Acessibilidade / Reportar erro

O (IN)EVITÁVEL “MONSTRUOSO BICHO REPUGNANTE” (UNGEHEUERES UNGEZIEFER) NA RETRADUÇÃO DE DIE VERWANDLUNG DE KAFKA

THE (UN)AVOIDABLE “MONSTROUS DISGUSTING BUG” (UNGEHEUERES UNGEZIEFER) IN THE RETRANSLATION OF KAFKA’S DIE VERWANDLUNG

Resumo

O presente artigo discute questões trazidas pela prática da retradução de uma obra clássica e suas implicações no sistema literário da língua alvo, a partir de um caso específico, que consiste na retradução de Die Verwandlung (A metamorfose) de Franz Kafka para o público leitor brasileiro, um trabalho comissionado que realizei para uma editora brasileira em 2019. Parte-se de uma questão terminológica e de complexa resolução em qualquer língua-alvo: Como traduzir para o português o termo Ungeziefer? O termo, que aparece logo nas primeiras linhas da novela de Kafka para definir a nova configuração do metamorfoseado protagonista Gregor Samsa, foi traduzido como “inseto” nas diversas traduções da obra publicadas no Brasil. A proposição de uma nova tradução para a palavra Ungeziefer, nesse contexto, encontra obstáculos que serão discutidos a partir da mais elementar questão que surge ao se pensar numa retradução: Por que retraduzir uma obra já traduzida? E agora uma questão mais direcionada para o público da língua alvo: Por que retraduzir Die Verwandlung para o português brasileiro se já existe uma tradução notável, ou, se preferirmos, “consagrada” (Deane-Cox 33), de 1985, feita pelo germanista brasileiro Modesto Carone (1937-2019), que não soa, de modo algum, como desatualizada?

Palavras-chave
Retradução; Franz Kafka; A Metamorfose; Ungeheueres Ungeziefer; Tradução

Abstract

This article discusses issues brought about by the practice of retranslating a classic work and its implications for the literary system of the target language, based on a specific case, which consists of Franz Kafka’s Die Verwandlung (The MetamorphosisKafka, Franz. The Metamorphosis. Tradução de Stanley Corngold. New York: Banham Classics, 2004 (1a.ed.1972)) retranslation for the Brazilian readership, a commissioned work that I did for a Brazilian publisher in 2019. It starts with a terminological and complex question to be solved in any target language: How to translate the term Ungeziefer into Portuguese? The term, which appears in the very first lines of Kafka’s novella to define the new configuration of the metamorphosed protagonist Gregor Samsa, was translated as “insect” in the various translations of the work published in Brazil. The proposal for a new translation for the word Ungeziefer, in this context, encounters obstacles that will be discussed from the most elementary question that arises when thinking about a retranslation: Why retranslating a work already translated? And now a more targeted question for the target readership: Why translating Die Verwandlung into Brazilian Portuguese if there is already an remarkable translation, or, if we prefer, “consecrated” translation (Deane-Cox 33), from 1985, made by the Brazilian Germanist Modesto Carone (1937-2019)?

Keywords
Retranslation; Franz Kafka; Metamorphosis; Ungeheueres Ungeziefer; Literary Translation

Entre as obras literárias clássicas e as retraduções há uma “complexa interdependência circular”, de acordo com Koskinen e Paloposki (2015)Koskinen, K. e Paloposki, O. “Anxieties of influence. The voice of the first translator in retranslation”. Target 27:1, (2015): 25-39.. Para eles, “classics are considered worthy of reinterpretation and are thus often retranslated, but retranslation is also considered a signal of the work’s status as a classic, and the act of retranslation can be considered to raise it into the class of classics” (27). A novela Die Verwandlung de Kafka, escrita em 1912 e traduzida do alemão quase sempre com o título A metamorfose (The MetamorphosisKafka, Franz. The Metamorphosis. Tradução de Stanley Corngold. New York: Banham Classics, 2004 (1a.ed.1972), La MétamorphoseKafka, Franz. Metamorphosis. Webster’s German, Thesaurus Edition, for ESL, EFL, ELP, TOEFL, TOEIC, and AP Test Preparation. Tradução de David Wyllie. San Diego: Icon Group International, 2005., La Metamorfosis, La Metamorfosi etc)1 1 Há alguns exemplos de traduções que optaram pela palavra de origem latina, “transformação”, para o título da narrativa, como por exemplo, uma edição em espanhol, de 2005, intitulada La Transformación, e uma outra edição em inglês, de 1995, The Transformation. (Cf. Cardozo, M., 184). “Metamorfose” é uma palavra de origem grega (μεταμóρφωση) cujos termos correspondentes, em alemão, podem ser “Metamorphose” ou “Verwandlung”, e, em latim, “Metamorphosen” ou “Transformatio” (Transformação: meta=trans; morfose=formação). Vale notar que Kafka não escolheu a palavra “Metamorphose”, mas optou por uma palavra de origem alemã. , está no rol dos mais célebres clássicos da literatura-mundo, não somente pelo incontestável valor literário da narrativa, mas também pela profusão de suas traduções e retraduções no mundo editorial. Não seria excessivo acrescentar que “metamorfose”, palavra de origem grega, contribui para reforçar ainda mais o status clássico da obra – dada a reminiscência do título da magnum opus de Ovídeo, Metamorfoses (Metamorphoseon libri)2 2 Em latim, Metamorphoseon libri ou Methamorphoses, é o título do compêndio de cerca de duzentos e cinquenta mitos gregos e romanos, escrito por Ovídeo, grande poeta latino. O livro foi traduzido para o alemão com o título Metamorphosen. , escrita há mais de 20 séculos.

Embora Die Verwandlung seja uma obra clássica relativamente recente – se comparada com a Ilíada e a Odisseia de Homero, ou mesmo com o livro das Metamorfoses, de Ovídeo, por exemplo –, ela também exige reinterpretações, assim como o exigem os textos antigos, e isso vale para um dos termos fulcrais na novela Die Verwandlung de Kafka: “Ungeziefer”, que aparece logo na frase de abertura da novela, para descrever a criatura em que se transformou o protagonista Gregor Samsa, ao acordar em certa manhã de um dia útil. O termo foi repetidamente traduzido como “insect” em inglês, e, em português, como “inseto”, palavra genérica que define uma classe de invertebrados dotados de três pares de patas articuladas, antenas, exoesqueleto quitinoso, entre outras características. No entanto, Kafka não quis definir claramente Gregor como um “inseto”3 3 A carta de Kafka escrita ao editor Kurt Wolff, datada de 25 de outubro de 1915, prova esse propósito do autor. Excerto da carta será apresentado mais adiante neste artigo. , ainda mais nessa primeira frase da narrativa – uma espécie de linha fronteiriça determinante para a Gestalt e a recepção da obra como um todo4 4 Nas palavras de David Lodge, em The Art of Fiction (4-5), “the beginning of a novel is a threshold, separating the real world we inhabit from the world the novelist had imagined. It should therefore, as the phrase goes, ‘draw us in’”. –, que acabou por se tornar numa das frases mais icônicas da literatura do século XX.

O presente artigo discute questões trazidas pela prática da retradução de uma obra clássica e suas implicações no sistema literário da língua alvo, a partir de um caso específico, que consiste na retradução de Die Verwandlung (A metamorfose) de Franz Kafka para o público leitor brasileiro, um trabalho comissionado que realizei para uma editora brasileira em 2019. Parte-se de uma questão terminológica, de complexa resolução em qualquer língua-alvo: Como traduzir para o português o termo Ungeziefer? Propõe-se uma nova tradução do termo para o português: “bicho”, em lugar de “inseto”, proposta esta que, vale destacar, foi revisada e modificada pelos demais agentes do mencionado trabalho comissionado para o familiar “inseto” que aparece em traduções anteriores. A proposição de uma nova tradução para a palavra Ungeziefer, nesse contexto, encontra obstáculos que serão discutidos a partir da mais elementar questão que surge ao se pensar numa retradução: Por que retraduzir uma obra já traduzida? E agora uma questão mais direcionada para o público da língua alvo: Por que retraduzir Die Verwandlung para o português brasileiro se já existe uma tradução notável, ou, se preferirmos, “consagrada” (Deane-Cox 33Deane-Cox, Sharon. Retranslation. Translation, Literature and Reinterpretation. London and New York: Bloomsbury, 2004.), de 1985, feita pelo germanista brasileiro Modesto Carone (1937-2019), que não soa, de modo algum, como desatualizada?

E pergunta-se ainda: em que medida a interdependência circular entre os clássicos e a retradução, apontada por Koskinen e Paloposki, promove um certo círculo vicioso no ato das retraduções, no sentido de que propor novas retraduções para palavras consagradas nas traduções de uma obra consagrada pode significar potencial fracasso em termos mercadológicos e de circulação da obra retraduzida?

[…] ungeheueren Ungeziefer: o repetido susto nas (re)traduções

A novela kafkiana Die Verwandlung apresenta, logo na frase de abertura, a nova configuração do protagonista, Gregor Samsa, que acorda e percebe que se transformou em um “ungeheueren Ungeziefer” – uma criatura repugnante e espantosa. Mas, a vida segue, assim como a imperdoável existência. E, Gregor simplesmente vive nessa nova e indefinida forma. Naturalmente, Gregor permanece em casa ao longo de toda a novela, até a sua morte, marginalizado por seus pais e sua irmã, por causa de sua forma asquerosa e de seu Dasein bestial.

Eis aqui a frase célebre que abre a narrativa: “Certa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num monstruoso bicho repugnante.” (Kafka: 1995Kafka, Franz. Die Verwandlung. Mit einem Kommentar von Vladimir Nabokov. Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 1995., 7, minha tradução)5 5 “Als Gregor Samsa eines Morgens aus unruhigen Träumen erwachte, fand er sich in seinem Bett zu einem ungeheueren Ungeziefer verwandelt.” .

No Brasil, a recepção de Die Verwandlung começa em 1956, com uma tradução indireta de Brenno Silveira (CruzKafka, Franz. A metamorfose. Tradução de Celso Donizete Cruz. São Paulo: Hedra, 2011b (1a.ed. 2009)., “Kafka no Brasil: as edições de ‘A metamorfose’”, 4) 6 6 Sobre a recepção da obra Die Verwandlung no sistema literário brasileiro, conferir também Metamorfoses de Kafka (Cruz, Metamorfoses de Kafka). , em que a expressão ungeheueres Ungeziefer é apresentada como “uma espécie monstruosa de inseto” (Kafka: 2018bKafka, Franz (2018b) A metamorfose. Tradução de Brenno Silveira. Rio de Janeiro: BestBolso, 2018b. (3a.ed.)., 5). Na década de 1960, segundo Celso Cruz, aparecem três edições de Die Verwandlung: uma delas é a mesma tradução de Brenno Silveira, em formato de bolso, e outra, de Torrieri Guimarães, compõe uma antologia de contos de Kafka, igualmente publicada em edição de bolso. A tradução de Torrieri, também indireta, traz a expressão “gigantesco inseto”. Na década de 1970, há mais uma tradução da novela, feita por Marques Rebelo, em que a expressão kafkiana aparece como “um monstruoso inseto” (Kafka: 1971Kafka, Franz. A metamorfose. Tradução de Marques Rebelo. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1971., 13). Há ainda outras edições da novela nos anos 1970, sendo que duas são republicações de Torrieri, e há uma adaptação de traduções existentes publicada pelo Clube do Livro.7 7 Sobre a “fábrica de traduções” do Clube do Livro, ver John Milton (2000). Em 1985, surge no Brasil, finalmente, a primeira tradução de Die Verwandlung feita diretamente do alemão para o português, por Modesto Carone (Kafka: 2018aKafka, Franz. A metamorfose. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2018a, 44.ed. (1a.ed.1985).), e, “assim que é publicada”, afirma Celso Cruz, “qualifica-se para ocupar a posição de tradução ‘oficial’ do autor [Kafka], logo sendo considerada, nos círculos mais altos da intelectualidade, a única recomendável […].” (CruzCruz, Celso Donizete. “Kafka no Brasil: as edições de ‘A metamorfose’”. XI Congresso Internacional da ABRALIC. Tessituras, Interações, Convergências. 13-17 julho, 2008. https://abralic.org.br/eventos/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/079/CELSO_CRUZ.pdf.
https://abralic.org.br/eventos/cong2008/...
, “Kafka no Brasil: as edições de ‘A metamorfose’”, 5). A tradução de Carone foi republicada na década de 1990, o que contribuiu, como observa Cruz, para consolidar a sua posição central no sistema literário brasileiro: “[…] não se trata mais de conquistar o centro, mas de preservar a posição alcançada.” (idem, 6). Essa tradução que se tornou central no sistema literário brasileiro traz também a imagem do “inseto” para Ungeziefer, assim como as traduções indiretas de Brenno, Torrieri e Rebelo. Carone traduz ungeheueres Ungeziefer como “um inseto monstruoso”. Traduções posteriores à de Carone, até os dias atuais, vêm mantendo a tradição do “inseto” nas primeiras linhas da narrativa, e a tentativa de metamorfosear esse inseto em outro bicho, como fiz em minha tradução, pode não ser realizável. Mas, por que transformar o Ungeziefer em outra coisa?

A coisa: Ungeziefer. Como definir indefinindo?

Etimologicamente, o termo Ungeziefer, origina-se do alto alemão médio ungezibere e ungezibele, e, associado à palavra zebar, do alto alemão antigo, que denota animais sacrificiais, contém a ideia de “‘animal impuro’ [unreines Tier], um animal talvez não adequado para o sacrifício” (Kluge 750Kluge, Friedrich. Etymologisches Wörterbuch der deutschen Sprache. 22. Auflage. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1989.). O prefixo “un” da palavra “Ungeziefer” contém a ideia de oposição ou de negação da palavra arcaica, e em desuso, “Geziefer”, que significa vítima (Opfer), e, por extensão, vítima sacrificial, ou animal digno de ser oferecido a divindades em ritos e festividades religiosas.8 8 Se Un-geziefer é a negação de Geziefer, a criatura de Kafka pode ser entendida, por extensão, como um animal indigno de ser ofertado como vítima sacrificial.

A palavra Ungeziefer, no uso cotidiano e atual do idioma alemão, e conforme apresenta a maioria dos dicionários de alemão, significa um pequeno e indesejável animal, que pode transmitir doenças e/ou pode despertar nojo e repugnância.9 9 Nenhum animal é em si um Ungeziefer, como vai mostrar Windelen em estudo que tematiza o uso dessa palavra no século XVIII: é o olhar, a língua e os parâmetros de valores que vão tornar um animal em um ‘Ungeziefer’ (Windelen 9). O termo evoca portanto esses dois aspectos: de impureza (associado à nocividade) e de aparência asquerosa. Incluídos nesse termo genérico podem estar as baratas, os ratos, vermes e parasitas, insetos, aranhas etc.

A nuance sensória da repugnância e do nojo contida em “Ungeziefer” acaba por ser omitida (ou fortemente minimizada) quando a palavra é traduzida por “inseto”. Por ser esta uma palavra que define uma classe específica de invertebrados, ressoa semanticamente como um termo mais científico do que sensorial. Vale lembrar que existe a palavra “Insekt” em alemão, que é perfeitamente correspondente a “inseto”, mas que não foi usada nem uma vez por Kafka em Die Verwandlung. Em artigo de 1960, “Ungeheueres Ungeziefer in Kafka’s ‘Die Verwandlung’”, Richard H. Lawson, já faz essa observação, e considera significativo o fato de Kafka não a ter usado na novela:

The transformed Gregor Samsa is regurlarly denoted in English as ‘insect’ or ‘vermin’. […] significantly, Kafka has not used it [Insekt] in ‘Die Verwandlung’. Insekt is too cold a word, too scientific, and incapable of bearing the negative, hence unpleasant connotation inherent in Ungeziefer. We should hardly expect Kafka, master of the literary symbol, to deprive himself of the basic symbolic content of his story by the use of a sterile symbol. English “insect” likewise lacks the emotional impact, the disgusting unpleasantness of Ungeziefer, and the use of the former imputes to Kafka a symbolic poverty and an unemotional objectivity which are exactly the opposite of the facts.

(Lawson 216-7Lawson, Richard H. “Ungeheueres Ungeziefer in Kafka’s ‘Die Verwandlung’”. The German Quarterly. v.33, n.3, (1960): 216-219.)

Os substantivos e expressões que aparecem na narrativa para a descrição do transformado Gregor, conforme nota de Lawson (idem, 216), são os seguintes: a palavra Tier (que pode significar animal, pet ou beast), usada três vezes; Mistkäfer (dung beetle), que aparece duas vezes; além das palavras Untier (monster, brute) e riesiger Fleck (huge stain). A palavra Insekt, portanto não descreve em nenhum momento de Die Verwandlung a nova configuração de Gregor. Conforme observa LawsonLawson, Richard H. “Ungeheueres Ungeziefer in Kafka’s ‘Die Verwandlung’”. The German Quarterly. v.33, n.3, (1960): 216-219., a primazia do Ungeziefer na narrativa é atestada não apenas pelo lugar de destaque que ocupa, logo na posição inicial da história, como também “by its being the sole denotement of the transformed Samsa for the first two-thirds of the story” (idem, 216).

Se ao longo dos dois primeiros capítulos Kafka não quis usar outras palavras, além de Ungeziefer, para definir e delimitar a nova configuração do protagonista, sem dúvida esse fato foi pensado estrategicamente na construção da ficção. É aos poucos, na narração, que Gregor vai descobrindo novas partes e funções em seu corpo, suas costas rijas como armaduras, suas numerosas perninhas, a utilidade de suas antenas, assim como novos hábitos e gostos, como o de se arrastar em zigue-zague pelas paredes e pelo teto, a aversão ao leite e a comidas frescas, o gosto particular que passou a ter de ficar pendurado no teto etc. Em dois dos três capítulos, Kafka evitou palavras que trouxessem, assim como as linhas de um desenho, imagens por demais definidoras dessa nova configuração estranhamente informe de Gregor. E palavras tais como “inseto”, “besouro”, “barata”, “verme”, apesar de genéricas, evocam formas, rompem com esse propósito de não-figuração do autor, com o cuidado em não usar imagens (palavras) totalizantes, definidoras de espécies e, consequentemente, de formas. Essa estratégia ficcional de Kafka fica explícita na carta que escreve, em 25 de outubro de 1915, ao editor Kurt Wolff, pouco antes da publicação de Die Verwandlung. Preocupado por saber que haveria um desenho na capa do livro, que seria feito pelo ilustrador Ottomar Starke, Kafka reagiu imediata e veementemente contra a figuração do inseto:

Ocorreu-me o seguinte, uma vez que Starke vai certamente fazer a ilustração, pode ser que ele queira desenhar o inseto de fato. Isso não, por favor, isso não! Não quero restringir seu [de Ottomar Starke] poder de atuação, mas apenas solicitar isso, a partir do meu conhecimento naturalmente maior da história. O inseto mesmo não deve ser desenhado. Mas ele não pode ser mostrado nem mesmo de longe.10 10 “Es ist nämlich mir, da Starke doch tatsächlich illustriert, eingefallen, er könnte etwa das Insekt selbst zeichnen wollen. Das nicht, bitte das nicht! Ich will seinen Machtkreis nicht einschränken, sondern nur aus meiner natürlicherweise bessern Kenntnis der Geschichte heraus bitten. Das Insekt selbst kann nicht gezeichnet werden. Es kann aber nicht einmal von der Ferne aus gezeichnet werden.”

(Kafka: 2011aKafka, Franz. Die Verwandlung. / Erstes Leid, editado por Claus Schlegel. Stuttgart; Leipzig: Klett, 2011a., 73, tradução minha)

É interessante notar que Kafka não quer apresentar Gregor (em palavras e em imagens) na forma explícita de um inseto, embora se refira a ele, na carta (ou seja, fora da ficção), como “o inseto” que não pode ser ilustrado. Na mesma carta, mais adiante, Kafka sugere outras cenas da novela para a ilustração de capa, em que Gregor Samsa naturalmente não aparece. O pedido foi acatado, e o desenho de Starke consistiu na cena do pai de Gregor, de roupão e chinelos, com as mãos a cobrirem o rosto, com as costas voltadas para uma porta entreaberta, em cuja fresta escura nada se via. Há vários indícios, portanto, de um interdito de concretização – Konkretisationsverbot (Grosse 65Grosse, Wilhelm von. Franz Kafka. Die Verwandlung. Stuttgart: Reclam, 2006.) de Kafka contra a figuração do inseto em Die Verwandlung,: o episódio explícito referente à ilustração de capa do livro; a escolha em não usar a palavra “inseto” (Insekt) em nenhum dos três capítulos da novela; a escolha, conforme destacou Richard H. Lawson, em não usar outra palavra, a não ser “Ungeziefer”, nos dois primeiros capítulos, para se referir ao Gregor transformado; o uso “preciso” de “Ungeziefer” para criar o efeito pretendido de uma imagem informe e “imprecisa” do espantoso Samsa re(des)configurado. Esses motivos me levaram a optar por não usar a palavra “inseto” em minha tradução para o português. Esta não foi, no entanto, a opção do tradutor Modesto CaroneCarone, Modesto. Lições de Kafka. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.. Em Lições de Kafka (2009), Carone apresenta a primeira frase de sua tradução de Die Verwandlung, e fundamenta a sua opção pelo uso de “inseto”:

Quando Gregor Samsa acordou, certa manhã, de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Essa tradução é horizontal e ‘correta’, mas perde alguns dos ingredientes básicos do original – como a reiteração de três negações pelo prefixo alemão un (unruhig, ungeheuer, Ungeziefer) [...]. Para o que agora nos interessa, o adjetivo ungeheuer (que significa monstruoso e como substantivo – das Ungeheuer – significa ‘monstro’) quer dizer, etimologicamente, ‘aquilo que não é mais familiar, aquilo que está fora da família, infamiliaris’, e se opõe a geheuer, isto é, aquilo que é manso, amistoso, conhecido, familiar. Por sua vez, o substantivo Ungeziefer (inseto), ao qual ungeheuer se liga, tem o sentido original pagão de ‘animal inadequado ou que não se presta ao sacrifício’, mas o conceito foi se estreitando e passou a designar animais nocivos, principalmente insetos, em oposição a animais domésticos como cabras, carneiros, etc. (Geziefer).

(Carone 24-25).

Creio que a repetição do prefixo “un” nas três palavras (unruhig, ungeheuer, Ungeziefer), conforme observa Carone, reforça ainda mais o desejo kafkiano de criar imagens que sejam indefinidas, por meio de negação dos opostos daquilo que quer configurar (uma definição/revelação por meio de negativas), conseguindo assim imprimir indefinição à imagem que cria. Esse modo negativo de composição de imagens no texto poderia ser comparado a um desenho feito com grafite em papel, que em seguida é apagado com borracha, deixando assim marcas tão sutis quanto imaginárias no suporte do papel: o esfumaçado (ou o sulco no papel) de linhas que não há. Essas linhas apagadas, no caso da escrita de Kafka, seriam as palavras negadas (ruhig, geheuer, Geziefer).

Na busca de uma solução “indefinida” para a palavra “Ungeziefer” em minha tradução, optei pela palavra “bicho” (e não inseto), dado o caráter genérico e fantasioso dessa palavra em português, ao mesmo tempo em que é uma palavra de uso corriqueiro e cotidiano, até mesmo para denominar pequenos animais indesejáveis e repugnantes, como por exemplo os insetos, as baratas, as aranhas, os carunchos, os vermes. O termo “bicho” nomeia também criaturas imaginárias, como o famigerado “bicho-papão” (boogeyman, bugaboo, ogre), que não tem aparência específica, mas pressupõe um aspecto monstruoso. No caso específico do “bicho-papão”, é um ser lendário que ameaça assustar as crianças caso não elas se comportem conforme as exigências dos adultos. “Bicho”, no meu entender, é uma palavra tão trivial quanto enigmática, que comporta em seu “pote” imagético todas as espécies do reino animal, das pulgas aos rinocerontes, dos unicórnios aos seres metamórficos.

Associado ao “bicho” (Ungeziefer) está o adjetivo “ungeheuer” (ungeheueres Ungeziefer), que, como explica Carone, tem o significado de “monstruoso”. Se eu traduzisse a expressão como “bicho monstruoso”, faltaria na imagem aquela nuance sensória da repugnância e do nojo, contida na palavra Ungeziefer. Por isso, adicionei mais um termo na tradução, resultando, portanto, na seguinte (in) definição: “monstruoso bicho repugnante”.11 11 expressão aproxima-se, em termos de contagem silábica, da expressão original: 10 sílabas em português (ou 9, se pararmos a contagem na última sílaba tônica) e 9 sílabas em alemão. O desenho prosódico, no entanto, não se repete na expressão traduzida. Para compensar, busquei recriar um efeito de repetição de sílabas nasais (monstruoso bicho repugnante) que acontece no original com a repetição do prefixo “un” (ungeheueren Ungeziefer). Numa tradução literária, conforme entendo, o ritmo (aliado às imagens) nem sempre é construído de forma matemática, linguisticamente falando. Uma palavra (ungeheuer) mais uma palavra (Ungeziefer) podem resultar, por exemplo, em três palavras (monstruoso bicho repugnante). Paradoxalmente, ter chegado a esta solução, com a qual, de modo geral, não estou insatisfeita, foi como ter chegado a uma fórmula matemática, cuja proposta primeira era repensar o automatismo tradutório nas retraduções dos clássicos. A equação, no entanto, foi testada, mas não aprovada pelos agentes revisores, o que constatei ao ver no mercado a publicação da minha tradução: o meu “monstruoso bicho repugnante” foi re-metamorfoseado em um “monstruoso inseto repugnante”. A adição do adjetivo “repugnante” permaneceu, mas o bicho informe (supostamente ungeheuer) foi substituído pelo familiaris inseto, mantendo-se assim a tradição de se traduzir Ungeziefer por inseto. Note-se que no contexto das retraduções de Die Verwandlung para diversos idiomas, a insistente repetição do termo “inseto” acabou por o transformar (verwandeln) em uma coisa geheuer, mansa, amistosa, domesticada, familiar. Por que não retraduzir A metamorfose de Kafka sem o (in)evitável inseto?

De novo a pergunta: Por que retraduzir uma obra já traduzida?

A primeira (e a mais elementar) questão que surge em relação à retradução12 12 Sobre reflexões atuais a respeito da retradução, partindo da “hipótese da retradução” de Berman, conferir Widman, J.: 2016, 39-47; Milton e Torres: 2003; Albachten e Gürçaglar: 2019. de uma obra clássica é esta: Por que retraduzir uma obra (como, por exemplo, Die Verwandlung de Kafka) que já foi traduzida inúmeras vezes para o português nas últimas seis ou sete décadas, desde a sua primeira aparição para o público leitor do Brasil? E por que retraduzir um clássico quando já existe uma tradução considerada “consagrada” (como a de Modesto Carone) num determinado sistema literário, como o sistema literário brasileiro? Uma das evidências desse caráter de “consagrado” (ou “oficial”) da tradução de Carone é o fato de que, em 2018 (um ano antes de sua morte)13 13 O jornal Folha de São Paulo, em artigo que anuncia a morte de Modesto Carone, assinado por Manuel da Costa Pinto (16 de dezembro de 2019), traz o seguinte título: “Modesto Carone, tradutor que mudou o jeito como lemos Kafka, morre aos 82 anos”. https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/12/modesto-carone-escritor-que-mudou-o-jeito-como-lemos-kafka-morre-aos-82.shtml. Acesso em 18/12/2020. , ela já se encontrava em sua 44ª reimpressão, um número bastante significativo em se tratando do mercado editorial brasileiro.

É plenamente compreensível e justificável a retradução de Die Verwandlung feita por Carone em 1985, pois até aquele momento não havia ainda no Brasil uma tradução feita diretamente do alemão. No posfácio de A metamorfose, o tradutor diz que procurou “acompanhar de perto a fidelidade possível não só à letra do texto, mas também à sintaxe pessoal do autor.” (Kafka: 2018Kafka, Franz. A metamorfose. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2018a, 44.ed. (1a.ed.1985)., 92) Nessa passagem, ele refere-se sobretudo às longas frases de Kafka, com grande carga de subordinações, o que de fato ele conseguiu recriar com notória perfeição em sua tradução. Os leitores brasileiros recebiam assim uma narrativa em português com construções frasais muito próximas daquelas do texto-fonte, e usufruíam ainda do resultado de um outro empenho, destacado por Carone em seu trabalho, que foi o de “encontrar um registro correspondente à dicção cartorial de Kafka” (idem: 93). Um estilo cartorial, marcadamente objetivo, resulta numa narrativa isenta (ou minimizada) de gírias ou de expressões datadas, e uma tradução fiel a esse estilo tem grandes chances de obter uma data de validade de longo prazo no mercado das edições. Em suma, os últimos 34 anos (desde a primeira publicação da tradução de Carone, em 1985, até o momento em que recebi o convite para retraduzir Die Verwandlung, em 2019Kafka, Franz. A metamorfose. Tradução de Petê Rissati. São Paulo: Antofágica Editora, 2019a.) não foram suficientes para que a tradução de Carone se transformasse num texto desatualizado ou démodé em relação aos padrões da linguagem atual, a ponto de justificar uma retradução da obra.

Gostaria de destacar aqui que no intervalo de apenas dois anos, entre 2018 e 2019, foram publicadas no Brasil quatro (re)traduções de Die Verwandlung14 14 Em 2020 foi lançada ainda mais uma retradução de Die Verwandlung (Kafka, 2020), feita por Luis Krausz. . Uma das publicações de 2018 consta como a terceira edição da tradução de Brenno Silveira, com prefácio de Ênio Silveira; a outra, também de 2018, é uma edição que reúne duas novelas de Kafka, Die Verwandlung e Das Urteil, ambas traduzidas por Marcelo Backes. Em maio de 2019, apareceu a tradução de Petê Rissati, cuja capa, de Lourenço Mutarelli e Pedro Inoue, ficou entre as dez finalistas do Prêmio Jabuti 2020; e, em outubro de 2019 apareceu a minha tradução. De 1985, este que poderíamos nomear de o ano zero da era Kafka d.C. (era KafkaKafka, Franz. The Metamorphosis. Tradução de Susan Bernofsky. New York: W.W. Norton, 2014. depois de Carone) no Brasil, até 2017 (ano 32 da era Kafka d.C.Kafka, Franz. Metamorphosis & Other Stories. Tradução de Michael Hofmann. New York: Penguin, 2007.) houve igualmente quatro novas traduções de Die Verwandlung, sendo uma delas feita por Celso Donizete CruzCruz, Celso Donizete. Metamorfoses de Kafka. São Paulo: Annablume, 2007., autor do livro Metamorfoses de Kafka (2007). O número reduzido de traduções nos 32 anos seguintes à publicação de Carone confirma o lugar central ocupado por esta no campo literário brasileiro.

O fato de não sobressair na tradução de Carone fatores que indiquem uma desatualização da mesma, seja em nível lexical, sintático, estilístico, ideológico, entre outros (Gürçaglar 486Gürçaglar, Sehnaz Tahir. “Retranslation”. Routledge Encyclopedia of Translation Studies, editado por Mona Baker e Gabriela Saldanha, London: Routledge, 2019, pp. 484-489.)15 15 Refiro-me ao verbete “retradução” da Routledge Encyclopedia of Translation Studies: “Van Poucke notes that ageing is not limited to lexical, syntactic or stylistic evolution; there are genre-related, cultural and ideological factors defining the way translations age.” (Sehnaz Tahir Gürçaglar:, 486). , leva-nos a crer que o renovado interesse das editoras por novas traduções, nos anos de 2018 e 2019, é fundamentalmente comercial, e não literário ou acadêmico. Não se trata, portanto, de buscar novas interpretações que difiram daquela inscrita na versão prévia (de Carone). Sendo assim, os editores investem primordialmente na comercialização do texto-fonte (Venuti 97), uma vez que está em jogo a capitalização de uma obra clássica (Die Verwandlung) de um autor consagrado (KafkaGrosse, Wilhelm von. Franz Kafka. Die Verwandlung. Stuttgart: Reclam, 2006.). Neste caso, conforme observa Venuti (Venuti 97Venuti, L. “Retranslations. The creation of value”. Venuti, L. Translation Changes Everything: Theory and Practice. N.Y e Philadelphia: Taylor & Francis Group, 2013, pp.95-108.):

[…] the decisive factor in the inscription is likely to be not a more reliable edition of the source text or more incisive scholarly research or greater stylistic felicity, but rather a bibliographic code that enables the translation to compete strongly on the book market, a code constituted by ‘ink, typeface, paper, and various other phenomena’ like cover art and illustrations, the source author’s portrait, and endorsements

(McGann 1991McGann, Jerome J. The textual condition. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1991.: 13).

As últimas edições de “A metamorfose” no Brasil primaram pelo design de capa e de miolo do livro, buscando modos inéditos de apresentação visual da criatura em que se tornou Gregor Samsa, seja ela já transformada ou no processo de transformação, reforçando assim o potencial de comercialização do clássico kafkiano para públicos diversificados. Conforme observa Celso Cruz: “Há Kafka para todo gosto, tanto para os formados quanto para os aspirantes; tanto para os leitores profissionais quando para os amadores; tanto para os eruditos quanto para os populares.” (CruzCruz, Celso Donizete. “Kafka no Brasil: as edições de ‘A metamorfose’”. XI Congresso Internacional da ABRALIC. Tessituras, Interações, Convergências. 13-17 julho, 2008. https://abralic.org.br/eventos/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/079/CELSO_CRUZ.pdf.
https://abralic.org.br/eventos/cong2008/...
, “Kafka no Brasil: as edições de ‘A metamorfose’”, 3-4)

No contexto editorial do Brasil de 2019, uma nova tradução de Kafka significa, portanto, ampliação garantida das vendas de um clássico apresentado em novas roupagens atrativas. Uma vez que o texto fonte está em domínio público e que não há monopólio dos direitos autorais por uma única editora, os custos para a produção do livro tornam-se mais reduzidos, o que permite maiores investimentos na apresentação visual da obra. Claramente, o fator decisivo para uma retradução não consiste na necessidade de uma edição mais próxima do texto fonte, se há no mercado uma tradução com as qualidades e o posicionamento no sistema literário como a de Carone. Após essas considerações, aceitei a proposta de traduzir de Die Verwandlung simplesmente porque não resisti à vontade de experimentar traduzir Die Verwandlung, de conviver intimamente com a obra durante o processo de tradução, da “tradução como experiência”, no sentido de Berman (23)Berman, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Tradução de Marie-Hélène C. Torres, Mauri Furlan, Andreia Guerini. 2.ed. Tubarão: Copiart. Florianópolis: PGET/UFSC, 2013., enraizado no conceito heideggeriano de experiência.

A ansiedade da influência na experiência da (re)tradução

Os (re)tradutores (e outros agentes da tradução, tais como editores, revisores, ilustradores etc) dificilmente estarão livres da influência do primeiro tradutor – mesmo que essa influência seja entendida de forma negativa, como uma busca de escape ou uma negação desse influxo. Koskinen e Paloposki, inspirados na abordagem de Bloom (1997)Bloom, Harold. The Anxiety of Influence: A Theory of Poetry. Oxford: Oxford University Press, 1997. 1a.ed. 1973. sobre os esforços de novos poetas para a superação da influência de seus antecedentes literários, identificaram essa necessidade e/ou dificuldade de escape (em relação ao primeiro tradutor) como “ansiedade de influência”, que deveria ser considerada, segundo os autores, como um dos elementos funcionais na área da (re)tradução:

The figure of the first translator, either as a real-life person, as a mental image or a textual construction, is one obvious potential source of dependency for the second translator and the readers of the second translators alike, and this influence, or the careful avoidance of any influence [grifo meu], may affect the translation process in a number of ways. […] the anxiety of influence is rarely if ever entirely absent, and should rather be considered one function of the field of translation [grifo meu]. Retranslation by definition belong to a long tail of rewritings, and they are not free of the influences caused by that tail.

(Koskinen & PaloposkiKoskinen, K. e Paloposki, O. “Anxieties of influence. The voice of the first translator in retranslation”. Target 27:1, (2015): 25-39., 26; 35)

Não há como ignorar a figura do primeiro tradutor (leia-se, Carone) ao se retraduzir Die Verwandlung para o público de leitores brasileiros, mesmo se esse for o propósito do (re)tradutor, ou seja, o propósito de ignorar a “primeira” tradução da obra (Koskinen e Paloposki 26Koskinen, K. e Paloposki, O. “Anxieties of influence. The voice of the first translator in retranslation”. Target 27:1, (2015): 25-39.). Foi esta a minha decisão inicial: não me deixar influenciar pela tradução de Carone durante o processo da primeira versão do meu trabalho. Ao concluir o segundo capítulo da novela, e antes de seguir para terceiro e último capítulo, decidi comparar a minha tradução com a de Carone e outras que tinha disponíveis. Para o meu espanto, as traduções tinham muitas semelhanças entre si, e a principal razão disso foi o fato de que os tradutores seguiram à risca “a letra” de Kafka, recriando as estruturas frasais com a máxima proximidade das do texto fonte.

Como tradutora, não vejo sentido em fazer uma retradução que não proponha novidades e diferenças em relação aos trabalhos anteriores. Por isso, decidi deixar em repouso os dois primeiros capítulos e modificar a minha translator’s agency (Venuti 98Venuti, L. “Retranslations. The creation of value”. Venuti, L. Translation Changes Everything: Theory and Practice. N.Y e Philadelphia: Taylor & Francis Group, 2013, pp.95-108.). Em vez de ignorar o primeiro tradutor (entenda-se “ignorar” no sentido de não ter contato com a sua tradução na primeira fase do meu trabalho, antes da revisão, para não me deixar influenciar), optei por seguir junto com ele no terceiro capítulo, traduzindo e, simultaneamente, comparando o meu texto com o dele (CaroneCarone, Modesto. Lições de Kafka. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.). E assim, fui buscando soluções diferentes das de Carone, sempre que possível e/ou necessário. A revisão final dos outros capítulos foi feita também com bases nesse princípio. Com frequência, quebrei as longas estruturas frasais de Kafka em frases menores, mas sempre com a preocupação de buscar um ritmo semelhante ao que eu percebia na prosa de Kafka, e entendendo, ao contrário de Carone (Kafka: 2018aKafka, Franz. A metamorfose. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2018a, 44.ed. (1a.ed.1985)., 93), que o fato de quebrar as frases não significava destruição da prosa de Kafka (tema para ser desenvolvido em um próximo artigo).

Considerações finais

A interdependência circular entre os clássicos e a retradução (Koskinen e Paloposki: 2015Koskinen, K. e Paloposki, O. “Anxieties of influence. The voice of the first translator in retranslation”. Target 27:1, (2015): 25-39.), reforçada pela existência de uma tradução que ocupe um lugar central no sistema literário da língua alvo, contribui para promover um círculo vicioso no ato das retraduções, o que se pode verificar no caso específico da minha tradução, para o português, da obra kafkianaKafka, Franz. Die Verwandlung. / Erstes Leid, editado por Claus Schlegel. Stuttgart; Leipzig: Klett, 2011a. Die Verwandlung, feita em 2019, e dirigida ao público leitor brasileiro. Como se viu, nessa altura já havia no mercado editorial uma tradução “consagrada” da novela, feita por Modesto Carone, sob o título de A metamorfose. Esta tradução, logo que foi lançada, em 1985, passou a ocupar uma posição central no sistema literário brasileiro, a ponto de poder ser pensada como um divisor de águas, que marca dois momentos da recepção do autor tcheco no Brasil: a era Kafka a.C. e a era Kafka d.C. (leia-se a.C. e d.C., respectivamente, como antes e depois de Carone). Uma vez que o interesse atual por novas traduções de Die Verwandlung tem-se mostrado fundamentalmente comercial, e não literário ou acadêmico, entendo que uma nova proposta de tradução para um termo fulcral como “Ungeziefer” (refiro-me aqui à minha proposta de “bicho” em lugar do tradicional “inseto”) pode significar potencial escândalo e, consequentemente, um risco, para a venda e a circulação de uma obra clássica retraduzida, na perspectiva dos demais agentes envolvidos no processo da retradução16 16 Sobre a tênue linha entre revisão e retradução, ver Palopski e Koskinen: 2020. (que, diga-se de passagem, se utilizam de traduções anteriores – e “oficiais”, quando há – para os acertos de conta e os ajustes ´fiscais´ da retradução).

  • 1
    Há alguns exemplos de traduções que optaram pela palavra de origem latina, “transformação”, para o título da narrativa, como por exemplo, uma edição em espanhol, de 2005, intitulada La Transformación, e uma outra edição em inglês, de 1995, The Transformation. (Cf. Cardozo, M., 184Cardozo, Maurício M. “Tradução como transformação: liminaridade, incondi-cionaidade e a crítica da relação tradutória”. Revista Letras, 85, (2012): 181-201.). “Metamorfose” é uma palavra de origem grega (μεταμóρφωση) cujos termos correspondentes, em alemão, podem ser “Metamorphose” ou “Verwandlung”, e, em latim, “Metamorphosen” ou “Transformatio” (Transformação: meta=trans; morfose=formação). Vale notar que Kafka não escolheu a palavra “Metamorphose”, mas optou por uma palavra de origem alemã.
  • 2
    Em latim, Metamorphoseon libri ou Methamorphoses, é o título do compêndio de cerca de duzentos e cinquenta mitos gregos e romanos, escrito por Ovídeo, grande poeta latino. O livro foi traduzido para o alemão com o título Metamorphosen.
  • 3
    A carta de Kafka escrita ao editor Kurt Wolff, datada de 25 de outubro de 1915, prova esse propósito do autor. Excerto da carta será apresentado mais adiante neste artigo.
  • 4
    Nas palavras de David LodgeLodge, Dawid. The Art of Fiction. Illustrated from Classic and Modern Texts. New York: Viking/Penguin, 1993., em The Art of Fiction (4-5), “the beginning of a novel is a threshold, separating the real world we inhabit from the world the novelist had imagined. It should therefore, as the phrase goes, ‘draw us in’”.
  • 5
    “Als Gregor Samsa eines Morgens aus unruhigen Träumen erwachte, fand er sich in seinem Bett zu einem ungeheueren Ungeziefer verwandelt.”
  • 6
    Sobre a recepção da obra Die Verwandlung no sistema literário brasileiro, conferir também Metamorfoses de Kafka (CruzCruz, Celso Donizete. Metamorfoses de Kafka. São Paulo: Annablume, 2007., Metamorfoses de KafkaKafka, Franz. A metamorfose. Tradução Petê Rissati. São Paulo: Planeta do Brasil, 2019b.).
  • 7
    Sobre a “fábrica de traduções” do Clube do Livro, ver John Milton (2000)Milton, John. O Clube do Livro e a tradução. São Paulo: Editora da Universidade Sagrado Coração, 2000..
  • 8
    Se Un-geziefer é a negação de Geziefer, a criatura de Kafka pode ser entendida, por extensão, como um animal indigno de ser ofertado como vítima sacrificial.
  • 9
    Nenhum animal é em si um Ungeziefer, como vai mostrar Windelen em estudo que tematiza o uso dessa palavra no século XVIII: é o olhar, a língua e os parâmetros de valores que vão tornar um animal em um ‘Ungeziefer’ (Windelen 9Windelen, Steffi. “Mäuse, Maden, Maulwürfe. Zur Thematisierung von Ungeziefer im 18. Jahrhundert”. PhD. Thesis. University of Gottingen, 2010.).
  • 10
    “Es ist nämlich mir, da Starke doch tatsächlich illustriert, eingefallen, er könnte etwa das Insekt selbst zeichnen wollen. Das nicht, bitte das nicht! Ich will seinen Machtkreis nicht einschränken, sondern nur aus meiner natürlicherweise bessern Kenntnis der Geschichte heraus bitten. Das Insekt selbst kann nicht gezeichnet werden. Es kann aber nicht einmal von der Ferne aus gezeichnet werden.”
  • 11
    expressão aproxima-se, em termos de contagem silábica, da expressão original: 10 sílabas em português (ou 9, se pararmos a contagem na última sílaba tônica) e 9 sílabas em alemão. O desenho prosódico, no entanto, não se repete na expressão traduzida. Para compensar, busquei recriar um efeito de repetição de sílabas nasais (monstruoso bicho repugnante) que acontece no original com a repetição do prefixo “un” (ungeheueren Ungeziefer).
  • 12
    Sobre reflexões atuais a respeito da retradução, partindo da “hipótese da retradução” de BermanBerman, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Tradução de Marie-Hélène C. Torres, Mauri Furlan, Andreia Guerini. 2.ed. Tubarão: Copiart. Florianópolis: PGET/UFSC, 2013., conferir Widman, J.: 2016Widman, Julieta. “A ‘hipótese da retradução’ pelas modalidades de tradução, nas traduções para a língua inglesa de A paixão segundo G.H.”. Dissertação de mestrado. Universidade de São Paulo, 2016. pp.39-47, 39-47; Milton e Torres: 2003Milton, John; Torres, Marie-Hélène C. Torres (org.) (2003) “Tradução, retradução e adaptação”. Cadernos de Tradução, v.1 n.11, (2003): 9-17.; Albachten e Gürçaglar: 2019Albachten, O.B; Gurçaglar, S.T. “Introduction”. Perspectives on Retranslation. Ideology, paratexts, methods, editado por Albachten, O.B e Gurçaglar, S.T., New York; London: Routledge, 2019..
  • 13
    O jornal Folha de São Paulo, em artigo que anuncia a morte de Modesto CaroneCarone, Modesto. Lições de Kafka. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., assinado por Manuel da Costa Pinto (16 de dezembro de 2019), traz o seguinte título: “Modesto Carone, tradutor que mudou o jeito como lemos Kafka, morre aos 82 anos”. https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/12/modesto-carone-escritor-que-mudou-o-jeito-como-lemos-kafka-morre-aos-82.shtml. Acesso em 18/12/2020.
  • 14
    Em 2020 foi lançada ainda mais uma retradução de Die Verwandlung (Kafka, 2020Kafka, Franz. A metamorfose e outras narrativas. Tradução de Luis S. Krausz. Ribeirão Preto: FTD, 2020.), feita por Luis Krausz.
  • 15
    Refiro-me ao verbete “retradução” da Routledge Encyclopedia of Translation Studies: “Van Poucke notes that ageing is not limited to lexical, syntactic or stylistic evolution; there are genre-related, cultural and ideological factors defining the way translations age.” (Sehnaz Tahir Gürçaglar:, 486Gürçaglar, Sehnaz Tahir. “Retranslation”. Routledge Encyclopedia of Translation Studies, editado por Mona Baker e Gabriela Saldanha, London: Routledge, 2019, pp. 484-489.).
  • 16
    Sobre a tênue linha entre revisão e retradução, ver Palopski e Koskinen: 2020Paloposki, Outi, e Kaisa Koskinen (2010) “Reprocessing Texts: The Fine Line between Retranslating and Revising”. Across Languages and Cultures 11 (1), (2010): 29-49..

Referências

  • Albachten, O.B; Gurçaglar, S.T. “Introduction”. Perspectives on Retranslation Ideology, paratexts, methods, editado por Albachten, O.B e Gurçaglar, S.T., New York; London: Routledge, 2019.
  • Berman, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo Tradução de Marie-Hélène C. Torres, Mauri Furlan, Andreia Guerini. 2.ed. Tubarão: Copiart. Florianópolis: PGET/UFSC, 2013.
  • Bloom, Harold. The Anxiety of Influence: A Theory of Poetry Oxford: Oxford University Press, 1997. 1a.ed. 1973.
  • Cardozo, Maurício M. “Tradução como transformação: liminaridade, incondi-cionaidade e a crítica da relação tradutória”. Revista Letras, 85, (2012): 181-201.
  • Carone, Modesto. Lições de Kafka São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
  • Cruz, Celso Donizete. Metamorfoses de Kafka São Paulo: Annablume, 2007.
  • Cruz, Celso Donizete. “Kafka no Brasil: as edições de ‘A metamorfose’”. XI Congresso Internacional da ABRALIC. Tessituras, Interações, Convergências 13-17 julho, 2008. https://abralic.org.br/eventos/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/079/CELSO_CRUZ.pdf
    » https://abralic.org.br/eventos/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/079/CELSO_CRUZ.pdf
  • Deane-Cox, Sharon. Retranslation. Translation, Literature and Reinterpretation London and New York: Bloomsbury, 2004.
  • Grosse, Wilhelm von. Franz Kafka. Die Verwandlung Stuttgart: Reclam, 2006.
  • Gürçaglar, Sehnaz Tahir. “Retranslation”. Routledge Encyclopedia of Translation Studies, editado por Mona Baker e Gabriela Saldanha, London: Routledge, 2019, pp. 484-489.
  • Kafka, Franz. The Metamorphosis and other stories Tradução de Edwin Muir e Willa Muir. Harmondsworth: Penguin Books, 1961.
  • Kafka, Franz. A metamorfose Tradução de Marques Rebelo. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1971.
  • Kafka, Franz. Die Verwandlung. Mit einem Kommentar von Vladimir Nabokov Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 1995.
  • Kafka, Franz. The Metamorphosis & Other Stories Tradução de Stanley Appelbaum. New York: Dover, 1996.
  • Kafka, Franz. The Metamorphosis Tradução de Stanley Corngold. New York: Banham Classics, 2004 (1a.ed.1972)
  • Kafka, Franz. Metamorphosis Webster’s German, Thesaurus Edition, for ESL, EFL, ELP, TOEFL, TOEIC, and AP Test Preparation Tradução de David Wyllie. San Diego: Icon Group International, 2005.
  • Kafka, Franz. Metamorphosis & Other Stories Tradução de Michael Hofmann. New York: Penguin, 2007.
  • Kafka, Franz. The Metamorphosis and Other Stories Tradução de Joyce Crick, com introdução e notas de Ritchie Robertson. Oxford and New York: Oxford University Press, 2009.
  • Kafka, Franz. Die Verwandlung. / Erstes Leid, editado por Claus Schlegel. Stuttgart; Leipzig: Klett, 2011a.
  • Kafka, Franz. A metamorfose Tradução de Celso Donizete Cruz. São Paulo: Hedra, 2011b (1a.ed. 2009).
  • Kafka, Franz. The Metamorphosis Tradução de Susan Bernofsky. New York: W.W. Norton, 2014.
  • Kafka, Franz. A metamorfose Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2018a, 44.ed. (1a.ed.1985).
  • Kafka, Franz (2018b) A metamorfose Tradução de Brenno Silveira. Rio de Janeiro: BestBolso, 2018b. (3a.ed.).
  • Kafka, Franz. A metamorfose e O Veredito Tradução de Marcelo Backes. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2018c.
  • Kafka, Franz. A metamorfose Tradução de Petê Rissati. São Paulo: Antofágica Editora, 2019a.
  • Kafka, Franz. A metamorfose Tradução Petê Rissati. São Paulo: Planeta do Brasil, 2019b.
  • Kafka, Franz. A metamorfose e outras narrativas Tradução de Luis S. Krausz. Ribeirão Preto: FTD, 2020.
  • Kluge, Friedrich. Etymologisches Wörterbuch der deutschen Sprache. 22. Auflage. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1989.
  • Koskinen, K. e Paloposki, O. “Anxieties of influence. The voice of the first translator in retranslation”. Target 27:1, (2015): 25-39.
  • Lawson, Richard H. “Ungeheueres Ungeziefer in Kafka’s ‘Die Verwandlung’”. The German Quarterly v.33, n.3, (1960): 216-219.
  • Lodge, Dawid. The Art of Fiction Illustrated from Classic and Modern Texts New York: Viking/Penguin, 1993.
  • McGann, Jerome J. The textual condition Princeton, NJ: Princeton University Press, 1991.
  • Milton, John. O Clube do Livro e a tradução São Paulo: Editora da Universidade Sagrado Coração, 2000.
  • Milton, John; Torres, Marie-Hélène C. Torres (org.) (2003) “Tradução, retradução e adaptação”. Cadernos de Tradução, v.1 n.11, (2003): 9-17.
  • Paloposki, Outi, e Kaisa Koskinen (2010) “Reprocessing Texts: The Fine Line between Retranslating and Revising”. Across Languages and Cultures 11 (1), (2010): 29-49.
  • Venuti, L. “Retranslations. The creation of value”. Venuti, L. Translation Changes Everything: Theory and Practice N.Y e Philadelphia: Taylor & Francis Group, 2013, pp.95-108.
  • Widman, Julieta. “A ‘hipótese da retradução’ pelas modalidades de tradução, nas traduções para a língua inglesa de A paixão segundo G.H”. Dissertação de mestrado. Universidade de São Paulo, 2016. pp.39-47
  • Windelen, Steffi. “Mäuse, Maden, Maulwürfe. Zur Thematisierung von Ungeziefer im 18. Jahrhundert”. PhD. Thesis. University of Gottingen, 2010.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    13 Jun 2021
  • Aceito
    21 Ago 2021
  • Publicado
    Set 2021
Universidade Federal de Santa Catarina Campus da Universidade Federal de Santa Catarina/Centro de Comunicação e Expressão/Prédio B/Sala 301 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: suporte.cadernostraducao@contato.ufsc.br