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"Eu não preciso falar que eu sou branca, cara, eu sou Latina!" Ou a complexidade da identificação racial na ideologia de ativistas jovens (não)brancas

"I do not have to say that I am white, man, I am Latina!" Or the complexity of racial identification in the ideology of (non)white, young, female activists

Resumos

Neste artigo procuro explorar a complexidade do processo de formação da identidade racial de mulheres, jovens ativistas (não)brancas em São Paulo. Levando em conta a interação do indivíduo com o mundo social, distingue-se a identidade racial apropriada da atribuída e a identidade racial individual da coletiva. Isso requer atenção para o papel da posição social racial, com as subsequentes vantagens raciais, para os sentimentos da ativista neste processo e para a influência mútua da heterogeneidade de identidade racial, do deslocamento da identidade racial e, por conseguinte, do papel da formação de identidade como estratégia de ideologia e práxis ativista.

Identidade Racial; Feminismo; Ativismo; Branquitude; Ideologia


In this article, I explore the complexity of racial identity formation of (non)white, young, female activists in São Paulo. Taking into account the interaction of the individual with the social world, one must distinguish between appropriated and attributed racial identities, as well as individual and collective identities. This requires attention to the role of racial social position and its subsequent racial advantages, to the feelings of activists about this process, and to the mutual influence of the heterogeneity of racial identity, the displacement of racial identity and, consequently, the role of identity formation as a strategy of activist ideology and praxis.

Racial Identity; Feminism; Activism; Whiteness; Ideology


DOSSIÊ: FEMINISMOS JOVENS

"Eu não preciso falar que eu sou branca, cara, eu sou Latina!" Ou a complexidade da identificação racial na ideologia de ativistas jovens (não)brancas* * Recebido para publicação em fevereiro de 2011, aceito em março de 2011. Este artigo baseia-se nos papers "The diversity of white identity. An analysis of the identity of (non)white, young, female activists in São Paulo, Brazil", apresentado na International LOVA conference Ethnographies of Gender and Globalization (Amsterdam, 2008) e "Contra Quem? A conflituosa posição das militantes jovens brancas na luta transformadora", apresentado no VII Seminário Fazendo Gênero (Florianópolis, 2006). As questões aqui apresentadas também estão sendo exploradas no âmbito de minha pesquisa de doutorado, na Universidade de Manchester, sobre feminismo jovem e agência ativista a partir de uma perspectiva interseccional.

"I do not have to say that I am white, man, I am Latina!" Or the complexity of racial identification in the ideology of (non)white, young, female activists

Dieuwertje Dyi Huijg

Doutoranda no Departamento de Sociologia, Universidade de Manchester, E-mail: dieuwertje.huijg@manchester.ac.uk

RESUMO

Neste artigo procuro explorar a complexidade do processo de formação da identidade racial de mulheres, jovens ativistas (não)brancas em São Paulo. Levando em conta a interação do indivíduo com o mundo social, distingue-se a identidade racial apropriada da atribuída e a identidade racial individual da coletiva. Isso requer atenção para o papel da posição social racial, com as subsequentes vantagens raciais, para os sentimentos da ativista neste processo e para a influência mútua da heterogeneidade de identidade racial, do deslocamento da identidade racial e, por conseguinte, do papel da formação de identidade como estratégia de ideologia e práxis ativista.

Palavras-chave: Identidade Racial, Feminismo, Ativismo, Branquitude, Ideologia.

ABSTRACT

In this article, I explore the complexity of racial identity formation of (non)white, young, female activists in São Paulo. Taking into account the interaction of the individual with the social world, one must distinguish between appropriated and attributed racial identities, as well as individual and collective identities. This requires attention to the role of racial social position and its subsequent racial advantages, to the feelings of activists about this process, and to the mutual influence of the heterogeneity of racial identity, the displacement of racial identity and, consequently, the role of identity formation as a strategy of activist ideology and praxis.

Key Words: Racial Identity, Feminism, Activism, Whiteness, Ideology.

1. Introdução1 1 Neste texto, utilizo as seguintes convenções: o formato itálico é utilizado para diferenciar falas de entrevistadas e categorias êmicas; o formato de aspas duplas é utilizado para indicar conceitos ou citações diretas de autores; e o formato de aspas simples é utilizado para enfatizar determinadas ideias. Agradeço a Astrid Runs, Adriano Ropero, Isadora Lins França e Tatiana Groff pela sua ajuda na revisão e na tradução. Agradeço também a leitura e o estímulo por parte das organizadoras do dossiê.

Dandara2 2 Todos os nomes são fictícios para manter o anonimato das entrevistadas. : Quando eu tenho que responder

um questionário e está lá branco, amarelo,

preto... Que cor eu sou? Eu acho que eu

sou todas. (...) Porque eu sou um mistura.

Não sei. Minha cor, para os olhos de

algumas pessoas, ela é branca, mas as

minhas atitudes é de uma jovem negra.

Dandara me pegou de surpresa. Ela foi a segunda jovem feminista ativista que entrevistei em São Paulo, em outubro de 2005, para uma pesquisa sobre experiências cotidianas relacionadas a privilégio racial. Eu a tinha classificado como branca, mas sua auto-reflexão me levou a uma complexa observação: ela é de todas as cores, ela é uma mistura; ela identifica-se como branca e outras pessoas – inclusive ativistas não-feministas – a vêem como branca; ela também se identifica como negra e outras ativistas feministas também se referem a ela como negra. Seria Dandara negra ou branca? E por que isso seria tão relevante?

***

Para esta pesquisa me aproximei de quinze ativistas jovens (não)brancas envolvidas em questões, entre outras, de gênero e raça. Elas atuam em movimentos identitários ou novos movimentos sociais3 3 Não é de surpreender que especialmente as mulheres de família de classe trabalhadora – como Sabrina, Paula, Dandara e Sofia – discutam classe, como categoria não-identitária, em suas análises. Isso não se deu da mesma maneira para aquelas com um background de classe média e média alta - como Juliana, Andrea, Severina e Júlia. Para nenhuma delas, porém, a classe social foi uma prioridade em seu ativismo atual. Classe, entretanto, não era uma categoria analítica central para esta pesquisa. Assim, por motivos metodológicos, a participação ativista em movimentos identitários foi o critério de seleção utilizado para compor o conjunto de entrevistadas, mais que um pertencimento em termos de classe social. : grupos marginalizados que se encontram e se organizam a partir do compartilhamento de uma (mesma) identidade, de forma a combater desigualdades sociais pelas quais se vêem afetadas ou em solidariedade a outros sujeitos que sofrem os efeitos de desigualdades (por exemplo, no caso de lésbicas que atuam no movimento LGBT contra o heterossexismo e no movimento negro, contra o racismo). Não obstante, a maioria dessas mulheres é de ativistas jovens inseridas no movimento feminista contra sexismo e desigualdades de gênero. Como demonstro neste trabalho, elas compartilham a oposição a um sistema opressivo, assim como a luta contra as desigualdades sociais e a discriminação que tal sistema (re)produz e, consequentemente, um objetivo comum de transformação social: de uma sociedade mais igualitária e justa para todos.

Essa lógica ativista apresenta coerência se temos como ponto de partida uma identidade marginalizada e uma posição de desvantagem social (de gênero e sexual), ou de solidariedade com uma posição de desvantagem (racial). Essa aparente coerência se transforma quando se tem por referência uma identidade racial atribuída (por terceiros) como branca, situando as posições sociais dessas ativistas nas relações raciais.

Nesse contexto, identidade e ideologia ativista entram em conflito, estabelecendo-se uma relação contraditória. A apropriação (auto-identificação) de uma identidade racial branca as conduziria a habitar o lugar do ser opressor no sistema de racismo, ao qual tais ativistas, pelo menos discursivamente, se opõem. Porém, como encaminham apaixonadamente seu ativismo com base na própria identidade oprimida, colocam em segundo plano sua identidade racial atribuída como branca e a subsequente posição privilegiada na construção do seu feminismo, bem como de outras práxis e ideologias ativistas.

Tendo isso em mente, abordo de forma breve os conceitos de identidade racial, branquitude e ideologia. Em seguida, apresento uma visão geral da identidade racial atribuída das entrevistadas, da sua posição social racial, do seu posicionamento ideológico ativista em relação a essas questões e, por último, direcio novamente minha atenção para a complexidade da apropriação de sua identidade racial. Procurando abarcar a complexidade das questões aqui apresentadas, analiso as narrativas de Sabrina e Dandara em detalhes, sugerindo três aspectos no processo de formação da sua identidade racial: a heterogeneidade de identidade racial, o deslocamento da identidade racial e o papel da formação de identidade como estratégia de ideologia e práxis ativista.

2. Identidade, branquitude, ideologia

2.1 Identidade

Em movimentos identitários, a identidade muitas vezes é referida como uma categoria social que indica o que alguém 'é' ou 'tem': uma experiência marginalizada e homogênea compartilhada – como é o caso de gênero e sexualidade (Wekker, 1998:40). Em contraste, a identidade também pode ser vista como um lar, com base em sentimentos de pertencimento e reconhecimento (Frankenberg, 1993; Essed, 1996), um processo múltiplo, dinâmico e flexível: um estado de "tornar-se" que implica agência humana (Lammers, 2006:283). Relacionalmente, a identidade é construída e negociada como uma co-produção mutuamente dependente do Self e do Outro que "nos dá um lugar no mundo e faz a ligação entre nós e a sociedade em que vivemos"4 4 As traduções das citações para o português são da autora. (Wekker, 1998:40,46). Entretanto, no que concerne à apropriação da identidade racial em relação ao Self, vale lembrar que esta é, ao mesmo tempo, atribuída por outros – e, no caso de ativistas, não sem conflito (id.ib.; Lammers, 2006).

Tal perspectiva vai ao encontro do argumento de Wekker contra a ideia de posições exclusivas de identidade em que não se pode, ao mesmo tempo, pertencer a um 'nós' (branca ou negra) e a um 'outros' (negra ou branca) em um eixo só de significação social (como raça); essa é uma abordagem ilusória de tipo "ou-ou" (Wekker, 1998). Como demonstrou Dandara, a identidade racial pode ser uma expressão de uma ou mais posições que podem coexistir em um continuum. No entanto, a demarcação entre 'nós' e 'outros', entre Self e Outro, concede direitos, meios e recursos, poder e oportunidades para aqueles que estão localizados no lado beneficiado, o que constitui a base para a redução do acesso a direitos, etc. para aqueles situados no outro lado (Wekker, 1998; Lammers, 2006).

2.2 Branquitude

Mulheres brancas são marcadas por gênero e raça.5 5 Para uma descrição geral de (re)leitura crítica de raça e branquitude de Freyre, Nogueira, Guerreiro Ramos, Fernandes, Ianni, F.H. Cardoso; e para temas como a ideologia de branqueamento, o mito da democracia racial, e políticas de ação afirmativa, ver Piza (2000), Bento (2002, 2003a), Sovik (2002, 2007), Oliveira (2007) e Cardoso (2008). "Branquitude", para Byrne (2006:3), "é mais do que uma identidade consciente, é também uma posição dentro de discursos racializados, bem como um conjunto de práticas e imaginários". Mesmo que a branquitude como "um conjunto fixo de atributos físicos" (id.ib.) tenha desmontado há muito tempo, e branquitude (tanto como raça) seja entendida como uma construção social, relacional, dinâmica e dependente de tempo, contexto e lugar, ainda se constitui como real "nos seus efeitos materiais e discursivos" (Frankenberg, 2004:113). Branquitude, então, é "um lugar no sistema de racismo e dominação" (Frankenberg, 1997:8-9). Porém, no que se refere ao racismo, não está em jogo somente a discriminação provocada por preconceito, "um sentimento de rejeição aos negros", mas também a (manutenção da) discriminação provocada por interesse: "[L]egados cumulativos da discriminação [que] significam privilégios para uns e déficits para outros" (Bento, 2003a:27-29). O racismo, dessa maneira, é um sistema de "ônus e bônus" (id., 2003b:147,153). Nessa lógica, prevalece a posição racial, e não a identidade racial.

Para analisar o reconhecimento da heterogeneidade do que significam 'brancas' e 'branquitude', cabe uma abordagem interseccional, reconhecendo "que todas as pessoas estão situadas em uma série de eixos importantes de significação social" (Wekker & Lutz, 2001:26). Apesar de privilégio e poder marcarem branquitude, posições desprivilegiadas em outros eixos podem mascarar tal posição social. Entretanto, não a apagam, somente a modificam (Frankenberg, 2004:76; Rothenberg, 2005:3-4; Twine & Warren, 2007:6-7).

Ao mesmo tempo, apesar de gênero funcionar para mulheres como uma força estruturalmente marginalizante, empurrando-as para um lugar desvantajoso do mundo social, raça pode trazê-las (no caso das que são identificadas como brancas) de volta para o centro das relações de poder:

vemos classe e gênero sendo violentamente racializados, e também vemos polarizações de insiderness [o estar dentro] e outsiderness [o estar fora], organizadas às vezes em torno do eixo racial (...).Penso que também é seguro afirmar que algumas mulheres mais do que outras – da classe certa, de raça certa – estão sendo seduzidas a um novo tipo de insiderness junto com sua contrapartida masculina (Frankenberg, 1997:7).

Os sentimentos negativos ligados à branquitude têm mais riscos de caírem nesse 'hiato cognitivo' (Perry, 2002:78-83), ou seja, de passarem sem maiores problematizações. Isso leva a uma cegueira, na qual 'não se vê raça', impedindo que as pessoas percebam a sua insiderness na branquitude e, portanto, a si mesmas como racializadas (Piza, 2000:108). Dessa forma, pessoas brancas marcam sua identidade e posição social como não-racial. Assim, a branquitude funciona como "guarda silenciosa" de privilégio racial (Bento, 2003a, 2003b).

Gênero e raça ganham significado através dos conflitos sociais e da luta política (Omi & Winant, 1986:123), mas também através da evasão do conflito e do deslocamento de luta social. Mulheres brancas podem se identificar como oprimidas pelo sexismo, apagando como um outro "ismo", por exemplo, o racismo, as privilegia (Wildman & Davis, 1995:95-8) e, portanto, legitimando a predominância de sua luta contra o sexismo sobre a luta contra o racismo. Muitas vezes, a branquitude é caracterizada pela omissão da atuação de brancos, contribuindo para a manutenção do status quo (Bento, 2002, 2003a).

Uma declaração ativista do tipo "eu sou anti-racista" parece uma expressão performativa de agência racial, ou seja, que produz os próprios efeitos políticos trazidos no enunciado da sentença. Em contraste, a ausência de atuação coerente com esse discurso anti-racista, argumenta Ahmed (2004), é não-performativa. Por conseguinte, a branquitude permite a brancos "ver o trabalho anti-racista como um ato de compaixão pelo outro, um projeto esporádico, externo, opcional, pouco ligado às suas próprias vidas" (Bento, 2003a:49). Isso questiona a transformação como agentiva6 6 Agência é associada com comportamento proposital e/ou intencional, com reflexividade, consciência e, especificamente em pesquisa sobre ativismo, com empoderamento, progresso e transformação. Esses entendimentos, muito diferentes, estão de acordo com o caráter e o objetivo transformador social do ativismo feminista. Contesto, aqui, a fusão entre agência e ação (Alexander, 1992b, 1992a; Campbell, 2009), e argumento que agência pode se manifestar em ação tanto como em ausência de ação (ou inação) e, considerando o caráter interseccional da agência ativista feminista, sugiro que talvez não-transformação não seja um objetivo ideológico, mas pode ser um resultado ou mesmo uma finalidade indireta do ativismo feminista (Huijg, 2011). e aponta para as limitações do discurso ativista na branquitude feminina, questionando a relevância da ideologia para a práxis ativista.

2.3 Ideologia

Johnston e Oliver formulam ideologia7 7 Na teoria de ideologia podem-se distinguir duas linhas de pensamento. Partindo de uma compreensão de ideologia 'neutra', sociológica ou não-pejorativa, há certo acordo de que ideologia consiste de ideias, crenças, valores e normas; é baseada no mundo material e envolve processos de significação e representação, bem como a legitimação do poder (processos), conflito, oposição e/ou dominação; por último, ideologia se ocupa da descrição, interpretação, contestação e justificação da ordem social e política (Eagleton, 1991:1-31; Zald, 1996:262; Gohn, 1997:129; Johnston & Oliver, 2000:63; Franco, 2004:3; Dijk, 2006:116; Gillan, 2008:248). Uma alternativa para a abordagem não-pejorativa seria um entendimento pejorativo, marxista ou epistemológico da ideologia – como ilusão ou distorção; ideologia no sentido pejorativo discute ideias como 'verdadeiras' ou representações 'falsas' da 'realidade' (experiências e conhecimentos); 'falsa' e 'consciência oposicional' e, inter alia, hegemônicas e ideologias contras (Jameson, 1978; Cheal, 1979; Kennedy, 1979; Hall, 1985; Barrett, 1991; Dant, 1991; Eagleton, 1991; Hennessy, 1993; Gohn, 1997; Xavier, 2002; Heywood, 2003; Franco, 2004; Borba, 2005). como "sistemas de ideias que congregam entendimentos de como o mundo funciona com princípios éticos, morais e normativos que orientam a ação pessoal e coletiva" (Oliver & Johnston, 2000:44). Snow e Benford (2000:613) acrescentam que esse "conjunto de crenças" orienta-se não apenas para a política, mas também para a vida cotidiana. Portanto, não somente há ideias sobre como a sociedade funciona e como deve funcionar, mas também um "mapa cognitivo de conjuntos de expectativas e uma escala de valores em que as normas e os imperativos são proclamados": as ideias são também um "guia para ação, produzindo na mente de seus adeptos uma imagem do processo pelo qual mudanças desejadas podem ser alcançadas" (Wilson, 1973 apud Oliver & Johnston, 2000:43).

A ideologia, assim, não está limitada a ideias e, como tal, ao mundo abstrato do indivíduo: antes, funciona também como guia de ação real. Como ideia ou como ação, real ou imaginária, trata-se da construção particular de um 'conjunto' feminista – ou outro – sobre o mundo. Por outro lado, as ideologias feministas incluem ideias e ideais de desigualdade social (de gênero) e requerem um mínimo de consciência ou conhecimento das relações de poder e do mundo social. Apesar de as entrevistadas desta pesquisa, em sua maioria, construírem a práxis ativista apenas com base na sua identidade marginalizada, seu conjunto de crenças e compreensão de como funciona o mundo inclui também a consciência das relações raciais e de sua posição de privilégio nelas.

Essas ideias funcionam no sentido de orientar (moralmente) determinado coletivo e, consequentemente, o indivíduo que a partir dele se identifica em suas ações a fim de alcançar este mundo ideal. Assim sendo, há uma relação entre convicções ideológicas e visões a respeito de um mundo social ideal e, entre estes, o indivíduo e as suas ações. Como demonstro no decorrer deste trabalho, a identidade racial atribuída está ligada à posição social dos indivíduos num contexto de desigualdade no que tange a relações raciais. Por sua vez, a apropriação de identidade racial pode ser considerada uma manifestação de agência ativista dos indivíduos; os coloca e posiciona no contexto do mundo social e de suas relações raciais e, como tal, está relacionada à construção e à expressão de sua convicção ideológica. Aqui, o foco recai sobre a noção de ideologia ativista (ou sobre a ideologia de ativistas) como uma construção social, expressão de um engajamento ativista que é produzido, negociado, reproduzido e modificado. Trata-se, portanto, da abordagem da formação da identidade como um processo em que a ativista manifesta sua agência.

3. Atribuição racial: quando outros te vêem como branca

3.1 Identidade racial, posição social e experiências com racismo

No intuito de entender o que significa 'ser branco', considerei que a primeira e bastante óbvia questão seria perguntar às mulheres como outras pessoas as identificam racialmente e, consequentemente, qual é sua identidade racial atribuída. Loirinha. Loira. Galega. Galega em Pernambuco é loira. Chama galega na gíria. Ah, branquinha, às vezes dependendo do lugar branca azeda8 8 A lista para denominar brancos é longa, por exemplo, 'branca-pálida', 'branca-queimada', 'russa', 'rosa' or 'morena-clara' (Turra & Venturi, 1995:33-34). Termos que não encontrei, porém já ouvi pessoalmente, são: 'Alemoa' e 'Xuxa'. [Severina]. Branca era a resposta mais comum, o que me suscitava pouca surpresa: se outras pessoas as identificavam como brancas, como eu também fiz, e essa era minha hipótese, elas experimentariam estar numa posição de privilégio racial. Como veremos, essa hipótese se confirmava na medida em que todas as entrevistadas relatavam uma variedade de ocorrências cotidianas em que a atribuição de uma identidade racial branca lhes concedia uma posição preferencial via "experiências vicárias com racismo"9 9 Essed (1989:43) distingue quatro tipos de experiências com racismo, dos quais "experiências pessoais" e "experiências vicárias" são os mais relevantes nesse momento. Experiências pessoais com racismo são situações em que a pessoa diretamente sofre discriminação racial. Experiências vicárias, por outro lado, são experiências indiretas ou 'de segunda mão'; são experimentadas por outra pessoa que é objeto direto de racismo. Mesmo que Essed na sua pesquisa analise as experiências de mulheres negras – quem pessoalmente e vicariamente passam por experiências com racismo –, sugiro que o conceito de racismo vicário também pode ser aplicado para o contexto no qual mulheres brancas indiretamente experimentam racismo ou testemunham racismo numa situação na qual outra pessoa é objeto de racismo. Muitas vezes, privilégio racial é um sub-produto direto de uma experiência vicária de racismo; assim, mulheres brancas experimentam privilégio racial numa mesma situação em que uma pessoa negra pessoalmente experimenta discriminação racial. (Essed, 1989:43), ou seja, experiências com racismo que são 'de segunda mão' ou indiretas. Nesses relatos, não somente estavam conscientes dos 'efeitos materiais e discursivos' do racismo atuantes em suas vidas individuais, mas também tinham consciência do bônus racial que sua posição lhes trazia; conseguiram diferenciar suas experiências de favorecimento das experiências de desfavorecimento vividas por mulheres negras jovens e, embora de modo mais hesitante e parcial, conseguiram (tentar) 'imaginar' como sua vida poderia ter sido se sua identidade racial atribuída tivesse sido negra. Assim, sua consciência racial vai além de uma notificação 'simples' de 'como elas são nomeadas racialmente por outras pessoas'.

Seguindo Essed (1989), as entrevistadas demonstraram um quadro teórico, ideológico e pessoal de consciência de racismo e da sua posição subsequente nestas relações raciais que, por sua vez, funcionava como ponto de referência. Diferente do que eu esperava, a relação entre suas experiências com racismo e o processo anterior de identificação era problemática e, como sustento adiante, relacionada aos seus sentimentos sobre sua posição social, sua auto-identidade e sua ideologia e práxis ativista.

O depoimento de Flávia – 25 anos, família de classe média e diploma universitário – ilustra esse ponto. É militante do movimento feminista e bem articulada. Pelas normas brasileiras, normas entre aspas, disse Flávia, eu sou branca. Porém, mesmo que sua mãe a chame de branquela, outros a chamam de morena. Entretanto, mesmo tendo cabelo castanho, Flávia é estruturalmente descrita como branca pelas outras ativistas no movimento. Recordando uma blitz policial, Flávia comenta sua experiência vicária com racismo e, subsequentemente, sua experiência pessoal com privilégio racial; seus amigos negros são revistados, uma arma na cabeça; ela desafia os policiais a abrirem a bolsa dela também, mas sem resultado. Apesar desse ato provocativo, não põe seu ativismo em prática a partir dessa consciência racial. Por que, então, na sua fala, coloca entre aspas a palavra 'branca' para referir a si mesma?10 10 Deveríamos considerar também a possibilidade de sua identificação como 'não-branquela' ser uma tentativa de distanciar-se de mim ou talvez da mãe dela, referindo-se a nós duas como branquelas típicas: louras de olho azul.

Em seguida, ela se refere a um discurso diferente, pautado na identificação como não-branquela: homem, machista, quando vai chavecar é "ô moreninha, não sei o quê". Levando em conta o contexto da entrevista, e sem perder de vista a realidade de sua experiência, a análise de Flávia poderia ser interpretada como uma estratégia discursiva de evitação via deslocamento, primeiro, de uma atribuição branca explícita para uma identidade menos-branca e, segundo, de uma identidade racialmente privilegiada para um lugar de vítima que sofre discriminação de gênero (e também sexual). A constituição de sua identidade racial é negociada interseccionalmente no domínio da sexualidade e gênero e somente pode ser contextualizada levando em conta sua (a consciência de sua) identidade racial.

3.2 Posicionamento ideológico

A identidade e a posição racial das mulheres no ativismo são negociadas interseccionalmente pela reflexão ideológica. Como será descrito mais tarde, ambas nem sempre são compatíveis. Antes de caminharmos adiante nesta análise, abro um parêntese para ilustrar o quadro de referência (Essed, 1989) das ativistas, ou seja, seu potencial reflexivo e sua capacidade de situar seu self interseccional em contexto(s) de relações de poder. Disso segue que seu quadro ideológico de relações de poder parte de uma abordagem contraditória que complexifica sua práxis ativista. Ilustrarei com o exemplo da Juliana.

Juliana, 24 anos, cresceu numa cidade pequena do Estado de São Paulo, é pós-graduanda e trabalha na área de comunicação.

Orkut, conhece? (...) tem lá um campo que você põe raça. Foi o campo que eu mais demorei [pra preencher] porque se eu for me definir eu sou branca..., mas me incomoda me definir como branca.

Ela é identificada como branca, isso a incomoda e ainda lembra experiências com racismo vividas na infância. Contudo, para Juliana é muito difícil compatibilizar essa identidade com sua ideologia ativista:

você sendo branco, você é o ser opressor do racismo. (...) É como o ser homem na questão da mulher. Quanto mais feminista que ele seja, ele é homem, ele carrega o poder fálico e todo o estigma de ser homem. Como instituição, o homem representa o opressor e a mulher o oprimido. Na questão racial a mesma coisa. Branco representa o opressor e o negro o oprimido.

Na sua construção ideológica, as ativistas distinguem entre o opressor e o oprimido, entre o sistema opressivo e os que o habitam, de um lado, e as suas vítimas, de outro. Sua ideologia ativista é dirigida contra esse sistema, facilitando seu ativismo situado sob a perspectiva de quem se situa no lado dos marginalizados. Conforme essa lógica, como mulheres (e lésbicas e, em certa medida, como mulheres brancas em solidariedade com o movimento negro) estão excluídas do lado opressor nesse sistema; elas lutam contra, inter alia, o sistema machista e/ou homens que representam o opressor. Considerando sua posição racial, no entanto, elas estão incluídas no sistema e se beneficiam da subsequente desigualdade social que esse sistema implica; se não oprimem individualmente, representam potencialmente, como exemplificou Juliana, o mesmo 'opressor'. Isso cria uma tensão interseccional entre sua posição de acordo com o eixo de gênero (e sexualidade) e de acordo com o eixo racial: estão situadas dentro e fora do sistema ao qual, pelo menos ideológica e discursivamente, se opõem (Huijg, 2011).

Como todas as entrevistadas, Juliana é

super contra o racismo. Talvez porque eu sou mulher e eu sei como é ser vítima em algumas situações eu acabo transpondo isso pras outras situações também: "eu sofro isso por ser mulher e ele sofre isso por ser negro".

Através da comparação de formas diferentes de desigualdade social, Juliana conecta implicações estruturalmente desvantajosas de sua própria posição de gênero com a de negros a partir desse outro eixo (racial). Como vimos no caso de Flávia, em contextos marcados por uma multiplicidade de eixos, Juliana se desloca de raça para gênero a fim de se movimentar, no campo das relações de poder, de uma posição de vantagem em direção a uma posição familiar, confortável e segura de desvantagem.

Apesar de sua consciência já mencionada do poder fálico e do ser opressor do racismo, ela não transpõe essa preocupação ideológica para olhar para seu lugar identitário privilegiado no eixo de raça. Por conseguinte, nessa lógica ideológica, a sua oposição ao sistema – o qual Juliana, nas suas palavras, habita como opressora, não se materializa no que concerne ao racismo: eu me envolvo mais em outras questões, a questão racial eu acompanho pouco, mas o pouco que eu acompanho, eu admiro assim [Juliana]. A entrevistada se opõe fortemente ao racismo e sua convicção ideológica é acompanhada de sentimentos de admiração por aqueles que lutam contra a desigualdade racial – uma declaração na linha de "Eu sou anti-racista" (Ahmed, 2004). Embora isso vá ao encontro do seu próprio ativismo, que remete à melhoria de sua posição marginalizada nas áreas de gênero e sexualidade, no que diz respeito a raça ela não age a partir de seu compromisso ideológico; seu anti-racismo não é performativo (id.ib.). A partir de uma perspectiva interseccional, a manifestação de sua agência como ativista demonstra uma relação tensa no que tange ao seu objetivo de transformação social. Assim, sua ideologia se manifesta através de uma ação (por meio da luta feminista dirigida ao ônus) e de uma omissão (que, no eixo racial, é dirigida ao bônus). Do ponto de vista interseccional, há uma discrepância entre os "sistemas de ideias", seus "princípios éticos, morais e normativos", e a "ação pessoal e coletiva" que deveria ser orientada por tais ideias e princípios (Oliver & Johnston, 2000:44).

3.3 Sentimentos e reflexões incômodas

Para Juliana, concatenar sua práxis ativista ao seu discurso ideológico, de acordo com suas "ideias" e seus "princípios éticos, morais e normativos", seria negar sua individualidade e o investimento e interesses emocionais que complexificam o processo de formação da sua identidade racial e, por sua vez, a materialização em práxis ativista. Mesmo que a omissão ideologicamente oriente também a ação ativista, isso não significa que não haja ação. Essa ação, porém, pode ser encontrada principalmente no mundo interior do indivíduo. Mesmo não atuando de modo opressivo ou discriminatório11 11 Nas entrevistas, várias meninas lembraram situações no ativismo em que companheiras brancas se expressaram explicitamente racistas. , conscientizar-se sobre 'o que significa ser branca' e sobre seu pertencimento a uma categoria historicamente opressora gera sentimentos desagradáveis: me incomoda me definir como branca, tem toda a carga que carrega você sendo branco. Você sendo branco você é o ser opressor do racismo [Juliana]. Essa carga, ou até culpa histórica – porque a raça branca oprime as outras mesmo, dizimou os índios, escravizou os negros [Paula] – cria vergonha;

não só por ser branca, mas eu tenho vergonha dessa... dessa inconsciência, de alguma maneira também fazer parte dessa... dessa população que oprime, desse povo que... que dita regras... [Júlia].

Mirian (25 anos, ativista feminista, auto-identificada como branca), que participou do movimento negro quando namorou um ativista negro, também reflete sobre esse lugar de privilégio:

como que eu posso negar a minha posição de privilégio [racial]? Eu acho que assumir a posição de privilégio, ela é importante pra você se repensar "como que eu posso romper essa minha posição?".

Entretanto, ela dá um passo adiante: não somente inclui suas experiências com racismo e sua identidade racial em seu quadro ideológico, mas, assumindo sua posição de privilégio, também as conecta às mudanças social e individual na esfera da prática cotidiana, rompendo com sua posição. De acordo com Mirian:

é lógico que pra mim é importante, porque a partir do momento que eu tô num espaço de articulação do movimento negro e assumo que eu sou branca, tipo eu sou opressora, saca? Não que eu sou opressora ali naquele momento que eu tive uma atitude racista, eu sou uma coisa simbólica. [Porém, ser a coisa simbólica não é tão simples] me identificar como branca, pra mim é 'foda'. Não é que... Sabe quando você quer negar um negócio?.

Se fosse entender o ativismo a partir de um olhar sobre as relações raciais, as mulheres se encontrariam em lugar de privilégio. Sendo brancas, se fossem lutar contra esse sistema opressivo, elas mesmas seriam objeto da sua própria luta. Ainda que Mirian assuma essa complexidade, ela deseja o deslocamento pela via da negação, pois se homens não podem ser feministas, no máximo machistas esclarecidos, brancos não podem ser anti-racistas; no máximo, seriam racistas esclarecidos. Isso provoca impacto na sua reflexão emocional, a qual, abordada em sua dimensão complexa e múltipla, contribui para uma interpretação que revela o aspecto conflituoso de sua posição ativista. Sua ideologia contra, e, portanto, a ativista e o ativismo contra, não oferece um caminho para que se engaje na luta anti-racista. Não provê "princípios éticos, morais e normativos que guiam a ação pessoal e coletiva" (Oliver & Johnston, 2000:44) para uma posição contra o racismo no sistema opressor, na qual a ativista branca age a partir de sua posição identitária como branca.

4. Você acha que eu sou branca? A complexidade da apropriação de uma identidade racial

Desde criança, sempre me apercebi branca. Pela cor do cabelo, pelo tom da pele, pelos traços do rosto, pela... pela pele, pelo corpo [Severina]. A auto-identificação racial de Severina corresponde ao modo como é identificada por terceiros. Com a mesma clareza, Júlia também se identifica racialmente: ah, eu sempre fui branca... Eu sou branca. É isso, a minha realidade. Eu sou branca, né!. No entanto, a relação entre identidade atribuída e identidade apropriada como branca não é auto-evidente.

No movimento negro brasileiro, a apropriação racial é o ponto de partida e de pertencimento. Porém, não se trata apenas de uma questão de identidade. A afirmação "Eu Sou Negra Sim!"12 12 Na época em que participei no movimento de mulheres e no Fórum Social Mundial em Porto Alegre (2001-02), "Eu sou negra sim!" era um slogan que a ACMUN (Associação Cultural de Mulheres Negras) estampava nas suas camisetas. é um ato de empoderamento e de resistência contra o ideal de mestiçagem da democracia racial e da ideologia de branqueamento.13 13 Branqueamento representa, em primeira instância, um período na história do Brasil que visou tornar o país, ideológica e fisicamente, mais branco pela modificação da composição demográfica étnico-racial. Com esse objetivo em mente, houve uma política oficial de imigração branca pela qual, entre 1870 e 1920, milhões de alemães, poloneses, italianos e outros europeus migraram para o Brasil (Skidmore, 1998:21-40). Ao lado da imigração de europeus, o Brasil tinha de se tornar mais branco através da miscigenação. A população afro-brasileira era a ideia racista do darwinismo (social), reduziria (isso se não desaparecesse) através da chamada 'seleção natural'; após a abolição, a "raça branca forte iria sobreviver" e "a raça negra desapareceria" (Domingues, 2002). Além disso, o branqueamento refere-se a uma ideologia (incluindo estética e de aparência física) que idealiza o 'branco e euro-brasileiro'. Sobre a política de branqueamento, a abolição da escravatura, as políticas raciais e a ideologia do período 1870-1920, ver Skidmore, 1998; Azevedo, 1987; Schwarcz, 1993; Azevedo, 2001. Por último, conforme uma interpretação psicológica, o conceito de branqueamento pode ser interpretado como "um conjunto de normas, atitudes e valores brancos que a pessoa negra, e/ou seu grupo mais próximo, incorpora, visando atender a demanda concreta e simbólica de assemelhar-se a um modelo branco e, a partir dele, construir uma identidade racial positivada" (Piza, 2000:103). Diferenças de poder são inerentes às relações raciais. Dizer "Eu Sou Branca Sim!", causaria efeito contrário: negaria o acesso diferenciado ao poder e a recursos materiais e discursivos que negros e brancos têm.

Durante as entrevistas, muitas das mulheres moveram-se em direção das suas raízes mais ancestrais. Um olhar mais minucioso, porém, revela outros aspectos além do apenas 'saber de onde você vem', desempenhando um papel na argumentação em relação ao eixo genealógico da identidade racial. Esses aspectos são apresentados através de etnia, características biológicas, como sangue miscigenador, características faciais e outros atributos físicos reais e imaginários (cf. Byrne, 2006:3), relações pós-coloniais (e outros movimentos geopolíticos) e patrimônio cultural. Mesmo não necessariamente reivindicados como raciais, esses aspectos funcionam na dinâmica do racismo e da branquitude e, especificamente, na lógica do já mencionado branqueamento e do ideal mestiço de democracia racial. Nesse contexto, a afirmação "Eu não sou racial" ou "Eu não sou branca" também pode significar a negação de um acesso diferenciado ao poder material e discursivo. Neste trabalho, sugiro que não se identificar como branca, apesar de carregar essa identidade racial atribuída no mundo social, é um ato significativo e agentivo, tendo como resultado ou até como objetivo (indireto) um efeito de não-transformação através de evasão.

Para entender essa complexidade, apresento as narrativas de Sabrina e Dandara, ambas situadas nas fronteiras da branquitude. Sabrina, como ativista do movimento negro, não atua em um movimento organizado em torno de uma identidade social que lhe marginaliza. Dandara, por outro lado, se organiza com base em uma identidade marginalizada como ativista do movimento de mulheres.

Sabrina procura se incluir em uma identidade não-branca, mas não é reconhecida como tal. Dandara se identifica como negra. Essa identidade é afirmada por suas companheiras feministas, mas não lhe traz desvantagem racial; ela é concedida com base em sua identidade racial atribuída (branca ou clara) pelo resto da sociedade. Olhamos a questões de insiderness e outsiderness (Frankenberg, 1997:7) e em ambos os casos a identificação racial é heterogênea e, conceitualmente, repleta de tensões internas. Nos dois casos, a identidade é um meio de deslocamento no espectro ideológico, mas com razões e resultados diferentes.

4.1 Sabrina

Com 17 anos, Sabrina é a participante mais jovem da pesquisa. Mora com a avó, vem de uma família de classe média baixa, frequenta a escola e um cursinho pré-vestibular ao mesmo tempo, com a intenção de se candidatar a uma universidade pública no estado de São Paulo. Uma de suas professoras do cursinho apresentou-a a uma organização política da juventude negra, em que ela, atualmente, participa das reuniões. Ela relata vários confrontos no contexto racial que a apresentaram a um processo reflexivo sobre sua posição racial e seu ativismo, que tornou ainda mais complexa sua identificação racial.

Peço a Sabrina para me descrever sua família:

minha mãe é branca, (...) O meu pai é branco (...) tenho duas irmãs, uma é branca e a outra é negra (...) as minhas duas avós, as duas são brancas, por mais que a outra tenha descendência negra, mas ela é branca. A única diferença é o cabelo, porque ela tem o cabelo bem encaracolado. ( ) A única pessoa negra é meu padrasto.

Com exceção de sua irmã, filha do seu padrasto, ela identifica racialmente sua família (biológica) como branca. Na organização negra, Sabrina se identifica de outra forma:

eu me identifico como... uma mistura de raças. (...) eu acho que eu não posso falar que eu sou branca. (...) a cor da minha pele é branca, mas eu não me considero branca. (...) Por causa que eu não tenho raça (...) porque eu tenho o cabelo encaracolado, porque, sabe, eu tenho o nariz achatado, sabe, são essas diferenças.

Apesar de seu cabelo encaracolado identificado como negro, Sabrina identifica, paradoxalmente, sua avó como branca pela aparência. Com base nas suas características biológicas e na sua herança étnica, Sabrina deixa de se considerar como branca e coloca-se fora dos limites da branquitude; sua identidade apropriada é não-racial. Retomando, não se notar racialmente é, em si, uma característica da branquitude (Piza, 2000:108), pela qual sua branquitude pode funcionar como guarda silenciosa de privilégio racial (Bento, 2003a, 2003b). Contudo, assim como Sabrina identifica a família como branca, incluindo sua avó com seu cabelo encaracolado, ela se identifica coletivamente, de forma indireta, como branca.

Simultaneamente, ela se inscreve na identidade mestiça à qual Sovik se refere:

quando se atenta para a questão da branquitude [ela explica] desloca-se para a afirmação do caráter mestiço da população brasileira. Racismo só existe em sua relação com classe; a branquitude se dilui na mestiçagem.

Essa abordagem, que eu chamo de "genealogia biológica" – o traço da linhagem familiar através de características biológicas reais ou simbólicas – baseia-se na ideologia dominante brasileira de uma história compartilhada de escravidão, colonização e migração através da qual todos em algum ponto têm "sangue africano, europeu e indígena"14 14 A "abordagem sanguínea" também é utilizada pelas entrevistadas, veja, por exemplo, a fala de Juliana: Se a gente for analisar as relações, as relações de imigração que tem então, assim, pelo menos 98% das pessoas têm, pelo menos um pouquinho, dum sangue índio, negro e de todos os lugares [Juliana]. (Sovik, 2002:s/n).

Em primeira instância, a identificação racial de Sabrina poderia ser lida como um deslocamento ativista, na direção de se posicionar contra o racismo como integrante do movimento negro ou em solidariedade a ele. Mesmo que Sabrina se considere uma mistura de raças – "não tenho raça", a entrevistada também foi capaz de identificar essas diferenças em relação a sua "avó negra". Ela tem consciência de que não compartilha a mesma história dos jovens negros de sua organização. Ao se distanciar dos seus antepassados europeus, à procura de uma abordagem genealógica da mestiçagem e pela apropriação de uma identidade não-racial, ela se desloca de um lugar de branca e nega sua identidade atribuída.

Isso funciona como uma estratégia de ignorar sua posição social na branquitude e suas subsequentes vantagens raciais. Tal deslocamento não afeta a sua consciência racial: é mais provável que a sua consciência funcione como um estímulo para o deslocamento. Com a negação de sua identidade atribuída e de sua posição social racial, afastando-se do seu lugar designado nas relações raciais, torna-se também possível para Sabrina negar sentimentos preconceituosos com os quais foi criada por parte da família do pai e que, por conseguinte, tinha a respeito do seu padrasto:

a família do meu pai é toda preconceituosa. [...] E quando a minha mãe casou com negro, foi muito ... estranho, porque tive que conviver com negro. [...] tava tocando uma ferida né, tinha medo de negro [...] eu pensei mudar, porque não quero que a minha irmã passe por coisas que amigos meus passam, sabe, destas desigualdades.

Reconsiderando seus sentimentos intolerantes e refletindo sobre as experiências de sua meia-irmã por parte de mãe, que considera negra, ela volta para sua identidade não-negra. Sua história pessoal pode ser lida, então, a partir desse retorno a sua empatia interracial. Quando eu lhe pergunto como sua vida teria sido se tivesse crescido como mulher jovem negra, Sabrina se refere a essa história de colonização, escravidão e migração:

eu acho que é mais difícil, né, com relação ao preconceito, né. Acho que é mais difícil quando você tem que conviver com coisas que, assim, são... seus descendentes tiveram que passar, mas por que você ainda tem que carregar esse fardo? [Sabrina].

Ela não somente condena o preconceito racial, mas também a injustiça historicamente informada que a população negra, como sua irmã, "ainda tem que carregar". Também Sabrina é um produto dessa injustiça; essa carga histórica se materializou, na sua vida, em medo e preconceito racial.

Surpreendentemente, quando Sabrina reflete a partir de uma perspectiva mais emocional sobre a interação racial na organização negra da qual participa, observa que essa lógica histórica está fora de sintonia. Quando sente que representa, a partir de uma categoria racial, o mesmo grupo que os agentes do preconceito contra negros, ou seja, a partir do momento em que Sabrina se vê colocada na posição de descendente dos que fizeram os negros ainda "carregar esse fardo", reconhece o lugar que lhe é imputado, porém contesta a validade da mesma ligação histórica quando feita por pessoas negras. Em seguida, procura se afastar desse lugar da branquitude responsável por essa história:

assim, tem negros que dá pra conviver, mas tem negros, assim, igual quando eu fui na [organização negra], eles falavam: "Porque o branco, o branco, o branco." Só faltava eles me colocarem no meio e jogar pedras em mim.

Compartilhando seu ativismo anti-racista com negros "dá pra conviver", conquanto isso não coloque em conflito a sua posição e identidade racial ou lembre das suas próprias atitudes anteriores que considera como preconceituosas. Quando esse lugar confortável é desafiado, Sabrina toma um rumo ideológico, atribuindo aos brancos um lugar de vítima de imputação de racismo:

porque assim, [ela continua], a culpa não é da nossa geração de agora, a culpa é de muitos anos atrás. Então hoje você não pode culpar uma determinada raça. Porque você não pode falar: "Os brancos fizeram isso". (...) são os nossos descendentes [sic].

Dessa forma, ela não só absolve os brancos de responsabilidade enquanto categoria, mas também a si mesma da tomada de um posicionamento individual. A desigualdade racial, como Sabrina (agora claramente demonstrando sentimentos de pertencimento racial como branca) explicou antes, é historicamente informada e construída. Isso se altera quando ela mesma é situada como branca:

e então, a gente não pode se culpar hoje em dia. (...) É uma coisa que aconteceu e a gente deveria tentar mudar isso. Tentar fazer uma coisa de igualdade. A gente, vive todo mundo aqui. Todo mundo tem o mesmo sangue, todo mundo é igual.

Ainda que faça parte de uma organização da juventude negra, e mesmo que reconheça a presença da desigualdade racial como fruto de um processo histórico, Sabrina entende que a geração atual de pessoas brancas não faz parte do problema. Isso acarreta o risco de reforçar a perspectiva do racismo como um "problema do negro brasileiro" (Bento, 2003a:41), mantendo uma legitimidade ideológica diferenciada para ativistas negros e para brancos no que tange a uma reflexão comum em relação a um legado histórico que envolveu tanto negros como brancos, embora de modo desigual. Com base no reconhecimento de uma desigualdade, ela argumenta que a gente, ativistas negros e brancos juntos, deveria tentar ( ) fazer uma coisa de igualdade, ou seja, tentar lutar pela igualdade racial. No entanto, com base em sentimentos problemáticos com relação a essa culpa intergeracional e com o objetivo de não enfrentar as diferenças, ela volta à suposta homogeneidade sanguínea – mesmo que evocada a partir de uma ideia de pluralidade – e se desloca para fora de branquitude. Sua identificação claudicante do ponto de vista racial não é um ato afirmativo ou de empoderamento, mas funciona como estratégia de evasão.

4.2 Dandara

Dandara, a segunda mulher entrevistada, tem 28 anos, mora na periferia da cidade e vem de uma família de classe baixa concluiu um curso superior e é ativa no movimento das mulheres e na cena musical. Ela foi explícita sobre sua identificação como negra. Quando lhe pergunto sobre sua identidade racial atribuída, lembrando a complexidade da resposta que havia dado anteriormente e mencionada na Introdução deste artigo, ela responde branca. Isso me deixou confusa, então eu pergunto novamente "branca?", sim, ela confirma. E, brincando, diz: eu falo que eu sou a desbotada da família ( ) desbotada, sem cor. ( ) A cor saiu! [risos] Entendeu? Fiquei muito tempo dentro da barriga da minha mãe e aí fui desbotando. Ser a desbotada e, por conseguinte, identificada na sociedade como branca, se reflete em vantagens materiais. Seus amigos negros são parados pela polícia sem motivo, porém, isso nunca lhe aconteceu, nem a um de seus amigos brancos. Facilmente ela vai à boate, enquanto seus amigos negros,, repetidamente, são parados na porta. Em vários momentos da entrevista ela se inclui em um coletivo 'nós brancos', situando-se dentro das fronteiras da branquitude que, materializada, concede-lhe o privilégio racial.

Genealogicamente falando, Dandara pode ser identificada como mestiça e, como tal, caberia à supracitada identidade mestiça nacional (Sovik, 2002). O pai de Dandara, que faleceu muito jovem, era descendente de espanhóis e portugueses e sua mãe é afro-brasileira. Os parentes por parte de pai expressavam preconceito racial contra sua mãe e, por esse motivo, Dandara não cresceu com eles. Crescendo numa família negra, teve experiências familiares marcadas por discriminação racial. Se a identidade não é apenas entendida como uma construção individual, podemos então falar de um coletivo 'nós negros' com subsequentes experiências com o racismo. Uma de suas experiências de infância se destacou na sua narrativa:

quando minha mãe foi me buscar na escola e a tia que cuidava do portão, que entregava as crianças, olhou pra minha mãe, olhou pra mim: "Quem é?" E perguntou pra mim: "Quem é ela?" - "Minha mãe." Ela olhou estranho e foi perguntar pra diretora se podia me entregar, pra minha mãe. ( ) Foi aí, eu acho, a primeira... (...) Mas eu devia ser pequena, sete anos, devia ser no meu primeiro ano da escola. (...) não entendia, mas eu achava meio estranho, assim: "Por que? O que tem de mais?" Na minha cabeça, eu falava assim: "Por que ela não pode ser a minha mãe? Por que houve dúvidas nisso?!" (Dandara).

Num sentido prático e identitário, ela é vista como separada por outras pessoas da sua família: por causa da sua atribuição racial, ela "não pertence" à sua mãe e o reconhecimento (de identidade) é deficiente na área racial. Embora isso seja 'verdadeiro' sob uma perspectiva analítica, não faz sentido empiricamente. Se olharmos numa perspetiva coletiva, Dandara foi, como parte da sua família, pessoalmente objeto de racismo. Isso empurra sua identificação racial para as fronteiras da branquitude. No entanto, a partir de uma perspectiva individual em contexto familiar, Dandara tem experiências vicárias de racismo e experiências pessoais de privilégio racial. Isso a puxa de volta para a área da branquitude. Estas perspectivas apenas podem ser separadas analiticamente, mas ambas influenciam empiricamente a formação da sua identidade de forma diferente.

Agora, podemos ler o trecho da Introdução deste trabalho com uma outra compreensão:

que cor eu sou? Eu acho que eu sou todas. (...) Porque eu sou uma mistura. Não sei. Minha cor, para os olhos de algumas pessoas, ela é branca, mas as minhas atitudes são de uma jovem negra (Dandara).

Essa compreensão renovada se justifica ao alargarmos uma apropriação simplista e singular de sua identidade racial como branca em direção a uma perspectiva que inclua suas experiências coletivas e que seja capaz de englobar sua identidade apropriada e atribuída, ou seja, aquela identidade na qual a entrevistada experimenta racismo (vicário) como objeto e experimenta também privilégio racial. De acordo com a crítica de Wekker (1998:48) a respeito do suposto caráter da identidade como um jogo de exclusão ("ou-ou"), no qual alguém estaria situado exclusivamente em um eixo só de significação, Dandara pertence simultaneamente a posições diferentes no eixo racial. Além disso, sua narrativa mostra que experiências com racismo também não são exclusivas: considerando a presença coincidente do contexto individual com o contexto coletivo de identificação racial, suas experiências pessoais e vicárias de racismo resultam simultaneamente em discriminação racial tanto como em privilégio racial.

Entretanto, identidade, no sentido individual ou coletivo, não é apenas racial. Por sua vez, a apropriação racial das entrevistadas não pode ser compreendida sem contextualizar sua agência como ativista. Como ativista feminista, Dandara se identifica como negra e, a seguir, é identificada como negra por outros ativistas feministas (porém, em outros movimentos sociais isso se altera novamente no espectro racial). Embora isso possa ser rastreado nas suas experiências familiares, essa inclusão é razoavelmente recente:

antigamente as pessoas me perguntavam: "Ah, sua mãe é negra?" Eu falava assim: "Não, minha mãe é morena". (...) Tipo, já era uma defesa, né. Uma forma... "Não, não. Imagina! Minha mãe, ela não é negra. Ela é morena!" Não é. Ela é negra. Então, hoje, eu posso falar: "Minha mãe é negra...".

A identidade não oferece um quadro suficiente para dissecar essa complexidade, visto que esse processo deve ser conceituado no contexto da conscientização racial e da ideologia ativista.

Para se auto-identificar de forma diferente, Dandara teve que reformular o modo como percebe racialmente sua família. Marcada por uma vergonha racial, ela precisava recontextualizar sua história familiar. Esse não é só um exercício identitário: apenas olhar no espelho ou talvez trocar de lentes não alteraria sua visão. Sua visão racial era ideologicamente informada. Por isso, ela teve de superar o racismo internalizado como uma estratégia para se ver de outra forma nas relações raciais; "o trabalho anti-racista não só é um ato de compaixão pelo outro" (cf. Bento, 2003a:49). Assim, se poderia argumentar que o trabalho anti-racista também é um ato de compaixão com o self coletivo e, por conseguinte, individual: hoje eu me sinto feliz em dizer, né que... que eu venho de uma família negra (Dandara).

Afirmar sua identidade negra, de fato, é um ato de empoderamento. Ao dizer Minha Familia é Negra Sim, Dandara coletivamente resiste a essa vergonha racial internalizada e historicamente informada, e vicariamente protesta contra as experiências da sua família. Esses sentimentos sobre suas experiências individuais e coletivas pessoais e vicárias com racismo e identidade como negra, no entanto, não necessariamente lhe conduz a um guia ideológico de "princípios éticos, morais e normativos" (Oliver & Johnston, 2000:44) que leva em conta a complexidade da sua formação de identidade racial: falta reconhecer a um só tempo a interpretação apropriada e atribuída ou sua posição individual e coletiva social no contexto das relações raciais. Tendo em mente uma terceira identificação, capaz de conciliar as diferentes facetas de seu processo de atribuição de identidade e de posicioná-la no campo do ativismo contra o racismo, pergunto-lhe sobre o papel de brancos em eventos de racismo ou de privilégio branco:

eu acho que os negros, acho que tem que falar por si. ( ) Porque quem sente a dor sabe a melhor forma de lidar com a situação. Entendeu? (Dandara).

Ao retomarmos a lógica contraditória no ativismo das entrevistadas, percebemos que as ativistas opõem-se ao sistema opressor, situando-se do lado de fora desse sistema e, portanto, a partir do lugar de oprimida. Seguindo a mesma lógica, opressores (potenciais) habitam esse sistema opressor e as ativistas se opõem a eles (opressores potenciais). Por se oporem ao sistema e, consequentemente, por estarem fora do sistema, elas não o habitam, e tampouco poderiam habitá-lo. Essa lógica verifica-se quando pensamos no contexto ativista de gênero e feminista, como também (em outras narrativas) na atuação de lésbicas no contexto do movimento envolvendo a sexualidade. Quando transpomos a mesma lógica ativista para um contexto que envolve questões raciais, as mulheres jovens, se desejassem se opor ao sistema opressor, necessariamente teriam de fazer oposição a si mesmas como habitantes desse sistema. Essa é a lógica que informa como Dandara guia seu ativismo:

se não tiver alguém pra defender, ela continua, um branco pode estar ao lado. Mas quem tem que falar, a fala é do negro. Eu acho que tem que ser dessa forma sim. É uma luta. A luta é dos negros e a gente [quando Dandara – deixando se identificar como negra – se exclui do lado racial do oprimido], somente tem que estar dando um apoio, estar ao lado, a gente não tem que... não tem que fazer por eles. Eles podem fazer por eles.

Ao grupo racialmente misto, na cena musical, Dandara ativamente traz jovens negros: dando um apoio, contribuindo ao seu empoderamento para eles fazer[em a luta] por eles. Mesmo que antes, em nível individual, ela tenha se apropriado de um identidade negra, afasta-se agora desse mesmo lugar; não é ela que, a partir de sua "nova" ou "outra" identidade racial, deve abordar questões raciais na luta. Pergunto-lhe se ela também aborda o racismo em grupos que são predominantemente brancos: antes era mais, agora é menos, responde. Agora [esses grupos] estão muito mais voltados à questão com os jovens, das mulheres, da discriminação e das relações de gênero. E mesmo que, em nível coletivo, Dandara tenha compartilhado experiências com racismo que atingiram o seu processo de identificação familiar racial, ela não inclui 'a causa racial' como uma questão sua: eu estou defendendo uma causa que é das mulheres, voltando à identidade marginalizada.

Dandara se move para frente e para trás entre sua identidade negra e branca, não sendo capaz de negociar essas duas identidades em sua vida (privada), nem em sua perspectiva ideológica sobre ativismo. Nem o seu "conjunto de crenças" (Snow & Benford, 2000:613n2) nem suas experiências de vida oferecem uma "solução" que responde a essa complexidade, mesmo que Dandara se identifique como negra e também seja identificada como negra "em retorno" no seu ativismo feminista. No seu outro ativismo, ela se desloca para o lugar branco e, conforme suas convicções ideológicas sobre cuja voz deveria ser ouvida, ela situa sua voz no domínio branco e, consequentemente, apoia que a juventude negra seja aquela a ser ouvida: não sendo uma deles, tampouco fala por eles.

Embora ela se proponha a orientar suas ações conforme suas ideias, não há espaço em sua ideologia ativista e práxis para a complexidade que a negociação entre sua identidade racial coletiva e individual, e subsequentes experiências com racismo e privilégio racial exige; ela não encontra, ou pode até não procurar, ferramentas ideológicas ou práticas para materializar e teorizar em seu ativismo a identidade racial complexa e múltipla que marca sua vida. No entanto, para além de suas razões e objetivos, isso exige uma resposta para a pergunta de como ela poderia dialogar e construir uma ideologia e práxis ativista contra o racismo a partir do lugar de sua identidade racial ambígua ou múltipla, levando em conta sua identidade individual e coletiva e suas experiências com o racismo, bem como suas experiências com privilégio racial.

5. Considerações finais

Neste artigo, procurei explorar a complexidade do processo de formação da identidade racial de mulheres, jovens ativistas (não)brancas da Grande São Paulo. Com base em suas narrativas, concentrei-me em branquitude e ideologia como conceitos que desempenham um papel no processo de identificação racial. Discuti como o processo de apropriação racial, em diálogo com sua identidade atribuída e posição social racial, não pode ser entendido sem vislumbrarmos a relação mutuamente constituinte entre ideologia ativista e práxis. Os relatos aqui apresentados demonstraram, como estratégia para lidar com essa relação, entre ideologia e práxis, um deslocamento da identidade racial em resposta à ideologia ativista (interseccional) e aos sentimentos das entrevistadas quando nos reportamos a um contexto que envolve mais diretamente questões raciais.

As entrevistadas compartilham uma identidade atribuída branca e experiências com racismo e privilégio racial. Mas nem todas se vêem, apenas, como branca. Sentimentos negativos a respeito dessa posição, que implica vantagens, fornecem uma atitude ambígua em relação à sua própria identidade racial. Os relatos de Sabrina e Dandara, trabalhados em detalhes, demonstraram que a tensão entre identidade racial atribuída e apropriada resulta num aparente conflito. Dandara é identificada por outros como branca e se auto-identifica como negra; Sabrina, por sua vez, se identifica como negra, como sua avó, a quem Sabrina identifica como branca. Em sua família, Dandara experimentou racismo em modo vicário e privilégio racial pessoal. Sabrina, por outro lado, internalizou sentimentos racistas com os quais teve contato por parte da família de seu pai, com os quais tinha que lidar para superar seu medo e preconceito racial no momento em que sua mãe se casou com um homem negro. Demonstrando discordância ideológica, Sabrina engajou-se como ativista numa organização negra para lutar contra a desigualdade que sua meia-irmã negra irá enfrentar, mas pensa que ela mesma não deve ser encarada categoricamente como branca. Dandara é, predominantemente, uma ativista do movimento feminista, mas pouco aborda questões raciais. Embora incompatível com sua identidade negra, essa postura é compatível com sua ideologia de práxis ativista (negros podem falar por eles) no âmbito de sua identidade branca.

As experiências de Dandara, Sabrina e outras mulheres provocam tensão. Há alguns pontos, que não esgotam todo o debate, mas que gostaria de enfatizar. Em primeiro lugar, identidade racial não é singular, não é estática, nem, necessariamente, coerente. Argumentei que a identidade atribuída deve ser diferenciada da identidade apropriada. Como um indivíduo vê a si próprio racialmente não necessariamente corresponde a como é racialmente identificado por outros. Por outro lado, a identidade racial não pode ser desligada de sua posição estrutural, ou categórica, nas relações raciais. A posição nas relações raciais depende da maneira de como se é racialmente identificada e, consequentemente, tratada por outros, mas, ao mesmo tempo, uma posição estrutural nas relações raciais depende muito menos da apropriação de uma identidade racial.

Em segundo lugar, argumentei contra a separação de experiências coletivas e experiências individuais e, consequentemente, de uma identidade coletiva e de uma identidade individual. Os relatos de Sabrina e Dandara mostram que, a família como um ambiente coletivo complexifica o processo de identificação racial e não pode ser desligada de experiências individuais. A família aparece aqui como um campo (de batalha) multi-racial de história real e simbólica (até imaginária) e, como tal, serve como base para um deslocamento que obedece a razões e objetivos múltiplos.

Em terceiro lugar, o processo de identificação de apropriação racial influencia e é influenciado por posicionamentos ideológicos, ou seja, pelos "sistemas de ideias que congregam entendimentos de como o mundo funciona com princípios éticos, morais e normativos que orientam a ação pessoal e coletiva" (Oliver & Johnston, 2000:44). Essa interação é influenciada por sentimentos, envolvimento e reflexões de caráter emocional das entrevistadas.

Ainda, a norma ativista de auto-identificação racial desvia o significado real e discursivo de privilégios estruturais que a desigualdade racial concede com base em uma identidade racial atribuída. A lógica contraditória que as entrevistadas mostraram em sua ideologia e práxis ativista é problemática em relação ao seu posicionamento identitário e social nas relações raciais. Por fim, o deslocamento de uma identidade racial aparece como uma das estratégias para responder a essas incongruências.

Como apontaram Omi e Winant (2002:123), conflitos sociais e luta política marcam gênero e raça. Levando em consideração que as entrevistadas são ativistas com a proposta de mudar o mundo e, portanto, agir contra a desigualdade social, tanto apropriaçao racial quanto deslocamento devem ser considerados como processos agentivos. Não obstante, os "princípios éticos, morais e normativos" que, constituindo sua ideologia (para retomar, os "sistemas de ideias que congregam entendimentos de como o mundo funciona"), deveriam "orientar sua ação pessoal e coletiva" (cf. Oliver & Johnston, 2000:44). Porém, como mostro neste artigo, não orientam sua agência ativista conforme essa proposta. Assim, o anti-racismo na sua ideologia pode resultar não-performativo (Ahmed, 2004).

A identificação das entrevistadas com a posição marginalizada – seja no eixo de gênero, de sexualidade, ou outro – estimula o deslocamento no eixo racial em direção a uma identidade não-branca que possa excluir-se do lado opressor. Consequentemente, sua "ideologia marginalizada" não somente é não-performativa: por seu caráter contra ela impede a possibilidade de que as ativistas incluam na sua práxis o fato de estarem em posição privilegiada. Por meio desse caráter contra do seu ativismo, entende-se o sistema opressor como antagônico em relação ao oprimido, num jogo em que lado opressor e lado oprimido se excluem mutuamente. Ao considerarmos a identidade e a ideologia das entrevistadas tal como surgem em seus relatos, se levássemos sua lógica adiante perceberíamos que as mesmas estariam em relação de justaposição com o sistema opressor e, dessa maneira, com aqueles que habitam o lado opressor. Assim, para manter a lógica pela qual funciona sua ideologia e de manter-se, simultaneamente, confortáveis com sua posição racial, as entrevistadas deslocam-se para fora da branquitude, de modo a distanciar-se de uma identificação com o ser opressor. Delimitando essa posição opressora aos homens que são machistas, no máximo esclarecidos (ou aos heterossexuais, homofóbicos, no máximo esclarecidos), também direcionam ideologicamente essa posição aos brancos, que são racistas, no máximo esclarecidos. Por conseguinte, no sistema do racismo excluem-se como habitantes do lado que se quer combater, o que facilita sua práxis ativista a partir de uma posição marginalizada.

Contudo, isso leva a uma impressão enganosa: o ativismo e a ideologia que se constróem com base no lutar contra, nos quais se atua contra um inimigo opressor exterior ao próprio ativismo e à posição e identidade social, se baseiam em uma falsa oposição. Tal característica de lutar contra facilita um reconhecimento da importância da luta anti-racista, na qual é possível aliar-se ao movimento negro contra esse mal, porém impede que essa luta se materialize a partir dessa posição racial. Dessa forma, está ausente a construção do ativismo das entrevistadas a partir do lugar de branca, impedindo também o reconhecimento das vantagens dessa posição racial. Parece que a identidade racial e, subsequentemente, seu posicionamento a partir dela, impedem uma posição racial própria e situada dessas ativistas brancas nessa luta. Como mulheres, elas talvez lutem contra um mal, mas como brancas elas 'são' esse mal: tornaram-se a sua própria oposição.

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  • *
    Recebido para publicação em fevereiro de 2011, aceito em março de 2011. Este artigo baseia-se nos
    papers "The diversity of white identity. An analysis of the identity of (non)white, young, female activists in São Paulo, Brazil", apresentado
    na International LOVA conference Ethnographies of Gender and Globalization (Amsterdam, 2008) e "Contra Quem? A conflituosa posição das militantes jovens brancas na luta transformadora", apresentado no
    VII Seminário Fazendo Gênero (Florianópolis, 2006). As questões aqui apresentadas também estão sendo exploradas no âmbito de minha pesquisa de doutorado, na Universidade de Manchester, sobre feminismo jovem e agência ativista a partir de uma perspectiva interseccional.
  • 1
    Neste texto, utilizo as seguintes convenções: o formato itálico é utilizado para diferenciar falas de entrevistadas e categorias êmicas; o formato de aspas duplas é utilizado para indicar conceitos ou citações diretas de autores; e o formato de aspas simples é utilizado para enfatizar determinadas ideias. Agradeço a Astrid Runs, Adriano Ropero, Isadora Lins França e Tatiana Groff pela sua ajuda na revisão e na tradução. Agradeço também a leitura e o estímulo por parte das organizadoras do dossiê.
  • 2
    Todos os nomes são fictícios para manter o anonimato das entrevistadas.
  • 3
    Não é de surpreender que especialmente as mulheres de família de classe trabalhadora – como Sabrina, Paula, Dandara e Sofia – discutam classe, como categoria não-identitária, em suas análises. Isso não se deu da mesma maneira para aquelas com um
    background de classe média e média alta - como Juliana, Andrea, Severina e Júlia. Para nenhuma delas, porém, a classe social foi uma prioridade em seu ativismo atual. Classe, entretanto, não era uma categoria analítica central para esta pesquisa. Assim, por motivos metodológicos, a participação ativista em movimentos identitários foi o critério de seleção utilizado para compor o conjunto de entrevistadas, mais que um pertencimento em termos de classe social.
  • 4
    As traduções das citações para o português são da autora.
  • 5
    Para uma descrição geral de (re)leitura crítica de raça e branquitude de Freyre, Nogueira, Guerreiro Ramos, Fernandes, Ianni, F.H. Cardoso; e para temas como a ideologia de branqueamento, o mito da democracia racial, e políticas de ação afirmativa, ver Piza (2000), Bento (2002, 2003a), Sovik (2002, 2007), Oliveira (2007) e Cardoso (2008).
  • 6
    Agência é associada com comportamento proposital e/ou intencional, com reflexividade, consciência e, especificamente em pesquisa sobre ativismo, com empoderamento, progresso e transformação. Esses entendimentos, muito diferentes, estão de acordo com o caráter e o objetivo transformador social do ativismo feminista. Contesto, aqui, a fusão entre agência e ação (Alexander, 1992b, 1992a; Campbell, 2009), e argumento que agência pode se manifestar em ação tanto como em ausência de ação (ou inação) e, considerando o caráter interseccional da agência ativista feminista, sugiro que talvez não-transformação não seja um objetivo ideológico, mas pode ser um resultado ou mesmo uma finalidade indireta do ativismo feminista (Huijg, 2011).
  • 7
    Na teoria de ideologia podem-se distinguir duas linhas de pensamento. Partindo de uma compreensão de ideologia 'neutra', sociológica ou não-pejorativa, há certo acordo de que ideologia consiste de ideias, crenças, valores e normas; é baseada no mundo material e envolve processos de significação e representação, bem como a legitimação do poder (processos), conflito, oposição e/ou dominação; por último, ideologia se ocupa da descrição, interpretação, contestação e justificação da ordem social e política (Eagleton, 1991:1-31; Zald, 1996:262; Gohn, 1997:129; Johnston & Oliver, 2000:63; Franco, 2004:3; Dijk, 2006:116; Gillan, 2008:248). Uma alternativa para a abordagem não-pejorativa seria um entendimento pejorativo, marxista ou epistemológico da ideologia – como ilusão ou distorção; ideologia no sentido pejorativo discute ideias como 'verdadeiras' ou representações 'falsas' da 'realidade' (experiências e conhecimentos); 'falsa' e 'consciência oposicional' e,
    inter alia, hegemônicas e ideologias contras (Jameson, 1978; Cheal, 1979; Kennedy, 1979; Hall, 1985; Barrett, 1991; Dant, 1991; Eagleton, 1991; Hennessy, 1993; Gohn, 1997; Xavier, 2002; Heywood, 2003; Franco, 2004; Borba, 2005).
  • 8
    A lista para denominar brancos é longa, por exemplo, 'branca-pálida', 'branca-queimada', 'russa', 'rosa' or 'morena-clara' (Turra & Venturi, 1995:33-34). Termos que não encontrei, porém já ouvi pessoalmente, são: 'Alemoa' e 'Xuxa'.
  • 9
    Essed (1989:43) distingue quatro tipos de experiências com racismo, dos quais "experiências pessoais" e "experiências vicárias" são os mais relevantes nesse momento. Experiências pessoais com racismo são situações em que a pessoa diretamente sofre discriminação racial. Experiências vicárias, por outro lado, são experiências indiretas ou 'de segunda mão'; são experimentadas por outra pessoa que é objeto direto de racismo. Mesmo que Essed na sua pesquisa analise as experiências de mulheres negras – quem pessoalmente e vicariamente passam por experiências com racismo –, sugiro que o conceito de
    racismo vicário também pode ser aplicado para o contexto no qual mulheres brancas indiretamente experimentam racismo ou testemunham racismo numa situação na qual outra pessoa é objeto de racismo. Muitas vezes, privilégio racial é um sub-produto direto de uma experiência vicária de racismo; assim, mulheres brancas experimentam privilégio racial numa mesma situação em que uma pessoa negra pessoalmente experimenta discriminação racial.
  • 10
    Deveríamos considerar também a possibilidade de sua identificação como 'não-branquela' ser uma tentativa de distanciar-se de mim ou talvez da mãe dela, referindo-se a nós duas como branquelas típicas: louras de olho azul.
  • 11
    Nas entrevistas, várias meninas lembraram situações no ativismo em que companheiras brancas se expressaram explicitamente racistas.
  • 12
    Na época em que participei no movimento de mulheres e no Fórum Social Mundial em Porto Alegre (2001-02), "Eu sou negra sim!" era um
    slogan que a ACMUN (Associação Cultural de Mulheres Negras) estampava nas suas camisetas.
  • 13
    Branqueamento representa, em primeira instância, um período na história do Brasil que visou tornar o país, ideológica e fisicamente, mais branco pela modificação da composição demográfica étnico-racial. Com esse objetivo em mente, houve uma política oficial de imigração branca pela qual, entre 1870 e 1920, milhões de alemães, poloneses, italianos e outros europeus migraram para o Brasil (Skidmore, 1998:21-40). Ao lado da imigração de europeus, o Brasil tinha de se tornar mais branco através da miscigenação. A população afro-brasileira era a ideia racista do darwinismo (social), reduziria (isso se não desaparecesse) através da chamada 'seleção natural'; após a abolição, a "raça branca forte iria sobreviver" e "a raça negra desapareceria" (Domingues, 2002). Além disso, o branqueamento refere-se a uma ideologia (incluindo estética e de aparência física) que idealiza o 'branco e euro-brasileiro'. Sobre a política de branqueamento, a abolição da escravatura, as políticas raciais e a ideologia do período 1870-1920, ver Skidmore, 1998; Azevedo, 1987; Schwarcz, 1993; Azevedo, 2001. Por último, conforme uma interpretação psicológica, o conceito de branqueamento pode ser interpretado como "um conjunto de normas, atitudes e valores brancos que a pessoa negra, e/ou seu grupo mais próximo, incorpora, visando atender a demanda concreta e simbólica de assemelhar-se a um modelo branco e, a partir dele, construir uma identidade racial positivada" (Piza, 2000:103).
  • 14
    A "abordagem sanguínea" também é utilizada pelas entrevistadas, veja, por exemplo, a fala de Juliana:
    Se a gente for analisar as relações, as relações de imigração que tem então, assim, pelo menos 98% das pessoas têm, pelo menos um pouquinho, dum sangue índio, negro e de todos os lugares [Juliana].
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Maio 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 2011
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