade da maternidade de Abena. A avaliação do “desempenho da maternidade”, centrada em termos hegemônicos de família nuclear, dispositivo tradicionalmente voltado contra mulheres negras, é indiciário da forma como o julgamento por um fato resulta no julgamento de um papel social que deixa bastante marcada as imbricações entre sexismo e racismo no Brasil.

A repetição indolor das perguntas soa como uma forma de fazê-la sentir vergonha pela própria existência (Fanon 2008Fanon, Frantz. 2008. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUfba., 80). A enorme “preocupação” do magistrado com a criança e o pré-adolescente que estavam sem assistência em outro continente resultou na manutenção do estado de encarcerada sem que nenhuma frase sobre isto fosse dita. Mais um ato jurisdicional, o mesmo modelo, para a sintomática indiferenciação com que opera o sistema de justiça criminal.

A quantidade de droga transportada chegou a ser mencionada pelo juiz no rito, o que foi captado nas vozes da audiência gravada, embora não estivesse grafada na decisão escrita. Os quase 10 kg são quantidade significativamente superior à média de casos semelhantes e desvelam a forma como os agenciadores de Abena possivelmente se defrontaram com as intersecções das formas de opressão. Nenhum outro caso, de nenhuma outra mulher ou homem, em toda amostragem, poderia colocar tanto em risco a liberdade de alguém: aquele peso de cocaína, escondido de forma quase improvisada, porque em uma sacola colada com fita adesiva nas paredes de uma mala, despachada em um aeroporto internacional que segue o procedimento de rotina do escaneamento de bagagens e que, sabe-se, tem a centralidade da repressão contra o varejo como standart.

Seguindo o curso dos documentos, o delegado de polícia recebe a perícia definitiva da droga e relata o inquérito, dizendo de forma esquematizada tudo o que acontecera ao longo das “investigações” – que restringiram-se ao Auto de prisão em flagrante –, e remetendo os autos ao promotor. Poucos dias depois, o caso é denunciado e, nessa peça, que “individualiza” a acusação, Abena aparece como uma mulher africana no título, mas em nenhum momento qualquer das demais condições que ela própria relatou e que contextualizam a sua entrada no comércio de drogas é referida.

O novo magistrado que atuou na ação, que chamarei de Samuel, documenta que recebe a acusação formal e pede à defesa que apresente a resposta formal, assim como informa à Embaixada da África do Sul a ocorrência do crime. Foi ao longo das comunicações entre a serventia que processou a ação penal e o órgão internacional que se verificou que o passaporte que Abena usou era falso e que o nome que até então constava em toda trajetória do procedimento não era o de seu registro de nascimento.

A defesa escrita que aparece, logo depois das comunicações com a embaixada, é feita por um defensor público, que até apresenta teses interessantes ao debate – como da “insignificância”11 11 A tese da “insignificância” atinge o primeiro elemento do crime (tipicidade) e assume que, quando a lesão ao interesse, supostamente, protegido por um delito não for de forma significativa violada (que no caso do tráfico de drogas, é a “saúde coletiva”), não está justificada a responsabilização criminal. e da “inexigibilidade de conduta diversa”.12 12 É uma das causas que excluem um dos elementos do crime, da culpabilidade, e aqui a defesa argumentava que uma terceira pessoa a tinha coagido à prática. O registro do pedido do reconhecimento dessas causas, embora destoe da maioria das defesas, não me causou surpresa.13 13 Embora ao longo da pesquisa tenha me deparado com peças defensivas muito mais precárias, produzidas por outros defensores(as) desta mesma instituição (restringindo-se a “defesa” a tomar ciência da acusação e dizer sobre a opção de não produzir provas naquele estágio), passei a conhecer o “modelo” de cada agente em atuação naquele Tribunal. As teses que, de fato, não eram por muitos(as) apresentadas, não decorreram do “caso Abena”; foram alegações reproduzidas de um documento pré-pronta, sustentadas em todos os casos de tráfico de drogas em que aquele defensor atuou. Em verdade, chegou a soar forçada a primeira tese, a da insignificância, para uma quantidade tão grande de substâncias apreendidas. O parágrafo escrito pelo defensor, tal como em todos os outros em que atuou e foram analisados no bojo desta pesquisa, parecia não se importar com a contradição:

[…] a acusada foi surpreendida no Aeroporto Internacional Tom Jobim com 9,77kg de cocaína quantidade que, diante do cenário transnacional do tráfico de drogas, não se apresenta em grau tão elevado, tendo em vista que a fração não supera quantias exorbitantes, que ultrapassam a apreendida.14 14 Tribunal Regional Federal 2 (TRF2). 2018. Justiça Federal do Estado do Rio de Janeiro. Ação penal nº 5037287-10-2018.4.02.5101, p. 228. Autor: Ministério Público Federal. Rio de Janeiro.

A padronização da instrução é sintomática da forma como burocracias estatais atuam apagando subjetividades e atualizando os dispositivos com os quais a branquitude opera historicamente. Uma dessas técnicas é a de invisibilizar trajetórias e vozes e que remonta às condições do escravismo colonial sustentadas hoje por folhas de papéis como as analisadas. Como reflete bell hooks (2019hooks, bell. 2019. Olhares negros: raça e representação. São Paulo: Editora Elefante., 299-300) – em uma análise sobre EUA, mas que penso aproximar-se, aqui, às condições brasileiras:

Uma marca da opressão era as pessoas negras serem obrigadas a assumir um manto de invisibilidade, a apagar todos os traços de sua subjetividade durante a escravidão e ao longo dos anos de apartheid racial, para assim serem servos melhores, menos ameaçadores […] Essas relações de olhar foram reforçadas conforme os brancos cultivaram a prática de negar a subjetividade dos negros (para melhor desumanizar e oprimir), relegando-os ao domínio do invisível […] Embora a segregação racial não seja mais lei nos Estados Unidos, os hábitos que sustentaram e mantiveram a supremacia branca institucional permanecem.

E assim permaneceu a instrução, até a data da audiência e interrogatório, oportunidade em que Abena, mais uma vez, acompanhada do mesmo intérprete, pôde falar. Ela foi pela terceira vez qualificada, tendo que reproduzir mais uma vez dados tais como profissão (costureira), data de nascimento (3 abr. 1986) e nacionalidade (cidadã sul-africana) e foi nesse momento que disse o seu nome verdadeiro, um nome africano. Foi quando também disse ser HIV positivo e quando o juíz percebera que, desde o seu aprisionamento, nenhuma consulta, nenhum registro do vírus e da necessidade de acompanhamento médico e farmacológico, constava nos documentos do processo.

A câmera reproduzia apenas os rostos de Abena e do intérprete, mas o microfone captava as vozes dos demais agentes que estiveram no ato, incluindo o juiz, Samuel, o defensor público e o promotor de justiça, todos homens. Ao pronunciar seu nome, duas vezes seguidas, os atores da sala deixaram escapar risos. Risos brancos, como diria Grada Kilomba (2019Kilomba, Grada. 2019. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Editora Cobogó., 118), que relatam o “prazer através da exposição da Outridade”. O assessor do juiz aparece na gravação segundos depois ao lado de Abena, trazendo-lhe um papel, seguido do pedido intermediado pelo intérprete de que anotasse de forma legível. A audiência parou.

Quando terminou de escrever e entregou o documento para o assessor, a inspeção seguiu com Abena como um “objeto de obsessão” (Kilomba 2019Kilomba, Grada. 2019. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Editora Cobogó., 119), até que as perguntas sobre estado civil e filhos, mais uma vez, fossem feitas. Respondendo pela terceira vez neste processo “solteira […] sim, dois filhos, um de sete e um de treze” e, de novo, escutando a pergunta “com quem estão?” Abena pediu para o intérprete dizer que “não sabia onde/como estavam” e reforçou que sua mãe morava muito distante.15 15 A transcrição das falas esteve registrada na sentença da seguinte forma: “Ela é casada, tem filhos? Tem filhos, mas não é casada. 1) Os filhos estão com quem? - Ela diz que talvez a mãe dela esteja cuidando das crianças, porque ela morava sozinha com as crianças. Ela acha que a mãe deve estar cuidando, embora ela more a duas horas de distância da casa dela”. A pergunta voltou a ser feita, e a indignação de Samuel foi ainda maior que a de João, juiz da custódia, manifestando-se na forma incisiva e insistente como se direcionada, inconformado com a incerteza da fala – e já construindo a discursividade da impertinência da condição de maternidade.

Foi quando um choro interrompeu a todos, a dor, e a resposta mais uma vez em inglês “eu não sei!!!”, seguida da cabeça baixa e do suspiro intermitente de Abena, que distanciava-se do microfone e parecia não caber mais na cadeira em que estava sentada. Não demorou, a próxima pergunta foi feita, agora sobre o crime.

Encerrada a instrução, o processo foi remetido para a defesa e para a acusação, oportunidade em que formalizaram os argumentos pela absolvição e acusação, respectivamente. Inclusive, o mesmo defensor público e o mesmo modelo de resposta, com as mesmas argumentações que antes destaquei.

Depois disso, veio a sentença, o último ato que narro nesse trabalho. Onze páginas de transcrição de trechos dos depoimentos gravados, parcialmente deslocados de seu contexto, seguidos de afirmações genéricas tais como “Por todas essas razões, a conduta praticada pela acusada, em seus elementos objetivos e subjetivos, corresponde ao tipo penal do artigo 33 c/c artigo 40” e que refletiam mais um modelo, mais um sintoma da automatização que produz desumanização no sistema de justiça criminal.

Extraído o nome da ré, a quantidade e qualidade da droga, assim como o campo das transcrições das falas, jogadas como relatos que não implicaram em qualquer mudança nos termos da fundamentação da decisão, era uma sentença qualquer sobre tráfico internacional de drogas, com a mesma pena, inclusive, que os demais casos nesse mesmo contexto de ocorrência receberam naquela Vara. E isso, inclusive no que concerne ao único parágrafo em que Samuel decidiu mencionar as teses defensivas.16 16 Segundo a redação da sentença: “As explicações da acusada para o atuar desvalorado não servem de justificativa para a prática do crime em questão. Não há excludente de licitude que ampare a conduta da ré. A alegação da defesa de inexigibilidade de conduta diversa não merece ser acolhida, já que, para tanto, deve estar comprovado que não havia outro meio possível, outra solução plausível que não fosse o cometimento do delito. Todavia, este Juízo não pode entender dessa forma, sobretudo se considerada a gravidade do delito em tela, tráfico de drogas, cujo consumo aflige inúmeras famílias diariamente, não podendo a situação da acusada servir de salvo conduto para a prática de crimes, sobretudo dessa espécie”. Tribunal Regional Federal 2 (TRF2). 2018. Justiça Federal do Estado do Rio de Janeiro. Ação penal nº 5037287-10-2018.4.02.5101, p. 528. Autor: Ministério Público Federal. Rio de Janeiro. Como resultado, Abena, que ficou presa ao longo de todo o processo, viu-se sentenciada ao cumprimento de penas restritivas de direito e, por isso, finalmente, posta em liberdade.

Conclusão

Documentos produzidos pelo sistema de justiça criminal e as práticas que lhe constituem refletem as marcas sistemático-estruturais dessas burocracias, que formulam, através de discursividades próprias, as pré-programações de corpos negros ao cárcere e de corpos brancos aos gabinetes judiciais. Ao fazer projetar as fantasias brancas sobre o crime, sobre o tráfico de drogas e a violência, na exata medida em que isto também coloca juízes(as) nas posições de heróis/heroínas, a magistratura vem atualizando a forma como racismo está incutido aos processos de criminalização.

Se “o racismo reduz o ser a sua dimensão ôntica, negando-lhe a condição ontológica, o que lhe atribui incompletude humana” (Carneiro 2005Carneiro, Aparecida S. 2005. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese em Educação, Universidade de São Paulo., 27), no seu refinamento o sistema penal tem desempenhado função central. Nesse sentido, a análise de autos processuais tem emplacado que os sentidos de “justiça social”, que desde ali são criados, estão autorreferenciados à manutenção de vantagens sistêmicas que o legado colonial produziu.

Peças processuais que refletem o mecanicismo e a invisibilização, que naturalizam a experiência da dor de pessoas negras que respondem a uma ação penal, sofrimentos e condições que sequer são registrados, reforçam os sistêmicos alijamentos de nosso país que reforçam o solipsismo branco. No contexto da política de drogas, a retórica do terror e os dispositivos que assentam ainda mais a associação entre varejistas e a zona do não ser, têm esgarçado a relação entre racismo, sexismo e classismo a que respondem as discursividades produzidas em seu interior, inclusive, desde o judiciário.

No caso explorado, o julgamento de Abena pela tentativa de transporte de cocaína para Moçambique, retrata como opressão de gênero, sexualidade, raça, classe e colonialidade confluem em diversos momentos das narrativas processuais. Desde a decisão dos agenciadores do mercado ilícito pela quantidade de droga transportada, assim como as técnicas de seu acondicionamento; até a forma como os dispositivos de inspeção e culpabilização foram inculcados ao longo da instrução, a interação entre os eixos de subordinação fez dela uma “criminosa” sem nome até a última audiência do processo e cuja história sequer implicou qualquer dos agentes do sistema. Senão para que, nas performances do procedimento oral, pudessem dela rir ou fazê-la chorar a “culpa pela condição de existir” (Fanon 2008Fanon, Frantz. 2008. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUfba.).

Casos como esse instigam a reflexão sobre os entraves ainda colocados, ao plano da ação, para que categorias como a da interseccionalidade transformem o conteúdo de justiça social que vem sendo produzido em nosso território. Para além do apontamento da forma como avenidas identitárias estão entrecruzadas no seu caso e tornaram as fases de seu julgamento extratos da sistêmica não humanidade produzida pela imbricação entre racismo e sexismo, colocar em perspectiva essa denúncia e essas limitações implica em pautar uma verdadeira revolução nos órgãos de cúpula de poder em nosso país. Nesse caso, transformar pensamento em práxis, preencher de sentido as enunciações retóricas que fizeram a lente analítica cair no modismo acadêmico, parte também de pensar estratégias que causem ruído na atuação diária do sistema de justiça criminal. Começado pela denúncia que registro em âmbito prospectivo aqui, da forma como essa é uma estrutura umbilical ao pacto narcísico da branquitude na sociedade brasileira (Bento 2002Bento, Maria Aparecida S. 2002. Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. Tese em Psicologia, Universidade de São Paulo.).

  • 2
    Processos que foram obtidos no âmbito da pesquisa em andamento “Política de drogas”, promovida pelo Ipea, ainda em fase de realização, a qual integro como “Assistente de pesquisa”. A ação penal do estudo de caso realizado não é sigilosa, mas deste e de todos os autos comentados suprimo os dados pessoais identificadores – tais quais nomes das partes, número do processo, Vara onde foi processado – para resguardar os direitos de todas as pessoas envolvidas.
  • 3
    Uma anotação metodológica: opto aqui por narrar a memória do caso de acordo com a organização do processo. Por isso, reconstituo os documentos na linha como desenvolveram-se na pasta dos autos. A temporalidade, assim, é determinada pela forma como os documentos foram originalmente organizados.
  • 4
    Tribunal Regional Federal 2 (TRF2). 2018. Justiça Federal do Estado do Rio de Janeiro. Ação penal nº 5037287-10-2018.4.02.5101. Autor: Ministério Público Federal. Rio de Janeiro.
  • 5
    Analisei cerca de trinta processos judiciais que versavam sobre o tráfico internacional de drogas em dinâmicas similares, isto é, com substâncias entorpecentes sendo ocultadas em fundos falsos de malas, a média de quantidade girou em torno de 2.000g de substâncias apreendidas.
  • 6
    A narrativa dos dois agentes era bastante parecida: após detectarem a presença dos entorpecentes na mala, que passou por um scanner, verificaram com o sistema da operadora de vôos quem seria sua titular da bagagem e levaram-na para a sala da Polícia Federal. Lá, fizeram a abertura da mala em sua presença, perguntando se realmente havia despachado aquela bagagem (o que ela confirmou) e encontraram um pacote com uma substância esbranquiçada que foi levada à perícia e, posteriormente, testou positivo para cocaína. A reconstituição é uma tradução minha das falas dos dois agentes, que opto por não trazer a transcrição para não dispersar o foco de análise das vozes da mulher - como a praxe no sistema de justiça tende a negar.
  • 7
    Tribunal Regional Federal 2 (TRF2). 2018. Justiça Federal do Estado do Rio de Janeiro. Ação penal nº 5037287-10-2018.4.02.5101, p. 125. Autor: Ministério Público Federal. Rio de Janeiro.
  • 8
    Segundo o art. 7.5 da Convenção americana de direitos humanos.
  • 9
    Explorando a maternidade de mulheres negras, um dos apontamentos de Patricia Hill Collins é este: “como frequentemente são responsáveis por irmãos mais novos, muitos homens negros aprendem a cuidar de crianças” (Collins 2019Collins, Patricia H. e Sirma Bilge. 2016. Intersectionality. Cambridge: Polity, 391).
  • 10
    Tribunal Regional Federal 2 (TRF2). 2018. Justiça Federal do Estado do Rio de Janeiro. Ação penal nº 5037287-10-2018.4.02.5101, p. 61. Autor: Ministério Público Federal. Rio de Janeiro.
  • 11
    A tese da “insignificância” atinge o primeiro elemento do crime (tipicidade) e assume que, quando a lesão ao interesse, supostamente, protegido por um delito não for de forma significativa violada (que no caso do tráfico de drogas, é a “saúde coletiva”), não está justificada a responsabilização criminal.
  • 12
    É uma das causas que excluem um dos elementos do crime, da culpabilidade, e aqui a defesa argumentava que uma terceira pessoa a tinha coagido à prática.
  • 13
    Embora ao longo da pesquisa tenha me deparado com peças defensivas muito mais precárias, produzidas por outros defensores(as) desta mesma instituição (restringindo-se a “defesa” a tomar ciência da acusação e dizer sobre a opção de não produzir provas naquele estágio), passei a conhecer o “modelo” de cada agente em atuação naquele Tribunal. As teses que, de fato, não eram por muitos(as) apresentadas, não decorreram do “caso Abena”; foram alegações reproduzidas de um documento pré-pronta, sustentadas em todos os casos de tráfico de drogas em que aquele defensor atuou.
  • 14
    Tribunal Regional Federal 2 (TRF2). 2018. Justiça Federal do Estado do Rio de Janeiro. Ação penal nº 5037287-10-2018.4.02.5101, p. 228. Autor: Ministério Público Federal. Rio de Janeiro.
  • 15
    A transcrição das falas esteve registrada na sentença da seguinte forma: “Ela é casada, tem filhos? Tem filhos, mas não é casada. 1) Os filhos estão com quem? - Ela diz que talvez a mãe dela esteja cuidando das crianças, porque ela morava sozinha com as crianças. Ela acha que a mãe deve estar cuidando, embora ela more a duas horas de distância da casa dela”.
  • 16
    Segundo a redação da sentença: “As explicações da acusada para o atuar desvalorado não servem de justificativa para a prática do crime em questão. Não há excludente de licitude que ampare a conduta da ré. A alegação da defesa de inexigibilidade de conduta diversa não merece ser acolhida, já que, para tanto, deve estar comprovado que não havia outro meio possível, outra solução plausível que não fosse o cometimento do delito. Todavia, este Juízo não pode entender dessa forma, sobretudo se considerada a gravidade do delito em tela, tráfico de drogas, cujo consumo aflige inúmeras famílias diariamente, não podendo a situação da acusada servir de salvo conduto para a prática de crimes, sobretudo dessa espécie”. Tribunal Regional Federal 2 (TRF2). 2018. Justiça Federal do Estado do Rio de Janeiro. Ação penal nº 5037287-10-2018.4.02.5101, p. 528. Autor: Ministério Público Federal. Rio de Janeiro.
  • Os textos deste artigo foram revisados pela Poá Comunicação e submetidos para validação da autora antes da publicação.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    31 Mar 2021
  • Aceito
    12 Nov 2021
  • Publicado
    03 Nov 2022
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