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TRADUÇÃO E HISTÓRIA EM ANATOL ROSENFELD

TRANSLATION AND HISTORY IN ANATOL ROSENFELD

Resumo

“Poemas brasileiros em versão alemã e vice-versa” é um ensaio escrito por Anatol Rosenfeld. Ele inclui uma reflexão teórica sobre tradução, e uma série de estudos de casos. O ensaio aborda traduções de poemas brasileiros para o alemão, e traduções de poemas alemães para o português. Alguns elementos neste ensaio estão relacionados com outros trabalhos desse crítico. Suas preocupações referentes a linguagens e tradução se relacionam com suas posições a respeito de tópicos de estudos de filmes, teatro e política.

Palavras-Chave
Tradução; Anatol Rosenfeld; Alemanha; Nazismo; Totalidade

Abstract

“Poemas brasileiros em versão alemã e vice-versa” is an essay written by Anatol Rosenfeld. It includes a theoretical reflection on translation and a series of case studies. The essay approaches translations of Brazilian poems to German and translations of German poems to Portuguese. Some elements in this essay are related to other works from this critic. His concerns regarding languages and translation relate to his positions on topics from Film Studies, Theater and Politics.

Keywords
Translation; Anatol Rosenfeld; Germany; Nazism; Totality

Em um ensaio de 1959, “Poemas brasileiros em versão alemã e vice-versa”, Anatol Rosenfeld elaborou uma reflexão sobre a tradução de poesia. O autor comentou, nesse texto, exemplos de traduções de poemas. Entre os exemplos, constam trabalhos de João Accioli, como tradutor de Rainer Maria Rilke e Hermann Hesse para o português, e Tomás, como tradutora de Mário de Andrade e Cassiano Ricardo para o alemão. Rosenfeld associou os problemas encontrados com diferenças entre os dois idiomas, nas estruturas gramaticais e no vocabulário. Em razão de escolhas feitas pelos tradutores examinados, problemas de diversos tipos impregnam os casos analisados, como o desafio criado por uma palavra alemã que não encontraria equivalente justo em português, a inserção de rimas na tradução alemã de um original brasileiro que não apresenta rimas, e também a inserção de um adjetivo alemão, em uma posição na qual, no original brasileiro, não aparece um adjetivo, entre outros casos.

A análise dos exemplos demonstra que João Accioli e Tomás, como outros, foram prejudicados por dificuldades resultantes de diferenças entre os idiomas; ambos realizaram escolhas inadequadas, e não alcançaram propor aos leitores de seus trabalhos as mesmas condições de apreciação de poemas encontradas nas relações entre os autores originais e o seu público no país de origem. De acordo com a perspectiva adotada pelo ensaio, com as distorções resultantes das escolhas inadequadas, as traduções analisadas não apresentam condições para que um leitor conhecedor de ambos os idiomas, como Rosenfeld, fique satisfeito com os resultados dos trabalhos.

O ensaísta critica uma situação na qual a obra traduzida segue convenções poéticas com as quais o original rompe. Em respeito ao uso do verso livre nos poemas “Sambinha” e “Viuvita” de Mário de Andrade, Rosenfeld diverge da escolha de Tomás em traduzi-lo inserindo rimas. Essa posição mostra um interesse por respeitar a fragmentação desse poema modernista.

Um elemento importante nesse ensaio é o emprego da expressão “no contexto da totalidade”, para fazer referência a um texto traduzido completo. Ao avaliar o efeito dos resultados de cada tradução, Rosenfeld observa como detalhes específicos podem ser relevantes para a leitura completa, e nesse sentido, como problemas específicos com fragmentos textuais podem prejudicar a qualidade de um trabalho de tradução em seu conjunto.

A viabilidade de uma “totalidade” poética, nesse caso, depende de relações entre objetos diversos; a totalidade e as partes são interdependentes, assim como no caso da montagem de um filme (RosenfeldRosenfeld, Anatol. Poemas brasileiros em versão alemã e vice-versa. Letras e leituras, Rosenfeld, Anatol (Ed.). São Paulo: Perspectiva/Edusp/Ed.Unicamp, 1994., “Poemas brasileiros em versão alemã e vice-versa”, 67). Além disso, o ensaio sugere que a correspondência entre um original e uma tradução não é completa. É afirmado que a conexão entre um poema original e um poema traduzido é de uma semelhança “até certo ponto”, tendo em vista as origens em nações diferentes. Em razão da interdependência entre o todo e as partes, na construção da forma, a atribuição de valor estético para um poema original, assim como para uma tradução de um poema, não deve considerar apenas o efeito de leitura do conjunto, mas necessariamente também as partes, consideradas de maneira relacional. Nos casos dos poemas de Mário de Andrade, a substituição do verso livre por versos rimados, nessa perspectiva, altera a significação, assim como prejudica o valor do resultado. Em termos conceituais, apesar de sua importância, a “totalidade” da obra não pode ser avaliada esteticamente por si mesma, mas em sua interdependência com fragmentos constitutivos de sua materialidade.

Essa atenção aos pormenores de uma obra é muito relevante quando, como é o caso, ao crítico importa a aproximação entre os dois países nos quais se originam poemas analisados. Considerando outros trabalhos de Rosenfeld, esse ensaio pode ser considerado como uma metonímia de uma problemática maior, que diz respeito às condições de relacionamento entre países na década de 1950. Essas condições são dificultadas por polarizações políticas que dificultavam o estabelecimento de confiança entre diferentes países, no contexto da Guerra Fria. No caso específico aqui contemplado, a isso se soma o fato de que, na Segunda Guerra Mundial, Alemanha e Brasil estiveram em posições opostas nos conflitos. As relações culturais entre os dois países são articuladas com esses problemas contextuais. Como crítico do nazismo, e residente no Brasil por exílio, Rosenfeld enfrentou o desafio de refletir sobre as relações culturais, com uma elevada e detalhada consciência desses elementos contextuais. Buscar maneiras de aperfeiçoar essas relações, aproximando os dois países, é um horizonte relevante para ele. Criticar traduções para incentivar uma qualificação dos resultados do trabalho de tradutores é uma atribuição que contribui efetivamente para essa busca.

Cabe chamar a atenção para o fato de que, na página 68 desse ensaio, é encontrada uma tradução, por parte do próprio Rosenfeld, de um fragmento de Rilke. Para além de criticar trabalhos de tradução, ele também a exercita. Em razão disso, é necessário assinalar que as preocupações teóricas a respeito da tradução incluem um componente de autoconsciência. Embora o ensaio apresente exemplos de outros profissionais, esse fragmento evidencia uma disposição para se expor publicamente. Por mais casual que pareça para a argumentação, o fato de Rosenfeld se expor o aproxima do campo de trabalho a respeito do qual ele comenta, descrevendo dificuldades.

Uma das funções desse ensaio, pela maneira particular como foi configurado, é localizar um fundamento comum para problemas em traduções, evitando a simplificação do tema abordado. Para que o leitor do ensaio tenha uma noção do alcance dos problemas que se apresentaram para os tradutores, o ensaísta entendeu que era necessário considerar pelo menos dois ângulos (os poemas alemães em suas relações com o idioma português, e os poemas brasileiros em suas relações com o alemão) ao formular e analisar esse problema.

“Poemas brasileiros em versão alemã e vice-versa” é um ensaio que pode ser lido de maneira contextualizada. Ele partilha com o ensaio “Arte e fascismo” um interesse por critérios de atribuição de valor para a poesia. No primeiro caso, a ênfase está nas relações entre as obras e os idiomas; no segundo, a ênfase está na ética e na historicidade. O texto de 1946 confrontava dúvidas sobre a independência entre uma obra de um autor e sua biografia, procurando no horizonte uma explicação para que escritores (como Ezra Pound) pudessem, por um lado, expressar simpatia pelo fascismo e, por outro, escrever poemas considerados como obras de arte. O texto de 1959 examinou as entranhas de traduções, para conferir nitidez ao que ele denominou de “malogros” (RosenfeldRosenfeld, Anatol. Poemas brasileiros em versão alemã e vice-versa. Letras e leituras, Rosenfeld, Anatol (Ed.). São Paulo: Perspectiva/Edusp/Ed.Unicamp, 1994., “Poemas brasileiros em versão alemã e vice-versa”, 67).

A leitura do ensaio conduz à convicção de que o diálogo entre Alemanha e Brasil deveria ser modificado; neste caso, na forma específica do diálogo poético. A compreensão das dificuldades nas relações entre os dois países consistia em um desafio importante para o autor, nascido na Alemanha, e radicado no Brasil em 1937, em razão de perseguições do regime nazista. As traduções, com suas limitações, ensejam uma forma de devir no campo das relações culturais. Boas traduções beneficiariam esse campo. É como se João Accioli e Tomás atuassem na arena das relações entre os dois países, e com seus “malogros” diminuíssem o alcance dessas relações.

As dificuldades para esse diálogo aparecem com nitidez em estudos de teatro. Em um texto de 1963, Rosenfeld comentou o programa de um espetáculo de “Cabaré alemão em São Paulo”, de Edith Goerigk. Nesse comentário, ele mostra satisfação pelo fato de que

boa parte do programa não enveredou em demasia por particularidades intricadas da República de Bonn (República Federal Alemã) e da R.D.A. (República Democrática Alemã), coisas só acessíveis àqueles que têm o tempo de ler minuciosamente jornais e revistas alemãs.

(RosenfeldRosenfeld, Anatol. “Cabaré alemão em São Paulo”. Estética e teatro alemão, Rosenfeld, Anatol (Ed.). São Paulo: Perspectiva, 2017., “Cabaré alemão em São Paulo”, 219)

A premissa do comentário é de que, com informações limitadas sobre o que acontece na Alemanha, um público brasileiro poderia não ter condições de admirar o espetáculo de Goerigk, caso o roteiro incluísse “particularidades intrincadas” de acontecimentos. A capacidade expressiva do espetáculo poderia ser incompreendida. Implicitamente, nesse trecho, é sugerido que no Brasil, através da imprensa ou de outras fontes, não circulam informações suficientes sobre a Alemanha. O acesso mencionado a jornais e revistas dependeria necessariamente do conhecimento do idioma alemão. O país (e não apenas o público de teatro) careceria de proximidade com o que ocorre na Alemanha.

Em 1966, ocorre uma nova apresentação de Edith Goerigk, e Rosenfeld publica suas impressões em “O Cabaré de Edith Goerigk”. Nesse artigo, o autor se detém em uma reflexão a respeito de um texto chamado “Melhor Ficar Aqui”, atribuído a E.R. Bock. A respeito desse texto, ele afirma:

Talvez seja pedante criticar o texto de Melhor Ficar Aqui (E.R. Bock), em si bem feito e bem interpretado. No entanto, é um tanto fácil realçar a cultura da Alemanha em face da cultura do Brasil, opondo Goethe a Pelé. Por que não opor Max Schmeling (boxeador), ou coisa que o valha, a Guimarães Rosa – a quem a crítica universal compara a James Joyce (um crítico alemão até o comparou a Homero)! [...] Tais comparações são especiosas, malévolas e sem sentido. [...] É característico dos alemães daqui [...] que desconheçam a cultura brasileira, ainda mais que os alemães de lá [...].

(RosenfeldRosenfeld, Anatol. “O Cabaré de Edith Goerigk”. Estética e teatro alemão, Rosenfeld, Anatol (Ed.). São Paulo: Perspectiva, 2017., “O Cabaré de Edith Goerigk”, 223)

O espetáculo de Goerigk motivou uma crítica a uma atitude, atribuída a Bock, um escritor alemão, de considerar a Alemanha como superior ao Brasil. A essa atitude, Rosenfeld opõe uma alternativa, através da valorização do escritor Guimarães Rosa. O argumento elogioso resgata comparações entre Rosa e escritores europeus, de modo a romper com o parâmetro eurocêntrico assinalado em Bock.

Lidos em uma aproximação, os textos de 1963 e 1966 apontam de modo complementar para um distanciamento cultural entre os dois países. Brasileiros não entendiam a Alemanha em uma medida que fosse adequada; alemães desconheciam a cultura brasileira. Em analogia com as observações sobre João Accioli e Tomás, é possível observar um desafio no alcance do entendimento de uma sociedade com relação à outra. Enquanto “Poemas brasileiros em versão alemã e vice-versa” delineia inconsistências entre originais e traduções, os dois artigos sobre Goerigk apontam para um distanciamento, por falta de conhecimento recíproco suficiente, entre as culturas dos dois países.

É expressivo que, no que se refere às relações culturais entre Brasil e Alemanha, depois da Segunda Guerra Mundial, Rosenfeld pense a respeito das condições de entendimento entre os dois países. Considerando os textos sobre Edith Goerigk, é possível observar que ele se importa com uma ignorância recíproca. Migrante, que deixou a Alemanha em razão do nazismo e passou a viver no Brasil, Rosenfeld apresenta essas observações sobre as relações culturais de maneira a dar visibilidade a perdas decorrentes da falta de aproximação entre os países; nesses casos, perdas de condições de apreensão de obras de arte. Com essa percepção de perdas se vincula um olhar de exilado, de um sujeito que teve uma trajetória cindida em razão do nazismo, que lembra de si no passado e “transforma-se ao mesmo tempo em um outro, alheio [...] entre identidade e não-identidade” (AdornoAdorno, Theodor. Dialética negativa. Rio de Janeiro: Zahar, 2009., Dialética negativa, 134). O impacto dos horrores da Segunda Guerra “possui um tal peso” que ele justifica “promover o conhecimento, conferindo-lhe uma certa prioridade” para que esses horrores não se repitam (AdornoAdorno, Theodor. Introdução à sociologia. São Paulo: Ed. UNESP, 2008., Introdução à sociologia, 77). Em sua experiência brasileira, a necessidade de reflexão constante, sobre esse impacto, direta ou indireta, urgente ou mediada, impregna a produção de conhecimento de Anatol RosenfeldRosenfeld, Anatol. Texto/contexto. São Paulo: Perspectiva, 1969..

Cabe ponderar a respeito de quais razões teriam levado Rosenfeld, ao escrever sobre traduções, a explicitar como, na sua opinião, traduzir é uma tarefa difícil, que causa “esplendores e misérias” (RosenfeldRosenfeld, Anatol. Poemas brasileiros em versão alemã e vice-versa. Letras e leituras, Rosenfeld, Anatol (Ed.). São Paulo: Perspectiva/Edusp/Ed.Unicamp, 1994., “Poemas brasileiros em versão alemã e vice-versa”, 67). Uma hipótese é de que Rosenfeld constituiu seu ensaio como um espaço dramático para dar visibilidade à complexidade de um desafio. Se João Accioli de algum modo prejudicou a compreensão, por parte de leitores brasileiros, de poemas alemães, e Tomás, simetricamente, danificou o conhecimento, por parte de leitores alemães, de poemas brasileiros, é como se as duas partes comprometessem um processo de comunicação bilateral. Teria sido diferente se Rosenfeld escrevesse um ensaio apenas sobre Accioli, ou apenas sobre Tomás.

É a encenação, entre uma página e outra, da visibilidade de problemas para ambos os públicos leitores, que revela a importância do interesse específico em lidar com as faltas de correspondências gramaticais e lexicais entre os dois idiomas, de modo a “mostrar as dificuldades da tradução” (RosenfeldRosenfeld, Anatol. Poemas brasileiros em versão alemã e vice-versa. Letras e leituras, Rosenfeld, Anatol (Ed.). São Paulo: Perspectiva/Edusp/Ed.Unicamp, 1994., “Poemas brasileiros em versão alemã e vice-versa”, 67). O problema não se restringe aos indivíduos Accioli e Tomás, mas é um desafio estabelecido pelos próprios idiomas; é como se o problema devesse ser compreendido em um espaço limiar, historicamente constituído.

É possível formular uma hipótese de que exista uma ligação entre esta reflexão de Anatol Rosenfeld sobre tradução e núcleos de seu pensamento. Seus escritos atravessam décadas, expondo temas muito variados e, em diversos momentos, eliminando fronteiras entre campos disciplinares. Essa diversidade constitutiva mostra um balanceamento entre a erudição e o olhar para o presente, entre a retomada constante de textos fundamentais e o interesse por rupturas na cultura e na política.

Dentro dessa diversidade, existem alguns elementos que reiteradamente contribuem para a sua criação intelectual. Jacó Guinsburg, analisando a formação intelectual de Rosenfeld, elaborou um vasto mapeamento de interesses filosóficos, e afirmou que ensaísta era resistente a qualquer dogmatismo. À “verdade monolítica e sem falha do discurso da tirania”, a perspectiva do exilado opõe um “espaço hesitante e de indecisão de uma verdade efêmera, inerente ao humano” (Viñar & Viñar, 66Viñar, Marcelo; Viñar, Maren. Exílio e tortura. São Paulo: Escuta, 1992.). Rosenfeld era contrário a pensamentos autoritários e a práticas políticas autoritárias; quanto a esse aspecto, Guinsburg afirma que Rosenfeld se opôs à ditadura militar no Brasil, apresentando em público seu posicionamento (GuinsburgGuinsburg, Jacó. “Anatol Rosenfeld e o irracionalismo”. Revista USP. n.11, 1991., “Anatol Rosenfeld e o irracionalismo”, 2011, 16).

As condições de produção de conhecimento por parte de Rosenfeld respeitavam a racionalidade, mas sem mitificá-la; “a ciência para ele não era um ídolo, mas tampouco a dispensava como fonte de conhecimento objetivo e verdadeiro”, e Rosenfeld condenava o emprego da ciência para fins destrutivos e opressivos (Idem). Em reflexões de Rosenfeld, o fascínio “estava [...] no complexo, no não-íntegro, no não-coerente” (GuinsburgGuinsburg, Jacó. “Anatol Rosenfeld e o irracionalismo”. Revista USP. n.11, 1991., “Anatol Rosenfeld e o irracionalismo”, 2011, 17). Em trabalhos de Rosenfeld, ocorre constantemente um interesse intelectual por fragmentos. Isso acontece em situações nas quais é observada, para mencionar uma anotação de Jacó Guinsburg, uma atenção dedicada ao não-íntegro, ao não-coerente (GuinsburgGuinsburg, Jacó. “Anatol Rosenfeld e o irracionalismo”. Revista USP. n.11, 1991., “Anatol Rosenfeld e o irracionalismo”, 2011, 17).

Nos estudos sobre cinema, essa atenção ganha nitidez. Em um filme, afirma Rosenfeld, é enorme a importância do “todo”; “vemos primeiramente o todo e apreendemos as partes posteriormente, através de uma análise” (RosenfeldRosenfeld, Anatol. Cinema: arte & indústria. São Paulo: Perspectiva, 2002., Cinema: arte & indústria, 227). A percepção da obra demanda uma atenção física ao conjunto de elementos apresentados ao longo do tempo de projeção; ao contemplar o filme por uma segunda vez, a atenção pode ser seletiva, priorizando um elemento expressivo dentre os diversos recursos empregados, um tema abordado, ou um personagem particular, e assim por diante. A função das partes ganha inteligibilidade depois de uma apreensão do todo. Essa compreensão leva, em sua argumentação, dialeticamente, a estudar fragmentos, observando efeitos da justaposição de partes, sucessões de diferentes ângulos, impactos de cortes, variações de planos, rupturas de continuidade, pormenores significativos e outros aspectos (RosenfeldRosenfeld, Anatol. Cinema: arte & indústria. São Paulo: Perspectiva, 2002., Cinema: arte & indústria, 229-230). A valorização da montagem e da edição configura um elogio ao emprego inteligente de fragmentos. Essa argumentação expõe uma circunstância na qual um emprego da categoria de totalidade não tem uma função autoritária; o todo só existe em razão da dinâmica de articulação entre muitos fragmentos construídos em diversas linguagens, e o trabalho de edição constitui um espaço fílmico e um tempo fílmico que somente podem ser percebidos em razão da força da montagem (RosenfeldRosenfeld, Anatol. Cinema: arte & indústria. São Paulo: Perspectiva, 2002., Cinema: arte & indústria, 228). Nesse caso, a categoria da totalidade e a categoria do fragmento são interdependentes, e o valor artístico de um filme respeita essa interdependência. Assim como no caso de um filme, seguindo o pensamento de Rosenfeld, o efeito de leitura de um poema traduzido, como foi mencionado anteriormente, depende da construção do texto como um todo. Esse todo e suas partes estão em interdependência. Nesse sentido, Rosenfeld observa, na exemplificação em “Poemas brasileiros em versão alemã e vice-versa”, como uma escolha inadequada de uma única palavra (um único fragmento) pode prejudicar a qualidade do texto todo.

Nos artigos sobre filmes em cartaz, é possível encontrar sinais de resistência ao autoritarismo. Isso aparece com clareza em sua reflexão, marcada por elogios, sobre O cangaceiro, de Lima Barreto (RosenfeldRosenfeld, Anatol. Na Cinelândia paulistana. São Paulo: Perspectiva, 2002., Na Cinelândia paulistana, 202). A nitidez dessa posição é ainda maior no artigo sobre Alemanha Ano Zero, de Roberto Rossellini. Nesse caso, Rosenfeld descreve a Berlim pós-guerra, com “desolação geral, em meio às ruínas, com a fome rondando”, ambiente no qual um nazista incentiva um menino a matar seu próprio pai (Idem, 184). A crítica ao autoritarismo se volta tanto para um personagem brasileiro, na obra de Barreto, como para um personagem alemão, no caso de Rossellini.

Essa atenção a uma imagem da cidade de Berlim arruinada evoca a trajetória de Rosenfeld, segundo um relato de Décio de Almeida Prado, intitulado “Em memória de Anatol Rosenfeld (1912-1973)”, foi abalada pela emergência do nazismo. Esse abalo, de acordo com Jacó Guinsburg, contribuiu para delimitar parâmetros do pensamento de Rosenfeld.Rosenfeld, Anatol. “Arte e fascismo”. Texto/contexto II, Rosenfeld, Anatol (Ed.). São Paulo: Perspectiva/Ed. UNICAMP/EDUSP, 1993.

Testemunha e vítima que fora dos desvarios e barbaridades cometidas pelas mitificações ideológicas derivadas do irracionalismo romântico e nacionalista, era opositor ferrenho de toda orientação exclusivista, etnocentrada, fundamentalista, alimentada em místicas do Estado, do Chefe, da Raça, da Crença, da Classe, da Nação e da própria Razão.

(GuinsburgGuinsburg, Jacó. “Anatol Rosenfeld e o irracionalismo”. Revista USP. n.11, 1991., “Anatol Rosenfeld e o irracionalismo”, 16).

De acordo com Prado, “A subida do nazismo ao poder cortaria repentinamente toda uma perspectiva de vida, obrigando-o a deixar para trás parentes, amigos, a carreira universitária iniciada no campo da filosofia e das letras” (Prado, 5Prado, Décio de Almeida. “Em memória de Anatol Rosenfeld (1912-1973)”. Discurso. N.4, v.4, 1973.). O relato expressa que Rosenfeld se esforçou muito para aprender a língua portuguesa, com a qual não tinha contato na infância ou na adolescência. Prado registra que o ensaísta tinha interesse em compreender a violência e a agressividade; e que ficava irritado com uma “onda de irracionalismo” que o fazia relembrar “dolorosamente” a sua experiência na Alemanha (Prado, 5Prado, Décio de Almeida. “Em memória de Anatol Rosenfeld (1912-1973)”. Discurso. N.4, v.4, 1973.). Outro fator de perturbação para o ensaísta era a facilidade para o esquecimento; ele escreveu que “o esquecimento rápido, a incapacidade de sentir o sofrimento distante, noticiado em números abstratos, e a generalização leviana [...] têm consequências funestas quando se tornam hábitos mecanizados” (RosenfeldRosenfeld, Anatol. O que ninguém deve esquecer. Preconceito, racismo e política, Rosenfeld, Anatol (Ed.). São Paulo: Perspectiva, 2011., “O que ninguém deve esquecer”, 89).

Na década de 1950, diversos pensadores escreveram, sob o impacto da Segunda Guerra Mundial, sobre atividades artísticas e intelectuais. Um desafio desse período consistia em atribuir funções para o pensamento, tendo em vista que, mesmo com séculos de produção intelectual documentada e de ensino universitário, com obras de arte geniais, transformações na história das ideias, e estudos reconhecidos como fundamentais pelas ciências, não tinha sido evitado um movimento de autodestruição da humanidade que levou milhões de pessoas à desumanização e à morte1 1 Rosenfeld refletiu sobre a Alemanha, em “A crise da democracia”, e escreveu: “Por mais excelente que tenha sido a constituição de Weimar, ela não impediu na Alemanha a terrível barbárie do nazismo” (Rosenfeld, “A crise da democracia”, 206). . O ensaio “Arte e fascismo”, de 1946, foi uma manifestação exemplar de um interesse em valorizar a literatura e as artes, mesmo que em um contexto no qual o impacto das ações do fascismo foi extremo.

“O que ninguém deve esquecer” é um artigo que integra textos jornalísticos de Rosenfeld de 1946, e se refere diretamente a horrores da Segunda Guerra. Em sua opinião, a barbárie que dominava muitos alemães “durante essa matança, e cuja essência é uma lógica extremamente primitiva, está profundamente arraigada em todos nós” (RosenfeldRosenfeld, Anatol. O que ninguém deve esquecer. Preconceito, racismo e política, Rosenfeld, Anatol (Ed.). São Paulo: Perspectiva, 2011., “O que ninguém deve esquecer”, 88). A generalização proposta estende a descrição, com a ocorrência de dêixis pelo emprego de primeira pessoa do plural, aos leitores do artigo. Potencialmente, essa referência pode alcançar a humanidade como um todo. Em hipótese, pode existir uma relação direta entre essa generalização da barbárie e o tema das condições de entendimento entre sociedades diferentes (tema para o qual o estudo da tradução é uma referência prioritária). Se um país tem dificuldade em confiar no outro, e vice-versa, é compreensível, levando em conta o impacto da Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria, que o problema das limitações de compreensão entre sociedades diferentes se tornasse crucial. É como se o impacto da Segunda Guerra constituísse, no ano posterior ao fim dessa guerra, uma necessidade de cautela, um cuidado perante o risco de continuidade da violência extrema. Esse risco não seria exclusivamente vinculado a governantes ou a militares, ao contrário, seria uma expressão de uma lógica primitiva, como uma inclinação humana constitutiva para a destruição. O artigo tem elevada relevância histórica e pode ajudar a compreender problemas da atualidade no Brasil.

Escrevendo em 1950, sob o direto impacto dos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial, Rosenfeld tem consciência a respeito da escala de destruição que seres humanos foram capazes de empreender. É difícil imaginar uma sociedade pacífica diante dessas inclinações; é mais difícil supor que, se essa sociedade for constituída, que ela permaneça pacífica ao longo do tempo (RosenfeldRosenfeld, Anatol. O problema da paz universal. Kant e as nações unidas. A paz perpétua. Um problema para hoje, Guinsburg, Jacó (org.). São Paulo: Perspectiva, 2004., “O problema da paz universal. Kant e as nações unidas”, 97), sem emergências de violência.

É possível interpretar “Poemas brasileiros em versão alemã e vice-versa” como um ensaio no qual o estudo da tradução está impregnado de repercussões do passado da Alemanha. De maneira metafórica, o ensaio expressa uma ausência de síntese entre a origem alemã e a experiência brasileira do autor. Assim como as duas sociedades não compreendem suficientemente uma à outra, o ensaio de Rosenfeld não estabelece, em sua reflexão teórica sobre as línguas, nenhum horizonte de integração.

A aspiração pela ascensão de sociedades pacíficas após a Segunda Guerra Mundial pode ser alinhada com o interesse pelo aperfeiçoamento das relações culturais entre a Alemanha e o Brasil. Em ambos os casos, o autor elabora perspectivas de aumento das capacidades de entendimento entre diferentes sociedades e entre diferentes grupos. Levando em conta o contexto no qual escrevia, Rosenfeld evitou a crença na ascensão de sociedades pacíficas e preferiu a dúvida. Suas observações sobre a aproximação cultural entre Brasil e Alemanha são, de modo semelhante, impregnadas de dúvidas.

  • 1
    Rosenfeld refletiu sobre a Alemanha, em “A crise da democracia”, e escreveu: “Por mais excelente que tenha sido a constituição de Weimar, ela não impediu na Alemanha a terrível barbárie do nazismo” (RosenfeldRosenfeld, Anatol. “A crise da democracia”. Texto/contexto II, Rosenfeld, Anatol (Ed.). São Paulo: Perspectiva/Ed. UNICAMP/EDUSP, 1993., “A crise da democracia”, 206).

Referências

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  • Rosenfeld, Anatol. Texto/contexto São Paulo: Perspectiva, 1969.
  • Rosenfeld, Anatol. “Arte e fascismo”. Texto/contexto II, Rosenfeld, Anatol (Ed.). São Paulo: Perspectiva/Ed. UNICAMP/EDUSP, 1993.
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  • Rosenfeld, Anatol. Poemas brasileiros em versão alemã e vice-versa. Letras e leituras, Rosenfeld, Anatol (Ed.). São Paulo: Perspectiva/Edusp/Ed.Unicamp, 1994.
  • Rosenfeld, Anatol. Cinema: arte & indústria São Paulo: Perspectiva, 2002.
  • Rosenfeld, Anatol. Na Cinelândia paulistana São Paulo: Perspectiva, 2002.
  • Rosenfeld, Anatol. O problema da paz universal. Kant e as nações unidas. A paz perpétua. Um problema para hoje, Guinsburg, Jacó (org.). São Paulo: Perspectiva, 2004.
  • Rosenfeld, Anatol. O que ninguém deve esquecer. Preconceito, racismo e política, Rosenfeld, Anatol (Ed.). São Paulo: Perspectiva, 2011.
  • Rosenfeld, Anatol. “Cabaré alemão em São Paulo”. Estética e teatro alemão, Rosenfeld, Anatol (Ed.). São Paulo: Perspectiva, 2017.
  • Rosenfeld, Anatol. “O Cabaré de Edith Goerigk”. Estética e teatro alemão, Rosenfeld, Anatol (Ed.). São Paulo: Perspectiva, 2017.
  • Viñar, Marcelo; Viñar, Maren. Exílio e tortura São Paulo: Escuta, 1992.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    20 Jun 2021
  • Aceito
    22 Ago 2021
  • Publicado
    Set 2021
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