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Debate sobre o artigo de Dina Czeresnia & Adriana Maria Ribeiro

Debate on the paper by Dina Czeresnia & Adriana Maria Ribeiro

DEBATE DEBATE

Marcelo Urbano Ferreira

Departamento de Parasitologia, Instituto de Ciências Biomédicas, Universidade de São Paulo. muferrei@usp.br

Debate sobre o artigo de Dina Czeresnia & Adriana Maria Ribeiro

Debate on the paper by Dina Czeresnia & Adriana Maria Ribeiro

No final do século XVIII, os médicos passaram a interrogar o corpo humano em busca da sede das doenças, que Morgagni e Bichat localizariam nos órgãos e tecidos e Virchow, posteriormente, na célula. Quase simultaneamente, a medicina social buscava compreender a distribuição das doenças em populações humanas e seus determinantes. A idéia de território das doenças surge, portanto, em contextos distintos. O território da clínica é delimitado por disciplinas como a anatomia, a histologia e a patologia, enquanto o espaço que a medicina social investiga corresponde ao objeto de estudo do geógrafo. Embora técnicas cartográficas viessem sendo utilizadas, ao longo do século XIX, para descrever a distribuição das doenças humanas, o intercâmbio conceitual entre a medicina social e a geografia somente se intensifica em meados do século XX. Esse intercâmbio é o tema central do oportuno artigo de Dina Czeresnia & Adriana Maria Ribeiro.

A principal vertente acadêmica da geografia médica surge em 1943, com a publicação do primeiro volume da obra magistral de Max Sorre, Les Fondements de la Géographie Humaine, dedicado aos seus fundamentos biológicos. Sorre propõe aqui o complexo patogênico como um conceito de integração entre a geografia e as ciências biológicas. A geografia médica aplicada torna-se popular a partir de 1939, quando o parasitologista russo Y. N. Pavlovsky lança a sua teoria dos focos naturais das doenças humanas, que teria servido de base para as atividades de controle de diversas endemias rurais no território soviético. Do ponto de vista conceitual, importa examinar como Sorre e Pavlovsky interpretam as relações entre o homem, o espaço geográfico e as doenças, e em que consiste a novidade de suas proposições (Ferreira, 1991).

O foco natural das doenças é descrito em Pavlovsky como um objeto da geografia física: uma paisagem caracterizada por elementos climáticos e de cobertura vegetal, onde circulam agentes etiológicos, vetores e reservatórios de uma infecção. O ser humano situa-se fora do foco, ainda que eventualmente sua ação sobre a paisagem possa contribuir para a disseminação de infecções. Sua posição hierárquica corresponde exatamente à dos demais elementos paisagísticos e biológicos em jogo. Não há, no plano conceitual, nenhuma ruptura com a tradição positivista; a noção de foco natural reaparecerá na tríade clássica agente-hospedeiro-meio da epidemiologia funcionalista de Leavell & Clarck (1976). No Brasil, as idéias de Pavlovsky teriam ampla divulgação nos escritos de Samuel Pessoa (1978), cujo valor reside mais em seu caráter de denúncia social do que em seu apuro conceitual ou metodológico.

Por outro lado, o complexo patogênico de Sorre pertence ao âmbito da geografia humana. Nele, o papel do homem não se restringe ao plano biológico, como eventual hospedeiro de agentes infecciosos. A doença não surge ou desaparece como fenômeno natural; a gênese ou desintegração dos complexos patogênicos é condicionada pela ação humana sobre o ambiente. No entanto, Sorre prende-se a uma perspectiva ecológica para compreender esta ação humana, sintetizada em seu conceito de gênero de vida. Os diferentes gêneros de vida resultariam de modos diversos de adaptação do homem às dificuldades impostas pelo meio geográfico. Não cabem nessa perspectiva atores sociais em conflito de classes nem formações sociais que geram determinados modos de ocupação do espaço. A fria recepção das idéias de Sorre no Brasil, pelo menos entre os epidemiologistas, pode ser medida pela inexistência de estudos empíricos que se utilizam de seu conceito de complexo patogênico.

A geografia crítica proporciona outro possível elo de interação entre a epidemiologia e a geografia. Entre os epidemiologistas de formação positivista, no entanto, há dificuldade de absorver conceitos de espaço incompatíveis com a tríade agente-hospedeiro-meio. O problema básico reside no modo como se analisa a relação entre as partes e o todo. Ora, na geografia crítica o espaço humano é interpretado como uma totalidade que resulta da ação do homem organizado em sociedade sobre a paisagem. Nas palavras de Milton Santos, "a essência do espaço é social. Nesse caso, o espaço não pode ser apenas formado pelas coisas, os objetos geográficos, naturais e artificiais, cujo conjunto nos dá a Natureza. O espaço é tudo isso, mais a sociedade: cada fração da natureza abriga uma fração da sociedade atual" (Santos, 1985). Essa totalidade não resulta meramente da justaposição de seus componentes, nem estes podem ser compreendidos sem referência à totalidade.

No plano teórico, a maior contribuição sobre espaço e doença da epidemiologia brasileira deve-se a Luiz Jacintho da Silva (Silva, 1991), que radicaliza a noção de foco antropúrgico de Pavlovsky em seus estudos sobre a doença de Chagas no Estado de São Paulo. Geógrafos brasileiros vêm realizando trabalhos metodológicos e empíricos valiosos, como aqueles reunidos na obra coordenada por Alberto Najar & Eduardo Marques (Najar & Marques, 1998), não mencionados por Czeresnia & Ribeiro. A vasta obra geográfica de Milton Santos, que ganha cada vez mais leitores no Brasil, propõe uma sólida base conceitual para a epidemiologia social lidar com os problemas do espaço. A geografia urbana, em especial, convive com fecundas teorias do espaço de orientação marxista, como as de Manuel Castells & Henri Lefebvre (Castells & Lefebvre, apud Gottdiener, 1997). Criam-se condições para que a geografia médica brasileira se liberte de sua tradição de descrever (e eventualmente denunciar) a ocorrência e distribuição das endemias rurais e se debruce sobre temas como, por exemplo, a emergência de doenças infecciosas nas cidades. AIDS e tuberculose estão na pauta dessas futuras investigações.

FERREIRA, M. U., 1991. Epidemiologia e Geografia: O complexo patogênico de Max Sorre. Cadernos de Saúde Pública, 7:301-309.

GOTTDIENER, M., 1997. A Produção Social do Espaço Urbano. São Paulo: Edusp.

LEAVELL, S. & CLARCK, E. G., 1976. Medicina Preventiva. São Paulo: McGraw-Hill.

NAJAR, A. L. & MARQUES, E. C., 1998. Saúde e Espaço: Estudos Metodológicos e Técnicas de Análise. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.

PESSOA, S. B., 1978. Ensaios Médico-Sociais. São Paulo: CEBES/Editora Hucitec.

SANTOS, M., 1985. Espaço e Método. São Paulo: Nobel.

SILVA, L. J., 1991. Evolução da Doença de Chagas no Estado de São Paulo. Tese de Doutorado, Ribeirão Preto: Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Mar 2003
  • Data do Fascículo
    Set 2000
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