Acessibilidade / Reportar erro

GOETHE ALÉM DO NACIONAL: CONVERSAÇÕES ENTRE LEIPZIG E BAHIA

GOETHE BEYOND THE NATIONAL: CONVERSATIONS BETWEEN LEIPZIG AND BAHIA

Resumo

Com base nas Gespräche mit Goethe in den letzten Jahren seines Lebens 1823-1832 [Conversações com Goethe nos últimos anos de sua vida 1823-1832] (Leipzig, 1836), de Johann Peter Eckermann, até a sua publicação na Revista Americana (Bahia, 1848), sob o título “Conselhos de Goethe aos homens de lettras”, mostramos um exemplo de transferências culturais teuto-brasileiras em meados do século XIX. Nosso foco está voltado para as primeiras dinâmicas de tradução e circulação transcultural das Gespräche e da imagem do intelectual Goethe considerado como “colossal” muito além do nacional. Os suportes Foreign Quarterly Review e Revue britannique desempenharam um papel mediador essencial como plataformas de tradução, transferência e circulação da obra. Além da ressemantização das ideias de Goethe em cada contexto cultural, aqui especialmente sua ideia de liberdade tornara-se visível ao mesmo tempo que a sua transculturalidade e o papel de traduções no espaço cultural brasileiro, formando desde cedo a memória cultural estrangeira da literatura brasileira.

Palavras-chave
Transferências Culturais; História da Tradução; Periódicos; Johann Peter Eckermann; Johann Wolfgang von Goethe

Abstract

Based on Johann Peter Eckermann’s Gespräche mit Goethe in den letzten Jahren seines Lebens 1823-1832 [Conversations with Goethe in the last years of his life 1823-1832] (Leipzig, 1836), until its publication in the Revista Americana (Bahia, 1848) under the title “Conselhos de Goethe aos homers de lettras”, we show an example of German-Brazilian cultural transfers in the mid-nineteenth century. The focus is on the first dynamics of translation and cross-cultural circulation of the Gespräche and the image of the intellectual Goethe regarded as “colossal” far beyond the national. The suportes Foreign Quarterly Review and Revue britannique played an essential mediating role as platforms for the translation, transfer, and circulation of the work. Besides the resemantization of Goethe’s ideas in each cultural context, here especially his idea of freedom, it became visible at the same time as their transculturality and the role of translations in the Brazilian cultural space, forming from early on the foreign cultural memory of Brazilian literature.

Key Words
Cultural Transfers; Translation History; Periodicals; Johann Peter Eckermann; Johann Wolfgang von Goethe

1. Introdução

A obra Gespräche mit Goethe in den letzten Jahren seines Lebens (1836-1848) do poeta e autor Johann Peter EckermannEckermann, Johann Peter. Gespräche mit Goethe in den letzten Jahren seines Lebens 1823-1832.Organização Christoph Michel, com participação de Hans Grüters. Frankfurt: Deutscher Klassiker-Verlag, 2011. foi recentemente publicada no Brasil, na íntegra, pelo tradutor Mario Luiz FrungilloFrungillo, Mário Luiz. “Apresentação”. Conversações com Goethe nos últimos anos de sua vida: 1823-1832, Eckermann, Johann Peter (Ed.). Tradução de Mario Luiz Frungillo. 1ª Edição. São Paulo: Editora Unesp, 2016, pp. 9-16. sob o título Conversações com Goethe nos últimos anos de sua vida 1823-1832 (EckermannEckermann, Johann Peter. Conversações com Goethe nos últimos anos de sua vida 1823-1832. Tradução de Mário Luiz Frungillo. São Paulo: Editora Unesp, 2016., Conversações com Goethe nos últimos anos de sua vida 1823-1832)1 1 Será utilizada em seguida a tradução de Frungillo para referências textuais à obra de Eckermann. . Trata-se do primeiro volume do projeto editorial visando oferecer ao leitor brasileiro em três grandes seções os escritos de caráter autobiográfico e relatos de viagem, escritos de estética e incursões de Goethe no campo das ciências da natureza. O objetivo desta coleção é fornecer o acesso mais amplo possível à variedade da obra não literária de Goethe. Muitas passagens das Conversações são ainda hoje consideradas como máximas e sabedorias de vida, mesmo sem o contexto mais amplo do texto, e oferecem fragmentos para comentários críticos sobre fenômenos contemporâneos.

A presente contribuição abordará o caminho da primeira viagem de fragmentos textuais das Conversações de Eckermann, de Leipzig à Bahia via imprensa, passando pela Inglaterra e a França em meados do século XIX. Utilizamos como base teórico-metodológica o conceito interdisciplinar de transferts culturels, desenvolvido por Michel EspagneEspagne, Michel. “Transferências Culturais e História do Livro”. Tradução de Valéria Guimarães. Livro – Revista do núcleo de Estudos do Livro, 2 (2012): 21-34. e Michael Werner no contexto franco-alemão dos anos 1980 e traduzido no Brasil desde os anos 1990 como “transferências culturais”, (Espagne & Fontaine; EspagneEspagne, Michel e Fontaine, Alexandre. “Viajando com o conceito de transferências culturais. Entrevista com Michel Espagne”. Cadernos CIMEAC, vol. 8.2 (2018): 6-16. DOI: https://doi.org/10.18554/cimeac.v8i2.3263. Disponível em: http://seer.uftm.edu.br/revistaeletronica/index.php/cimeac/article/view/3263.
http://seer.uftm.edu.br/revistaeletronic...
, “A noção de transferência cultural”; CharleCharle, Christophe; Lüsebrink, Hans-Jürgen; Mix, York-Gothart (Org.). Transkulturalität nationaler Räume in Europa (18. bis 19. Jahrhundert). La transculturalité des espaces nationaux en Europe (XVIIIème-XIXème siècles). Bonn, Göttingen: V & R unipress, 2017., Lüsebrink & Mix; Espagne, “Transferências Culturais e História do Livro”). Em combinação com outras abordagens teórico-metodológicas, algumas importantes pesquisas brasileiras na área da História da Literatura e História do Livro colocaram recentemente no centro dos interesses principalmente questões sobre as circulações transatlânticas de obras impressas do Brasil e para o Brasil, com enfoque especial no papel mediador da França e de Portugal (AbreuAbreu, Marcia; Deacto, Marisa Midori (Org.). A circulação transatlântica dos impressos – Conexões. Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 2014. Disponível em: http://issuu.com/marciaabreu/docs/circulacao_transatlantica_dos_impressos.
http://issuu.com/marciaabreu/docs/circul...
; Granja & LucaGranja, Lúcia e Luca, Tania de (Org.). Suportes e Mediadores. Circulações transatlânticas dos impressos. Vol. 2. Campinas: Editora da Unicamp: 2018.; Poncioni & LevinPoncioni, Claudia; Levin, Orna (Org.). Deslocamentos e mediações. A circulação transatlântica dos impressos. Vol. 3. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.), envolvendo também os Estados Unidos e o Canadá (Abreu & DeactoAbreu, Márcia (Org.). Romances em movimento. A circulação transatlântica dos impressos (1789-1914). Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 2016.).

Levando em consideração essas abordagens mais atuais sobre o conceito de transferências culturais, incluindo reconsiderações do papel das traduções e suas circulações, serão apresentados o caminho e as transformações das conversações selecionadas com Goethe em cada contexto cultural de passagem e, com elas, a chegada das ideias do intelectual e crítico Goethe no Brasil enquanto membro transcultural da República das Letras no século XIX. Nosso foco de interesse é a seleção de citações traduzidas das Conversações que o autor e professor escocês John Stuart Blackie[Blackie, John Stuart]. “Gespräche mit Göthe in den letzten Jahren seines Lebens – Conversations with Goethe in the last Years of his Life”. Foreign Quarterly Review, vol. 18 (1836): 1-30. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=YfoEAAAAQAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-BR#v=onepage&q&f=false.
https://books.google.com.br/books?id=Yfo...
(1809-1895) faz da obra em alemão para a sua resenha na Foreign Quarterly Review em outubro de 1836. Sua coletânea de citações é traduzida e parafraseada na Revue britannique ou Choix d’articles traduits des meilleurs écrits périodiques de la Grande-BretagneRevue britannique ou Choix d’Articles traduits des meilleurs écrits périodiques de la Grande-Bretagne. [Conseils de Goethe Aux Gens de Lettres]. Paris: Bureau de la Revue, 6 (1836) : 245-260. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=2PA-SvNdxKUC&printsec=frontcover&hl=pt-BR#v=onepage&q&f=false.
https://books.google.com.br/books?id=2PA...
ainda em dezembro do mesmo ano e, em janeiro de 1848, esse artigo francês é publicado em tradução brasileira na Revista Americana, na Bahia, intitulado “Conselhos de Goethe aos homens de letras”.

Michel Espagne define o potencial do conceito transferências culturais da seguinte forma:

Toda passagem de um objeto cultural de um contexto para outro tem por consequência uma transformação de seu sentido, uma dinâmica de ressemantização, que só se pode reconhecer plenamente se levarmos em conta os vetores históricos da passagem. [...]. Transferência, não é transportar, mas sim metamorfosear, [...]. É menos a circulação de bens culturais que sua reinterpretação que está em jogo.

(EspagneEspagne, Michel. “A noção de transferência cultural”. Tradução de Dirceu Magri. Jangada, 9, (2017): 136-147. Disponível em: https://www.revistajangada.ufv.br/Jangada/article/view/60/70.
https://www.revistajangada.ufv.br/Jangad...
, “A noção de transferência cultural”, 136-137)

Processos de transferências culturais entre o Brasil e os países de língua alemã ao longo do século XIX são muito complexos e na maioria das vezes multilaterais. Com frequência, os caminhos de bens culturais e textos passam pela Inglaterra, pela França ou por Portugal. O comércio cultural ocorre sobretudo através de contatos pessoais e institucionais, em redes de correspondências, em atividades tradutórias e mercantis, assim como pela disseminação de literatura em jornais e revistas. Nesse contexto, começam a entrar em cena modernas estratégias editoriais, em parte já com um caráter global, além de diversas estratégias de tradução e diferentes mecanismos (trans-) nacionais de circulação dos textos por meio de revistas. Circulavam livros e revistas em língua francesa, como a Revue de Paris, a Revue des Deux Mondes, ou a Revue britannique, mas também revistas em inglês e devido aos movimentos de imigração também em outras línguas. Já a partir do início da década de 1830 passa a ser lançado também um número cada vez maior de jornais e revistas brasileiros, embora alguns destes tenham curta duração, como a Revista Americana (1847-1848).

2. De Gespräche mit Goethe aos “Conselhos de Goethe”

2.1 O Goethe intelectual de Johann Peter Eckermann

A obra Gespräche mit Goethe in den letzten Jahren seines Lebens 1823-1832 de Johann Peter Eckermann (1792-1854) teve seus dois primeiros volumes publicados pela F.A. Brockhaus, em Leipzig, no ano de 1836, e o terceiro e último volume apenas em 1848. Embora a recepção da obra tenha sido favorável, dos 3 mil exemplares dos primeiros dois volumes, em 1836, só foram vendidos 900 exemplares, e, em 1842, apenas 42 exemplares em um ano. O terceiro volume foi publicado pela editora Heinrichshofen em Magdeburg, pois Eckermann tinha processado Brockhaus acusando-o de tê-lo enganado na prestação de contas das vendas. Eckermann perdeu o processo e após a sua morte em 1854, Brockhaus adquiriu também os direitos da terceira parte, publicando a primeira edição completa em 1868, contendo cerca de 700 páginas e um prefácio do filho de Eckermann, Karl (Stiftung Weimarer Klassik, 88Stiftung Weimarar Klassik. Johann Peter Eckermann. Leben im Spannungsfeld Goethes. [Redação Reiner Schlichting]. Weimar: Verlag Hermann Böhlaus Nachfolger, 1995).

Eckermann se envolveu desde cedo na divulgação da obra para além do nacional. Ele tinha enviado o manuscrito do primeiro volume à editora Brockhaus em 5 de dezembro de 1835. No seu contrato com Brockhaus, além dos tratos para a edição alemã, já se fez constar a obrigação da editora de negociar com editores franceses e ingleses para realizar traduções paralelas da obra, porque Eckermann estava convencido de que a obra seria alvo de ampla atenção internacional, querendo influenciar essas traduções e tirar proveito dos lucros.2 2 A primeira tradução em inglês foi a tradução americana de Margaret Fuller de 1839.

Eckermann é conhecido no mundo literário principalmente através destas Conversações com Goethe e como editor de Nachgelassene Schriften de Goethe (1832-1833), obras póstumas de Goethe. Ele também seguiu uma carreira própria como poeta, mas depois, como secretário e amigo de Goethe entre 1823 e 1832, dedicou-se quase exclusivamente ao seu trabalho para e com Goethe. Fez anotações do que ouviu e dos diálogos e quis publicá-las já durante a vida do escritor, mas este recusou.

Foi apenas postumamente que Eckermann transformou suas citações e notas escritas sobre o modo de pensar do crítico e intelectual Goethe em sua obra literária, à qual foi atribuída desde o início uma função documental que ainda hoje é discutida de forma controversa. Enquanto isso, a pesquisa demonstrou que Eckermann às vezes fazia apenas anotações irregulares, às vezes só apunhalava o que ouvia, que anos mais tarde, processaria em suas Conversações, condensando-o literariamente, expressando também suas próprias opiniões, para assim criar um próprio tipo de “Dichtung und Wahrheit” [Poesia e Verdade] sobre Goethe como intelectual de seu tempo. Por exemplo, quatro tópicos-chave do diário de 11 de março de 1828 tornaram-se 17 páginas de conversação (Stiftung Weimarer Klassik, 83Stiftung Weimarar Klassik. Johann Peter Eckermann. Leben im Spannungsfeld Goethes. [Redação Reiner Schlichting]. Weimar: Verlag Hermann Böhlaus Nachfolger, 1995).

O próprio Eckermann também descreveu seu método literário para Heinrich Laube em 5 de março de 1844 não como um fiel relatório memorial no sentido “der ganz gemeinen Realität der Lichtbilder” [da realidade bastante comum das fotografias], mas como uma seleção individual de conversas e anotações, que ele então selecionou cuidadosamente, mas verazmente montadas, de modo que elas alcancem um efeito superior e melhor (Ibid., Stiftung Weimarer Klassik, 83Stiftung Weimarar Klassik. Johann Peter Eckermann. Leben im Spannungsfeld Goethes. [Redação Reiner Schlichting]. Weimar: Verlag Hermann Böhlaus Nachfolger, 1995). Portanto, não estava preocupado com um relatório semelhante a uma ata, de modo que a pergunta repetidamente feita sobre a autenticidade das Conversações também é na verdade obsoleta, mas queria transmitir “seu Goethe” ao público leitor em registros dialógicos cronologicamente datados, nos quais as palavras de Goethe são marcadas como citações.

No que diz respeito à crítica das Conversações na época, dominavam duas visões opostas: de um lado havia aqueles que, assim como o dramaturgo alemão Friedrich Hebbel (1813-1863), enxergavam a obra como um extenso monólogo de Goethe, ou como o poeta Heinrich Heine que chamou Eckermann de seu papagaio (Frungillo, 10Frungillo, Mário Luiz. “Apresentação”. Conversações com Goethe nos últimos anos de sua vida: 1823-1832, Eckermann, Johann Peter (Ed.). Tradução de Mario Luiz Frungillo. 1ª Edição. São Paulo: Editora Unesp, 2016, pp. 9-16.); do outro lado, havia quem percebesse a obra como a romantização do autor acerca do personagem Goethe, chegando a incluir extensas passagens autobiográficas e, no terceiro volume, atribuiu a Goethe um episódio de sua própria vida com a atriz Auguste Kladzig (Ibid., Frungillo, 14Frungillo, Mário Luiz. “Apresentação”. Conversações com Goethe nos últimos anos de sua vida: 1823-1832, Eckermann, Johann Peter (Ed.). Tradução de Mario Luiz Frungillo. 1ª Edição. São Paulo: Editora Unesp, 2016, pp. 9-16.). Seja como for, trata-se de uma composição demorada, um retrato subjetivo de Goethe, do “seu” Goethe, em combinação com fragmentos do romance de vida do próprio Eckermann.

Desde cedo, as Conversações desempenharam um papel bem além do espaço nacional com vistas à divulgação do papel e da imagem do poeta Goethe e de seus pensamentos críticos como intelectual sobre assuntos ligados entre outros à literatura, filosofia e história. Como Voltaire ou Rousseau, Goethe foi estilizado de forma transcultural em um monumento biográfico. Isto também deu a suas ideias de poeta e de intelectual um efeito universal, pois, como membro da República Universal das Letras, ele não poderia ser um estranho para ninguém, mesmo que estivesse espacialmente distante. Os jornais e revistas com circulação de dimensão global, ou seja, transatlântica, foram, em conjunto com os periódicos locais, suportes muito importantes para sua divulgação, criando pelo viés da imprensa uma certa transculturalidade de algumas das suas ideias e uma cultura discursiva de reflexões sobre elas nos diferentes contextos culturais.

2.2 Conversações em fragmentos de Leipzig à Bahia via Londres e Paris

A Revista Americana. Jornal dos Conhecimentos úteis, scientífico, e litterárioRevista Americana. Jornal dos Conhecimentos úteis, científico e literário. Bahia: [Prólogo]. Typographia de Epifânio Pedrosa, 1847. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=816434&pasta=ano%20184&pesq=&pagfis=1.
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader...
, publicado na Typographia de Epifânio Pedroza, no “Prólogo” da primeira edição de dezembro de 1847, afirma o objetivo de instruir e de trazer prosperidade para a Bahia por meio da publicação de textos literários, científicos e noticiosos veiculados em revistas e jornais internacionais diversos (Silva, 26Silva, Camyle de Araújo. Transferências culturais via Tradução nas Revistas O Archivo (1846) e Revista Americana (1847-1848). Dissertação de Mestrado, João Pessoa: UFPB, 2016. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/8288.
https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle...
). Justificava-se essa prática oferecendo, assim, ao público leitor acesso ao conhecimento, à instrução e à moralização, e à possibilidade de estar atualizado com as tendências literárias e científicas europeias: “O trabalho de folhearmos todos esses livros, todos esses jornais, que diariamente se publicam no velho e no novo mundo, é deles extratar o que for mais conveniente e mais apropriado às necessidades de nosso país” (Revista Americana, [Prólogo], 8).

A tradução anônima “Conselhos de Goethe aos homens de lettras” (Revista Americana, [Conselhos de Goethe aos homens de lettras], 123-130) é classificado como filosofia, indicando como fonte a Foreign Quarterly Review. Mas o texto fonte dessa tradução brasileira não é a resenha de John Stuart Blackie de outubro de 1836, intitulada “Gespräche mit Göthe in den letzten Jahren seines Lebens – Conversations with Goethe in the last Years of his Life” (Blackie, 1-30[Blackie, John Stuart]. “Gespräche mit Göthe in den letzten Jahren seines Lebens – Conversations with Goethe in the last Years of his Life”. Foreign Quarterly Review, vol. 18 (1836): 1-30. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=YfoEAAAAQAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-BR#v=onepage&q&f=false.
https://books.google.com.br/books?id=Yfo...
). O texto fonte é a tradução francesa indireta dessa resenha inglesa, publicada na Revue britannique de dezembro de 1836, e intitulada “Conseils de Goethe Aux Gens de Lettres” (245-260).

O autor identificado da resenha em inglês, o filólogo, poeta e escritor escocês Blackie, já havia traduzido o Fausto de Goethe, em 1834, e foi um contribuidor frequente em periódicos do Reino Unido, dentre eles o Foreign Quarterly Review, principalmente com artigos relacionados à literatura alemã (Cf. ProescholdtProescholdt-Obermann, Cathrine Waltraut. Goethe and his British Critics: The Reception of Goethes Works in British Periodicals, 1779-1855. Frankfurt, New York: Lang, 1992. - Obermann, 207-216). Ele também estudou em Göttingen de 1829-1830, e foi uma das figuras mais importantes da Escócia no século XIX, introduzindo, ali, também a filosofia alemã.

Blackie estruturou sua resenha das Conversações de forma temática e não cronológica. Adotou a descrição de Eckermann sobre a gênese da obra, dando ênfase considerável à tradução de conversações sobre o conceito de liberdade de Goethe e Schiller, sobre o tema de Byron como gênio, e sobre o papel de Eckermann na retomada do trabalho de Goethe sobre Fausto II. Ademais, abordou as observações de Goethe sobre a origem da inimizade pessoal de Ludwig Tieck contra ele.3 3 Na seção intitulada “Shakespeare, Byron and Heine”, o tradutor incorpora à resenha um excerto de “Blackie’s Faust” (Blackie, 17), como se os próprios Eckermann e Goethe tivessem-no citado em sua conversa e assim promove sua tradução inglesa do Fausto de 1834. Um subcapítulo separado “Advice to Young Poets” (Blackie, 19-21[Blackie, John Stuart]. “Gespräche mit Göthe in den letzten Jahren seines Lebens – Conversations with Goethe in the last Years of his Life”. Foreign Quarterly Review, vol. 18 (1836): 1-30. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=YfoEAAAAQAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-BR#v=onepage&q&f=false.
https://books.google.com.br/books?id=Yfo...
) é explicitamente dedicado aos conselhos de Goethe a Eckermann como poeta, o que Blackie expõe em seu comentário como conselho geral de Goethe aos jovens poetas. Ele raramente identifica a referência específica das citações traduzidas, mas, baseando-nos em pesquisas que fizemos, pode-se dizer que ele se refere basicamente a conversas da primeira parte da edição alemã. Sua tradução parcial tem como base em princípio as conversações datadas no 18 de setembro de 1823 (EckermannEckermann, Johann Peter. Conversações com Goethe nos últimos anos de sua vida 1823-1832. Tradução de Mário Luiz Frungillo. São Paulo: Editora Unesp, 2016., Conversações com Goethe nos últimos anos de sua vida 1823-1832, 54-58), no 25 de fevereiro de 1824, (Ibid., 97-101), no 30 de março de 1824 (Ibid., 112-115), no 17 e no 18 de janeiro de 1827 (Ibid., 206-218).

Blackie ilustra o impacto contemporâneo de Goethe com o poema “The monumental pomp of age” de William Wordsworth sobre a majestade de uma vida honrada e realizada como monumento, e compara Goethe - até com uma visão um pouco irônica de Eckermann e de si mesmo - ao impacto de um colosso:

Verily this Göthe bestrides the earth like a colossus, and we poor critics, and translators, reporters of conversations, and reporters of that report, are as mere children that admire the bright buckles upon his shoes, and are proud to pluck the flowers where his foot has passed

(Blackie, 2[Blackie, John Stuart]. “Gespräche mit Göthe in den letzten Jahren seines Lebens – Conversations with Goethe in the last Years of his Life”. Foreign Quarterly Review, vol. 18 (1836): 1-30. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=YfoEAAAAQAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-BR#v=onepage&q&f=false.
https://books.google.com.br/books?id=Yfo...
).

O poeta escocês considera Eckermann, que era de origem modesta, como o predestinado “repórter digno” que agora importou Goethe “as a man and a critic” (Ibid., 6) para a República das Letras.

Dois meses depois dessa resenha inglesa, a Revue britannique publica em dezembro de 1836 a tradução indireta desse texto de Blackie, parafraseando e cortando quase a metade do conteúdo em francês. O título é “Conseils de Goethe Aux Gens de Lettres” a partir do respectivo título do subcapitulo que Blackie tinha criado no seu texto. Essa metamorfose de gênero discursivo “conversações” para conseils denota um viés mais pedagógico, que se segue com o direcionamento do público para o qual os conselhos se dirigem: “aux gens de lettres”. Também se encontram nessa tradução parafraseada diversas referências ao contexto cultural novo. O tradutor anônimo francês chama Goethe “roi de son siècle intellectuel” (Revue britannique, 246), mas, ao mesmo tempo, compara o grandioso status intelectual de Goethe ao de Voltaire:

Autour de Goethe nous apercevons les Meyers, les Mercks, les Knebels, les Zelters, les Bettina-Brentano, les Eckermann; de même que, autour de Voltaire, les La Harpe, les Dalambert, les Morellet, les Damilaville, venaient se grouper: accessoires que vivent un peux par eux-mêmes, et beaucoup par leurs patrons.

(Ibid., 245)

Além de tais acréscimos, essa tradução francesa ganha certos toques que dão à tradução ares de romance, enquanto o texto inglês segue um tom mais neutro. Enquanto Blackie fala do “digno repórter”, a tradução francesa chama Eckermann “héros” (Ibid., 246). Além de falar de “rapports avec exactitude” em relação à resenha inglesa, o tradutor declara logo o formato romântico moderno dessa tradução das Conversações, querendo “citer plusieurs fragmens, opinions, jugemens et portraits échappés au grand homme, sans chercher à donner des pensées éparses une forme compacte et un ensemble logique qui altéresaient leur naïveté” (Ibid., 247).

Essa mistura entre citações traduzidas de segunda mão, partes parafraseadas do texto inglês de Blackie e comentários próprios levando em consideração o contexto cultural francês, torna-se o texto fonte da tradução brasileira na Revista Americana de janeiro de 1848 (123-130). Publicada de forma anônima 12 anos depois, reforça o viés pedagógico, tanto na tradução do título “Conselhos de Goethe aos homens de letras” quanto na tradução, incluindo também algumas ressemantizações tendo em vista o seu público leitor brasileiro.

O caráter ficcional das Conversações de Eckermann é mais reforçado, chamando os “rapports avec exactitude” agora “narrações” (Ibid, 124). Como no texto francês, o público brasileiro é apresentado com Eckermann como um pobre poeta sem um tostão recebendo conselhos de Goethe, uma visão que há muito persiste na história da recepção das Conversações.

No contexto brasileiro, é particularmente interessante que em 1848, no ambiente acadêmico desta revista, autores como Goethe, Schlegel, Tieck, Schiller, e Wordsworth - cujo poema é traduzido aqui diretamente do inglês - pertenciam muito naturalmente ao cânone desses leitores brasileiros, confirmando assim a transculturalidade do intelectual Goethe, mas também já do espaço cultural brasileiro.

Esse papel da tradução em periódicos como suporte, a função de instrumento de transporte do francês e o caminho deste gênero de conversas dialógicas de Eckermann com Goethe, que se tornam citações de obra literária em inglês, depois conselhos concretos de Goethe para jovens escritores, seja no contexto francês ou no ambiente brasileiro dos homens de letras acadêmicos, são indicativos da dimensão transatlântica do culto biográfico e monumental à memória de poetas como Goethe.

A seguir, o exemplo da ideia de liberdade de Goethe exemplificará a dinâmica da reinterpretação gradativa em cada contexto cultural no momento-chave do desenvolvimento político e social das sociedades modernas lá e cá do Atlântico. Este exemplo da transferência da ideia de liberdade de Goethe, de Leipzig à Bahia, via Londres e Paris, nos mostra também um dos caminhos da expansão e mudança da memória cultural estrangeira de uma literatura nacional, neste caso da literatura brasileira em formação.

2.3 Ressemantizações das Conversações sobre a ideia de liberdade

As ideias de Goethe sobre temas considerados relevantes passam na edição alemã já por uma organização interpretativa de Eckermann. Desse conjunto, Blackie traduz então uma seleta temática com vistas ao contexto cultural inglês. Sua seleção, por sua vez, torna-se a base para a antologia temática francesa e para a respectiva tradução brasileira.

Um tema essencial do ponto de vista de Goethe selecionado para tradução, devido ao momento político agitado entre a Monarquia de Julho e a Revolução de 1848, diz respeito ao conceito ideal de liberdade, que Goethe explica principalmente por meio de uma controvérsia entre sua concepção deste termo e a de Friedrich Schiller.

A ideia de liberdade de Schiller está mais frequentemente ligada a seu drama juvenil Die Räuber (1781)4 4 Nas traduções brasileiras, encontramos, Os bandoleiros e Os Salteadores. , que, desde sua estreia, provocou discussões polêmicas por causa de seu radicalismo. As Conversações de Eckermann refletem uma atitude politicamente mais cautelosa durante o movimento político-revolucionário Vormärz [Pré-Março], pois o poder político explosivo moral-amoral atribuído à essa peça foi interpretado como provocação. No contexto da Alemanha, por exemplo, a peça foi muito menos permitida após 1819, a fim de contrariar as crescentes aspirações políticas de liberdade dos partidários do movimento Pré-Março (Cf. Sautermeister, 15Sautermeister, Gert. “Die Räuber. Ein Schauspiel (1781)”. Schiller-Handbuch. Leben – Werk – Wirkung. Luserke-Jaqui, Matthias (Org.). Stuttgart, Weimar: Metzler, 2005, pp. 1 – 45.).

Devido à múltipla recepção e tradução da peça Die Räuber no contexto da Revolução Francesa, sua reputação, ou melhor, seu descrédito, como peça revolucionária, sua aura de rebelião e desordem, esteve na frente da interpretação crítica e recepção contemporânea, e assim também no foco dos comentários de Goethe sobre o conceito de liberdade de Schiller nas Conversações.

Goethe coloca suas reflexões sobre o conceito de liberdade de Schiller, de acordo com as notas de Eckermann de 18 Janeiro de 1827, no contexto de suas decisões sobre a nova composição poética da sua Novelle [Novela] (1828), com a qual ele quer mostrar, com a “unerhörte Begebenheit” [novela] da criança que domava o leão com amor e não com violência, e argumenta em geral que “o indomável, o invencível pode ser melhor subjugado pelo amor, pela piedade que pela violência” (EckermannEckermann, Johann Peter. Gespräche mit Goethe in den letzten Jahren seines Lebens 1823-1832.Organização Christoph Michel, com participação de Hans Grüters. Frankfurt: Deutscher Klassiker-Verlag, 2011., Conversações com Goethe nos últimos anos de sua vida 1823-1832, 214; Eckermann, Gespräche mit Goethe in den letzten Jahren seines Lebens 1823-1832, 208). Em conversa leve sobre sua produtividade, compara de forma controversa sua concepção poética de liberdade com a de Schiller, lembrando-se do período que eles passaram juntos em Weimar.

A atitude rebelde de Schiller, presumivelmente em alusão indireta à peça Die Räuber, é explicada por Goethe com as experiências de Schiller na juventude, na qual ele, devido à educação militar e outras circunstâncias, estava mais preocupado com a liberdade física. Seus escritos posteriores, por outro lado, estavam mais preocupados com a liberdade ideal (EckermannEckermann, Johann Peter. Conversações com Goethe nos últimos anos de sua vida 1823-1832. Tradução de Mário Luiz Frungillo. São Paulo: Editora Unesp, 2016., Conversações com Goethe nos últimos anos de sua vida 1823-1832, 216). O problema para a produtividade de Schiller, na sua opinião, era também seu abuso da liberdade física, mais precisamente seu abuso de álcool. No cotidiano, Schiller era moderado, mas em momentos de fraqueza física, “ele buscava aumentar suas forças por meio de um pouco de licor ou de alguma outra bebida alcoólica. Isso, porém, lhe arruinava a saúde e era também muito prejudicial às suas próprias produções” (Ibid., 218). Assim, Goethe chamava também aqueles trechos da produção poética de Schiller, nos quais as personagens mostram esse tipo de fraquezas, “trechos patológicos” (Ibid., 218). Ele recusa essa forma excessiva de “liberdade”, por que ela “não nos conduzirá a nada de bom” (Ibid., 218).

Ao mesmo tempo, Goethe toma a controvérsia por ocasião da definição de sua ideia geral de liberdade limitada e razoável em uma sociedade esclarecida:

A liberdade é algo estranho, e cada um pode ter o suficiente dela, desde que saiba se contentar e se conformar. E de que nos serve um excesso de liberdade do qual não podemos desfrutar?

[...] Se tivermos liberdade suficiente para viver uma vida saudável e exercer nossa profissão, já temos o bastante, e isso qualquer um pode ter com facilidade. Além do mais, só somos livres sob certas condições que temos de preencher. O burguês é tão livre quanto o nobre, desde que se mantenha nos limites que lhe foram determinados por Deus pela classe em que nasceu. O nobre é tão livre quanto o príncipe; pois desde que observe na corte apenas o pequeno cerimonial, pode sentir-se igual a ele. O que nos torna livres não é o fato de não reconhecermos nada acima de nós, e sim o de reverenciar algo que está acima de nós. Pois, ao reverenciá-lo, nos elevamos à sua altura, e com nosso reconhecimento revelamos que trazemos em nós a dignidade e que somos merecedores de ser seus iguais.

(Ibid, 217)

O que nas Conversações é um dos muitos pontos de vista sobre os quais Goethe expõe torna-se um dos temas centrais no subcapítulo “Schiller and Freedom” de Blackie. Por um lado, este traduz as observações críticas de Goethe sobre o conceito físico de liberdade de Schiller, incluindo os excessos alcoólicos. Mas o tema central é então o conceito iluminado de liberdade de Goethe, embora ele substitua “burguês” por “boor”, e “classe” por “the sphere”, ou seja, por um termo politicamente mais vago. (Blackie, 11[Blackie, John Stuart]. “Gespräche mit Göthe in den letzten Jahren seines Lebens – Conversations with Goethe in the last Years of his Life”. Foreign Quarterly Review, vol. 18 (1836): 1-30. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=YfoEAAAAQAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-BR#v=onepage&q&f=false.
https://books.google.com.br/books?id=Yfo...
) Uma parte da citação, o até hoje famoso provérbio de Goethe sobre liberdade, está em itálico na sua tradução para enfatizá-lo: “Freedom consists, not in recognizing nothing superior to ourselves, but in recognizing somewhat superior, which it is our privilege to reverence” (Ibid., Blackie, 11-12[Blackie, John Stuart]. “Gespräche mit Göthe in den letzten Jahren seines Lebens – Conversations with Goethe in the last Years of his Life”. Foreign Quarterly Review, vol. 18 (1836): 1-30. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=YfoEAAAAQAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-BR#v=onepage&q&f=false.
https://books.google.com.br/books?id=Yfo...
).

No contexto cultural francês, tendo em vista os passados acontecimentos revolucionários, por outro lado, a concepção de liberdade de Goethe recebe uma ressemantização mais social e politicamente aplicada em termos da sociedade francesa daquela época após a Revolução de Julho. O “Bürger” [burguês] de Goethe continua na tradução sendo um “agricultor”, mas o príncipe sofre de seus sentimentos negativos de inveja e ressentimento, e o “homem da corte” de uma etiqueta constrangedora. Não se fala mais de classe ou esfera dada por Deus, mas o foco é a comunidade entre o indivíduo e as autoridades, para cujo funcionamento, no entanto, cada indivíduo tem uma responsabilidade.

Nous ne sommes libres que sous les conditions que nous impose la nature: l’agriculteur, sous la condition de cultiver péniblement le sol; le prince, sous le poids de tous les ennuis dont son autorité est environnée; le courtisan, sous la loi d’une étiquette plus ou moins gênante. Être libre, selon quelques-uns, c’est ne pas reconnaitre de superieurs. Suivant les sages, c’est connaître et employer le privilège de l’homme: et ce privilege consiste à distinguer un être supérieur et à l’adorer. Je regarde le sentiment de l’envie comme le plus humiliant pour celui qui le possède; et je tiens, au contraire, celui d’une admiration raîsonnable et d’une vénération sensée, pour le plus honorable de tous les sentimens. Il nous élève au niveau de l’objet respecté. Notre sympathie prouve qu’il y a communauté entre nous et cet être supérieur; une portion de sa grandeur peut seule nous élever jusqu’à sa contemplation.

(Revue britannique, 249)

Na tradução brasileira, Goethe também se torna o “rei de seu século intelectual” (Revista Americana, [Conselhos de Goethe aos homens de lettras], 124), enquanto Eckermann é apresentado como humilde poeta, que seguiu seus conselhos. A força poética de Goethe, assim o argumento, teria significado para todos os homens de Letras. A visão crítica de Goethe sobre o conceito radical de liberdade de Schiller adquire aqui uma veemência maior e um perfil de modelo negativo: “A palavra liberdade de uma das que mais violentamente tem agitado nosso tempo, e abalado com mais força certos espíritos grandes; o de Schiller, por exemplo” (Ibid., 125).

É feita igualmente referência ao desejo físico radical de liberdade de Schiller, também equiparado a um provável desejo de autodestruição através de excessos de álcool em momentos de crise criativa. Até mesmo uma referência direta à peça Die Räuber é feita, o que Goethe não havia incluso em suas Conversações. (Ibid., 126; Eckermann, Conversações com Goethe nos últimos anos de sua vida 1823-1832., 216).

A liberdade ideal também se traduz no contexto brasileiro no sentido de querer promover a formação de uma sociedade na qual o amor à liberdade seja subordinado em favor da comunidade. O termo “envie” do francês é traduzido como “inveja” (Revista Americana, 125Revista Americana. Jornal dos Conhecimentos úteis, científico e literário. [Conselhos de Goethe aos homens de lettras]. Bahia: Typographia de Epifânio Pedrosa, 1848: 123-130. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=816434&pesq=&pagfis=2.
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader...
) e ela é condenada como o sentimento negativo “mais aviltante para quem o possue” (Ibid.), enquanto o sentimento positivo de “admiração razoável e de uma veneração sensata” (Ibid.) é destacado como um dos sentimentos mais honrosos.

É interessante notar que este exemplo concreto de paixões opostas está ausente nas Conversações de Eckermann. Tanto na tradução francesa como na brasileira, há, assim, uma alusão mais clara ao contexto da peça teatral de Schiller, inserida no movimento literário alemão Sturm und Drang [Tempestade e Ímpeto], Die Räuber, na qual Karl Moor age precisamente por um desejo radical de liberdade, enquanto Franz Moor é guiado acima de tudo pela inveja; ambos os sentimentos são julgados imorais e negativos especificamente para uma sociedade em construção. A recepção da peça, que também foi apresentada no Brasil nesta época, provocou muita polêmica no contexto cultural transatlântico, e as críticas foram em sua maioria negativas por causa da aparente imoralidade do anti-herói de Schiller.

Neste ponto, o tradutor brasileiro faz uma proposta sobre o concreto tratado poético de liberdade desejável no contexto da construção da própria sociedade brasileira em formação:

Provando que o mal é mal não adianta! Também não é necessário de criticar amargamente os erros dos visinhos, desenvolvendo a postura de construir para melhorar. Nossa tarefa não he destruir, mas fundar, se possível fór, hum edifício sobre que nossos contemporâneos e o futuro possão lançar os olhos com praser a gratidão.

(Revista Americana, [Conselhos de Goethe aos homens de lettras], 125)

Esse comentário do tradutor brasileiro combinaria até com discussões críticas sobre a ideia de liberdade ideal na sociedade brasileira dos tempos de hoje e reforça a ideia de que as Conversações inspiravam e inspiram ainda de forma transcultural comentários e críticas em relação a fenômenos da história ou da nossa contemporaneidade.

Considerações finais

O exemplo das Conversações com Goethe de Eckermann entre a Alemanha e o Brasil a partir das suas primeiras traduções parciais mostrou que o suporte revista havia um papel muito importante não somente para a circulação dos textos, mas também para reinterpretações do texto na literatura de chegada. Tendo por base o conceito de transferências culturais foram investigados os caminhos históricos dessas primeiras traduções desse texto literário, a materialidade complexa das atividades tradutórias e mediadoras via Inglaterra e França, incluindo as condições linguísticas, assim como o papel de agentes culturais, aqui autores, tradutores e jornalistas.

Foi igualmente investigada a importância de revistas com circulação transatlântica na mediação da obra com as suas transformações em cada contexto cultural, para revelar de forma exemplar as dinâmicas de formação da memória (inter-) e (trans-) cultural estrangeira de uma literatura nacional. Considerando-se a recente tradução das Conversações de Eckermann, realizada por Mário Luiz Frungillo em 2016, poder-se-ia pensar, com vistas a uma futura reedição dessa versão brasileira, em incluir algumas das importantes revelações sobre a entrada do texto eckermanniano no contexto editorial brasileiro do século XIX. Desse modo, a reedição passaria a contar com um breve panorama histórico do texto traduzido no contexto cultural e editorial brasileiro daquela época.

  • 1
    Será utilizada em seguida a tradução de Frungillo para referências textuais à obra de Eckermann.
  • 2
    A primeira tradução em inglês foi a tradução americana de Margaret Fuller de 1839.
  • 3
    Na seção intitulada “Shakespeare, Byron and Heine”, o tradutor incorpora à resenha um excerto de “Blackie’s Faust” (Blackie, 17[Blackie, John Stuart]. “Gespräche mit Göthe in den letzten Jahren seines Lebens – Conversations with Goethe in the last Years of his Life”. Foreign Quarterly Review, vol. 18 (1836): 1-30. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=YfoEAAAAQAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-BR#v=onepage&q&f=false.
    https://books.google.com.br/books?id=Yfo...
    ), como se os próprios Eckermann e Goethe tivessem-no citado em sua conversa e assim promove sua tradução inglesa do Fausto de 1834.
  • 4
    Nas traduções brasileiras, encontramos, Os bandoleiros e Os Salteadores.

Referências

  • Abreu, Márcia (Org.). Romances em movimento. A circulação transatlântica dos impressos (1789-1914) Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 2016.
  • Abreu, Marcia; Deacto, Marisa Midori (Org.). A circulação transatlântica dos impressos – Conexões Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 2014. Disponível em: http://issuu.com/marciaabreu/docs/circulacao_transatlantica_dos_impressos
    » http://issuu.com/marciaabreu/docs/circulacao_transatlantica_dos_impressos
  • [Blackie, John Stuart]. “Gespräche mit Göthe in den letzten Jahren seines Lebens – Conversations with Goethe in the last Years of his Life”. Foreign Quarterly Review, vol. 18 (1836): 1-30. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=YfoEAAAAQAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-BR#v=onepage&q&f=false.
    » https://books.google.com.br/books?id=YfoEAAAAQAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-BR#v=onepage&q&f=false
  • Charle, Christophe; Lüsebrink, Hans-Jürgen; Mix, York-Gothart (Org.). Transkulturalität nationaler Räume in Europa (18. bis 19. Jahrhundert). La transculturalité des espaces nationaux en Europe (XVIIIème-XIXème siècles) Bonn, Göttingen: V & R unipress, 2017.
  • Eckermann, Johann Peter. Conversações com Goethe nos últimos anos de sua vida 1823-1832 Tradução de Mário Luiz Frungillo. São Paulo: Editora Unesp, 2016.
  • Eckermann, Johann Peter. Gespräche mit Goethe in den letzten Jahren seines Lebens 1823-1832Organização Christoph Michel, com participação de Hans Grüters. Frankfurt: Deutscher Klassiker-Verlag, 2011.
  • Espagne, Michel e Fontaine, Alexandre. “Viajando com o conceito de transferências culturais. Entrevista com Michel Espagne”. Cadernos CIMEAC, vol. 8.2 (2018): 6-16. DOI: https://doi.org/10.18554/cimeac.v8i2.3263. Disponível em: http://seer.uftm.edu.br/revistaeletronica/index.php/cimeac/article/view/3263
    » https://doi.org/10.18554/cimeac.v8i2.3263» http://seer.uftm.edu.br/revistaeletronica/index.php/cimeac/article/view/3263
  • Espagne, Michel. “A noção de transferência cultural”. Tradução de Dirceu Magri. Jangada, 9, (2017): 136-147. Disponível em: https://www.revistajangada.ufv.br/Jangada/article/view/60/70
    » https://www.revistajangada.ufv.br/Jangada/article/view/60/70
  • Espagne, Michel. “Transferências Culturais e História do Livro”. Tradução de Valéria Guimarães. Livro – Revista do núcleo de Estudos do Livro, 2 (2012): 21-34.
  • Frungillo, Mário Luiz. “Apresentação”. Conversações com Goethe nos últimos anos de sua vida: 1823-1832, Eckermann, Johann Peter (Ed.). Tradução de Mario Luiz Frungillo. 1ª Edição. São Paulo: Editora Unesp, 2016, pp. 9-16.
  • Granja, Lúcia e Luca, Tania de (Org.). Suportes e Mediadores. Circulações transatlânticas dos impressos Vol. 2. Campinas: Editora da Unicamp: 2018.
  • Poncioni, Claudia; Levin, Orna (Org.). Deslocamentos e mediações. A circulação transatlântica dos impressos Vol. 3. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.
  • Proescholdt-Obermann, Cathrine Waltraut. Goethe and his British Critics: The Reception of Goethes Works in British Periodicals, 1779-1855 Frankfurt, New York: Lang, 1992.
  • Revista Americana. Jornal dos Conhecimentos úteis, científico e literário. Bahia: [Prólogo]. Typographia de Epifânio Pedrosa, 1847. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=816434&pasta=ano%20184&pesq=&pagfis=1.
    » http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=816434&pasta=ano%20184&pesq=&pagfis=1
  • Revista Americana. Jornal dos Conhecimentos úteis, científico e literário [Conselhos de Goethe aos homens de lettras]. Bahia: Typographia de Epifânio Pedrosa, 1848: 123-130. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=816434&pesq=&pagfis=2.
    » http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=816434&pesq=&pagfis=2
  • Revue britannique ou Choix d’Articles traduits des meilleurs écrits périodiques de la Grande-Bretagne [Conseils de Goethe Aux Gens de Lettres]. Paris: Bureau de la Revue, 6 (1836) : 245-260. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=2PA-SvNdxKUC&printsec=frontcover&hl=pt-BR#v=onepage&q&f=false.
    » https://books.google.com.br/books?id=2PA-SvNdxKUC&printsec=frontcover&hl=pt-BR#v=onepage&q&f=false
  • Sautermeister, Gert. “Die Räuber. Ein Schauspiel (1781)”. Schiller-Handbuch. Leben – Werk – Wirkung Luserke-Jaqui, Matthias (Org.). Stuttgart, Weimar: Metzler, 2005, pp. 1 – 45.
  • Silva, Camyle de Araújo. Transferências culturais via Tradução nas Revistas O Archivo (1846) e Revista Americana (1847-1848) Dissertação de Mestrado, João Pessoa: UFPB, 2016. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/8288
    » https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/8288
  • Stiftung Weimarar Klassik. Johann Peter Eckermann. Leben im Spannungsfeld Goethes [Redação Reiner Schlichting]. Weimar: Verlag Hermann Böhlaus Nachfolger, 1995

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    08 Maio 2021
  • Aceito
    13 Ago 2021
  • Publicado
    Set 2021
Universidade Federal de Santa Catarina Campus da Universidade Federal de Santa Catarina/Centro de Comunicação e Expressão/Prédio B/Sala 301 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: suporte.cadernostraducao@contato.ufsc.br