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Agente moral expressivista em Nietzsche e avaliação de juízos práticos perfeccionistas* 1 Para boa compreensão do estado atual do debate, cf. Constâncio; Branco; Ryan (2015), bem como Paschoal (2018). ,** 2 Sobre o deslocamento para a função do sujeito nos processos avaliativos, de pensamento, etc., cf. Janaway (2007, p. 11 e 29), Stegmaier (2015, p. 488), bem como Ridley (2018, p. 188).

Expressivist Moral Agent in Nietzsche and Evaluation of Perfectionists Practical Judgements

Resumo

O objetivo do texto é relacionar a abordagem expressivista do agente moral em Nietzsche com as condições de sucesso de avaliação de juízos práticos perfeccionistas. Como locus da transformação, o agente moral se exprime por meio do potencial transformativo que consegue produzir, e não como entidade por trás das ações. Duas condições podem ser usadas, regulativamente, para avaliar o sucesso de juízos de caráter perfeccionista: por um lado, a maximização de conexões e interrelações no espaço, bem como o endosso afirmativo de promessas no tempo e, por outro lado, a boa constituição que alguém mantém em meio à tensão entre um plano individual e supraindividual. No desdobramento do potencial transformativo, crítica e transformação são interdependentes e, além disso, o julgamento público reforça a dimensão social da filosofia de Nietzsche.

Palavras-chave:
expressivismo; perfeccionismo; transformação; crítica

Abstract

The aim of the text is to relate the expressivist approach of the moral agency in Nietzsche to the conditions for successful evaluation of practical perfectionist judgments. As the locus of transformation, the moral agent expresses him/herself in the transformative potential that he/she manages to produce, and not as an entity behind the actions. Two conditions can be used, regulatively, to evaluate the success of perfectionist judgments: on the one hand, the maximization of connections and interrelationships in space, as well as the affirmative endorsement of promises in time, and, on the other hand, the good constitution one keeps in the middle of the tension between an individual and supraindividual plan. In the unfolding of transformative potential, criticism and transformation are interdependent and, moreover, public judgment reinforces the social dimension of Nietzsche's philosophy.

Keywords:
expressivism; perfeccionism; transformation; criticism

Introdução

Nietzsche nunca usou a expressão juízos práticos perfeccionistas e é um autor que está longe de indicar justificações morais e critérios específicos em termos substantivos. Isso não impede, porém, de lançar mão de algumas demandas normativas contemporâneas, recepcionando um vocabulário extrínseco à filosofia de Nietzsche, mas contextualizando a partir do vocabulário teórico próprio da letra nietzscheana, em seus devidos limites. Nietzsche se torna muito fecundo, a meu ver, tão logo mobilizamos seu instrumental teórico no contexto de problemas e demandas contemporâneas e, inclusive, na interlocução interdisciplinar com outras áreas, mesmo que esse movimento signifique o detrimento do trabalho exegético dos seus textos.

Juízos práticos perfeccionistas são juízos fluidos e provisórios, vinculados à orientação prática da vida e em meio ao caráter processual das demandas cotidianas -dependentes de um contexto específico -, bem como direcionados ao vínculo de um horizonte maior de perfeição que pretendemos atingir, ou seja, em detrimento das justificativas em torno de obrigação e dever moral, mas em proveito de um bem viver (Cf. Anscombe, 1958ANSCOMBE, G.E.M. “Modern Moral Philosophy”. In: Philosophy v. 33, 124 (1958), pp. 1-19.). Ao longo da minha pesquisa, alguns resultados já foram apresentados para explicar o funcionamento de tais juízos, enfatizando mais os aspectos formais, e menos o repertório substantivo de tais juízos. Desses resultados, grosso modo, assumi a hipótese de que a noção nietzschiana de autossuperação exerce apelo intuitivo formal para atingir horizontes de perfeição, sem precisar se comprometer com uma teleologia inflacionada e um conceito forte de natureza humana, na medida em que o aspecto formal de juízos de caráter perfeccionistas orientam-se mais à dinâmica processual das demandas cotidianas e correspondem melhor ao apelo de Nietzsche à “contínua autossuperação do homem”. Tais juízos possuem uma tríplice caracterização formal: 1) são constituídos por um processo prático não-cognitivo e um processo teórico instanciado na virtude epistêmica da probidade intelectual (Redlichkeit); 2) possuem estrutura de retroalimentação entre um espaço de atuação e a performance moral nesse espaço; 3) são justificados, na letra nietzscheana, pela dinâmica da vontade de poder, tal como registrado no seminal texto GM/GM II 12, com ênfase no caráter fluido dos seus sentidos e na teleologia deflacionada, de modo a compreender que nosso horizonte ético se movimenta à medida em que nós mesmos nos movimentamos. A produção desses juízos acontece de modo autopoiético, recursivamente aos elementos internos do espaço de atuação e não extrínsecos a ele.

A avaliação de tais juízos é agora o problema a ser investigado. Esse problema pressupõe um “sujeito” que avalia e é avaliado, bem como uma estrutura formal de condições de sucesso da ação que possa ser usada regulativamente na dinâmica processual das ações, prescindindo de quaisquer reinvindicações universalistas e vinculadas ao espaço de atuação em que acontecem. Minha hipótese é que podemos deslocar os esforços de descrição sobre “o que é” esse “sujeito”, em proveito da análise da função que ele ocupa na produção de nossos juízos e avaliações morais, bem como em que medida essa função se articula de maneira plausível com uma estrutura formal de condições de sucesso para avaliação de juízos de caráter perfeccionistas. Em termos específicos, a função desse sujeito é ser o locus das transformações que acontecem a um indivíduo, de modo que o ‘sujeito’ não deve ser encontrado por trás das nossas ações e sim nas ações efetivamente realizadas, em detrimento de qualquer abordagem causal ou intencional, mas em proveito do potencial transformativo realizado. Isso significa assumir uma abordagem expressivista do agente moral, na medida em que o ‘eu’ se revela precisamente nesse potencial transformativo, e não como entidade por trás das ações, conferindo ao agente moral um caráter relacional forte.

Além disso, duas condições de sucesso podem ser reivindicadas - de maneira regulativa, e não constitutiva - para a avaliação desse potencial transformativo: a) a maximização das conexões que estabelecemos em um espaço, tanto na incorporação afetiva de estimativas de valor, quanto nas interrelações que construímos com outros indivíduos, bem como no endosso afirmativo das promessas que fazemos e nos responsabilizamos por elas no tempo, com vistas a um horizonte maior de perfeição; b) a boa constituição do indivíduo em meio às suas performances morais, definida em termos nietzschianos como conjugação de grandeza e soberania. A avaliação do potencial transformativo, porém, não pode prescindir da sua abertura ao julgamento público, sob pena de autoilusão.

O texto está dividido em dois movimentos teóricos. O primeiro em que explico a noção de agente moral expressivista, cuja função é de ser o locus da transformação e que se revela no potencial transformativo que realiza. O segundo em que analiso o potencial transformativo do agente moral por meio da interdependência entre crítica e transformação, bem como sua relação com as duas condições de sucesso do potencial transformativo das nossas ações. Finalizo com uma rápida reflexão sobre a práxis de tipologização de Nietzsche, como instância narrativa de tais avaliações.

Longe de querer justificar uma hipótese expressivista em Nietzsche, meu interesse é apenas indicar que a letra nietzschiana possui condições robustas que podem se vincular, plausivelmente, com abordagens expressivistas e que, além disso, mostram-se vantajosas especialmente se a analisamos naquilo que venho trabalhando como juízos práticos de caráter perfeccionistas.

Agente moral expressivista como locus da transformação

Há uma extensa bibliografia na pesquisa Nietzsche sobre a crítica à noção de sujeito, o status e as consequências dessa crítica, e não tenho intenção em retomá-la em seus detalhes.1 1 Para boa compreensão do estado atual do debate, cf. Constâncio; Branco; Ryan (2015), bem como Paschoal (2018). Meu interesse principal é mais pela relação metodológica que a investigação genealógica impõe entre a análise da construção de um valor moral e a maneira com a qual avaliamos tal valor. Dentre os principais conceitos que essa investigação elabora, a crítica ao sujeito é uma das variáveis dessa equação por conta dos mais distintos comprometimentos que ela carrega, inclusive morais. Nesse primeiro movimento teórico, minha hipótese é entender que importa menos o “o que é” o sujeito, e mais a “função”2 2 Sobre o deslocamento para a função do sujeito nos processos avaliativos, de pensamento, etc., cf. Janaway (2007, p. 11 e 29), Stegmaier (2015, p. 488), bem como Ridley (2018, p. 188). que ele exerce em processos avaliativos, de modo que se trata menos de um “sujeito” e mais do funcionamento de um “agente moral” vinculado a um contexto social forte.

Para isso, sirvo-me de duas linhas interpretativas: por um lado, compreender que o agente moral não é nenhuma entidade previamente dada que precisa ser “encontrada” para conduzir a ação e sua avaliação, mas antes é o locus onde acontece qualquer processo de transformação, que por sua vez nunca é isolado, mas em relação de constante tensão entre um plano individual e supraindividual, portanto o locus da transformação onde é construído e constituído na própria dinâmica social; e, por outro lado, assumo aqui uma caracterização “expressivista” de agente moral, segundo a qual o sujeito não está por trás da ação como entidade causal ou intencional, mas se manifesta na ação como um todo, no processo de realização mesma da ação.3 3 Sobre a abordagem expressivista do agente moral em Nietzsche, cf. Pippin (2010, p. 67-84) e o livro mais recente de Ridley (2018). Ambos os autores possuem em comum a interlocução com Hegel para elaborar a hipótese expressivista do agente moral. É preciso registrar que a interpretação expressivista da ação em Hegel é inserida principalmente pelo texto de C. Taylor, Hegel, de 1975, e que Pippin a endossa com o acréscimo do horizonte forte da sociabilidade, por meio da qual o agente é capaz de considerar o que acontece e por quê, bem como se responsabilizar pelo que faz, por meio de um contexto social estruturado. Justamente a interconexão entre agente e espaço social é o pontapé para a distinção entre ação e meros eventos. (Sobre a reconstrução filosófica da teoria da ação na abordagem expressivista, Cf. Laitinen; Sandis (2010), especialmente o texto de Taylor “Hegel and the Philosophy of Action” (p. 22-41) e Pippin “Hegel’s Social Theory of Agency: the ‘inner-outer’ Problem” (p. 59-778). Ainda sobre a teoria da ação em Hegel que participa diretamente do debate expressivista, cf. Quante (2004) especialmente a “Parte II” (p. 99-174). A primeira parte do livro de Ridley, além disso, faz um apanhado dos autores expressivistas, como Hegel, Schopenhauer e Wittgenstein (p. 9-21). Certamente a vinculação exegética entre Hegel e Nietzsche em torno do expressivismo demandaria um texto em separado, dadas as peculiaridades da relação que Nietzsche tem com Hegel. Talvez um aspecto fundamental dessa relação, porém, é perceber que ambos os autores têm muito em comum, tão logo assumimos a metodologia que mencionei no início desse texto, ou seja, a recepção de um vocabulário extrínseco às suas respectivas letras teóricas, em detrimento da exegese específica, mas em proveito do debate em torno de problemas e demandas específicas da filosofia contemporânea. O tema da abordagem expressivista do agente moral seria justamente um ponto em comum, em que ambos teriam muito mais a dizer em termos de proximidade teórica, desde que mobilizemos seus filosofemas em proveito justamente desses problemas contemporâneos. A meu ver, essa relação Hegel/Nietzsche em torno da teoria da ação é extremamente fecunda e ainda há muito a ser feito em termos de reconstrução teórica. Agradeço a amiga Michela Bordignon pelas valiosíssimas indicações de leitura sobre a teoria da ação em Hegel. Nessa opção expressivista, é preciso também pressupor a inseparabilidade entre uma atuante economia afetiva e a ação, a forte vinculação do agir a um espaço específico de atuação, bem como o fato de que o agente se determina e se revela por meio das ações efetivamente realizadas. A relação entre essas duas linhas interpretativas é que o agente moral se revela e está aberto à avaliação moral de outros - em termos expressivistas - por meio do potencial transformativo que é capaz de produzir - como locus da transformação. A abordagem expressivista se mostra ainda mais plausível se quisermos avaliar as condições de sucesso de juízos práticos de caráter perfeccionistas, de modo que pretendo menos mostrar um Nietzsche expressivista in totum, mas em que medida vários dos seus pressupostos e recursos textuais sustentam a abordagem expressivista, mostrando-se ainda mais vantajosa no horizonte geral de juízos de perfecção.

Gostaria de retomar o parágrafo 13 da Primeira Dissertação de Para genealogia da moral (KSA 5.278-281)4 4 Salvo indicações contrárias, as traduções são de minha autoria seguindo a edição crítica dos estudos sobre Nietzsche (KSA), (Nietzsche, 1999). para enfatizar o ponto de partida da abordagem expressivista do agente moral, especialmente ali onde Nietzsche escreve sobre a “moral do povo” que considera o sujeito pressuposto por trás da ação, separando “a força das expressões dessa força”, bem como a tese de que “a ação é tudo”. De maneira provocativa - logo após a ilustração das aves de rapina e cordeiros -, Nietzsche se refere ao “absurdo” de “exigir da força que não se expresse como força”, assim como “exigir da fraqueza que se expresse como força”, “como se houvesse um substrato indiferente por trás da força que também fosse livre para expressar ou não a força”. Essa tradicional maneira de pensar o sujeito se compromete tanto com uma relação intencional e causal que pressupõe um “agente” subsistente por trás da ação, bem como um suposto acesso privilegiado ao “mundo interior”, que se daria pela via da introspecção. De modo alternativo, contudo, Nietzsche escreve que “não há um tal substrato; não há nenhum ‘Ser’ por trás do agir, do atuar, do devir; ‘o agente’ é apenas ficcionalmente acrescentado à ação, - a ação é tudo” (grifo meu).5 5 Há outros aforismos igualmente importantes para a abordagem expressivista, como em JGB/BM 19 ou ainda FW/GC 335. O texto de GM I 13 me é interessante na medida em que consegue dar conta das três características da abordagem expressivista com relativo sucesso.

Assumir uma abordagem expressivista do agente moral não significa dizer que Nietzsche negue que exista algum sujeito; trata-se antes de perguntar se existe de maneira separada e independente da ação, numa espécie de relação intencional e causal, cujo acesso se daria por alguma via de autoconhecimento introspectivo. Ao escrever que “a ação é tudo”, temos então que assumir que aquilo que temos para efetivamente avaliar é uma ação em sua totalidade, tal como ela se nos aparece, de modo a renunciarmos conhecer o suposto sujeito separado e “por trás” da ação, em proveito do modo como o agente “está na” ação; compreender que mais importante é a força em sua expressão, considerando a força ou a fraqueza na maneira com a qual se manifestam em sua totalidade, e menos a necessidade de justificação da força ou da fraqueza mesma para agir.

O apelo genealógico à abordagem expressivista do agente moral se justifica, em primeiro lugar, a) em função do ceticismo que Nietzsche nutre em relação ao autoconhecimento pela via da introspecção e o inevitável fenomenalismo do mundo interior e b) o ficcionalismo dos nossos conceitos auxiliares, tal como “sujeito” e vontade livre. A partir deles compreendemos a unidade entre economia afetiva e ação. Em segundo lugar, c) pela radicalidade da crítica genealógica, que por sua vez, revela que a própria concepção de agente moral empregada nas nossas avaliações é igualmente uma concepção historicamente construída e dependente de uma situação, de modo que o apelo expressivista exige não apenas renunciar ao sujeito separado da ação, mas igualmente à concepção de autonomia monológica isolada das condições sociais, em proveito da autonomia relacional do agente moral, cujas ações têm de estar abertas ao julgamento público. Nesse caso, compreendemos que toda ação é dependente dos espaços específicos de atuação, por meio dos quais alguém orienta sua ação com vistas a um horizonte maior de perfeição. Vejamos um pouco mais a reconstrução desses pressupostos da abordagem expressivista.

a) Ceticismo do autoconhecimento via introspecção e fenomenalismo do mundo interior. Nietzsche era radicalmente cético em relação às possibilidades do autoconhecimento pela via da introspecção ou de um suposto conhecimento imediato, o que não significa que estivesse negando uma possibilidade de autoconhecimento, ao menos de maneira mediata.6 6 Sobre as possibilidades do autoconhecimento pela via mediata, cf. os textos de Katsafanas (2015, p. 116-130) e Stellino (2015, p. 550-573). Essa posição cética percorre a totalidade dos seus textos. No “Prefácio” a Para a genealogia da moral, Nietzsche registra esse ceticismo logo nas primeiras linhas: “Somos desconhecidos a nós mesmos, nós, homens do conhecimento: e isso tem um bom motivo. Nunca nos procuramos […]. Permanecemos necessariamente estranhos a nós mesmos, não nos entendemos, temos de nos desconhecer [...]” (GM/GM Prefácio 1, KSA 5.247). O ceticismo do autoconhecimento parte do pressuposto de que haveria algo como um “sujeito” autônomo, separado de um contexto social concreto e capaz de se desdobrar sobre si mesmo para se auto-observar de maneira imediata, e determinando o conteúdo do seu mundo interior, como se houvesse os assim denominados “fatos de consciência” (FW/GC 355), bem como fosse possível estarmos sempre conscientes do pathos próprio da vida, enquanto nela nós ainda estamos. A “ingenuidade” dos “observadores de si mesmos” em busca de “certezas imediatas” (JGB/BM 16), desconsidera que todo conhecimento só é possível de maneira mediata, seja em termos epistemológicos - via perspectivismo - seja em termos de filosofia prática pressupondo um agente inserido em um contexto social em contínuo processo de confronto e distanciamento em relação ao seu espaço de atuação - via perspectividade.

O ceticismo sobre o autoconhecimento se amplia ainda mais com o inevitável “fenomenalismo do mundo interior” (Nachlass/FP 1888, 15[90], KSA 13.458ss.). Nesse caso, Nietzsche interdita qualquer acesso privilegiado ao conteúdo do mundo interior, especialmente como recurso cognitivo por meio do qual justificamos as nossas próprias ações. A “antiga ilusão” do homem consistiu precisamente em querer “saber, em saber exatamente como surgiu a ação humana.” (M/A 116, KSA 3.108) Isso significa não apenas que o “mundo do sujeito” nos é “desconhecido”, mas também que o conhecimento desse “mundo interior” nunca é o suficiente para justificarmos nossa ação, de modo que “a ponte do conhecimento à ação não foi até agora construída em nenhum único caso” (idem) A consciência é sempre epílogo e superfície em relação ao conhecimento da economia psíquica do mundo interior, a menor e mais abreviada parte daquilo que acontece em termos de economia pulsional interna (FW/GC 11). Trata-se então de assumir o inevitável fenomenalismo do mundo interior, pois tudo que ascende à consciência já é sempre “apenas um mundo de superfície de signos, um mundo generalizado e vulgarizado, - que tudo o que se torna consciente, torna-se também, por isso mesmo, raso, fino, relativamente estúpido, geral, signo, marca de rebanho, que uma profunda corrupção, falsificação, superficialização e generalização está relacionada com todo tornar-se consciente” (FW/GC 354, KSA 3.593).

Da mesma maneira como ocorre com o mundo exterior, segundo o qual não há “fatos morais”, mas apenas uma interpretação moral desses fatos, também ocorre com o “aparente mundo interior”, cuja economia de sentimentos, desejos e afetos são abreviados e generalizados na consciência - aparecendo-nos também como meros fenômenos internos - assim como todo “tornar-se consciente” já pressupõe uma interpretação dessas apercepções interiores (cf. Nachlass/FP, novembro 1887/março, 188811[113], KSA 13.53). Decisivo no fenomenalismo do mundo interior e o consequente ceticismo em relação à caracterização da sua economia afetiva - caracterização esta por vezes com apelo naturalista de interpretação na pesquisa Nietzsche -, é a ressalva tanto para compreender a justificação das ações, como também para avaliá-las. Isso não significa, contudo, rejeitar a economia afetiva do mundo interior, no sentido de que esses mesmos impulsos são moldados, remodelados, construídos e estruturados em um espaço específico no qual atuamos moralmente e, inclusive, atuam afetivamente na orientação dos nossos posicionamentos morais.7 7 Que Nietzsche tenha sido um crítico do conceito de vontade no sentido da consideração schopenhaueriana como “certeza imediata” (JGB/BM 16), não significa assumir uma fragilidade para a indissociação entre vontade e ação, no sentido expressivista de que o agente se manifesta na ação. Ao contrário, vontade e todo seu repertório complexo de economia afetiva é mais do que apenas a consideração “imediata”, e sim um complexo de sentir, pensar e “afeto”, em que o “preconceito popular” depois identifica como duas coisas separadas atuando como causa e efeito, ou seja, que “aquele que quer acredita de bom grado que basta o querer para agir” (JGB/BM 19; KSA 5.31s.). Há uma economia pulsional atuante e que estrutura ações. Que Nietzsche ponha em questão a vontade como “certeza imediata” ou como preconceito popular que confunde causa e efeito, ou ainda a vontade livre como mera ficção, não implica argumento que depõe contra a hipótese expressivista, mesmo porque o fundamental aqui é o complexo afetivo que efetivamente atua, de modo que o agente se revela na ação de maneira indissociável a essa economia pulsional. Cf. Ridley (2018, p. 61-69). O que se pode conhecer dessa economia afetiva, porém, não é suficiente para justificarmos nossa ação. A psicologia como “caminho para os problemas fundamentais” é antes um instrumento crítico por meio do qual se “tem de lutar contra resistências inconscientes no coração do pesquisador” (JGB/BM 23, KSA 5, p. 38s.), e menos um recurso teórico no interesse do papel justificador das nossas ações. Isso significa que nos está interditado lançar mão de alguma relação entre o conhecimento desse mundo interior e a justificação das nossas ações, no sentido da sistematização dos “antecedentia” de uma ação, como escreve Nietzsche em Crepúsculo dos ídolos, que pudesse ser a justificação da essência do ato moral na qualidade de seu “motivo”. Antes disso, trata-se de incluir tais “antecedentia”/“motivo” igualmente como partícipes, por sua vez, do mesmo “mundo interior” que, como tal, também é “um mero fenômeno de superfície da consciência, um acessório da ação, que antes encobre os antecedentia de uma ação, do que os representa” (GD/CI, Os quatro grandes erros 3, KSA 6.91). Ato contínuo, nossas avaliações morais devem igualmente ser tratadas em seu caráter regulativo e fenomenal para nós, ou seja, “apenas avaliações de fachada” (JGB/BM 3, KSA 5.17), afinal de contas, “não há quaisquer fenômenos morais, mas apenas uma interpretação moral dos fenômenos...” (JGB/BM 108, KSA 5.92)

Se estamos relegados ao fenomenalismo tanto do mundo exterior quanto do mundo interior, então é preciso avaliar aquilo que acontece apenas por meio do modo como as ações se manifestam, em sua própria expressividade como resultado final e “estado global8 8 Cf. o apontamento póstumo NF/FP do outono 1885/primavera de 1886, 1[61], KSA 12.26: “Tudo o que entra na consciência é o último elo de uma cadeia, uma conclusão. Trata-se apenas de uma aparência, o fato de que um pensamento seja a causa imediata de um outro. O autêntico acontecimento ocorre abaixo da nossa consciência: a série e a sucessão de sentimentos, pensamentos, etc., que emergem são sintomas do autêntico acontecimento! — Sob cada pensamento está um afeto. Todo pensamento, todo sentimento, toda vontade não nascem a partir de um determinado impulso, mas é um estado global, uma superfície completa da consciência inteira, e resulta da fixação de poder momentânea de todos os impulsos que nos constituem - logo, do impulso dominante, tanto do que lhe obedece quanto do que lhe resiste. O pensamento seguinte é um signo de como nesse ínterim a situação de poder global se deslocou.” fenomênico da ação realizada. Com essa chave de leitura compreendemos melhor a fórmula nietzscheana de que “a ação é tudo”: a ação em seu “estado global” já realizada, prescindindo da ficção do sujeito como agente causal, bem como do conhecimento do mundo interior e sua economia afetiva como “antecedentia” das ações e avaliações.

b) Ficcionalismo do “sujeito”. De fato, no texto de GM I 13, Nietzsche não nega que exista algo como “sujeito”, nem está preocupado com sua verdade ou falsidade, mas o caracteriza como mera ficção acrescentado à ação. Trata-se então de um conceito auxiliar que, embora como entidade separada da ação não possua qualquer estatuto teórico definido, exerce a função de organização do mundo prático em nossas orientações e avaliações morais cotidianas (JGB/BM 4). A interpretação ficcionalista/pragmatista dessa caracterização do “sujeito” como conceito auxiliar é vasta9 9 Cf. a clássica interpretação de Vaihingen (1922, p. 771-790), Vecchia (2018), Gori (2019), Blackburn (2012, p. 281-296), Hussain (2012, p. 157-191); Clarck; Dudrick (2012, p. 192-226), Thomas (2012, p. 133-159). No debate metaético contemporâneo, cf. especialmente a hipótese da teoria do erro de Mackie (1990). Apesar do texto que analiso de GM I 13 não debater diretamente com a formulação ficcionalista via neo-kantismo, notadamente A. Spir, sabemos que o tema é recepcionado por Nietzsche desde Humano, demasiado humano por meio da influência neokantiana. Sobre a recepção do ficcionalismo por meio desse debate, cf. Lopes (2008), Mattos (2013), Green (2002, p. 17-94). , e o que interessa para minha hipótese é reconhecer que ele tem um funcionamento específico no processo de avaliação moral.

c) O condicionante histórico da opção por um “sujeito” e a crítica à autonomia monológica. Na organização prática do mundo moral, conceitos auxiliares - como sujeito e vontade livre - são fluidos e alteram seu significado, tão logo se alteram as condições concretas de aplicabilidade de tais conceitos. A meu ver, a radicalidade da crítica genealógica denuncia que a noção de “sujeito” que cada época esboça para a organização do mundo prático também é, por sua vez, igualmente estruturada e dependente do contexto histórico da sua formulação. Esse condicionante estrutura nossa maneira posterior de agir e avaliar, incluindo aí também a crítica à autonomia monológica e associal.

No texto de GM I 13, Nietzsche pretende desreferencializar a autonomia monológica do “sujeito”, supostamente separada das condições concretas de constituição social e interrelacional, amparada em uma vontade livre que pressupõe a possibilidade de agir distintamente, para posterior imputação da responsabilidade. Nesse caso, a crítica genealógica é parasitária do próprio interlocutor que ela pretende suplantar, ou seja, Nietzsche considera a maneira ressentida de avaliação - a problematização do agente da avaliação e seu pressuposto de autonomia e vontade livre - como lente de aumento por meio da qual explica que o próprio sujeito que avalia é, por sua vez, submetido aos condicionantes históricos. Para melhor compreender esse condicionante, o texto de GM I 13 tem de ser lido, contextualmente, ao lado do aforismo 32 de Para além de bem e mal (KSA 5.50ss.). Nietzsche explica ali três concepções distintas de agente moral, a fim de indicar o condicionante histórico da concepção de sujeito. Em primeiro lugar, denomina de “pré-moral” o valor da ação medido pelas suas “consequências”. O período “moral” corresponde à inversão da perspectiva consequencialista, em proveito dos antecedentia: “interpretou-se a origem de uma ação [...] como origem a partir de uma intenção”. Por fim, autoencenando-se como “imoralista”, Nietzsche se refere a uma época “extramoral”. Nela a concepção de agente moral reitera o fenomenalismo tanto do mundo interior quanto exterior, na medida em que tudo o que pode ser visto daquilo que é “intencionalidade”, por sua vez, já é algo “que se tornou consciente” e “pertence ainda à sua superfície e à sua pele”. O agente “extramoral” avalia uma ação em sua totalidade, atentando-se não aos graus particulares do agir, mas à ação realizada como um todo, e sua ‘intenção’ é “apenas um signo e um sintoma que primeiramente têm de ser interpretados”. Como signo, os “antecedentia” ou “intenções” nada significam por si mesmos, mas são desde sempre dependentes da interpretação mesma do agente (cf. FW/GC 301 e M/A 210). Em JGB/BM 32, Nietzsche apresenta também tese da “ação é tudo” da Genealogia para explicar que a concepção de agente moral é igualmente uma opção historicamente estruturada para determinar o valor moral de uma ação.

Além disso, a avaliação pelas intenções/antecedentia é justamente aquela que pressupõe um “sujeito” isolado de um contexto social estruturante, precisamente o modo de avaliação moral a ser superado de que fala o final de JGB/BM 32. Ato contínuo, ao lado da consideração do “sujeito” como problema, Nietzsche também toma distância da noção de autonomia moderna autocentrada. A meu ver, esse distanciamento se faz em proveito de uma autonomia relacional e parasitária de um contexto social forte, em tensão contínua entre um plano individual e supraindividual ou uma via de mão-dupla que se retroalimenta continuamente. Isso significa que nossas ações são radicalmente instanciadas em um espaço específico, e o sentido delas não pode ser dissociado desse espaço, reforçando a hipótese expressivista da relação entre espaço e performance moral.

As posições teóricas de Nietzsche sobre a autonomia do indivíduo são majoritariamente sociais, ganham força a partir de Aurora com a explicação do gigantesco trabalho da “eticidade dos costumes” (M/A 9, 14 e 16) e atinge seu ponto de culminância precisamente em Para a genealogia da moral por meio da narrativa tipológica do “indivíduo soberano” (GM/GM II 2). A linha argumentativa, entretanto, gira em torno de um denominador comum: a tensão contínua entre, por um lado, o indivíduo construído e estruturado como parte de uma totalidade social, recebendo aí seu sentido e justificação e, por outro lado, o “dividuum” (MA I/HH I 57) que oscila entre um plano social e individual. O pressuposto do argumento é a incorporação de cada estrutura e condição social dessa totalidade maior que atuaram sobre ele e foram afetivamente incorporadas. Em um apontamento póstumo da primavera/outono de 1881, 11[182], Nietzsche registra essa tensão da seguinte maneira: “Como parte de um todo, tomamos posse das suas condições e funções existenciais, bem como incorporamos as experiências e juízos feitos ao longo do processo”. Somente depois do longo efeito da história sobre o indivíduo, quando “o organismo se rompe”, continua Nietzsche, é criada a “possibilidade de existência como indivíduo, de modo que reordena e assimila a excreção de impulsos dentro de si mesmo” (KSA 9.511). Trata-se da mesma estrutura argumentativa filogenética que aparece em Aurora e depois na tipologização do “indivíduo soberano”, e que consiste na ênfase do distanciamento em relação a uma autonomia monológica, em proveito do caráter relacional/social da noção de autonomia humana, incluindo aí a própria relação do indivíduo consigo mesmo. Para além do suposto “sujeito” autônomo autocentrado, Nietzsche reconstrói a gênese social do agente moral, deslocando-se muito mais para o caráter relacional e parasitário da autonomia.

Em suma, os pressupostos para uma abordagem expressivista do agente moral remontam, por um lado, ao ceticismo do autoconhecimento introspectivo, à inevitabilidade do fenomenalismo do mundo interior e o caráter ficcional do “sujeito” - em proveito da indissociabilidade entre economia pulsional e ação - e, por outro lado, à radicalidade da crítica genealógica que inclui a concepção de agente moral e autonomia no repertório do nosso vocabulário moral, que também é estruturado historicamente - em proveito da hipótese da atualização da economia pulsional por meio da ação, bem como de uma noção forte de espaço social. À base desses pressupostos estão a renúncia dos “antecedentia”, seja na forma de intencionalidade, seja na forma de relação causal. O quadro geral expressivista ganha contornos plausíveis na filosofia de Nietzsche.

Reconhecer esses pressupostos, contudo, não resulta nem na negação da possibilidade de se conhecer o agente moral por outras vias que não a introspecção, nem na impossibilidade de avaliação mesma das nossas ações que não por meio dos “antecedentia”.10 10 Pippin também explica que as nossas formulações intencionais não precisam ser obviamente negadas, mas apenas tomadas em seu caráter “provisório”, tornando-se “atual” na medida em que são realizadas. Além disso, nossas intenções devem ser consideradas provisórias “porque, em um número surpreendentemente grande de casos significativos, o que estamos dispostos a declarar como nossa intenção é uma fantasia, em grande parte uma autoilusão e sem consistência com o que fazemos.” (Pippin, 2015, p. 658s.) Nesse caso, podemos deslocar o olhar dos comprometimentos morais da filosofia prática moderna, optando por enxergar o agente moral não por trás das ações, mas nas ações mesmas. Ao invés da caracterização do estatuto teórico desse agente, então, podemos compreendê-lo como uma função no processo de produção das ações, a saber, como o locus das transformações que acontecem na dinâmica da tensão individual e supraindividual.11 11 O texto de M. Saar é extremamente elucidativo para entender o “sujeito” como locus transformativo, apesar do seu objetivo não ser a abordagem expressivista do agente moral. Registro aqui, contudo, que empresto a expressão do seguinte trecho: “Ser sujeito, ser também sujeito da transformação, é precisamente […] algo que é pateticamente expresso, uma forma de devir, uma potencialidade que primeiramente tem de ser formada em meio a um campo de forças e contra resistências, não de maneira independente mas por meio de dependências, não isolado dos outros, mas também não fundidos com os outros. “Sujeito” ou “si mesmo” ou “indivíduo” não é exatamente um nome para uma condição que seja dessa ou daquela maneira, mas sim um nome para um lugar (isto é, uma instância) no qual se é colocado o desafio de poder se tornar dessa ou de outra maneira” (Saar, 2016, p. 103). E ao invés da avaliação moral a partir dos “antedecentia” ou do mero cálculo consequencialista, podemos avaliar a ação em seu “estado global” por meio do potencial transformativo que alguém constrói, de modo que o “eu” se manifesta na totalidade desse potencial transformativo. Por “estado global”, entenda-se aqui a ação efetivamente realizada, pressupondo aí que ela tem de exprimir tanto a assimilação dos costumes e o reconhecimento das normas afetivamente incorporadas como normas (na sua conexão com um espaço estruturado), como também a capacidade de dispor delas por meio de promessas no futuro (sua conexão no tempo).

Se não há nenhum agente por trás da ação, a principal objeção à abordagem expressivista do “eu”, dentre outras, é justamente como distinguir uma ação de um mero evento cotidiano, como movimentar braços e pernas ou sorrir. O que mais me interessa é explicar que a distinção entre ação e evento12 12 Pippin discute a diferença entre ação e evento primordialmente em contraste com a abordagem naturalista da filosofia de Nietzsche (2010), principalmente na parte III do Livro. Para Pippin, Nietzsche ainda se compromete com a perspectiva da liberdade e responsabilização, claro, sempre sob sua particular maneira de entendê-las. De qualquer modo, responsabilizar-se por algo na medida em que temos de conceder que somos capazes de comprometermo-nos com promessas, distinguiria por princípio a ação de um evento: “Afirmar, ou comprometer-se com algo, ou alegar saber algo, são então tipos de promessas, e enquanto tais não são explicáveis como meros eventos naturais. [...] Elas exigem meus comprometimentos futuros e meus compromissos com eles, sustentando-os (sob algum entendimento de, e compromisso com o porquê de se dever fazer), a fim de que promessas, afirmações e expressões de intenção sejam o que elas são” (2010, p. 25). Pippin também lança mão de um recurso metafórico de Assim falava Zaratustra, tanto para distinguir evento e ação, quanto também para ilustrar a particularidade da relação sobre como o autor está na ação. Ao final do discurso “Dos virtuosos” de Zaratustra, lemos: “Oh meus amigos! Que vosso Si mesmo esteja na ação, tal como a mãe está na criança: que seja essa a vossa palavra sobre a virtude!” (Za/Za II Dos virtuosos; KSA 4.123). O agente está na ação, assim como a mãe está na criança (Pippin, 2010, p. 76). Ridley discute a questão em diversos momentos, mas se concentra em torno de FW/GC 335, por conta do registro de que as ações são todas diferentes e nunca conhecemos seu mecanismo de funcionamento, de modo elas nos são desconhecidas, e mesmo as prescrições morais são apenas direcionadas ao que há de externo nas ações. Esse registro nietzschiano poderia resultar na interpretação da ação como indistinta de um mero evento. Para Ridley, contudo, essa é apenas parte da questão, e se quisermos analisar de um ponto de vista expressivista, não é possível deixar de lado o contexto da performance da ação e da avaliação, na medida em que é por meio dele que o sentido pleno da ação ganha forma, na medida em que agentes não estão em espaços apenas subordinados à prescrições, mas podem obviamente ir além deles (Ridley, 2018, p. 82-85). é mais bem compreendida precisamente no horizonte da produção de juízos práticos perfeccionistas, e por um motivo simples: uma interpretação da ação em termos morais implica duas situações fundamentais que levamos em conta anteriormente. Por um lado, nossa inserção em espaços sociais nos quais incorporamos afetivamente estimativas de valor específicas desse espaço, assim como nosso distanciamento crítico em relação a elas e, por outro lado, somos capazes de nos responsabilizar ou “prometer”, na medida em que nos comprometemos com certos objetivos ao vincular perspectivas valorativas em um quadro maior daquilo que queremos atingir. Isso implica uma economia afetiva que atua, bem como a produção da ação por meio de um contexto social forte, vinculado ao endosso afirmativo de nossos objetivos. Tanto a incorporação afetiva num espaço quanto o endosso afirmativo de promessas no tempo - mesmo que nesse processo alguém não realize efetivamente aquilo ao que se comprometeu - são dois elementos básicos de juízos práticos de caráter perfeccionista que podem distinguir plausivelmente a ação de um mero evento, incluindo aí a possibilidade de reconhecer uma ação como “minha”. Quando Nietzsche faz seu apelo intuitivo para a “contínua autossuperação do homem” com vistas à “formação de estados cada vez mais elevados, mais raros, mais distantes, mais amplos e abrangentes” (JGB/BM 257, KSA 5.205. Grifo meu), já se trata aí do reconhecimento de que seres humanos podem se comprometer com algo, endossando afirmativamente um objetivo, tão logo o associa a um quadro maior de perfeição. Nietzsche mantém então a distinção entre ação e mero evento, e pensar a distinção no contexto de juízos práticos perfeccionistas me parece ainda mais plausível.

Estar na ação e não atrás dela explica, antes de tudo, o quanto alguém consegue se revelar por meio do potencial transformativo que conseguiu construir. Deflacionar nossa confiança em encontrar o sujeito nas intenções ou em alguma relação causal, repito, não significa negar que tais intenções existam, mas apenas que são fenômenos de superfície de uma economia afetiva a nós obstruída, mas que atuam sobre nós. Se “as morais são linguagem semiológica dos afetos”, escreve Nietzsche, “os próprios afetos”, por sua vez, também são “linguagem semiológica das funções de todo orgânico” (NF/FP, 1883, 7[60], KSA 10.261s. Cf. também JGB/BM 187), ou seja, superfície de superfície, por isso, como vimos, o mundo interior é tão fenomênico quanto o exterior. Trata-se então de deslocar o olhar para a totalidade da ação por meio do potencial transformativo que alguém construiu, simplesmente assumindo a incerteza sobre as genuínas intenções sobre o que alguém realizou - o que não se confunde, contudo, na possibilidade de desvelar os comprometimentos morais que certas posições carregam consigo.13 13 Esse é justamente o caso quando Nietzsche escreve em Para além de bem e mal - JGB/BM 6; KSA 5.19s. - sobre a “filosofia” como “autoconfissão do seu autor”. Chamo atenção, em primeiro lugar, que Nietzsche não nega que “a maior parte do pensamento consciente” é incluída como “atividades instintivas” (JGB/BM 3; KSA 5.17) que atuam até mesmo ao se filosofar. Em segundo lugar, Nietzsche também não nega que existam intenções que de alguma maneira revelam o autor nas suas obras; contudo, a ‘autoconfissão do seu autor’ é uma forma de ‘memória involuntária’, uma atividade não-consciente em que lança mão da filosofia como media da sua economia afetiva para se expressar, mas que, contudo, é uma relação que não nos autoriza a estabelecer uma relação causal entre a obra e o autor revelado nela. A pergunta principal que Nietzsche faz é “a que moral isso (ele -) quer chegar?”, ou seja, um exercício que considera a ‘psicologia’ como caminho que desvela os comprometimentos morais afetivos do seu autor, i.é., ‘os problemas fundamentais’ (JGB/BM 23). O principal aqui é desvelar justamente seus comprometimentos morais por meio da crítica genealógica, mas não construir a relação causal que conhece o autor pela via causal com sua intenção. Para uma minuciosa interpretação desse aforismo 6 de Para além de bem e mal, cf. (Heit, 2013, p. 123-143).

Gostaria ainda de mencionar uma outra vantagem teórica da abordagem expressivista do agente moral, que voltarei a retomar mais adiante, a saber, a necessária inclusão do julgamento público sobre minha própria ação. O julgamento público é oriundo de uma dificuldade da própria abordagem expressivista do agente moral, que é justamente o fato de que o “eu” sempre será um obstáculo para ele mesmo. A incerteza sobre o agente que se revela no processo da ação, bem como a incerteza que o próprio agente tem sobre o sucesso ou não da sua ação, é uma característica que precisa ser incluída na conta da abordagem expressivista. Mesmo que essa incerteza sobre o agente possa ser mitigada na medida em que se aprofunda o desenvolvimento da ação no tempo - tão logo seu potencial transformativo se revela com maior clareza -, a incerteza da avaliação moral, ainda que seja feita à distância no tempo, é o gap que devemos assumir nas relações interpessoais, construindo uma espécie de dupla contingência entre o agente e aquele que avalia e tenta conhecê-lo na ação. Além disso, somos demasiado próximos a nós mesmos, excessivamente familiares a nós mesmos, para garantir a certeza do sucesso das nossas ações. Como se sabe, tudo o que é demasiado próximo é justamente por isso o mais familiar, e também o mais difícil de ser conhecido (FW/GC 355), de modo que simplesmente podemos estar equivocados sobre nós e o sucesso das nossas ações. Na produção de juízos práticos perfeccionistas e na avaliação do seu potencial transformativo, porém, revelar o que há de mais “genuíno”14 14 Pippin faz duas distinções básicas sobre a maneira como alguém pode revelar a si mesmo por meio de uma ação: um sentido geral “forense”, no qual “a lei quer saber ‘de quem é a ação’?, ‘quem é o assassino?’”; e outro sentido mais completo, mais “genuíno”, em que a questão é colocada à lua do “poder moderno do conformismo” que origina “algum tipo de patologia social”, indicando que as intenções de um “agente” sequer possam ser efetivamente as suas verdadeiras intenções, visto estar submetido precisamente “a esses poderes conformistas”. Apesar de o autor também estar ciente de que a distinção entre o sentido puramente factual forense e o genuíno serem de difícil caracterização, mesmo na filosofia de Nietzsche, de modo a dizer inclusive que “ainda há muito a ser feito”, Pippin se compromete com a possibilidade de reduzir o gap da incerteza sobre o eu precisamente por meio da intensificação da ação que, gradualmente, revelaria de maneira mais “verdadeira” o “sujeito”. (Pippin, 2015, p. 661s.) em si é um anseio absolutamente desnecessário para nossa orientação em demandas da vida cotidiana, pois conforme Nietzsche já escreveu em Ecce homo, “que alguém se torne o que é pressupõe que não se suponha, nem de longe, o que se é.” (EH/EH, Porque sou tão inteligente, 9, KSA 6.293). A incerteza apenas intensifica o caráter social do agente por meio da inclusão do julgamento público, obviamente não em sua função constitutiva, mas regulativa, por meio da qual podemos novamente ajustar ou reorientar ações e pensamentos de maneira consequente.15 15 A meu ver, há aqui uma estreita relação com a noção de “fremde Vernunft” em Kant, e a função que ela ocupa na orientação cotidiana da vida. Sobre isso, cf. (Viesenteiner, no prelo). Mesmo assim, a abertura ao julgamento público não elimina e nem deve eliminar a incerteza sobre a avaliação que temos de outros e sequer da nossa autoavaliação.

Como locus da transformação, o “agente” ocupa a função de exprimir o potencial transformativo na conjugação da tensão entre um horizonte individual e outro supraindividual. Se a “ação é tudo”, a totalidade do que foi realizado é a maneira como temos tanto para revelar algo de nós mesmos, quanto também para avaliarmos o que se realizou em efetivo. A incerteza desse juízo avaliativo, contudo, é o preço a ser incluído na avaliação expressivista do agente moral.

O agente como locus da transformação e avaliação moral

Nesse segundo movimento teórico, quero analisar de maneira mais detalhada a relação entre a ação em seu “estado global” e a avaliação que fazemos dela, ou seja, o potencial transformativo e sua relação com as duas condições de sucesso da ação em um quadro maior de perfeição. Como locus da transformação, é preciso levar às últimas consequências a hipótese nietzschiana segundo a qual “o ser humano é o animal ainda não determinado” (JGB/BM 62, KSA 5.81), assumindo uma caracterização radicalmente fluida na orientação da vida. Mesmo que se deixe determinar, então em seguida já se torna um novo “ainda não determinado”, recomeçando o mesmo ciclo. Se nosso horizonte ético se movimenta à medida em que nos movimentamos, então faz sentido o apelo à “contínua autossuperação do homem”, no registro dessa radical fluidez.16 16 Lembro aqui do importante texto de R. Lanier Anderson, em que investiga o que é o “self” nietzscheano, em um esforço de se distanciar das tentativas de intepretação transcendental e naturalista. Para além da riqueza do texto, registro apenas a indicação de que um “self minimalista” “viria a existir somente por meio do processo” de criação e autocriação, o que inclui aí que emerge das interações de instintos e afetos, cuja principal expressão, segundo o autor, seria o tipo “Goethe” (cf Anderson, 2012, p. 229ss.). Nesse caso, um self que se faz por meio do processo assume, igualmente, a tese radical da fluidez que também caracteriza juízos práticos perfeccionistas.

Juízos práticos perfeccionistas não são meramente instrumentais, como se para cada objetivo a ser atingido bastasse a sua mera superação, nem orientados por alguma meta previamente dada: nem consequencialista e nem principialista. Trata-se antes de avaliar o potencial transformativo que o “estado global” de uma ação manifesta, por meio daquelas duas condições de sucesso sugeridas: 1) o máximo de conexões possíveis construídas em um determinado espaço de atuação (espaço), bem como seu comprometimento com uma promessa no tempo, e 2) na capacidade de manter a boa constituição, conjugando “grandeza” e “soberania”, na medida em que se torna capaz de alterar, abandonar ou reorientar rapidamente novas perspectivas em vista de um horizonte maior de objetivos. De modo concreto, analiso a seguir a) o sentido da transformação - sua possibilidade e seus desafios metaéticos -; b) a relação de interdependência que a transformação tem com a crítica; c) como o potencial transformativo se manifesta em ambas as condições de avaliação de juízos práticos de caráter perfeccionista e, por fim, d) a práxis de tipologização e autotipologização como estratégia narrativa que instancia avaliações expressivistas.

a) Desafios da transformação. Nietzsche não elaborou um conceito específico de transformação, mas assume claramente a contingência e a fluidez de processos históricos-culturais, institucionais, morais e pessoais. Seus textos contêm uma variedade de apelos transformativos, apresentando dificuldades teóricas para sua possibilidade. Uma delas ocorre em função dos próprios comprometimentos que cada ação moral carrega em si, dificuldade essa que a tarefa da genealogia tenta desvelar. A ressalva crítica que Nietzsche faz às duas principais tradições morais modernas - os genealogistas ingleses e a tradição alemã principalmente via Kant - remonta ao fato de que ao falar ou agir, já sempre o fazemos sob uma Circe moral, precisamente porque estamos inseridos em um determinado espaço de atuação, no qual incorporamos as principais estimativas sob a forma de crenças cristalizadas. Considerar a moral “como problema” (FW/GC 345) é justamente levar a cabo o projeto “crítico” da genealogia (GM/GM Prefácio 6). Nietzsche estende o problema dos comprometimentos a todos os âmbitos culturais, explicando que eles não são prerrogativas apenas da moral, mas também do próprio “filosofar” que, tal como escreve em Para além de bem e mal, parte sempre de um parentesco conceitual que cresce em relação uns com os outros, tal como membros “da fauna de uma região da terra”. Não por outra razão, continua Nietzsche, “os mais distintos filósofos” apenas “preenchem de maneira repetida um certo esquema básico de filosofias possíveis”. E conclui: “De fato, o seu pensamento é muito menos uma descoberta, do que um reconhecimento, uma rememoração [...]” (JGB/BM 20, KSA 5.34). Carregamos comprometimentos morais tanto ao agirmos no mundo, como também quando filosofamos sobre tal agir, ao ponto de perguntar se a transformação não é mera reprodução, por outras formas, dos mesmos comprometimentos sedimentados. Se esse é o caso, trata-se antes de uma pseudotransformação, na medida em que carrega os mesmos pontos cegos não problematizados, e apenas reproduzidos de outras maneiras. O desafio metaético dos nossos comprometimentos é um horizonte limitador para o próprio potencial transformativo.

Além disso, o potencial transformativo também se confronta com a suspeita de Nietzsche a propósito de um otimismo transformador em direção a algo “melhor”. O apelo intuitivo à autossuperação não implica em qualquer projeto de “melhoramento do homem”, nem um otimismo exagerado nas potencialidades humanas, típico dos programas esclarecidos de desenvolvimento humano, registrados por Nietzsche, dentre outros, sob o mote “ideias modernas”. A ruína ou corrupção do homem, seu pendor gregário rumo à “vulgaridade”, o filisteísmo cultural, a perseguição de metas de “felicidade” niilista dos ‘últimos homens’, enfim, exprimem a reprodução das estruturas culturais cristalizadas e viciadas que indicam menos autossuperação, e mais um processo de desagregação de uma totalidade cultural que Nietzsche já havia registrado sob a rubrica de “décadence”. A suspeita nietzschiana se justifica porque programas esclarecidos tendem normalmente a agregar um otimismo exagerado nas potencialidades humanas, incluindo aí o potencial cognitivo de transformação, reduzindo a complexidade da dinâmica interna de conflitos no espaço em que atuamos, condição essa capaz de fazer do indivíduo mero subordinado cultural. Se, por um lado, é plausível que se produza um juízo na medida em que somos capazes de conjugar perspectivas isoladas em um horizonte maior de perfeição, num exercício de racionalização dos afetos e perspectivas com os quais os programas esclarecidos flertam de alguma maneira, por outro lado, contudo, é preciso suspeita para minimizar a confiança nesse potencial esclarecido, a fim de maximizar na mesma medida o peso que os conflitos internos exercem sobre alguém em um determinado espaço de atuação (cf. Saar, 2016SAAR, Martin. “Jenseits der Revolte - Nietzsche als Denker und Kritiker sozialer Transformation”. In: HEIT, H.; THORGEIRSDOTTIR, S. (Hrgs). Nietzsche als Kritiker und Denker der Transformation. (Nietzsche Heute), Band 6, Berlin/Boston: Walter de Gruyter , 2016. pp. 93-111.). A performance moral nunca é isolada, mas sempre produzida por meio de um contínuo processo de confronto com o espaço estruturado, e as possibilidades de distanciamento ou autodistanciamento desse mesmo espaço. Não podemos mitigar a dimensão de apelo social da filosofia de Nietzsche, inclusive os conflitos internos de um espaço, em proveito do otimismo exagerado dos programas esclarecidos, cuja aposta de transformação estaria justificada por uma confiança superestimada no potencial cognitivo humano.

b) A interdependência entre transformação e crítica. Se programas propositivos à transformação são suspeitos em função dos comprometimentos morais, é preciso inserir alguma chave de leitura que justifique a transformação como possível. A meu ver, a práxis crítica pode auxiliar nos desafios metaéticos, tão logo entendemos sua relação de interdependência com a transformação. A crítica se configura como dynamis do potencial transformativo, uma vez que opera de maneira interna e externa à situação em que funciona, exigindo igualmente abertura das nossas ações ao julgamento público. Antes de construir o argumento, porém, gostaria de retomar as linhas gerais da dinâmica de funcionamento dos juízos práticos perfeccionistas para entendermos como eles se relacionam com a interdependência entre crítica e transformação.

Juízos de caráter perfeccionista são explicados por meio de três caracterizações:

  1. A interdependência, simultânea e autorreferencial, entre um processo prático e um teórico que atua em cada juízo. No primeiro caso, um processo não-cognitivo que pressupõe a incorporação afetiva de estimativas de valor por meio do longo trabalho de “eticidade dos costumes”, seja como parte de uma organicidade maior, como vimos anteriormente, seja depois de distanciado dessa totalidade social; no segundo caso, um processo teórico instanciado pela virtude epistêmica da probidade intelectual (Redlichkeit), que por sua vez, tem de ser capaz, por exercício crítico, de ter algum “controle” do conteúdo dos nossos pontos cegos para poder “dispor deles” na organização do mundo prático (GM/GM III 12), por meio da práxis de perspectividade - a alternância entre perspectivas, em que não observo apenas uma determinada perspectiva diante de mim, mas observo também meu próprio ponto cego por meio da perspectiva observada.

  2. A retroalimentação entre nossa performance moral em um determinado espaço, bem como a maneira como esse mesmo espaço estrutura e reinforma a produção de novas ações. Essa via de mão dupla não significa que estamos subordinados exclusivamente ao peso do trabalho da cultura sobre nós; inversamente, não significa também que apenas a probidade intelectual é capaz de orientar cognitivamente a condução da produção de ações, imune ao trabalho de moralização da cultura sobre nós. Para além de qualquer dualismo de oposição indivíduo e cultura, trata-se antes da mútua determinação autorreferencial, em que atuamos em um espaço regulado, cujos comportamentos, porém, não estão desde sempre determinados.

  3. Por fim, a dinâmica própria da vontade de poder, tal como registrado no seminal texto GM/GM II 12, instancia em termos teóricos a interdependência entre o processo prático e teórico dos juízos, conjugada com a retroalimentação entre espaço e performance moral, dada a radical fluidez da formação de juízos práticos, bem como o deflacionismo forte de qualquer teleologia a ser atingida. Isso significa que na medida em que o espaço onde se atua sempre pode se alterar, o sentido mesmo da performance também se altera.

Nosso horizonte de perfeição, de qualquer modo, pressupõe a estruturação afetiva do espaço sobre nós, bem como a tarefa “paradoxal” ou a maior “tarefa” do homem sobre o homem, como Nietzsche escreve, que é “criar um animal a quem seja lícito prometer” (GM/GM II 1, KSA 5.291).17 17 A radicalidade desse paradoxo, como sabemos, instancia-se na construção tipológica do “indivíduo soberano” que aparece como desprendido da eticidade dos costumes, cuja soberania é “supramoral” (GM II 2). Dentre outros paradoxos, a tese de que “autônomo e moral se excluem” é certamente um deles. Para um detalhamento maior dessa discussão, cf. Giacoia (2011, p. 156-177).

Volto à interdependência entre crítica e transformação. Se a hipótese do “sujeito” como locus da transformação é plausível, então qualquer transformação acontece no próprio indivíduo. Mesmo quando Nietzsche apresenta seu apelo intuitivo à “contínua autossuperação do ser humano”, ou ainda quando deixa que seu Zaratustra anuncie que “o ser humano é algo que deve ser superado”, aquilo que salta aos olhos é o exercício individual de autotransformação. Chamo atenção, contudo, para o fato de que juízos de caráter perfeccionistas são produzidos em via de mão-dupla e por meio de uma retroalimentação contínua, instanciado na tensão entre a performance em um espaço e o distanciamento crítico desse espaço, por meio desse mesmo espaço em que age, em um movimento de simultânea autotransformação e transformação social, cujo móbile é a práxis crítica.

Nietzsche não desenvolveu diretamente um conceito específico de crítica, mas exerceu uma crítica em diversos sentidos, sobretudo em sua investigação genealógica (Saar, 2007SAAR, Martin. Genealogie als Kritik. Geschichte und Theorie des Subjekts nach Nietzsche und Foucault. Frankfurt/New York: Campus Verlag, 2007., cap. 3). A crítica tem âmbitos específicos tanto na forma quanto no conteúdo. Aquele que critica tem um ponto de partida externo a partir do qual faz um diagnóstico que, enquanto tal, distingue, separa e distancia, decidindo posteriormente sobre seu assentimento ou oposição em relação ao que distinguiu; além disso, aquele que critica também sistematiza em termos analíticos o objeto que acabou de distinguir e distanciar, reconstruindo as relações internas entre o objeto e seu contexto, por meio dos pressupostos e comprometimentos que subjazem à situação. Nesse segundo caso, quem critica faz uso interno da crítica. Exercer a crítica é simultaneamente distinguir e associar ambos os movimentos críticos, desde o horizonte externo e interno: distingue ao separar e tomar distância do objeto, mas associa ao formar contextos para sistematização analítica do objeto, em um movimento que se retroalimenta.18 18 Cf. R. Jaeggi e T. Wesche fazem a seguinte definição de crítica: “Crítica significa sempre e simultaneamente tanto dissociação quanto associação. Crítica diferencia, separa e toma distância; mas ela conecta, estabelece relações e produz contextos interconectados. Dito de outra maneira, a crítica é uma dissociação por meio da associação e uma associação na dissociação” (Jaeggi; Wesche, 2019, p. 8). Nesse sentido, o exercício crítico é sempre parasitário de algum elemento externo ao qual a crítica quer suplantar. Ambos aspectos se exprimem nas descrições e análises genealógicas feitas por Nietzsche, mas também no potencial transformativo do indivíduo, e Nietzsche o faz por meio de distintos contextos que conjugam um exercício externo e interno de crítica.

Aquele que critica, contudo, não tem interesse apenas em diagnosticar e interpretar, mas também tem o objetivo de transformar, ou seja, de superar o objeto por meio da crítica, ampliando a margem de manobra para uma dimensão transformativa da própria crítica.19 19 No caso da genealogia na sua forma “crítica”, ao mesmo tempo em que o procedimento crítico toma como objeto algumas das principais práticas sociais/culturais, fazendo do “próprio eu, por sua vez, objeto” de reflexão nessas práticas, então a genealogia indica uma função terapêutica na medida em que “amplia margem de manobra para outros posicionamentos e identidades” (Saar, 2007, p. 294s.), além, é claro, de intensificar um uso imanente da crítica. Nietzsche certamente possui uma dimensão terapêutica em sua filosofia, ao menos no sentido de esvaziar pretensões de verdade tão logo exprime o caráter contingencial de todas as coisas, e o exercício genealógico exerce aí um papel decisivo. Nesse caso, há apelo terapêutico, como escreve Saar, tão logo se ampliam as margens de manobra para transformação. Nesse terceiro caso, crítica se configura como práxis e tem com a transformação uma relação de interdependência. A análise do potencial transformativo do sujeito como locus da transformação tem de circunscrever ambos os lados internos e externos da práxis crítica de transformação, para não perder nem sua força analítica - sucumbindo ao limite “questionável do horizonte valorativo” que pode desembocar em “ilusões” -, nem sua “condição normativa” - em que as condições valorativas estranhas a alguém seriam “incompreensíveis e inacessíveis” (Wesche, 2019WESCHE, T. “Reflexion, Therapie, Darstellung. Formen der Kritik”. In: Was ist Kritik. 5. Auf. Frankfurt am Main: Suhrkamp , 2019. pp. 193-220., p. 204). O potencial transformativo do “estado global” daquilo que alguém realizou, nesse caso, está vinculado à maneira como se conjugam ambos os lados da crítica, em proveito da ampliação da margem de manobra de transformação pessoal e do espaço de atuação da performance moral.20 20 A posição que alguém ocupa na crítica, no sentido de se colocar interna ou externamente ao objeto ou contexto analisado, é o ponto principal de discussão, sobretudo em função do desafio que uma efetiva transformação impõe, para não sucumbir à mera reprodução das mesmas condições, mas sob outras formas, resultando em uma pseudotransformação. O potencial transformativo de alguém, no sentido que explico, possui uma crítica interna (ou imanente se se quiser assim denominar), no que se refere à perspectividade. Esse é o caso, por exemplo, quando Nietzsche se confronta com Wagner, pois não apenas observa Wagner e como ele exprime a modernidade decadente, mas, por meio de Wagner, Nietzsche observa seu próprio ponto cego, diagnosticando-se enquanto decadente (nesse caso, a crítica dissocia e associa). Essa perspectividade, então, é a alternância de pontos de vista, com um uso interno/imanente da crítica. Na perspectividade, observamos nossos próprios comprometimentos, por meio de um ponto de vista externo à nossa própria posição, mas com resultado autorreferencial, na medida em que a perspectiva externa é uma lente de aumento por meio da qual observo meus próprios pontos cegos. Endossar afirmativamente uma promessa com vistas a um horizonte maior de perfeição, porém, escapa às condições internas da crítica, no instante mesmo em que esse novo horizonte a ser atingido pode apelar intuitivamente. Nesse caso, o horizonte de perfeição é partícipe da situação, mas a práxis crítica (nesse caso com apelo transformativo) não é diretamente relacionada à situação de onde se faz a crítica, no rigoroso sentido da tradição transcendental kantiana (cf. Richardson, 2013, p. 305). Esse horizonte que pode apelar intuitivamente (como é o caso do apelo à autossuperação), é um horizonte que precisa ser justificado por si mesmo e só indiretamente é partícipe da situação em que alguém critica. Trata-se então de um uso externo da crítica, mas em relação complementar com o uso interno. Conforme veremos ao final desse texto, a práxis de tipologização que Nietzsche constrói significa a elaboração performática de Typus psicológicos estranhos à situação em que alguém tradicionalmente está inserido. Recursos tipológicos tais como o ideal de filósofo, o indivíduo soberano ou mesmo a autotipologização “Nietzsche”, exprimem o uso externo da crítica que, nesse caso, exerce apelo transformativo, tão logo coage o leitor ou um interlocutor a decidir e se posicionar sobre a perspectiva externa apresentada. Na variedade de uso interno e externo da crítica, a abertura ao julgamento público é fundamental e tem estatuto regulativo em relação ao modo como alguém persegue um horizonte maior de perfeição, do contrário, a perspectiva externa se revela mero apelo autoritário. A produção de juízos práticos perfeccionistas, portanto, faz uso complementar da crítica interna e externa à situação. Certamente o tema é longo e valeria um debate em separado, sobretudo para detalhar os distintos usos interno e externo da crítica que Nietzsche emprega em sua filosofia, bem como as proximidades desses distintos usos com a própria tradição transcendental da crítica, nesse caso, por meio da influência kantiana e neokantiana. Quero registrar, contudo, que, no tocante aos juízos práticos de natureza perfeccionista, considero que há emprego interno e externo da crítica - relativamente ao lugar onde alguém ocupa - sem prescindir, além disso, da abertura do seu juízo ao próprio julgamento público como recurso regulativo complementar. Além disso, Nietzsche emprega com frequência um sentido de crítica, típico do argumento transcendental kantiano, de modo que ao lado do sentido interno e externo da crítica, é preciso incluir a maneira peculiar com a qual Nietzsche se relaciona com o sentido transcendental da crítica. Sobre esse último aspecto, além do texto de Richardson que menciono acima sobre o tema da relação da crítica em Nietzsche e a tradição transcendental, cf. também M. Green (2002), R. Hill (2003) e T. Bailey (2006). Como escreveu H. Heit nesse sentido: “uma transformação das estruturas sociais é impossível sem a transformação dos indivíduos, assim como a transformação pessoal sem reestruturação social tem de permanecer sem importância e frustrante. [...] O pensamento da transformação, então, possui simultaneamente a forma de uma atitude interior transformada, bem como de uma situação alterada” (Heit, 2016HEIT, Helmut; THORGEIRSDOTTIR, S. (Hrgs). Nietzsche als Kritiker und Denker der Transformation. (Nietzsche Heute), Band 6, Berlin/Boston: Walter de Gruyter , 2016., p. 3).

Se a crítica é o impulso à transformação, a capacidade de distanciamento é a condição da práxis crítica. A relação com Wagner (cf. Rupschus, 2013RUPSCHUS, A. Nietzsches Problem mit den Deutschen. Wagners Deutschtum und Nietzsches Philosophie. Berlin/Boston: Walter de Gruyter , 2013.), dentre outras, foi provavelmente a manifestação mais clara desse potencial autotransformativo, cujo distanciamento é exercido como reflexividade que, em Nietzsche, recebe sua forma acabada na virtude epistêmica da probidade intelectual (Redlichkeit). O potencial transformativo impulsionado pela crítica está relacionado então com a capacidade de distanciamento e autodistanciamento.21 21 Christoph Möllers emprega a expressão “Techiken der Selbstdistanzierung” como um mecanismo que “define o cerne da prática normativa”. Para Möller, essa técnica de distanciamento se exprime por meio da dinâmica “tomar distância do mundo, no mundo” (grifo meu). O distanciamento, por sua vez, também vem associado com a transformação como seu correlato normativo, em que “uma comunidade se distancia da própria realidade sob certas circunstâncias, mas não necessariamente, a fim de justamente transformar essa comunidade com algum sucesso, e isso igualmente sob seguidas circunstâncias” (Möllers, 2018, p. 14s.).

A maneira como a possibilidade de transformação aparece na filosofia de Nietzsche é variada, por conta dos distintos modos como ele emprega a crítica. O apelo transformativo aparece quando indica distância crítica em função dos diagnósticos culturais, configurados como frustração diante do que se tornou a cultura e o homem; distância em função da crítica imanente dos comprometimentos da cultura; distância em função do uso externo/transcendente da sua crítica, especialmente quando elabora tipos psicológicos com apelo transformativo, bem como apelos intuitivos de transformação; autodistanciamento crítico que exprime tanto a distância, o diagnóstico e a sistematização das estruturas morais, mas também seu distanciamento em relação às distâncias e diagnósticos realizados. Esse aspecto é fecundo em Nietzsche e vai da estrutura argumentativa da sua narrativa genealógica, passando pela estratégia argumentativa empregada para desrreferencializar oponentes - relação sempre parasitária -, até o ponto em que se converte em médico e paciente. Curiosamente, Nietzsche entendeu a si mesmo como realização prática da mais radical autorreflexão da humanidade, cuja transvaloração almejada para a cultura como um todo - especificamente até 1887 com sua narrativa genealógica dos ideais ascéticos da cultura - teria acontecido nele mesmo, como práxis autotransformativa nos textos de 1888: “Transvaloração de todos os valores: essa é minha fórmula para um ato da mais elevada autorreflexão da humanidade, que em mim se tornou carne e gênio” (EH/EH, Porque sou um destino 1; KSA 6.365. Grifo meu). O repertório de forma e conteúdo do apelo transformativo em Nietzsche é amplo, e valeria um texto em separado. Com essas breves exemplificações, contudo, quero chamar atenção para o fato de que a dinâmica de transformação e autotransformação carrega uma interdependência com a práxis crítica, com uso interno e externo da crítica de maneira complementar.

c) Avaliação do potencial transformativo. O potencial transformativo se manifesta por meio de condições de sucesso das nossas ações, a saber, c.1) ele exprime o repertório de conexões estabelecidas em um espaço - incluindo aí a dinâmica de confronto e distanciamento, de modo que o indivíduo não pode ser compreendido isoladamente em relação a um quadro mais complexo de determinantes históricos e culturais -, bem como a capacidade de alguém em comprometer-se com um determinado horizonte de perfeição, sob a forma de promessa no tempo - incluindo aí o fato de que não encontramos um objetivo de modo introspectivo, mas sim por meio da interação social; c.2) a boa disposição de alguém em meio a esse processo, cuja “grandeza” se interconecta com a “soberania”: a performance moral em que somos capazes de alternar perspectivas e nos responsabilizar por elas, conforme se movimenta nosso horizonte ético - incluindo aí a possibilidade de abandonar perspectivas.

c.1) A conexão estabelecida por alguém em um espaço de atuação tem de exprimir a incorporação das estimativas de valor daquele espaço, bem como seu distanciamento via práxis crítica (reitero: é claro que não há otimismo para transformação, como se fosse um desdobramento espontâneo). Cada conexão estabelecida, contudo, pode alterar novamente a maneira com a qual persigo um objetivo, em função da fluidez do nosso horizonte ético, seja em função do ajuste entre a meta perseguida e o contexto em questão, seja em função da meta e as relações interindividuais que alguém estabelece. Juízos práticos perfeccionistas são sempre provisórios e fluidos, e seu sucesso está vinculado com essa maximização de conexões estabelecidas em espaços distintos e relações interindividuais diversas. Nessas interconexões, o sujeito é o locus onde as transformações acontecem, simultaneamente incorporando perspectivas diversas e crenças contextuais, sem se confundir com elas, ajustando e reorientando as conexões estabelecidas em um quadro maior de perfecção. “Pathos da distância” - a referência de Nietzsche ao apelo intuitivo para a “contínua autossuperação do homem”, isto é, a “formação de estados cada vez mais elevados, mais raros, mais distantes, mais amplos e abrangentes” (JGB/BM 257, KSA 5.205) - é a expressão talvez mais acabada para o potencial transformativo que um indivíduo estabelece em um espaço (talvez sua hierarquia?).

Nenhum apelo à autossuperação, contudo, acontece de maneira isolada, pois transformação não implica mera superação de obstáculos, como se um objetivo pudesse ser monologicamente atingido. Como locus da transformação, o “sujeito” não realiza nenhuma estrutura essencialmente preconfigurada em si mesmo - como se aquilo que ele se tornasse pudesse pressupor que já soubesse o que é -, nem pressupõe comprometimento com um conceito forte de natureza humana - normalmente pensada na filosofia de Nietzsche com a vontade de poder, sobretudo em sua versão naturalista. Trata-se muito mais de uma individualidade relacional, em que o grau de liberdade corresponde à maximização da tensão entre confronto e distanciamento que o indivíduo consegue produzir em um espaço. No Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche explica que “seu” “conceito de liberdade” é essencialmente procedimental e relacional: “O valor de uma coisa, por vezes, reside não naquilo que se alcança com ela, mas sim naquilo que se paga por ela, ? naquilo que custa a nós. [...] De que modo se mede a liberdade, tanto em indivíduos, quanto em povos? Segundo a resistência que tem de ser superada [...]. O tipo supremo de ser humano livre teria de ser buscado ali onde a suprema resistência é continuamente superada [...]” (GD/CI, Incursões de um extemporâneo 37; KSA 6.139s.). A maximização de conexões no espaço implica, além disso, liberdade de abandonar e alterar horizontes de perfeição, à medida que se alteram as interrelações do próprio espaço, em detrimento da confiança exagerada na perseguição de um objetivo - em que se pressuporia aí uma teleologia inflacionada - mas em proveito da dinâmica processual da produção de cada juízo.

A maximização das conexões no espaço, além disso, relaciona-se com a capacidade do indivíduo em se comprometer com um objetivo associado a um quadro maior de perfeição ao longo do tempo, comprometimentos esses que são igualmente fluidos. O aspecto temporal da promessa é talvez a característica mais importante para o fato de que o potencial transformativo não se confunde com a mera superação de obstáculos. Em termos temporais, o potencial transformativo se vincula com a conjugação entre o grau de comprometimento com um horizonte de perfeição, isto é, o endosso afirmativo da promessa, e a respectiva responsabilização.

Chamo atenção para três aspectos com os quais caracterizo o horizonte temporal de avaliação do potencial transformativo de perfeição. Em primeiro lugar, temos de pressupor o trabalho da cultura sobre o indivíduo e a incorporação de contextos sociais e normativos, até ao ponto em que somos capazes de reconhecer normas como normas de maneira plausível. Obviamente, já vimos que esse trabalho da cultura pode significar a absoluta subordinação do indivíduo aos contextos sociais, mas também é plausível, alternativamente, aquilo que Nietzsche denominou de indivíduo “supramoral” ao elaborar sua concepção de “indivíduo soberano” (GM/GM II 2), novamente liberado da eticidade dos costumes, e por meio da eticidade dos costumes.22 22 Refiro-me aqui à formulação básica da tipologia do indivíduo soberano, segundo a qual alguém se torna novamente liberado da eticidade dos costumes somente depois que foi capaz de incorporar essa eticidade. Para lembrar de um exemplo de A. Ridley, não podemos considerar que as “caprichosas” regras gramaticais sejam consideradas por alguém como uma limitação para a expressão dos “seus potenciais linguísticos”. Aquele que assim o entende, simplesmente não entendeu nada do que significa expressão linguística. Ridley escreve: “Uma pessoa que insistia, por exemplo, que ‘se submetendo abjetamente’ às regras ‘caprichosas’ da gramática e da pontuação inibia ou limitava os seus poderes de expressão linguística, mostraria que não tinha ideia do que era a expressão linguística” (Ridley, 2018, p. 100). A concepção expressivista assume que indivíduos são capazes de reconhecer regras como regras de maneira plausível.23 23 Michael Ridge (2014) denomina de “expressivismo ecumênico” a posição teórica que entende juízos normativos como aqueles que exprimem relação de mútua complementação entre crenças e desejos, ou seja, horizontes não-cognitivos que pressupõem a incorporação afetiva de estimativas de valor, cujo juízo exprime inclinação ou aversão afetiva sobre o que avaliamos, mas também horizonte cognitivo que exprimem verdade entre nosso juízo avaliativo relativamente às nossas crenças cristalizadas. Conforme escreve em Impassioned Belief, “juízos normativos são mais bem entendidos como estados relacionais - [...] estados ‘multiplamente realizáveis’, que significa que podem ser realizados ou ‘constituídos’ por meio de uma ampla variedade de formas. Qualquer instância do juízo normativo será constituída, necessariamente, por algo como o par crença-desejo (grosso modo) onde o conteúdo da crença e o desejo estão relacionados de alguma maneira privilegiada explicitada pela teoria” (p. 7). Ridge chama de “aceitabilidade”, além disso, a noção de anuência no uso normativo prático em torno de “padrões aceitáveis”, cuja objetividade é claramente deflacionada em função do “padrão aceitável” onde se está agindo ou julgando. “Aceitável” é um conceito normativo. Nesse caso, aceitabilidade é tanto dependente afetivamente de um contexto, mas também vai além dele sem que tenhamos que “o parafrasear em outros termos”, dada sua primitividade (p. 41). Aceitabilidade, a meu ver, é um conceito instanciado como plausível, e, como tal, aquilo sobre o qual se concorda sem maiores explicações posteriores. O ecumenismo do par crença-desejo, somado à noção de plausibilidade (aceitabilidade), me parece ser uma argumentação suficiente para a noção de que indivíduos são capazes de reconhecer normas como normas. Não pretendo aqui fazer qualquer relação direta da hipótese de Ridge com o instrumental teórico de Nietzsche, mas apenas explicar em que sentido, na abordagem expressivista, normas são plausivelmente reconhecidas como normas. A meu ver, a relação guarda grandes semelhanças com a produção de juízos práticos de caráter perfeccionista, tanto pelo recurso não-cognitivo e cognitivo, quanto também pelo deflacionismo da plausibilidade. O expressivismo ecumênico, nesse caso, tem vantagens em relação à hipótese da “mente independente” do quase-realismo de S. Blackburn, na explicação do reconhecimento de normas como normas. Como disse, não pretendo aqui fazer qualquer reivindicação de relação entre Ridge e Nietzsche, mas apenas indicar que há muito a ser feito e analisado, caso assumimos o deslocamento metodológico da filosofia de Nietzsche, ao recepcionarmos um vocabulário externo à sua filosofia, em proveito de alguns problemas e demandas da filosofia contemporânea. A perspectiva de ajuste entre crença e desejo foi iniciada por Anscombe. Em termos nietzschianos, trata-se de assumir o trabalho da cultura sobre o indivíduo e seu respectivo autodistanciamento, dispondo das suas principais estimativas de valor, ou seja, o indivíduo a quem é lícito prometer em função da sua “supramoralidade”. Essa imagem teórica é bem distinta da mera concepção de autossuperação como superação de obstáculos, pois subjaz a ela o indivíduo da “vontade própria, independente e duradoura”, cujo “domínio sobre si” dá “também a ele domínio sobre as circunstâncias” (GM/GM II 2, KSA 5.293s.).

O quadro teórico do paradoxo do trabalho da cultura sobre o indivíduo, em segundo lugar, vincula-se com a conquista do que Nietzsche denominou, no mesmo aforismo da Genealogia, de “privilégio extraordinário da responsabilidade”. Estruturar perspectivas em um horizonte maior de perfeição exprime não apenas habilidade prática de adaptação, reorientação e ajustes, tão logo alguém projeta para si um horizonte de perfeição, mas sobretudo um endosso afirmativo dos objetivos a serem atingidos.24 24 Katsafanas (2013) confere um caráter normativo à vontade de poder como estrutura constitutiva em toda ação - hipótese que ele atribui como inescapável e, por isso, passível de universalização -, mas sobretudo ao considerar que qualquer indivíduo, para o exercício do seu melhor, precisa da afirmação prévia dos objetivos a serem atingidos. Esse é o caso de Nietzsche e a vontade de poder, no sentido de que seria capaz de uma série de resultados normativos, mas que, para isso, a própria vontade de poder deveria antes ser afirmada. Em outros termos, é preciso a prévia afirmação genuína do agente para atingir objetivos, cujo móbile seria impulsionado pela própria vontade de poder (p. 67). No capítulo 7 ele analisa a hipótese constitutivista em específico na filosofia de Nietzsche. Vale mencionar, contudo, o debate em torno de uma das objeções ao constitutivismo, que ele nomeia de “Why Brother?” (p. 63ss.), ou seja, ao realizarmos algo, por que não realizar apenas o mínimo de uma ação para atingir o objetivo? (O autor ilustra com o exemplo da construção de uma casa. Para cumprir o objetivo da construção de uma casa, posso construir uma choupana - mesmo sabendo que ela não durará muito tempo, mas mesmo assim cumpri o objetivo de construir uma “casa” -, mas também posso, contudo, construir uma duradoura casa sabendo que vai conseguir subsistir às inúmeras intempéries e adversidades. Nesse segundo caso, não apenas realizei o objetivo, mas o realizei por meio do exercício do melhor, na medida em que endossei, afirmativamente, o objetivo a ser realizado). A objeção é claramente colocada no horizonte do debate perfeccionista - em que pese o autor não se referir diretamente ao debate - na medida em que Katsafanas quer indicar que, mesmo em Nietzsche, ao querer atingir um objetivo, não basta apenas o mínimo para sua realização, mas o exercício do melhor para realizar o objetivo proposto. A resposta à objeção “Why brother?” remonta precisamente à tese da afirmação prévia e genuína do objetivo, cujo móbile, em Nietzsche, seria a vontade de poder. Na sua concepção de “filósofo”, Nietzsche associa a “grandeza” da tarefa de tais filósofos com seu respectivo endosso afirmativo: a “capacidade para decisões duradouras”, o potencial “do quanto e quantas coisas alguém poderia aguentar e aceitar para si, bem como quão longe poderia estender sua responsabilidade” (JGB/BM 212, KSA 5.146). O endosso afirmativo do horizonte de perfeição não apenas exprime o potencial de apelo à autossuperação, mas igualmente a extensão das suas ações no tempo, “sobretudo a disposição para grandes responsabilidades” (JGB/BM 213, KSA 5.149). Em terceiro lugar, o endosso afirmativo dos objetivos não ocorre de modo introspectivo, como processo de realização monológica. Juízos práticos perfeccionistas resgatam a dimensão social forte da filosofia de Nietzsche, pois o endosso afirmativo de uma promessa tem sua “medida de valor” precisamente na relação parasitária que constrói relativamente aos conflitos internos do espaço em que alguém performa.

c.2) Ao lado da maximização das conexões no espaço e da extensão no tempo, acrescenta-se ainda uma segunda noção mais fluida e fina como parte da avaliação do potencial transformativo do indivíduo: sua boa constituição em meio à dinâmica de confronto e distanciamento no processo de realização da ação. Certamente não há consenso sobre o que se define por boa constituição, e novamente o repertório conceitual de Nietzsche pode sugerir diversas alternativas. Para permanecer consequente com a argumentação que venho fazendo, contudo, lembro que Nietzsche associa a expressão “grandeza” ao ideal de filósofo, grandeza essa que tem com a “soberania” estreita relação. Ambos conceitos recebem uma rica semântica na pesquisa Nietzsche,25 25 Sobre o tema da “grandeza”, sugiro especialmente (Caysa; Schwarzwald, 2012). de modo que não pretendo aqui analisá-los em sua significação específica, mas indicar como sua vinculação se coaduna com minha argumentação.

Entendo por boa constituição de um indivíduo a “inteireza”26 26 Outra palavra para “inteireza”, abrangência, talvez seja “totalidade”, tal como Nietzsche a associa ao Typus Goethe no Crepúsculo dos ídolos: “O que ele [Goethe - JLV] queria era totalidade [Totalität]; combateu a cisão entre razão, sensibilidade, sentimento, vontade ( pregada na mais espantosa escolástica por Kant, o antípoda de Goethe), disciplinou a si mesmo para a inteireza, criou a si mesmo...” (GD/CI Incursões de um extemporâneo 49, KSA 6.151). (Umfänglichkeit) em meio à tensão entre espaço de atuação e performance moral, conjugada com a capacidade de alternar perspectivas no interior de um processo em função de um “domínio sobre si” e das “circunstâncias” - seja reorientando, seja abandonando perspectivas com vistas a um horizonte maior de perfeição. “Inteireza” é o termo empregado por Nietzsche ao associar o ideal de filósofo à “grandeza” da sua tarefa (JGB/BM 212), e alternância de perspectiva a concepção associada à “soberania” (GM/GM II 2). Boa constituição exprimiria então o recurso argumentativo típico do uso externo da crítica, por meio da qual Nietzsche constrói uma tipologia que conjuga grandeza e soberania. Contextualmente, é preciso ler o aforismo 212 de Para além de bem e mal associado ao 211, onde Nietzsche diferencia os “trabalhadores filosóficos” dos “autênticos filósofos” (JGB/BM 211, KSA 5.144s.). Esses últimos têm por tarefa precisamente exprimir algum potencial transformativo que se manifesta em sua ação, ou na “tarefa” que se impõe a eles, a saber, a exigência de que “crie valores”. Na tipologização do autêntico filósofo, Nietzsche potencializa a noção de distância crítica ao encená-lo como alguém que observa “com muitos olhos”, “da altura a qualquer distância”, bem como “de um canto a qualquer amplidão”. Inseridos na tensão entre “o homem do amanhã e do depois de amanhã” e como “o mais divergente”, escreve Nietzsche no aforismo 212, o tipo ideal de filósofo exprime “vastidão e multiplicidade”, resguardando aí precisamente “inteireza na diversidade”, condição definida como “grandeza”, quer dizer, aquele que conquistou “capacidade para decisões duradouras”, ou como escreve no aforismo seguinte, “disposição para grandes responsabilidades” (JGB/BM 213. O grifo é meu).

Contextualmente, além disso, os aforismos 211, 212 e 213 de Para além de bem e mal devem ser lidos ao lado da tipologização do indivíduo soberano e seu exercício de “soberania”. Soberano é aquele capaz de trocar de posições no interior de um espaço - perspectividade -, bem como alternar perspectivas na relação interpessoal, tanto como exercício de autodistanciamento, quanto associando tais alternâncias com seu horizonte maior de endosso afirmativo de promessas. Soberania, então, é a semântica com a qual se exprime a boa constituição de um indivíduo em meio a seu potencial transformativo, na medida em que subjaz a ele a mesma “inteireza na diversidade”, registrada por Nietzsche no texto como “domínio sobre si” e “domínio sobre as circunstâncias” (GM/GM II 2, KSA 5.294), algo completamente diverso de domínio sobre outros. Para além da autonomia moderna isolada, contudo, trata-se aqui também de uma parasitária relação de autonomia, na qual o indivíduo soberano estabelece relação de contínuo de autodistanciamento, mesmo em meio à maximização das suas relações no espaço, por meio das quais ele se mantém autônomo, sem contudo prescindir das outras autonomias. A soberania, porém, nunca é absoluta e obviamente não fazemos nunca o melhor juízo sobre o que fizemos, nem no instante mesmo em que agimos, nem mesmo depois quando observamos o que fizemos em seu “estado global”; embora nada impeça que façamos tal avaliação, corremos o risco de nos fiarmos no limite dos próprios horizontes, tanto porque somos demasiados familiares a nós mesmos, quanto em função da característica imanente da crítica. Nesse caso, o resultado poderia ser a autoilusão. A autonomia parasitária da soberania, pois, não pode prescindir justamente da abertura ao julgamento público sobre aquilo que fazemos, como mecanismo regulador por meio do qual podemos voltar a pensar e nos orientar de maneira consequente.

As condições de conexão no espaço e extensão no tempo, associados com uma noção de boa constituição, então, podem ser plausíveis para avaliação do potencial transformativo do “estado global” de uma ação. Tais condições não possuem estatuto constitutivo, mas sim regulativo das nossas avaliações. Chamo atenção que essas duas condições de sucesso não se referem a algum aspecto substantivo da ação, mas sim à estrutura formal da própria avaliação. Da filosofia de Nietzsche, não se espera nenhum horizonte forte de tábua de valores, nem de critérios substantivos de avaliação, apesar dos recursos externos/transcendentes de crítica que ele mobiliza com frequência, normalmente vinculados às suas construções de tipos psicológicos. Avaliar o potencial transformativo da ação, além disso, remonta à situação específica de conjugação da performance de alguém em um espaço, sem se estender a quaisquer outras situações, assim como o potencial transformativo de alguém sequer precisa ser reproduzido ou realizado da mesma maneira por outras pessoas. Quaisquer situações em que nos encontramos são fluidas e, nesse caso, reivindicar avaliações universalistas encontra seu limite justamente em função da fluidez e diversidade das situações. Uma definição substantiva de condições de sucesso seria então impossível, pois como escreve Nietzsche, “todos os conceitos nos quais um processo inteiro se resume semioticamente, subtraem-se à definição; definível é apenas o que não possui história” (GM/GM II 13, KSA 5.317). Atentar-se ao potencial transformativo, em contrapartida, refere-se mais à estrutura formal da transformação. O “agente”, nesse caso, não está por trás das transformações, mas ele é o locus onde elas acontecem, ao mesmo tempo em que se exprime nas transformações. O que podemos avaliar é o potencial transformativo do “estado global” da ação que exprime seu “agente”. Na avaliação, não podemos nos furtar ao julgamento público sobre nós mesmos, assim como outros não podem se furtar aos juízos que fazemos deles. De qualquer modo, o “sujeito” ainda permanece o locus da transformação, dando-se a conhecer nas transformações mesmas e não por trás da ação.

Conclusão

A abordagem expressivista do agente moral, em suma, tem a vantagem de instanciar com plausibilidade a maneira com a qual avaliamos o sucesso de juízos práticos de caráter perfeccionistas. Cada um de nós se manifesta no potencial transformativo que produz, com vistas a um horizonte maior de perfeição, e é por meio desse potencial expressado que avaliamos e nos autoavaliamos. Na medida em que não temos um acesso privilegiado ao “mundo interior”, por meio do qual poderíamos justificar nossas ações e avaliações morais, então avaliar o potencial transformativo daquilo que alguém fez ou fizemos, significa assumir que “a ação é tudo” e que cada um de nós é o locus onde as transformações acontecem. É claro que carregamos intenções (antecedentia) nesse processo, mas elas são menos instrumentos de justificação, e mais sintomas que escondem nossos mais variados comprometimentos morais e afetivos. De qualquer modo, a maximização de conexões no espaço e o endosso afirmativo das nossas promessas no tempo com vistas a um horizonte maior de perfeição que queremos atingir, são conjugados com a boa constituição que alguém consegue manter, em meio à tensão individual e supraindividual/social. São com essas condições, portanto, que podemos avaliar o potencial que alguém efetivamente transformou e autotransformou, de maneira regulativa e não constitutiva. Isso significa que a ação em seu “estado global” exprime a inseparabilidade entre uma economia pulsional afetiva e a própria ação, a forte vinculação a um espaço de atuação estruturado, bem como o modo como alguém se autotransforma e transforma, na medida em que o agente vincula o que faz em um horizonte de perfeição. É plausível dizer, então, que nos revelamos por meio do potencial transformativo que construímos. A incerteza sobre o potencial transformativo pessoal e de outro, porém, é o preço a pagar na abordagem expressivista, seja em função da interdição ao “mundo interior”, seja em função da avaliação de uma genuína transformação ou mera reprodução das mesmas condições. Nesse ponto, não podemos prescindir do espaço público onde o julgamento do outro acontece. Em que pese os mais variados problemas que são deixados em aberto na opção expressivista, especialmente se a analisamos à luz de algumas considerações nietzscheanas, trata-se de uma hipótese com algum êxito principalmente se a empregamos, como propus, na avaliação do sucesso de juízos práticos de caráter perfeccionista.

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  • VIESENTEINER, Jorge L. “Kant: Orientation and fremde Vernunft”. In: Kant e-Prints (2020) (no prelo).
  • WESCHE, T. “Reflexion, Therapie, Darstellung. Formen der Kritik”. In: Was ist Kritik 5. Auf. Frankfurt am Main: Suhrkamp , 2019. pp. 193-220.
  • 1
    Para boa compreensão do estado atual do debate, cf. Constâncio; Branco; Ryan (2015CONSTÂNCIO, J; BRANCO, M.; RYAN, B. Nietzsche and the Problem of Subjectivity. (Nietzsche Today). Vol. 5. Berlin/Boston, 2015.), bem como Paschoal (2018PASCHOAL, Antonio E. “Da crítica de Nietzsche ao sujeito ao sujeito de sua crítica”. In: Cardenos Nietzsche, vol. 39 (2018), pp. 93-119.).
  • 2
    Sobre o deslocamento para a função do sujeito nos processos avaliativos, de pensamento, etc., cf. Janaway (2007JANAWAY, Christopher. Beyond Selflessness. Reading Nietzsche’s Genealogy. Oxford: Oxford University Press , 2007., p. 11 e 29), Stegmaier (2015STEGMAIER, Werner. “Subjects as Temporal Clues to Orientation: Nietzsche and Luhmann on Subjectivity”. In: CONSTÂNCIO, J; BRANCO, M.; RYAN, B. Nietzsche and the Problem of Subjectivity. (Nietzsche Today). Vol. 5. Berlin/Boston, 2015. pp. 487-510., p. 488), bem como Ridley (2018RIDLEY, A. The Deed is Everything: Nietzsche on Will and Action. Oxford: Oxford University Press , 2018., p. 188).
  • 3
    Sobre a abordagem expressivista do agente moral em Nietzsche, cf. Pippin (2010PIPPIN, Robert. Nietzsche, Psychology, and First Philosophy. Chicago/London: The University of Chicago Press, 2010., p. 67-84) e o livro mais recente de Ridley (2018RIDLEY, A. The Deed is Everything: Nietzsche on Will and Action. Oxford: Oxford University Press , 2018.). Ambos os autores possuem em comum a interlocução com Hegel para elaborar a hipótese expressivista do agente moral. É preciso registrar que a interpretação expressivista da ação em Hegel é inserida principalmente pelo texto de C. Taylor, Hegel, de 1975, e que Pippin a endossa com o acréscimo do horizonte forte da sociabilidade, por meio da qual o agente é capaz de considerar o que acontece e por quê, bem como se responsabilizar pelo que faz, por meio de um contexto social estruturado. Justamente a interconexão entre agente e espaço social é o pontapé para a distinção entre ação e meros eventos. (Sobre a reconstrução filosófica da teoria da ação na abordagem expressivista, Cf. Laitinen; Sandis (2010LAITINEN, Arto; SANDIS, C. Hegel on Action. London: Palgrave Macmillan, 2010.), especialmente o texto de Taylor “Hegel and the Philosophy of Action” (p. 22-41) e Pippin “Hegel’s Social Theory of Agency: the ‘inner-outer’ Problem” (p. 59-778). Ainda sobre a teoria da ação em Hegel que participa diretamente do debate expressivista, cf. Quante (2004QUANTE, Michael. Hegel’s Concept of Action. Trans. Dean Moyar. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.) especialmente a “Parte II” (p. 99-174). A primeira parte do livro de Ridley, além disso, faz um apanhado dos autores expressivistas, como Hegel, Schopenhauer e Wittgenstein (p. 9-21). Certamente a vinculação exegética entre Hegel e Nietzsche em torno do expressivismo demandaria um texto em separado, dadas as peculiaridades da relação que Nietzsche tem com Hegel. Talvez um aspecto fundamental dessa relação, porém, é perceber que ambos os autores têm muito em comum, tão logo assumimos a metodologia que mencionei no início desse texto, ou seja, a recepção de um vocabulário extrínseco às suas respectivas letras teóricas, em detrimento da exegese específica, mas em proveito do debate em torno de problemas e demandas específicas da filosofia contemporânea. O tema da abordagem expressivista do agente moral seria justamente um ponto em comum, em que ambos teriam muito mais a dizer em termos de proximidade teórica, desde que mobilizemos seus filosofemas em proveito justamente desses problemas contemporâneos. A meu ver, essa relação Hegel/Nietzsche em torno da teoria da ação é extremamente fecunda e ainda há muito a ser feito em termos de reconstrução teórica. Agradeço a amiga Michela Bordignon pelas valiosíssimas indicações de leitura sobre a teoria da ação em Hegel.
  • 4
    Salvo indicações contrárias, as traduções são de minha autoria seguindo a edição crítica dos estudos sobre Nietzsche (KSA), (Nietzsche, 1999NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe in 15 Bänden. (KSA) Hrsg. Giorgio Colli und Mazzino Montinari. Berlin/New York: DTV & Walter de Gruyter, 1999.).
  • 5
    Há outros aforismos igualmente importantes para a abordagem expressivista, como em JGB/BM 19 ou ainda FW/GC 335. O texto de GM I 13 me é interessante na medida em que consegue dar conta das três características da abordagem expressivista com relativo sucesso.
  • 6
    Sobre as possibilidades do autoconhecimento pela via mediata, cf. os textos de Katsafanas (2015KATSAFANAS, Paul. “Kant and Nietzsche on Self-Knowledge”. In: CONSTÂNCIO, J; BRANCO, M.; RYAN, B. Nietzsche and the Problem of Subjectivity. (Nietzsche Today). Vol. 5. Berlin/Boston, 2015. pp. 116-130., p. 116-130) e Stellino (2015STELLINO, Paolo. “Self-Knowledge, Genealogy, Evolution”. In: CONSTÂNCIO, J; BRANCO, M.; RYAN, B. Nietzsche and the Problem of Subjectivity. (Nietzsche Today). Vol. 5. Berlin/Boston, 2015. pp. 550-573., p. 550-573).
  • 7
    Que Nietzsche tenha sido um crítico do conceito de vontade no sentido da consideração schopenhaueriana como “certeza imediata” (JGB/BM 16), não significa assumir uma fragilidade para a indissociação entre vontade e ação, no sentido expressivista de que o agente se manifesta na ação. Ao contrário, vontade e todo seu repertório complexo de economia afetiva é mais do que apenas a consideração “imediata”, e sim um complexo de sentir, pensar e “afeto”, em que o “preconceito popular” depois identifica como duas coisas separadas atuando como causa e efeito, ou seja, que “aquele que quer acredita de bom grado que basta o querer para agir” (JGB/BM 19; KSA 5.31s.). Há uma economia pulsional atuante e que estrutura ações. Que Nietzsche ponha em questão a vontade como “certeza imediata” ou como preconceito popular que confunde causa e efeito, ou ainda a vontade livre como mera ficção, não implica argumento que depõe contra a hipótese expressivista, mesmo porque o fundamental aqui é o complexo afetivo que efetivamente atua, de modo que o agente se revela na ação de maneira indissociável a essa economia pulsional. Cf. Ridley (2018RIDLEY, A. The Deed is Everything: Nietzsche on Will and Action. Oxford: Oxford University Press , 2018., p. 61-69).
  • 8
    Cf. o apontamento póstumo NF/FP do outono 1885/primavera de 1886, 1[61], KSA 12.26: “Tudo o que entra na consciência é o último elo de uma cadeia, uma conclusão. Trata-se apenas de uma aparência, o fato de que um pensamento seja a causa imediata de um outro. O autêntico acontecimento ocorre abaixo da nossa consciência: a série e a sucessão de sentimentos, pensamentos, etc., que emergem são sintomas do autêntico acontecimento! — Sob cada pensamento está um afeto. Todo pensamento, todo sentimento, toda vontade não nascem a partir de um determinado impulso, mas é um estado global, uma superfície completa da consciência inteira, e resulta da fixação de poder momentânea de todos os impulsos que nos constituem - logo, do impulso dominante, tanto do que lhe obedece quanto do que lhe resiste. O pensamento seguinte é um signo de como nesse ínterim a situação de poder global se deslocou.”
  • 9
    Cf. a clássica interpretação de Vaihingen (1922VAIHINGEN, H. Die Philosophie des Als Ob: System der theoretischen, praktischen und religiösen Fiktionen der Menschheit auf Grund eines idealistischen Positivismus. 7/8 Auflage. Leipzig: Felix Meiner Verlag, 1922., p. 771-790), Vecchia (2018VECCHIA, Ricardo. “Hans Vaihinger e a teoria da aparência conscientemente intencionada de Nietzsche”. In: Veritas v. 63, n.1 (2018), pp. 304-322.), Gori (2019GORI, Pietro. Nietzsche’s Pragmatism. Berlin/Boston: de Gruyter, 2019.), Blackburn (2012BLACKBURN, S. “Perspectives, Fictions, Errors, Play”. In: LEITER, B.; SINHABABU, N. (orgs.) Nietzsche and Morality. Oxford: Oxford University Press , 2012, pp. 281-296. , p. 281-296), Hussain (2012HUSSAIN, N. “Honest Illusion: Valuing for Nietzsche’s Free Spirits”. In: LEITER, B.; SINHABABU, N. (orgs.) Nietzsche and Morality. Oxford: Oxford University Press , 2012. pp. 157-191., p. 157-191); Clarck; Dudrick (2012CLARCK, M.; DUDRICK, D. “Nietzsche and Moral Objectivity: the Development of Nietzsche’s Metaethics”. In: LEITER, B.; SINHABABU, N. (orgs.) Nietzsche and Morality. Oxford: Oxford University Press , 2012. pp. 192-226., p. 192-226), Thomas (2012THOMAS, A. “Nietzsche and Moral Fictionalism”. In: JANAWAY, C.; ROBERTSON, S. (orgs.). Nietzsche, Naturalism and Normativity. Oxford: Oxford University Press , 2012, pp. 133-159., p. 133-159). No debate metaético contemporâneo, cf. especialmente a hipótese da teoria do erro de Mackie (1990MACKIE, John. Ethics: Inventing Right and Wrong. London: Penguin Books, 1990.). Apesar do texto que analiso de GM I 13 não debater diretamente com a formulação ficcionalista via neo-kantismo, notadamente A. Spir, sabemos que o tema é recepcionado por Nietzsche desde Humano, demasiado humano por meio da influência neokantiana. Sobre a recepção do ficcionalismo por meio desse debate, cf. Lopes (2008), Mattos (2013), Green (2002GREEN, Michael S. Nietzsche and the Transcendental Tradition. Urbana and Chicago: University of Illinois Press, 2002., p. 17-94).
  • 10
    Pippin também explica que as nossas formulações intencionais não precisam ser obviamente negadas, mas apenas tomadas em seu caráter “provisório”, tornando-se “atual” na medida em que são realizadas. Além disso, nossas intenções devem ser consideradas provisórias “porque, em um número surpreendentemente grande de casos significativos, o que estamos dispostos a declarar como nossa intenção é uma fantasia, em grande parte uma autoilusão e sem consistência com o que fazemos.” (Pippin, 2015PIPPIN, Robert. “The Expressivist Nietzsche”. In: CONSTÂNCIO, J; BRANCO, M.; RYAN, B. Nietzsche and the Problem of Subjectivity. (Nietzsche Today). Vol. 5. Berlin/Boston, 2015. pp. 654-667., p. 658s.)
  • 11
    O texto de M. Saar é extremamente elucidativo para entender o “sujeito” como locus transformativo, apesar do seu objetivo não ser a abordagem expressivista do agente moral. Registro aqui, contudo, que empresto a expressão do seguinte trecho: “Ser sujeito, ser também sujeito da transformação, é precisamente […] algo que é pateticamente expresso, uma forma de devir, uma potencialidade que primeiramente tem de ser formada em meio a um campo de forças e contra resistências, não de maneira independente mas por meio de dependências, não isolado dos outros, mas também não fundidos com os outros. “Sujeito” ou “si mesmo” ou “indivíduo” não é exatamente um nome para uma condição que seja dessa ou daquela maneira, mas sim um nome para um lugar (isto é, uma instância) no qual se é colocado o desafio de poder se tornar dessa ou de outra maneira” (Saar, 2016SAAR, Martin. “Jenseits der Revolte - Nietzsche als Denker und Kritiker sozialer Transformation”. In: HEIT, H.; THORGEIRSDOTTIR, S. (Hrgs). Nietzsche als Kritiker und Denker der Transformation. (Nietzsche Heute), Band 6, Berlin/Boston: Walter de Gruyter , 2016. pp. 93-111., p. 103).
  • 12
    Pippin discute a diferença entre ação e evento primordialmente em contraste com a abordagem naturalista da filosofia de Nietzsche (2010PIPPIN, Robert. Nietzsche, Psychology, and First Philosophy. Chicago/London: The University of Chicago Press, 2010.), principalmente na parte III do Livro. Para Pippin, Nietzsche ainda se compromete com a perspectiva da liberdade e responsabilização, claro, sempre sob sua particular maneira de entendê-las. De qualquer modo, responsabilizar-se por algo na medida em que temos de conceder que somos capazes de comprometermo-nos com promessas, distinguiria por princípio a ação de um evento: “Afirmar, ou comprometer-se com algo, ou alegar saber algo, são então tipos de promessas, e enquanto tais não são explicáveis como meros eventos naturais. [...] Elas exigem meus comprometimentos futuros e meus compromissos com eles, sustentando-os (sob algum entendimento de, e compromisso com o porquê de se dever fazer), a fim de que promessas, afirmações e expressões de intenção sejam o que elas são” (2010PIPPIN, Robert. Nietzsche, Psychology, and First Philosophy. Chicago/London: The University of Chicago Press, 2010., p. 25). Pippin também lança mão de um recurso metafórico de Assim falava Zaratustra, tanto para distinguir evento e ação, quanto também para ilustrar a particularidade da relação sobre como o autor está na ação. Ao final do discurso “Dos virtuosos” de Zaratustra, lemos: “Oh meus amigos! Que vosso Si mesmo esteja na ação, tal como a mãe está na criança: que seja essa a vossa palavra sobre a virtude!” (Za/Za II Dos virtuosos; KSA 4.123). O agente está na ação, assim como a mãe está na criança (Pippin, 2010, p. 76). Ridley discute a questão em diversos momentos, mas se concentra em torno de FW/GC 335, por conta do registro de que as ações são todas diferentes e nunca conhecemos seu mecanismo de funcionamento, de modo elas nos são desconhecidas, e mesmo as prescrições morais são apenas direcionadas ao que há de externo nas ações. Esse registro nietzschiano poderia resultar na interpretação da ação como indistinta de um mero evento. Para Ridley, contudo, essa é apenas parte da questão, e se quisermos analisar de um ponto de vista expressivista, não é possível deixar de lado o contexto da performance da ação e da avaliação, na medida em que é por meio dele que o sentido pleno da ação ganha forma, na medida em que agentes não estão em espaços apenas subordinados à prescrições, mas podem obviamente ir além deles (Ridley, 2018RIDLEY, A. The Deed is Everything: Nietzsche on Will and Action. Oxford: Oxford University Press , 2018., p. 82-85).
  • 13
    Esse é justamente o caso quando Nietzsche escreve em Para além de bem e mal - JGB/BM 6; KSA 5.19s. - sobre a “filosofia” como “autoconfissão do seu autor”. Chamo atenção, em primeiro lugar, que Nietzsche não nega que “a maior parte do pensamento consciente” é incluída como “atividades instintivas” (JGB/BM 3; KSA 5.17) que atuam até mesmo ao se filosofar. Em segundo lugar, Nietzsche também não nega que existam intenções que de alguma maneira revelam o autor nas suas obras; contudo, a ‘autoconfissão do seu autor’ é uma forma de ‘memória involuntária’, uma atividade não-consciente em que lança mão da filosofia como media da sua economia afetiva para se expressar, mas que, contudo, é uma relação que não nos autoriza a estabelecer uma relação causal entre a obra e o autor revelado nela. A pergunta principal que Nietzsche faz é “a que moral isso (ele -) quer chegar?”, ou seja, um exercício que considera a ‘psicologia’ como caminho que desvela os comprometimentos morais afetivos do seu autor, i.é., ‘os problemas fundamentais’ (JGB/BM 23). O principal aqui é desvelar justamente seus comprometimentos morais por meio da crítica genealógica, mas não construir a relação causal que conhece o autor pela via causal com sua intenção. Para uma minuciosa interpretação desse aforismo 6 de Para além de bem e mal, cf. (Heit, 2013HEIT, Helmut. “Lesen und Erraten: ‚Philosophie als Selbstbekenntnis ihres Urhebers‘”. In: BORN, M.; PICHLER, A. (Hrsg.). Texturen des Denkens. Nietzsches Inszenierung der Philosophie in Jenseits von Gut und Böse. Berlin/Boston: Walter de Gruyter , 2013, pp. 123-143., p. 123-143).
  • 14
    Pippin faz duas distinções básicas sobre a maneira como alguém pode revelar a si mesmo por meio de uma ação: um sentido geral “forense”, no qual “a lei quer saber ‘de quem é a ação’?, ‘quem é o assassino?’”; e outro sentido mais completo, mais “genuíno”, em que a questão é colocada à lua do “poder moderno do conformismo” que origina “algum tipo de patologia social”, indicando que as intenções de um “agente” sequer possam ser efetivamente as suas verdadeiras intenções, visto estar submetido precisamente “a esses poderes conformistas”. Apesar de o autor também estar ciente de que a distinção entre o sentido puramente factual forense e o genuíno serem de difícil caracterização, mesmo na filosofia de Nietzsche, de modo a dizer inclusive que “ainda há muito a ser feito”, Pippin se compromete com a possibilidade de reduzir o gap da incerteza sobre o eu precisamente por meio da intensificação da ação que, gradualmente, revelaria de maneira mais “verdadeira” o “sujeito”. (Pippin, 2015PIPPIN, Robert. “The Expressivist Nietzsche”. In: CONSTÂNCIO, J; BRANCO, M.; RYAN, B. Nietzsche and the Problem of Subjectivity. (Nietzsche Today). Vol. 5. Berlin/Boston, 2015. pp. 654-667., p. 661s.)
  • 15
    A meu ver, há aqui uma estreita relação com a noção de “fremde Vernunft” em Kant, e a função que ela ocupa na orientação cotidiana da vida. Sobre isso, cf. (Viesenteiner, no preloVIESENTEINER, Jorge L. “Kant: Orientation and fremde Vernunft”. In: Kant e-Prints (2020) (no prelo).).
  • 16
    Lembro aqui do importante texto de R. Lanier Anderson, em que investiga o que é o “self” nietzscheano, em um esforço de se distanciar das tentativas de intepretação transcendental e naturalista. Para além da riqueza do texto, registro apenas a indicação de que um “self minimalista” “viria a existir somente por meio do processo” de criação e autocriação, o que inclui aí que emerge das interações de instintos e afetos, cuja principal expressão, segundo o autor, seria o tipo “Goethe” (cf Anderson, 2012ANDERSON, R. Lanier. “What is a Nietzschean Self?”. In: JANAWAY, C.; ROBERTSON, S. (orgs.). Nietzsche, Naturalism and Normativity. Oxford: Oxford University Press, 2012, pp. 202-235., p. 229ss.). Nesse caso, um self que se faz por meio do processo assume, igualmente, a tese radical da fluidez que também caracteriza juízos práticos perfeccionistas.
  • 17
    A radicalidade desse paradoxo, como sabemos, instancia-se na construção tipológica do “indivíduo soberano” que aparece como desprendido da eticidade dos costumes, cuja soberania é “supramoral” (GM II 2). Dentre outros paradoxos, a tese de que “autônomo e moral se excluem” é certamente um deles. Para um detalhamento maior dessa discussão, cf. Giacoia (2011GIACOIA, Oswaldo. “Zu Nietzsches Satz ‚autonom‘ und ‚sittlich‘ schliesst sich aus”. In: Nietzsche-Studien 40 (2011), pp. 156-177., p. 156-177).
  • 18
    Cf. R. Jaeggi e T. Wesche fazem a seguinte definição de crítica: “Crítica significa sempre e simultaneamente tanto dissociação quanto associação. Crítica diferencia, separa e toma distância; mas ela conecta, estabelece relações e produz contextos interconectados. Dito de outra maneira, a crítica é uma dissociação por meio da associação e uma associação na dissociação” (Jaeggi; Wesche, 2019JAEGGI, R.; WESCHE, T. (Hg.). Was ist Kritik. 5. Auf. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2019., p. 8).
  • 19
    No caso da genealogia na sua forma “crítica”, ao mesmo tempo em que o procedimento crítico toma como objeto algumas das principais práticas sociais/culturais, fazendo do “próprio eu, por sua vez, objeto” de reflexão nessas práticas, então a genealogia indica uma função terapêutica na medida em que “amplia margem de manobra para outros posicionamentos e identidades” (Saar, 2007SAAR, Martin. Genealogie als Kritik. Geschichte und Theorie des Subjekts nach Nietzsche und Foucault. Frankfurt/New York: Campus Verlag, 2007., p. 294s.), além, é claro, de intensificar um uso imanente da crítica. Nietzsche certamente possui uma dimensão terapêutica em sua filosofia, ao menos no sentido de esvaziar pretensões de verdade tão logo exprime o caráter contingencial de todas as coisas, e o exercício genealógico exerce aí um papel decisivo. Nesse caso, há apelo terapêutico, como escreve Saar, tão logo se ampliam as margens de manobra para transformação.
  • 20
    A posição que alguém ocupa na crítica, no sentido de se colocar interna ou externamente ao objeto ou contexto analisado, é o ponto principal de discussão, sobretudo em função do desafio que uma efetiva transformação impõe, para não sucumbir à mera reprodução das mesmas condições, mas sob outras formas, resultando em uma pseudotransformação. O potencial transformativo de alguém, no sentido que explico, possui uma crítica interna (ou imanente se se quiser assim denominar), no que se refere à perspectividade. Esse é o caso, por exemplo, quando Nietzsche se confronta com Wagner, pois não apenas observa Wagner e como ele exprime a modernidade decadente, mas, por meio de Wagner, Nietzsche observa seu próprio ponto cego, diagnosticando-se enquanto decadente (nesse caso, a crítica dissocia e associa). Essa perspectividade, então, é a alternância de pontos de vista, com um uso interno/imanente da crítica. Na perspectividade, observamos nossos próprios comprometimentos, por meio de um ponto de vista externo à nossa própria posição, mas com resultado autorreferencial, na medida em que a perspectiva externa é uma lente de aumento por meio da qual observo meus próprios pontos cegos. Endossar afirmativamente uma promessa com vistas a um horizonte maior de perfeição, porém, escapa às condições internas da crítica, no instante mesmo em que esse novo horizonte a ser atingido pode apelar intuitivamente. Nesse caso, o horizonte de perfeição é partícipe da situação, mas a práxis crítica (nesse caso com apelo transformativo) não é diretamente relacionada à situação de onde se faz a crítica, no rigoroso sentido da tradição transcendental kantiana (cf. Richardson, 2013RICHARDSON, J. “Nietzsche and Transcendental Argument”. In: Kriterion 128 (2013), pp. 287-305., p. 305). Esse horizonte que pode apelar intuitivamente (como é o caso do apelo à autossuperação), é um horizonte que precisa ser justificado por si mesmo e só indiretamente é partícipe da situação em que alguém critica. Trata-se então de um uso externo da crítica, mas em relação complementar com o uso interno. Conforme veremos ao final desse texto, a práxis de tipologização que Nietzsche constrói significa a elaboração performática de Typus psicológicos estranhos à situação em que alguém tradicionalmente está inserido. Recursos tipológicos tais como o ideal de filósofo, o indivíduo soberano ou mesmo a autotipologização “Nietzsche”, exprimem o uso externo da crítica que, nesse caso, exerce apelo transformativo, tão logo coage o leitor ou um interlocutor a decidir e se posicionar sobre a perspectiva externa apresentada. Na variedade de uso interno e externo da crítica, a abertura ao julgamento público é fundamental e tem estatuto regulativo em relação ao modo como alguém persegue um horizonte maior de perfeição, do contrário, a perspectiva externa se revela mero apelo autoritário. A produção de juízos práticos perfeccionistas, portanto, faz uso complementar da crítica interna e externa à situação. Certamente o tema é longo e valeria um debate em separado, sobretudo para detalhar os distintos usos interno e externo da crítica que Nietzsche emprega em sua filosofia, bem como as proximidades desses distintos usos com a própria tradição transcendental da crítica, nesse caso, por meio da influência kantiana e neokantiana. Quero registrar, contudo, que, no tocante aos juízos práticos de natureza perfeccionista, considero que há emprego interno e externo da crítica - relativamente ao lugar onde alguém ocupa - sem prescindir, além disso, da abertura do seu juízo ao próprio julgamento público como recurso regulativo complementar. Além disso, Nietzsche emprega com frequência um sentido de crítica, típico do argumento transcendental kantiano, de modo que ao lado do sentido interno e externo da crítica, é preciso incluir a maneira peculiar com a qual Nietzsche se relaciona com o sentido transcendental da crítica. Sobre esse último aspecto, além do texto de Richardson que menciono acima sobre o tema da relação da crítica em Nietzsche e a tradição transcendental, cf. também M. Green (2002GREEN, Michael S. Nietzsche and the Transcendental Tradition. Urbana and Chicago: University of Illinois Press, 2002.), R. Hill (2003HILL, R. Kevin. Nietzsche’s Critiques. The Kantian Foudations of his Thought. Oxford: Oxford University Press , 2003.) e T. Bailey (2006BAILEY, T. “After Kant: Green and Hill on Nietzsche’s Kantianism”. In: Nietzsche-Studien 35 (2006), pp. 228-262.).
  • 21
    Christoph Möllers emprega a expressão “Techiken der Selbstdistanzierung” como um mecanismo que “define o cerne da prática normativa”. Para Möller, essa técnica de distanciamento se exprime por meio da dinâmica “tomar distância do mundo, no mundo” (grifo meu). O distanciamento, por sua vez, também vem associado com a transformação como seu correlato normativo, em que “uma comunidade se distancia da própria realidade sob certas circunstâncias, mas não necessariamente, a fim de justamente transformar essa comunidade com algum sucesso, e isso igualmente sob seguidas circunstâncias” (Möllers, 2018MÖLLERS, Christoph. Die Möglichkeit der Normen: über eine Praxis jenseits von Moralität und Kausalität. Berlin: Suhrkamp Verlag, 2018., p. 14s.).
  • 22
    Refiro-me aqui à formulação básica da tipologia do indivíduo soberano, segundo a qual alguém se torna novamente liberado da eticidade dos costumes somente depois que foi capaz de incorporar essa eticidade. Para lembrar de um exemplo de A. Ridley, não podemos considerar que as “caprichosas” regras gramaticais sejam consideradas por alguém como uma limitação para a expressão dos “seus potenciais linguísticos”. Aquele que assim o entende, simplesmente não entendeu nada do que significa expressão linguística. Ridley escreve: “Uma pessoa que insistia, por exemplo, que ‘se submetendo abjetamente’ às regras ‘caprichosas’ da gramática e da pontuação inibia ou limitava os seus poderes de expressão linguística, mostraria que não tinha ideia do que era a expressão linguística” (Ridley, 2018RIDLEY, A. The Deed is Everything: Nietzsche on Will and Action. Oxford: Oxford University Press , 2018., p. 100).
  • 23
    Michael Ridge (2014RIDGE, Michael. Impassioned Belief. Oxford: Oxford University Press , 2014.) denomina de “expressivismo ecumênico” a posição teórica que entende juízos normativos como aqueles que exprimem relação de mútua complementação entre crenças e desejos, ou seja, horizontes não-cognitivos que pressupõem a incorporação afetiva de estimativas de valor, cujo juízo exprime inclinação ou aversão afetiva sobre o que avaliamos, mas também horizonte cognitivo que exprimem verdade entre nosso juízo avaliativo relativamente às nossas crenças cristalizadas. Conforme escreve em Impassioned Belief, “juízos normativos são mais bem entendidos como estados relacionais - [...] estados ‘multiplamente realizáveis’, que significa que podem ser realizados ou ‘constituídos’ por meio de uma ampla variedade de formas. Qualquer instância do juízo normativo será constituída, necessariamente, por algo como o par crença-desejo (grosso modo) onde o conteúdo da crença e o desejo estão relacionados de alguma maneira privilegiada explicitada pela teoria” (p. 7). Ridge chama de “aceitabilidade”, além disso, a noção de anuência no uso normativo prático em torno de “padrões aceitáveis”, cuja objetividade é claramente deflacionada em função do “padrão aceitável” onde se está agindo ou julgando. “Aceitável” é um conceito normativo. Nesse caso, aceitabilidade é tanto dependente afetivamente de um contexto, mas também vai além dele sem que tenhamos que “o parafrasear em outros termos”, dada sua primitividade (p. 41). Aceitabilidade, a meu ver, é um conceito instanciado como plausível, e, como tal, aquilo sobre o qual se concorda sem maiores explicações posteriores. O ecumenismo do par crença-desejo, somado à noção de plausibilidade (aceitabilidade), me parece ser uma argumentação suficiente para a noção de que indivíduos são capazes de reconhecer normas como normas. Não pretendo aqui fazer qualquer relação direta da hipótese de Ridge com o instrumental teórico de Nietzsche, mas apenas explicar em que sentido, na abordagem expressivista, normas são plausivelmente reconhecidas como normas. A meu ver, a relação guarda grandes semelhanças com a produção de juízos práticos de caráter perfeccionista, tanto pelo recurso não-cognitivo e cognitivo, quanto também pelo deflacionismo da plausibilidade. O expressivismo ecumênico, nesse caso, tem vantagens em relação à hipótese da “mente independente” do quase-realismo de S. Blackburn, na explicação do reconhecimento de normas como normas. Como disse, não pretendo aqui fazer qualquer reivindicação de relação entre Ridge e Nietzsche, mas apenas indicar que há muito a ser feito e analisado, caso assumimos o deslocamento metodológico da filosofia de Nietzsche, ao recepcionarmos um vocabulário externo à sua filosofia, em proveito de alguns problemas e demandas da filosofia contemporânea. A perspectiva de ajuste entre crença e desejo foi iniciada por Anscombe.
  • 24
    Katsafanas (2013KATSAFANAS, Paul. Agency and the Foundations of Ethics. Oxford: Oxford University Press , 2013.) confere um caráter normativo à vontade de poder como estrutura constitutiva em toda ação - hipótese que ele atribui como inescapável e, por isso, passível de universalização -, mas sobretudo ao considerar que qualquer indivíduo, para o exercício do seu melhor, precisa da afirmação prévia dos objetivos a serem atingidos. Esse é o caso de Nietzsche e a vontade de poder, no sentido de que seria capaz de uma série de resultados normativos, mas que, para isso, a própria vontade de poder deveria antes ser afirmada. Em outros termos, é preciso a prévia afirmação genuína do agente para atingir objetivos, cujo móbile seria impulsionado pela própria vontade de poder (p. 67). No capítulo 7 ele analisa a hipótese constitutivista em específico na filosofia de Nietzsche. Vale mencionar, contudo, o debate em torno de uma das objeções ao constitutivismo, que ele nomeia de “Why Brother?” (p. 63ss.), ou seja, ao realizarmos algo, por que não realizar apenas o mínimo de uma ação para atingir o objetivo? (O autor ilustra com o exemplo da construção de uma casa. Para cumprir o objetivo da construção de uma casa, posso construir uma choupana - mesmo sabendo que ela não durará muito tempo, mas mesmo assim cumpri o objetivo de construir uma “casa” -, mas também posso, contudo, construir uma duradoura casa sabendo que vai conseguir subsistir às inúmeras intempéries e adversidades. Nesse segundo caso, não apenas realizei o objetivo, mas o realizei por meio do exercício do melhor, na medida em que endossei, afirmativamente, o objetivo a ser realizado). A objeção é claramente colocada no horizonte do debate perfeccionista - em que pese o autor não se referir diretamente ao debate - na medida em que Katsafanas quer indicar que, mesmo em Nietzsche, ao querer atingir um objetivo, não basta apenas o mínimo para sua realização, mas o exercício do melhor para realizar o objetivo proposto. A resposta à objeção “Why brother?” remonta precisamente à tese da afirmação prévia e genuína do objetivo, cujo móbile, em Nietzsche, seria a vontade de poder.
  • 25
    Sobre o tema da “grandeza”, sugiro especialmente (Caysa; Schwarzwald, 2012CAYSA, V.; SCHWARZWALD, K. (Hrsg.), Nietzsche - Macht - Größe: Nietzsche- Philosoph der Größe der Macht oder der Macht der Größe. (Nietzsche Heute), Band 2, Berlin/Boston: Walter de Gruyter, 2012).
  • 26
    Outra palavra para “inteireza”, abrangência, talvez seja “totalidade”, tal como Nietzsche a associa ao Typus Goethe no Crepúsculo dos ídolos: “O que ele [Goethe - JLV] queria era totalidade [Totalität]; combateu a cisão entre razão, sensibilidade, sentimento, vontade ( pregada na mais espantosa escolástica por Kant, o antípoda de Goethe), disciplinou a si mesmo para a inteireza, criou a si mesmo...” (GD/CI Incursões de um extemporâneo 49, KSA 6.151).
  • *
    Essa pesquisa faz parte do projeto de pós-doutorado desenvolvido na Universität Stuttgart, na Alemanha.
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    Meu agradecimento especial aos amigos Lucas F. Gomes, Felipe Durante, Antonio E. Paschoal e Michela Bordignon pela leitura e indicações imprescindíveis de leitura e correções ao texto.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    12 Jun 2020
  • Aceito
    12 Jul 2020
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