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Cultura cinematográfica e identidades queer no Brasil contemporâneo* * Agradeço a Karla Bessa, Gilberto Alexandre Sobrinho e os leitores anônimos dos cadernos pagu pelo seu input na redação deste artigo. Traduções do inglês são minhas.

Film Culture and Queer Identities in Contemporary Brazil

Resumo

Este artigo procura analisar a interação entre a cultura cinematográfica brasileira, as comunidades LGBTQIA+ e a sociedade em geral no começo do século XXI, uma interação (e produção cinematográfica) que aumentou exponencialmente durante o período destacado, em grande parte como resultado do alcance aos meios de produção de grupos historicamente segregados, juntamente com maior acesso ao financiamento de filmes. Após contextualizar a produção de filmes queer e a exibição dos mesmos no século 21 no Brasil, o artigo analisará os seguintes filmes lançados nos últimos seis anos: Praia do Futuro (Karim Ainouz, 2014), Mãe só há uma (Anna Muylaert, 2016) e Bixa Travesty (Kiko Goifman e Claudia Priscilla, 2018).

Cultura Cinematográfica; Queer; LGBTQIA; Gênero; Século XXI

Abstract

This article seeks to reflect upon the interaction between film culture and both the LGBTQIA+ communities and society at large in the twenty-first century, an interaction (and film production) that has increased exponentially during the period under examination, in large measure as a result of the diversity agenda, along with broader access to film funding. After providing a context to queer filmmaking in Brazil and to exhibition in the 21st century, the article analyses three key films from the last 6 years: Praia do Futuro (Future Beach, Karim Ainouz, 2014), Mãe só há uma (Don’t Call Me Son, Anna Muylaert, 2016) and Bixa Travesty (Tranny Fag, Kiko Goifman and Claudia Priscilla, 2018).

Film Culture; Queer, LGBTQIA; Gender; 21st Century

Em 2004, o governo federal iniciou um programa ambicioso para combater a homofobia (Brasil Sem Homofobia), em um claro sinal de que o recém-eleito governo liderado pelo Partido dos Trabalhadores pretendia abraçar a agenda da diversidade e, em particular, a promoção dos direitos de indivíduos e grupos antes marginalizados, com uma gama de iniciativas planejadas, tais como programas educativos, casamento civil, e apoio direcionado a membros da comunidade trans. Nisso, o PT estava expandindo medidas muito cautelosas de governos anteriores (no período pós-redemocratização), e respondendo a importantes mudanças institucionais, como o fato de o Conselho Federal de Medicina ter deixado de interpretar a homossexualidade como um desvio ou doença em 1985, nove anos antes de uma declaração semelhante pela Organização Mundial de Saúde. Mas acima de tudo, o programa de 2004 foi uma reação a uma série de estatísticas aterrorizantes sobre experiências gays, lésbicas e trans, segundo as quais o Brasil registrou um dos piores índices de crimes de ódio homolesbotransfóbico, incluindo assassinatos, no mundo. No entanto, no ano em que o movimento LGBTQIA+ brasileiro comemorou 40 anos de existência (2018), nenhuma proposta de promoção de direitos gays e trans foi transformada em lei (Fernandes, 2018FERNANDES, Marcella. Os 13 projetos de lei que estão parados no congresso. Huffington Post Brasil, 2018 [https://www.huffpostbrasil.com/2018/06/06/os-13-projetos-de-lei-prioritarios-sobre-direitos-LGBTQQ-que-estao-parados-no-congresso_a_23450721/?ncid=other_huffpostre_pqylmel2bk8&utm_campaign=related_article - acesso em 5 de jan 2019].
https://www.huffpostbrasil.com/2018/06/0...
).

O que este artigo pretende fazer é refletir sobre a interação entre a cultura cinematográfica brasileira e as comunidades LGBTQIA+ e a sociedade em geral no século XXI (até o final de 2018), uma interação (e produção cinematográfica) que aumentou exponencialmente durante o período sob análise, em grande medida como resultado da agenda da diversidade, juntamente com acesso mais amplo ao financiamento de filmes. A abordagem se inspira no conceito de “film culture” (cultura cinematográfica) abordado por Janet Harbord (2002). Segundo Harbord (2002:5), a cultura cinematográfica consiste na análise das “práticas que moldam o fluxo dos filmes”, e incluem estratégias de produção, marketing, festivais, resenhas, canais de distribuição e locais de exibição. A escolha da abordagem baseia-se na ideia de que o cinema desempenha um papel fundamental em ilustrar debates em andamento sobre a cultura queer,1 1 Neste artigo uso o termo queer em relação à produção cultural, para abranger as diversas orientações sexuais e identidades de gênero que não sejam heteronormativas: o que me refiro aqui com a sigla LGBTQIA+. em oferecer espaços de identificação e construção comunitária para públicos LGBTQIA+, e em promover culturas de resistência. Harbord (2002:100) refere-se a "um espaço discursivo para o cinema em um ambiente intelectual".

Para ilustrar a relação entre cinema e debates em torno da cultura queer, escolhi três filmes de sucesso crítico que foram lançados em circuito nacional, no Brasil: Praia do Futuro (Karim Ainouz, 2014), Mãe só há uma (Anna Muylaert, 2016) e Bixa Travesty (Kiko Goifman e Claudia Priscilla, 2018). Os três filmes foram bem recebidos no festival de cinema de Berlim, um festival cada vez mais importante em termos de efetuar a visibilidade do cinema independente brasileiro; os três filmes também foram premiados pela sua temática queer.2 2 Tanto Mãe só há uma quanto Bixa Travesty ganharam um Teddy, o prêmio dado a filmes queer em Berlim. Os filmes brasileiros se saem particularmente bem nessa categoria de prêmios no festival de Berlim, a ponto de se poder argumentar que, no exterior, é um dos reconhecidos pontos fortes da cultura cinematográfica brasileira. Praia do Futuro ganhou o equivalente prêmio no festival de San Sebastian (o prêmio Sebastiane Latino). Em Berlim foi indicado para um Urso de Ouro: no mesmo ano o Teddy foi ganho pelo também brasileiro Hoje eu quero voltar sozinho (Daniel Ribeiro, 2014). Como veremos adiante, os filmes são documentos interessantes em termos do seu engajamento com debates sobre identidade, construção de gênero e a sua interseção com questões de classe e, no caso de Bixa Travesty, de raça.

Contextualizando I: A Escassa História da Cultura Cinematográfica Queer no Brasil

A cultura cinematográfica queer não tem raízes muito profundas no Brasil. Não só existe uma escassez de filmes, mas há uma bibliografia histórica igualmente escassa.3 3 Os livros de Antonio Moreno (2001) e David William Foster (1999) ainda servem como as principais referências acadêmicas em Português e Inglês, respectivamente. Há também recentes estudos importantes sobre cinema queer no Brasil, como por exemplo, o livro organizado de Murari e Nazumi, 2015, o dossiê do Forum Doc BH 20 anos, 2016, e a rica pesquisa de Denilson Lopes e Karla Bessa (2016 e 2014). Como muito cinema mundial no período de 1940 a 1980, as comédias populares no Brasil, tais como as chanchadas, pornochanchadas e os filmes dos Trapalhões eram marcados por personagens camp cuja sexualidade era quase sempre reduzida a piadas prontas e servia de fonte de escárnio humorístico. Representações mais sérias tinham que lidar com a censura vigente e, portanto, eram frequentemente distorcidas.

Durante a ditadura militar (1964-1985), as expressões culturais que lidassem com relações não heteronormativas foram duramente reprimidas. É provável que não seja coincidência que os três filmes mais marcantes para lidar com o desejo gay e lésbico desse período apresentassem a velha ideia de que a própria homossexualidade fosse levada a julgamento. Em O menino e o vento (Carlos Hugo Christensen, 1967), considerado o primeiro filme brasileiro a tratar do desejo homossexual, José Roberto (Enio Gonçalves) retorna de férias para descobrir que está falsamente implicado no suposto assassinato de um jovem com quem ele tinha feito amizade em sua viagem, e que posteriormente desapareceu. Em O beijo no asfalto (Bruno Barreto, 1981), um sucesso de bilheteria que provocou considerável discussão na época de seu lançamento,4 4 Baseado na peça homônima? de 1961 do controverso dramaturgo Nelson Rodrigues, foi adaptado pela primeira vez para a tela em 1964 por Flavio Tambellini e mais recentemente por Murilo Benício (2018). Na última versão, Arandir é interpretado pelo ator negro Lázaro Ramos. Outros filmes baseados no trabalho de Nelson Rodrigues que têm personagens gays incluem Toda nudez será castigada (1972) e O casamento (1975), ambos dirigidos por Arnaldo Jabor. o personagem hétero Arandir (Ney Latorraca) cumpre o desejo de um homem moribundo que vê do outro lado da rua e lhe dá um beijo na boca. O julgamento de Arandir, nesse caso, é pela mídia sensacionalista e pelo seu sogro conservador (Tarcísio Meira) que se revela no final o homossexual da trama, quando mata Arandir em um ato de paixão e declara seu amor por ele.5 5 Para leituras detalhadas do filme, ver Foster (1999) e Dennison (2005). O terceiro filme chave desse período é Amor maldito (Adelia Sampaio, 1984), significativo, acima de tudo, por ser o primeiro, e até 2017, o único filme brasileiro a ser dirigido (e co-escrito, produzido e lançado comercialmente) por uma mulher negra. No filme, Fernanda (Monique Lafond) é acusada de matar sua amante Sueli (Wilma Dias), que havia se suicidado em consequência da intensa pressão de sua família ultraconservadora e lesbofóbica.6 6 Sampaio também foi notavelmente uma cineasta lésbica. O filme ganhou um lançamento limitado e foi comercializado como pornochanchada.

A primeira performance trans memorável na tela é de Milton Gonçalves no papel-título de Rainha Diaba (Antonio Carlos da Fontoura, 1974), um filme definido pelo diretor como um thriller black, gay e pop (Murat, 2008MURAT, Rodrigo. Antônio Carlos da Fontoura: Espelho da alma. São Paulo, Imprensa Nacional, 2008.:75). Rainha Diaba foi inspirado, parcialmente, pelo tempo que o diretor passou em Nova York no início dos anos 70, junto à animada comunidade trans porto-riquenha da cidade. A rainha do filme é um traficante com tendências violentas, cercada de um exército leal de seguidores trans (os diabetes). Rainha foi baseado em Madame Satã, um personagem violento do bairro boêmio da Lapa no Rio de Janeiro que, na década de 1930, trabalhava como artista de cabaré. A história de Madame Satã teve reprise no cinema em 2004, no aclamado Madame Satã (Karim Ainouz), estrelado por Lázaro Ramos.7 7 Para uma leitura interessante do filme, ver Lopes, 2016.

Para Lufe Steffen (Toller, 2018TOLLER, Ana Flávia. Vivendo a retrospectiva: panorama histórico do cinema LGTB brasileiro. Cinematorio. 2018 [http://www.cinematorio.com.br/2018/09/vivendo-a-retrospectiva-panorama-historico-do-cinema-LGBTQ-brasileiro/ - acesso em 26 de nov 2018].
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), o primeiro personagem trans autenticamente retratado no cinema brasileiro de ficção foi Lilica, no sucesso comercial e de crítica de Hector Babenco, Pixote: a lei

do mais fraco (1981).8 8 A crítica e acadêmica B Ruby Rich discorda do retrato da cultura trans (e da homossexualidade mais amplamente) no filme: “Pixote não pode ser apresentado como um exemplo de como o desejo gay pode ser descrito, dado o tratamento sensacionalista e sórdido do sexo gay como acomodação, substituição e punição, mas o próprio fato de registrar do assunto era incomum na época e sem dúvida ajudou a abrir espaços futuros para o desejo gay em telas brasileiras” (Rich, 2013:151). Logo em seguida Babenco adaptou o romance O beijo da mulher aranha (1985), de Manuel Puig, co-produção entre os EUA e o Brasil, no qual William Hurt ganhou um Oscar por seu papel como o transgênero Luis Molina. E o drama prisional Carandiru (2003) inclui uma performance de destaque de Rodrigo Santoro como a prisioneira trans Lady Di. O que chama a atenção nos três personagens trans retratados nos filmes de Babenco é que eles são encarcerados (Molina e Lady Di aparecem exclusivamente na prisão e a adolescente Lilica passa um tempo na FEBEM). Os filmes de Babenco retratam, assim, o posicionamento das personagens como uma luta contra o controle estatal de seus corpos e como uma expressão de transgressão, delinquência e /ou merecendo punição. Da mesma forma, Vera (1987), de Sérgio Toledo, relata as experiências do poeta trans Anderson Herzer, que passou a infância na FEBEM e cometeu suicídio aos 20 anos.9 9 O filme foi bem recebido no Festival de Berlim. Herzer escreveu uma autobiografia best-seller publicada postumamente em 1983, intitulada A queda para o alto.

Contextualizando II: Exibindo Experiências Queer

Como muitos grupos minoritários, as comunidades LGBTQIA+ no Brasil, tanto de cineastas quanto telespectadores, são fortemente encorajadas pelo engajamento, entusiasmo e comprometimento de indivíduos; dos vários festivais de cinema focados nos temas da comunidade; e de fontes de apoio financeiro de diversas fontes para produzir e disseminar os filmes. Figura importante na atual paisagem exibidora brasileira é Lufe Steffen. Um autodefinido “agitador cultural”, Steffen também dirigiu, entre outros filmes, São Paulo em Hi-Fi (2013), um documentário que relata a vida noturna gay de São Paulo nos anos 60, 70 e 80, e ele regularmente ministra cursos de cinema queer no estado de São Paulo. Steffen também foi responsável por uma série inovadora intitulada Cinema Diversidade exibido no canal Prime Box Brasil entre 2017-2018, e por publicar um livro não-acadêmico sobre cinema queer no Brasil, no século XXI (Steffen, 2016STEFFEN, Luffe. O cinema que ousa dizer seu nome. São Paulo, Giostri, 2016.).

O principal festival de artes e de cinema que celebra a diversidade é o Festival Mix Brasil, que data de 1993 e inclui exibições de filmes e eventos de outras expressões artísticas em São Paulo e no Rio de Janeiro. O festival foi inspirado no New York Gay e Lesbian Experimental Film Festival. Quando começou, segundo Steffen, era o único festival de filmes queer no Brasil na época, e o objetivo era fomentar a exibição de filmes, e principalmente curtas-metragens. Posteriormente, passou a exibir longas-metragens. O site do festival deixa claro seu papel na conscientização e na denúncia contra os crescentes discursos e práticas de “ódio”, bem como as atividades artísticas com foco na cultura queer. A edição de 2017 do festival exibiu 32 filmes brasileiros de cinco diferentes regiões do país, “uma amostra clara do fôlego e energia de uma produção audiovisual queer brasileira crescente e desafiadora” (Mix Brasil, 2017).

Até então, o Festival Mix Brasil se beneficiava tanto do apoio do público dos governos Federal (o extinto Ministério da Cultura), Estado e do Município (Spcine), quanto do apoio institucional privado do Itaú Cultural e do SESC São Paulo, organizações que filiam seus nomes a agenda da diversidade, mesmo em tempos tão reacionários. A edição de 2017 do festival incluiu uma seleção de curtas-metragens intitulada Crescer com a Diversidade, voltada para jovens e, de acordo com o site do festival, surgiu como resultado de um desejo de construir uma sociedade justa e tolerante. Os filmes foram exibidos no circuito de cinema Spcine, em escolas públicas de São Paulo, e a seleção incluiu um workshop destinado a crianças de 8 a 15 anos sobre a produção de filmes que favorecem a diversidade. O site do festival pareceu, assim, tentar justificar as oficinas, talvez sentindo o potencial de críticas oriundas de círculos conservadores: “a melhor maneira de uma sociedade se tornar mais tolerante e aberta à pluralidade é na convivência desde cedo com a diferença”. A edição de 2018 do festival anunciou a entrada de games no programa, e que os direitos LGBTQIA+ pós-2018 serão debatidos como parte de uma conferência maior. Além disso, 20 longas-metragens e 39 curtas-metragens de cineastas brasileiros foram exibidos.

Homofobia, Hashtags e Praia do Futuro

Potencialmente, o filme brasileiro mais controverso com temática queer dos últimos anos seja Praia do Futuro, parcialmente ambientado em uma praia de Fortaleza (Ceará), de mesmo nome do título do longa. No filme, um turista alemão se afoga na praia e o salva-vidas Donato (Wagner Moura), inconsolável porque ele foi incapaz de salvá-lo, começa uma intensa relação com o amigo do morto, Konrad (Clemens Schick), que o leva para Berlim. A relação afetiva entre os dois homens, então, é o foco do filme, que também explora questões de perda, de migração, de isolamento e de superação de sentimentos traumáticos.

Rosalind Galt e Karl Schoonover (2017:352) identificam uma imbricação entre a relacionalidade queer e a convivência globalizada em uma série de filmes a partir de Felizes juntos de Wong Kar-Wai de 1997. Praia do Futuro se encaixa bem neste padrão e ilustra a ideia de que “para os queers viajar e experimentar a vida diaspórica representa simultaneamente liberdade e exílio” (Galt & Schoonover, 2017:352). No filme, a dinâmica bagunçada do desejo gay entrecortada por deslocamento, migração e saudade, servem para provincializar a heterossexualidade (Galt & Schoonover, 2017:353). Vemos isso em uma cena homoafetiva amplamente comentada pelo diretor Ainouz: a cena combina afeto e vulnerabilidade à medida que os dois homens dançam no pequeno apartamento em Berlim, enquanto tentam um lip-sync meio desajeitado com uma música romântica francesa.

A homofobia ligada ao filme não se encontra na diegese, mas nas reações de um reduzido número de espectatores que ficaram confusos com a representação de Wagner Moura no filme, e as resultantes discussões de um público maior em redes sociais, demonstrando assim que “há muitas maneiras nas quais o cinema entra nas nossas vidas” (Harbord, 2002:01). Em resposta às reclamações de alguns espectadores no nordeste do Brasil, que se diziam chocados pelas cenas de sexo contidas no filme, várias salas de cinema começaram a avisar verbalmente os clientes de que o filme continha cenas de ‘intimidade homossexual’. Logo depois, um cinema no estado da Paraíba supostamente carimbou os ingressos de cinema para indicar que os clientes haviam sido "avisados" de tais cenas. Um bilhete carimbado circulou logo nas redes sociais e causou indignação daqueles que viram isto como uma forma de censura. A cadeia de cinema envolvida negou posteriormente que o carimbo tivesse alguma coisa a ver com tais advertências, e que era, ao contrário, uma indicação de que a identidade tinha sido fornecida para pagar a meia entrada. Entretanto, não houve nenhuma negação de advertências verbais sobre as cenas de sexo.

Em relação à controvérsia em torno da exibição do filme, o diretor Aïnouz comentou:

Ficamos tristes com esse tipo de reação porque a intolerância e o preconceito são manifestações muito tristes da alma humana - e elas em geral são frutos da ignorância, assim como o fascismo e o racismo, mas é muito positivo que o nosso filme venha pra fazer avançar este debate, e quem sabe, promover mais tolerância e respeito às diferenças (Figueira, 2014FIGUEIRA, João Vítor. Internautas ironizam alerta sobre sexo gay em Praia do Futuro e produção lança campanha anti-homofobia. Adoro Cinema, 2014 [http://www.adorocinema.com/slideshows/filmes/slideshow-107613/ - acesso em 16 de dez 2018].
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).

Segundo Aïnouz, “o filme não é gay. Acho um tanto homofóbico taxar qualquer filme como um filme gay. Quando você assiste Missão impossível ou Instinto selvagem você fica pensando que é um filme hétero? A gente precisa parar com isso. É politicamente perigoso. Estou ficando um pouco cansado” (Aarão Reis, 2014AARÃO REIS, Lea Maria. Praia do Futuro: o imenso mar de Karim Ainouz. Carta maior, 29 mai 2014 [https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Cultura/Praia-do-Futuro-O-imenso-mar-de-Karim-Ainouz/39/31041- acesso em 10 de jun 2020].
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).

Para combater as reações homofóbicas ao filme, os produtores lançaram a hashtag #homofobianaoeanossapraia. E os fãs do filme começaram um protesto no Tumblr ao sobrepor em cartazes de blockbusters de Hollywood, entre outros, o carimbo AVISADO, e fornecer avisos cômicos escritos em gramática incorreta (para enfatizar as fraquezas intelectuais percebidas daqueles que forneceram e concordaram com as advertências originais de Praia do Futuro).10 10 Um desses memes dá o aviso de que o filme Esqueceram de mim contém cenas de abandono infantil. O fato de qualquer tipo de polêmica ter surgido em torno de Praia do Futuro indica que o filme encontrou uma audiência além do circuito habitual de cinemas de arte e festivais, possivelmente como resultado do elevado perfil do ator principal Wagner Moura. Vários usuários das redes sociais comentaram especificamente sobre seu desconforto com a mudança na representação da masculinidade retratada por Moura desde os filmes Tropa de Elite I e II.11 11 Veja por exemplo o vídeo amplamente divulgado de um sargento do Corpo de Bombeiros reclamando do papel de Moura no filme (TV Bol, 2014).

Aïnouz já havia explorado relacionamentos não heteronormativos, usando um bem-conhecido ator heterossexual, no já mencionado Madame Satã. Mas Madame Satã provocou pouca reação dos espectadores conservadores, talvez devido a sua distribuição mais limitada, e ao fato de que tanto o título quanto o cartaz do filme tornaram evidente o assunto do filme. Os salva-vidas na praia fazem parte do Corpo de Bombeiros Militar e o cartaz de Praia do Futuro mostra apenas o salva-vidas do personagem de Moura e, portanto, uma possível continuação fílmica de seus papéis de defesa militar na tela. Assim, pode-se supor que, para um filme com uma ligação gay ou trans “ofender”, ele precisa ser lançado em cinemas comerciais,12 12 Ou na Netflix, como demonstra a recente polêmica em torno do filme A primeira tentação de Cristo (Rodrigo Van Der Put, 2019), do grupo Porta dos Fundos. Praia do Futuro foi lançado em 100 cinemas no Brasil retratar o sexo não-hetero e fazer interface com instituições fortemente marcadas pelo gênero e, em particular, hiper-masculinas, como as forças militares ou armadas. Onde os filmes retratam a homossexualidade e a experiência trans como marginalizada ou focalizada no performativo, que é idealmente camp e/ou cômico e, portanto, não é lido como uma ameaça à cultura e à sociedade mainstream, eles tendem a escapar sem comentários negativos do público. Consideremos, por exemplo, o problemático personagem Dunga (Matheus Nachtergaele) em Amarelo Manga (Claudio Assis, 2002) e a trupe teatral em Tatuagem (Hilton Lacerda, 2013), com suas referências ao exército e à ditadura. E consideremos também o filme brasileiro de temática gay mais visto até o momento nos cinemas: Cazuza: o tempo não para (Walter Carvalho e Sandra Werneck, 2004), uma cinebiografia sobre o muito querido astro de pop Cazuza que morreu de uma doença relacionada ao HIV positivo em 1990. Uma co-produção da Globo Filmes que atraiu mais de três milhões de espectadores para os cinemas.

Novas dinâmicas: Mãe Só Há Uma, de Anna Muylaert (2016)

Na últimas décadas, tem-se realizado documentários em curta e longa-metragem, exibidos em festivais de cinema e canais de TV a cabo, no país e no exterior, que fornecem uma visão histórica da experiências queer no Brasil. Há, por exemplo, Dzi Croquettes (Tatiana Issa e Raphael Alvarez, 2009), que documenta a influente trupe contra cultural do mesmo nome dos anos 1970, e Lampião da esquina (Livia Perez, 2016), que também faz uso criativo de filmagens e entrevistas com atores-chave da revista seminal homônima dirigida ao público gay entre 1978 e 1981. Em Meu amigo Claudia (2009), Dácio Pinheiro reconta a história de uma das travestis quase míticas de São Paulo dos anos 80, Claudia Wonder. Além de toda essa importante perspectiva histórica de preenchimento de lacunas nos filmes, também tem havido um número expressivo de filmes que documentam as mudanças na experiência das comunidades LGBTQIA+ no Brasil, ao longo do novo milênio, como por exemplo Vestidas de noiva (Fabia Fuzeti e Gabi Torrezani, 2015) em que as duas diretoras discutem e documentam seus próprios planos de casamento. Em Entre os homens de bem (Caio Cavechini e Carlos Juliano Barros, 2016) acompanhamos, ao longo de três anos, as experiências do político e ativista Jean Wyllys, até recentemente um dos poucos membros gays do congresso nacional.13 13 Também merece destaque a iniciativa em vídeo do Museu da Diversidade Sexual, em São Paulo, que busca documentar histórias cotidianas de indivíduos LGBTQ.

Mãe só há uma se insere nesta safra, porém no plano da ficção, de filmes que documentam essas mudanças na sociedade. A diretora Anna Muylaert comentou em entrevista que para ela Mãe só há uma é uma exploração de uma nova dinâmica que ela presenciou após 2014, de pessoas mais desinibidas e livres de rótulos (Moraes, 2016MORAES, Fernando. Anna Muylaert fala sobre Mãe Só Há Uma e inspiração no caso Pedrinho. Metropoles, 2016 [https://www.metropoles.com/entretenimento/cinema/anna-muylaert-fala-sobre-mae-so-ha-uma-e-inspiracao-no-caso-pedrinho - acesso em 23 de nov 2018].
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). Muylaert inspirou-se na história verdadeira de um bebê que foi roubado de uma maternidade, a nova mãe acabou presa e o rapaz, então adolescente, foi obrigado a retornar à sua família biológica. No filme, Pierre, como Jéssica em Que horas ela volta (Anna Muylaert, 2015), luta contra os costumes sociais, as convenções e uma nova família de classe média, supostamente progressista: sua recusa em se acostumar ao seu novo lar e família é expressa através de seu visual provocativo (por exemplo ele escolhe um vestido vermelho para usar para uma reunião de família em um boliche).14 14 A escolha da roupa lembra um estudante gay do ITA (Instituto de Tecnologia Aeronáutica) que vestiu um vestido vermelho e saltos altos em sua cerimônia de formatura em 2016 para protestar contra a homofobia nas forças armadas.

O filme foi recebido calorosamente pela crítica e foi exibido em salas lotadas no circuito de festivais, embora não tenha repetido o sucesso popular do filme anterior, Que horas ela volta, da mesma diretora. Enquanto choques geracionais são apresentados nos dois filmes, o foco em Mãe só há uma recai sobre questões de identidade sexual e biológica. Segundo Muylaert em entrevista nos “extras” do DVD do filme, “hoje o mundo tá não-binário, não tá mais combinando nestes dois lados”.15 15 Nos extras do DVD o jovem ator Naomi Nero que faz papel de Pierre no filme se diz identificar como no mínimo bi-curioso desde os onze anos de idade. O mundo a que Muylaert se refere é nitidamente jovem. Isso se vê logo no início do filme: os títulos de abertura são acompanhados por cenas de Pierre em uma festa. O jovem flerta com naturalidade entre amigos, independentemente de seu gênero e acaba no banheiro com uma garota: a câmera se retrai do casal para mostrar que Pierre está usando lingerie preta por baixo do jeans. Mais tarde no filme, enquanto o jovem aguarda o resultado do teste de DNA que é obrigado a fazer para provar sua verdadeira “identidade”, ele vai ao banheiro, coloca maquiagem e tira um selfie vestido de calcinha fio dental.

No Brasil atual é difícil separar as discussões sobre diversidade sexual de debates sobre o que tem sido confusamente apelidado de “ideologia de gênero”. Isto é um equívoco pelo qual elementos conservadores afirmam que aceitar o gênero como uma construção social, como Judith Butler (2006)BUTLER, Judith. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. London and New York, Routledge Classics, 2006. argumentou que deveríamos fazer, resulta em lavagem cerebral em crianças e jovens em particular para ir contra a ordem natural, biológica ou bíblica das coisas, por meio da qual as meninas são meninas e meninos são meninos e, portanto, coloca em risco a “família brasileira”.16 16 Para uma discussão da “ideologia de gênero” em relação ao Brasil, ver Correa (2017).

Neste filme, Muylaert parece não dar a mínima para um público conservador com o que é, em muitos aspectos, uma celebração alegre da fluidez de gênero. O cartaz do filme, com uma imagem de Pierre em uma bicicleta levantando o dedo do meio (com esmalte de unha) e olhando para a câmera, é um provável gesto de desafio por parte da cineasta contra a crescente onda de crítica à performatividade de gênero, entendida pelos ideólogos conservadores como “ideologia de gênero”. 17 17 Outra possível reação referenciada no cartaz do filme é um gesto de rebeldia contra o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, já em curso na época do lançamento do filme. Meu raciocínio aqui é que muitos dos apoiadores de Dilma acrescentariam a palavra mãe como um sufixo carinhoso ao nome dela, formando assim Dilmãe. “Mãe só há uma”: em outras palavras, existe apenas uma mãe: Dilma.

Imagem 01
: Cartaz do filme Mãe só há uma.

Quando Muylaert fez o filme, Judith Butler já havia visitado o Brasil em 2015 e ela havia sido hostilizada por um pequeno grupo de manifestantes conservadores. O incidente recebeu mais indignação e, portanto, mais cobertura nas mídias sociais que talvez merecesse. Em outubro de 2017, uma petição online adquiriu mais de 360.000 assinaturas, na tentativa de impedir que Butler participasse de uma conferência em São Paulo. Os protestos, embora ainda relativamente insignificantes em tamanho, eram maiores do que antes, e provocaram fortes reações, em particular com a queima de uma efígie de Butler por um membro da multidão que protestava. Assim, ao alinhar a “história verdadeira” de um adolescente obrigado a repensar sua identidade depois de ser devolvido a seus pais biológicos, com uma exploração de gênero e sexualidade, Muylaert defende a sexualidade, potencialmente, fluida e o gênero como uma construção social.

MC Linn da Quebrada, Orgulho Trans e Bixa Travesty

Apesar de o aumento de retratos sensíveis de indivíduos trans brasileiros em telas no Brasil e no exterior,18 18 No festival de cinema de Berlim de 2018, a diretora grega Evangelia Kranioti estreou Obscuro barroco, um filme sobre mulheres trans no Rio de Janeiro, e Marcelo Martinessi lançou Las herederas (2018), uma co-produção brasileira sobre um casal de lésbicas bem abastadas. há apenas um pequeno número de pessoas trans trabalhando por trás das câmeras.19 19 E mesmo em frente das câmeras: assim como a performance de Rodrigo Santoro em Carandiru, há A gloria e a graça, de Flávio Tambellini, no qual o papel da protagonista, uma mulher trans, é desempenhada por uma atriz cis. Para compensar, o próximo longa ficcional de Marcelo Gomes conta com o trabalho de doze atrizes trans. O editor de cinema trans não-binário Calí dos Anjos fez notícia em 2015 ao receber financiamento da Riofilme para dirigir seu primeiro filme: o curta de 10 minutos Tailor (2017), parte documentário e parte animação sobre um cartunista trans. Artista trans, ativista e consultor Ariel Nobre transformou seu projeto de arte Preciso dizer que te amo em um documentário com o mesmo nome em 2018. Tendo como tema experiências trans e a luta contra o suicídio, foi exibido em concurso no Festival do Rio em 2018. MC Linn da Quebrada, artista funk trans da periferia de São Paulo, é creditada como co-roteirista de Bixa Travesty, um dos mais notáveis ​​filmes queer a ter surgido no circuito de festivais de cinema nos últimos anos. O documentário estreou na seção Panorama do Festival de Cinema de Berlim, em 2018, quando os diretores Kiko Goifman e Cláudia Priscila aproveitaram a ocasião para ler uma declaração no qual se recusaram a reconhecer o então governo de Michel Temer, após o golpe contra Dilma Rousseff, e exigiram uma conversa franca sobre violência contra negros e pessoas LGBTQIA+. Além de ser bem recebido em Berlim, o filme foi aplaudido de pé no festival de cinema de Brasília, onde ganhou quatro prêmios, incluindo o prêmio do público. Também foi exibido no Mix Brasil 2018, onde Linn da Quebrada se apresentou na festa de encerramento.20 20 Linn da Quebrada também se apresentou após uma exibição no Sheffield Documentary film festival no Reino Unido, em 2018.

Intérprete experiente no palco e na tela, Linn da Quebrada interpretou personagens trans em dois filmes ficcionais e uma série: Corpo elétrico (Marcelo Caetano, 2017), no qual interpreta Simplesmente Pantera, Sequestro Relâmpago, de Tata Amaral (2018), no qual aparece como a personagem Marilda e na série Segunda chamada, de Joana Jabace (2019), exibido na Rede Globo, interpreta a travesti Natasha. O título do filme Bixa Travesty é o apelido que Linn inventou para descrever sua identidade de gênero. O filme mistura imagens da atriz se apresentando no palco, conversando com suas amigas, num hospital, recuperando-se de câncer testicular e filosofando diretamente para a câmera sobre política sexual e de identidade. O filme contém uma variedade de registros contrastantes, variando de letras às vezes agressivas de suas canções de funk, que desafiam o conteúdo "alfa-macho" de músicas do mesmo gênero, conversas às vezes vazias e high camp com outra artista trans Jup do Bairro, a discussões de política de identidade sexual que usam um registro quase acadêmico. Como sublinham Galt e Schoonoover (2017:352), “manter um tom constantemente liso é impossível na vida queer e misturas genéricas expressam fraturas emocionais e físicas”.

Fica claro que Linn teve plena liberdade para expressar seus pontos de vista no filme: alguns são expressos de forma bem articulada, enquanto outros parecem menos bem formulados. O efeito disso é interpretar o mundo de Linn como aquele em que ela não se propõe a ser uma ativista política, mas onde sua própria existência é política. Como ela afirma, “[para mim] é um dever político ser feliz”. O filme também contrasta sequências altamente estilizadas de performances com cenas mundanas, quase kitsch, como a cena (um tanto forçada) na cozinha de seu pequeno apartamento onde ela conversa com duas amigas e sua mãe enquanto ela prepara o jantar.21 21 Como exemplo desse registro kitsch, ou melhor, trash (Lopes, 2016), Linn nos informa que sua mãe faz o melhor estrogonofe. Sua mãe respeita a identidade de gênero de sua filha, mesmo que ela tenha que se esforçar para usar os pronomes certos para descrevê-la. Na conversa, Linn ameaça tatuar a palavra ela na testa: no final do filme, vemo-la em um estúdio de tatuagem cumprindo sua ameaça. Todos esses elementos contrastantes funcionam para dar uma representação arredondada de Linn como estrela (ela afirma que ela mesma é sua maior fã e claramente adora a câmera) e mulher, mas sem recorrer a um retrato convencional de bastidores ou de estrela at home. Por exemplo, vemos imagens que uma amiga gravou dela no hospital. O que começa convencionalmente com uma imagem de seu cabelo caindo como resultado do tratamento de câncer, depois mostra Linn com uma fita adesiva em volta da cabeça com as palavras cuidado, frágil e termina com ela chupando um grande vibrador branco, brincando nua na suite e revelando descaradamente close-ups de seu pênis, prepúcio e ânus.

A inscrição literal da feminilidade no corpo de Linn por meio da tatuagem é significativa, dada a importância atribuída ao corpo e à pele de Linn ao longo do filme: sua genitália que visualmente oferece outra leitura da condição feminina e sua pele negra, seu “manto de coragem” que é uma fonte de orgulho e resistência.22 22 Vários filmes usam uma abordagem interseccional para retratar o corpo trans / pele negra: veja, por exemplo, o curta-metragem Pele (Adam Golub e Liana Nigri, 2017), com Dandara Zainabo, uma mulher trans de 19 anos, e Meu corpo é político (2017), de Alice Riff, um documentário com um grupo de mulheres trans, incluindo Linn da Quebrada. O fato de que ela frequentemente aparece em frente da câmera em estado de nudez, tomando banho (sozinha e com os outros), sem maquiagem (mostrando sua pele pipocada) e sem “esconder a evidência” de sua genitália masculina e falta de seios, serve como um gesto de empoderamento libertador23 23 Uso aqui o termo empoderamento (empowerment) com certo cuidado. Como argumenta Serdenberg (2008), “Apesar de emergir no pensamento feminista como uma crítica das noções liberais de poder, o conceito de empoderamento foi apropriado dessa maneira no discurso do desenvolvimento, legitimando práticas que pouco têm a ver com o conceito original desenvolvido por feministas do sul”. Mesmo optando, então, pelo termo preferido empoderamento libertador (liberating empowerment), é importante reconhecer que a abordagem individualista e anseio por exercer o poder tão criticados no conceito de empoderamento (liberal) estão até certo ponto presentes no filme Bixa Travesty. e como uma provocação ao entendimento do senso comum sobre mulheres trans como dependendo da cirurgia invasiva e do poder transformador temporário da maquiagem e roupas para reivindicar a feminilidade.24 24 O filme inclui reflexões interessantes sobre a natureza invasiva da cirurgia de redesignação de gênero e as razões pelas quais Linn tem evitado tal cirurgia até o momento. As imagens comuns de uma mulher trans "se arrumando" são substituídas aqui por uma cena abertamente política em que Linn usa o espelho lateral de um carro da polícia para por o batom. Podemos também refletir sobre um possível diálogo, consciente ou não, no filme com as teorias de performatividade, encenação, corpo, gênero e subjetividades trabalhados (e reelaborados) por Judith Butler em Bodies That Matter (2011). Mais interessante e frutífero, porém, seria considerar o filme como uma ilustração audiovisual do conceito de homoarte elaborado por Wilton Garcia (2012)GARCIA, Wilton. Arte Homoerótica no Brasil: Estudos Contemporâneos. Gênero 12:2, Niterói: 2012, pp. 131-163., o qual define como um “leque de possibilidades enunciativas sobre a dinâmica de alteridades homoeróticas, cujas resultantes deslizam sobre as estratégias discursivas (ambiguidade, corpo, diferença, resistência e ironia)”.

Imagem 02
:Cartaz do filme Bixa Travesty.

Um elo é forjado no filme com Ney Matogrosso: Linn ganhou uma luva usada por Matogrosso no palco, que ela trata como uma espécie de amuleto. A luva se torna de alguma forma mais agressiva, sexual e, portanto, transgressora nas mãos de Linn da Quebrada. Há, portanto, uma harmonia entre o abertamente sexual e o político, que fornece o principal local de resistência do filme. O filme termina com os créditos rolando sobre o que parece ser Linn e Ney se encontrando pela primeira vez (eles trocam um abraço significativo), talvez fazendo uma comparação entre o passado e o presente em termos tanto de reação conservadora e opressão da população não heteronormativa, quanto de cultura e performance como locais de resistência.25 25 Ney Matogrosso aparece regularmente em documentários, servindo como uma espécie de porta-voz de uma geração mais velha de artistas LGBTQIA+ na tela, mesmo que ele sempre se recusasse a ser considerado um porta-voz da comunidade gay em geral. .

Observações finais

Os três filmes discutidos neste artigo de alguma forma normalizam ou naturalizam as vidas queer, usando-as para explorar outros temas tais como diáspora e exílio, biologia e identidade e performance como parte de uma realidade vivida. E vale notar que este processo de normalização tem lugar na diegese dos filmes longe do típico pano de fundo burguês: os personagens Donato, Pierre e Linn da Quebrada são todos da classe C, sugerindo, assim, alguma mudança positiva em termos de aceitação de identidades não heteronormativas.

No entanto, o caso recente envolvendo o Queermuseu26 26 Em setembro de 2017, uma exposição de arte em Porto Alegre intitulada Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira foi fechada antes do previsto, após uma campanha de mídia social de manifestantes de direita liderada pelo Movimento Brasil Livre, que acusaram os organizadores de terem feito uso do dinheiro público (Lei Rouanet) para promover a pedofilia, a zoofilia e a blasfêmia (Carneiro, 2018). O prefeito evangélico do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, juntou-se à indignação coletiva, recusando-se a permitir que a exposição fosse realizada no novo Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR). A exposição, no entanto, continuou sua jornada rumo ao Rio, graças a uma campanha recorde de crowdsourcing criada pelo diretor da Escola de Artes Visuais do Parque Lage no Rio, Fabio Szwarcwald, que apesar de trazer apoio financeiro muito necessário e interesse para a escola, quase perdeu o emprego como resultado da exposição. chama atenção para uma série de questões e desafios no clima atual no Brasil enfrentado pela produção cultural queer, da qual o cinema é uma parte cada vez mais expressiva. Primeiro, a homofobia é muito mais enraizada na sociedade brasileira do que a legislação liberal e o aumento da produção de cultura queer no século XXI possam sugerir. De acordo com uma pesquisa de 2014, por exemplo, apenas 45% dos brasileiros apoiaram o casamento entre pessoas do mesmo sexo, enquanto 48% não apoiaram (Lipka, 2015LIPKA. Same-sex marriage makes some legal gains in Latin America. Pew Research Centre, 2015 [http://www.pewresearch.org/fact-tank/ - acesso em 14 de out 2018].
http://www.pewresearch.org/fact-tank/...
). O fato de a Escola Sem Homofobia ter sido abandonada em 2012 atesta o preconceito generalizado e arraigado no Brasil e, poderíamos convir, o fracasso do Partido dos Trabalhadores em comunicar sua agenda da diversidade de forma eficaz para a população conservadora e, alguns diriam, não esclarecida. Essa população é facilmente manipulada por notícias falsas e informações descontextualizadas relacionadas à cultura queer. Isso foi amplamente demonstrado durante as eleições de 2018, quando o candidato da extrema direita Jair Bolsonaro, na sua campanha eleitoral, conseguiu convencer muitos de que o PT havia distribuído kits de conversão gay para as escolas. O vídeo de uma “mamadeira de piroca” circulou on-line e foi visto milhões de vezes, supostamente distribuído pelo candidato à presidência do Partido dos Trabalhadores, Fernando Haddad, a escolas e creches brasileiras, quando ele era Ministro da Educação, como parte da campanha Brasil Sem Homofobia. Com seus 15 milhões de assinantes, o canal satírico do YouTube, Porta dos Fundos, captou até que ponto a cultura queer foi deturpada e usada em propaganda anti-PT, em um de seus vídeos mais contundentes, intitulado Fake News (2018).

No que diz respeito aos formatos de filmes tradicionais, boa parte do público continua a curtir desempenhos estereotipados camp e não se preocupa com comentários pejorativos dirigidos a personagens gays em filmes: considere, por exemplo, o grande sucesso da série fílmica Minha mãe é uma peça (André Pellenz, 2013) e as piadas homofóbicas que tem como alvo o filho “afeminado” de Dona Hermínia. Além disso, reações negativas por parte do público em salas de cinema a demonstrações de afeto não heteronormativo são amplamente comentadas na mídia social. 27 27 Por exemplo, as vaias de cenas de Freddie Mercury (Rami Malik) beijando outro homem no grande sucesso Bohemian Rhapsody (Brian Singer, 2018).

O clima atual é bem resumido por Linn da Quebrada (Carapica, 2016), a quem dou a última palavra neste artigo:

Sou alvo de agressão e violência constante. De todos os lados. E isso não é exclusividade minha. Muitas como eu são alvo desse tipo de violência. Uma violência que vem de dentro de casa, da televisão, da igreja, na rua, na escola, as vezes até entre nossxs amigxs. Às vezes vem camuflada e às vezes sem vergonha nenhuma de mostrar as caras e se mostrar presente. Ela é inclusive de uma certa forma permitida em lei e fomentada pelos que estão no poder. E o ódio disfarçado de opinião é tão culpado quanto quem mata.

Referências bibliográficas

  • *
    Agradeço a Karla Bessa, Gilberto Alexandre Sobrinho e os leitores anônimos dos cadernos pagu pelo seu input na redação deste artigo. Traduções do inglês são minhas.
  • 1
    Neste artigo uso o termo queer em relação à produção cultural, para abranger as diversas orientações sexuais e identidades de gênero que não sejam heteronormativas: o que me refiro aqui com a sigla LGBTQIA+.
  • 2
    Tanto Mãe só há uma quanto Bixa Travesty ganharam um Teddy, o prêmio dado a filmes queer em Berlim. Os filmes brasileiros se saem particularmente bem nessa categoria de prêmios no festival de Berlim, a ponto de se poder argumentar que, no exterior, é um dos reconhecidos pontos fortes da cultura cinematográfica brasileira. Praia do Futuro ganhou o equivalente prêmio no festival de San Sebastian (o prêmio Sebastiane Latino). Em Berlim foi indicado para um Urso de Ouro: no mesmo ano o Teddy foi ganho pelo também brasileiro Hoje eu quero voltar sozinho (Daniel Ribeiro, 2014).
  • 3
    Os livros de Antonio Moreno (2001)MORENO, Antonio. A personagem homosexual no cinema brasileiro. Rio de Janeiro, Funarte, 2001. e David William Foster (1999)FOSTER, David William. Gender and Society in Contemporary Brazilian cinema. Austin, University of Texas Press, 1999, pp.129-138. ainda servem como as principais referências acadêmicas em Português e Inglês, respectivamente. Há também recentes estudos importantes sobre cinema queer no Brasil, como por exemplo, o livro organizado de Murari e Nazumi, 2015, o dossiê do Forum Doc BH 20 anos, 2016, e a rica pesquisa de Denilson Lopes e Karla Bessa (2016 e 2014).
  • 4
    Baseado na peça homônima? de 1961 do controverso dramaturgo Nelson Rodrigues, foi adaptado pela primeira vez para a tela em 1964 por Flavio Tambellini e mais recentemente por Murilo Benício (2018). Na última versão, Arandir é interpretado pelo ator negro Lázaro Ramos. Outros filmes baseados no trabalho de Nelson Rodrigues que têm personagens gays incluem Toda nudez será castigada (1972) e O casamento (1975), ambos dirigidos por Arnaldo Jabor.
  • 5
    Para leituras detalhadas do filme, ver Foster (1999)FOSTER, David William. Gender and Society in Contemporary Brazilian cinema. Austin, University of Texas Press, 1999, pp.129-138. e Dennison (2005)DENNISON, Stephanie. Nelson Rodrigues into film: two adaptations of O Beijo no Asfalto. In; SHAW, Lisa; DENNISON, Stephanie (org.) Latin American Cinema: Essays on Gender, Modernity and National Identity. Jefferson NC, MacFarland, 2005, pp.125-134..
  • 6
    Sampaio também foi notavelmente uma cineasta lésbica. O filme ganhou um lançamento limitado e foi comercializado como pornochanchada.
  • 7
    Para uma leitura interessante do filme, ver Lopes, 2016LOPES, Denilson. O retorno do artifício no cinema brasileiro. In: SOBRINHO, Gilberto Alexandre (org). Cinema em redes: tecnologia, estética e política na era digital. Campinas, UNICAMP, 2016, pp.147-159..
  • 8
    A crítica e acadêmica B Ruby Rich discorda do retrato da cultura trans (e da homossexualidade mais amplamente) no filme: “Pixote não pode ser apresentado como um exemplo de como o desejo gay pode ser descrito, dado o tratamento sensacionalista e sórdido do sexo gay como acomodação, substituição e punição, mas o próprio fato de registrar do assunto era incomum na época e sem dúvida ajudou a abrir espaços futuros para o desejo gay em telas brasileiras” (Rich, 2013RICH, B Ruby. New Queer Cinema: The Director’s Cut. Durham and London, Duke University Press, 2013.:151).
  • 9
    O filme foi bem recebido no Festival de Berlim. Herzer escreveu uma autobiografia best-seller publicada postumamente em 1983, intitulada A queda para o alto.
  • 10
    Um desses memes dá o aviso de que o filme Esqueceram de mim contém cenas de abandono infantil.
  • 11
    Veja por exemplo o vídeo amplamente divulgado de um sargento do Corpo de Bombeiros reclamando do papel de Moura no filme (TV Bol, 2014).
  • 12
    Ou na Netflix, como demonstra a recente polêmica em torno do filme A primeira tentação de Cristo (Rodrigo Van Der Put, 2019), do grupo Porta dos Fundos. Praia do Futuro foi lançado em 100 cinemas no Brasil
  • 13
    Também merece destaque a iniciativa em vídeo do Museu da Diversidade Sexual, em São Paulo, que busca documentar histórias cotidianas de indivíduos LGBTQ.
  • 14
    A escolha da roupa lembra um estudante gay do ITA (Instituto de Tecnologia Aeronáutica) que vestiu um vestido vermelho e saltos altos em sua cerimônia de formatura em 2016 para protestar contra a homofobia nas forças armadas.
  • 15
    Nos extras do DVD o jovem ator Naomi Nero que faz papel de Pierre no filme se diz identificar como no mínimo bi-curioso desde os onze anos de idade.
  • 16
    Para uma discussão da “ideologia de gênero” em relação ao Brasil, ver Correa (2017)CORREA, Sonia. Gender Ideology: Tracking its Origins and meanings in Current Gender Politics. LSE Engenderings, 2017 https://blogs.lse.ac.uk/gender/2017/12/11/gender-ideology-tracking-its-origins-and-meanings-in-current-gender-politics/ - acesso em 10 de jan 2019].
    https://blogs.lse.ac.uk/gender/2017/12/1...
    .
  • 17
    Outra possível reação referenciada no cartaz do filme é um gesto de rebeldia contra o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, já em curso na época do lançamento do filme. Meu raciocínio aqui é que muitos dos apoiadores de Dilma acrescentariam a palavra mãe como um sufixo carinhoso ao nome dela, formando assim Dilmãe. “Mãe só há uma”: em outras palavras, existe apenas uma mãe: Dilma.
  • 18
    No festival de cinema de Berlim de 2018, a diretora grega Evangelia Kranioti estreou Obscuro barroco, um filme sobre mulheres trans no Rio de Janeiro, e Marcelo Martinessi lançou Las herederas (2018), uma co-produção brasileira sobre um casal de lésbicas bem abastadas.
  • 19
    E mesmo em frente das câmeras: assim como a performance de Rodrigo Santoro em Carandiru, há A gloria e a graça, de Flávio Tambellini, no qual o papel da protagonista, uma mulher trans, é desempenhada por uma atriz cis. Para compensar, o próximo longa ficcional de Marcelo Gomes conta com o trabalho de doze atrizes trans.
  • 20
    Linn da Quebrada também se apresentou após uma exibição no Sheffield Documentary film festival no Reino Unido, em 2018.
  • 21
    Como exemplo desse registro kitsch, ou melhor, trash (Lopes, 2016LOPES, Denilson. O retorno do artifício no cinema brasileiro. In: SOBRINHO, Gilberto Alexandre (org). Cinema em redes: tecnologia, estética e política na era digital. Campinas, UNICAMP, 2016, pp.147-159.), Linn nos informa que sua mãe faz o melhor estrogonofe.
  • 22
    Vários filmes usam uma abordagem interseccional para retratar o corpo trans / pele negra: veja, por exemplo, o curta-metragem Pele (Adam Golub e Liana Nigri, 2017), com Dandara Zainabo, uma mulher trans de 19 anos, e Meu corpo é político (2017), de Alice Riff, um documentário com um grupo de mulheres trans, incluindo Linn da Quebrada.
  • 23
    Uso aqui o termo empoderamento (empowerment) com certo cuidado. Como argumenta Serdenberg (2008), “Apesar de emergir no pensamento feminista como uma crítica das noções liberais de poder, o conceito de empoderamento foi apropriado dessa maneira no discurso do desenvolvimento, legitimando práticas que pouco têm a ver com o conceito original desenvolvido por feministas do sul”. Mesmo optando, então, pelo termo preferido empoderamento libertador (liberating empowerment), é importante reconhecer que a abordagem individualista e anseio por exercer o poder tão criticados no conceito de empoderamento (liberal) estão até certo ponto presentes no filme Bixa Travesty.
  • 24
    O filme inclui reflexões interessantes sobre a natureza invasiva da cirurgia de redesignação de gênero e as razões pelas quais Linn tem evitado tal cirurgia até o momento. As imagens comuns de uma mulher trans "se arrumando" são substituídas aqui por uma cena abertamente política em que Linn usa o espelho lateral de um carro da polícia para por o batom.
  • 25
    Ney Matogrosso aparece regularmente em documentários, servindo como uma espécie de porta-voz de uma geração mais velha de artistas LGBTQIA+ na tela, mesmo que ele sempre se recusasse a ser considerado um porta-voz da comunidade gay em geral.
  • 26
    Em setembro de 2017, uma exposição de arte em Porto Alegre intitulada Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira foi fechada antes do previsto, após uma campanha de mídia social de manifestantes de direita liderada pelo Movimento Brasil Livre, que acusaram os organizadores de terem feito uso do dinheiro público (Lei Rouanet) para promover a pedofilia, a zoofilia e a blasfêmia (Carneiro, 2018)CARNEIRO, Julia Dias. ‘Queermuseu’, a exposição mais debatida e menos vista dos últimos tempos, reabre no Rio. BBC News Brasil, 16 ago 2018 [https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45191250 - acesso em 16 de ago 2018].
    https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45...
    . O prefeito evangélico do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, juntou-se à indignação coletiva, recusando-se a permitir que a exposição fosse realizada no novo Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR). A exposição, no entanto, continuou sua jornada rumo ao Rio, graças a uma campanha recorde de crowdsourcing criada pelo diretor da Escola de Artes Visuais do Parque Lage no Rio, Fabio Szwarcwald, que apesar de trazer apoio financeiro muito necessário e interesse para a escola, quase perdeu o emprego como resultado da exposição.
  • 27
    Por exemplo, as vaias de cenas de Freddie Mercury (Rami Malik) beijando outro homem no grande sucesso Bohemian Rhapsody (Brian Singer, 2018).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    31 Dez 2019
  • Aceito
    29 Out 2020
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