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Shields, Carol. Bondade. Tradução de Beatriz Horta. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, 271 p.

Shields, Carol. Bondade. Horta, Beatriz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. 271

Unless (2002), originalmente publicado em inglês no Canadá e traduzido para o português no Brasil como Bondade (2007), é o “canto do cisne”1 1 Expressão usada para indicar a última obra de um artista antes de sua morte. Nesse caso, o seu último romance. da escritora canadense Carol Shields (1935-2003). Finalista do Man Booker Prize (2002), ao lado dos também canadenses Rohinton Mistry, com Family Matters (2002), e Yann Martel, com Life of Pi (2001; o vencedor do prêmio), é uma obra comovente, um drama familiar, que surpreende pela sutileza de sentimentos e emoções expressos, e pelas questões abordadas relativas à autoria feminina, à vida da mulher em sociedade e à tradução. A narradora, Reta Winters, é escritora, tradutora e, sobretudo, mãe. Ela mora com o marido e duas filhas nos arredores de Orangetown, Ontario, Canadá. Reta tem uma terceira filha, a mais velha, Norah, que saiu de casa, abandonou os estudos na universidade e passou a viver em uma rua de Toronto, pedindo esmola, muda, vestindo no pescoço uma placa de papelão em que se lê: ‘BONDADE’.

Voltamos nossa atenção para a tradução desse romance canadense, cuja adaptação fílmica está em desenvolvimento, com previsão de estreia para 2016, tanto pela bela e singela história narrada, quanto por questões de tradução, que emergem da comparação entre o texto original (TO) e o texto traduzido (TT). Apesar de ser uma tradução publicada há quase dez anos, é um texto que merece ser comentado e reconhecido como parte da produção literária canadense traduzida no Brasil. Carol Shields, assim como Margaret Atwood (vencedora do Man Booker Prize em 2000 com The Blind Assassin) e Alice Munro (vencedora do prêmio Nobel em 2013 pela maestria na escrita de narrativas curtas), integra um grupo de escritoras que tem elevado a literatura canadense a um reconhecimento internacional. Além dessas autoras canadenses, cujas obras ganharam tradução brasileira, também foram traduzidas no Brasil, obras de Michael Ondaatje (vencedor do Man Booker Prize com The English Patient, 1992), de Rohinton Mistry e Yann Martel, anteriormente mencionados, dentre outras. Nem toda a produção literária desses autores foi traduzida no Brasil. Uma pesquisa rápida na Web sugere que os romances traduzidos foram aqueles indicados a prêmios e as obras subsequentes ao reconhecimento literário dos autores, de modo que, para o público-leitor brasileiro que lê apenas em português, ainda há obras desses autores desconhecidas.

Nascida nos Estados Unidos e radicada no Canadá, Carol Shields (Companion of the Order of Canada) ganhou o Pulitzer Prize (1995) por The Stone Diaries (1993; ‘Os Diários de Pedra’) e o Orange Prize (1998) por Larry’s Party (1997; ‘A Festa de Larry’). Além desses romances, Shields escreveu Small Ceremonies (1976), The Box Garden (1977), Swann (1987), A Celibate Season (1991), Happenstance (1994), The Republic of Love (1992). Também escreveu narrativas curtas, como as da coletânea Dressing Up for the Carnival (2000), poemas, como os da antologia Dropped Threads (2001), peças e biografias, como a de Jane Austen. No Brasil, apenas Swann, The Stone Diaries, Larry’s Party, e Unless foram traduzidos.

A tradutora brasileira, Beatriz Horta, graduou-se em Comunicação na PUC-Rio, trabalhou como jornalista entre os anos de 1960 e 1990, realizou pós-graduação lato sensu em Tradução Português-Inglês, e atua como tradutora literária para diversas editoras. Dentre as obras por ela traduzidas, destacamos o aclamado romance ‘O Sol é para Todos’ (To Kill a Mockingbird) de Harper Lee e ‘Como eu Era Antes de Você’ (Me Before You) de Jojo Moyes, que foi recentemente adaptado para o cinema. Dentre os seus mais de 50 livros traduzidos, citamos também ‘A Redoma de Vidro’, de Sylvia Plath, ‘A Cura de Schopenhauer’, de Irvin Yalom e ‘Trópico de Câncer’, de Henry Miller.

Iniciamos nossa comparação interlinguística pelo título do romance, no original, Unless, na tradução, Bondade. Sentimos, à primeira vista, um estranhamento na escolha tradutória da unidade lexical “bondade”, em vez da opção mais óbvia e direta “a não ser que” ou “a menos que” para a unidade gramatical unless. Mas logo em seguida, a partir da leitura da primeira orelha, entendemos, inicialmente, a representatividade da palavra “bondade” no romance. Com a leitura da obra passamos a compreender a importância do conceito de bondade na narrativa e, então, entendemos essa escolha da tradutora. Também cogitamos que uma obra intitulada “a não ser que” soaria estranha para o público, de modo que a escolha por “bondade” pareceu-nos condizente com o conteúdo da obra. Apesar de destoar do título original, o título traduzido identifica um tema representativo da narrativa e preserva a coerência semântica interna da obra como um todo.

Com narrativa ambientada no primeiro ano do século XXI, é com profunda tristeza que a narradora estabelece no parágrafo inicial o tom reflexivo e introspectivo das páginas seguintes:

It happens that I am going through a period of great unhappiness and loss just now. All my life I’ve heard people speak of finding themselves in acute pain, bankrupt in spirit and body, but I’ve never understood what they meant. To lose. To have lost. I believed these visitations of darkness lasted only a few minutes or hours and that these saddened people, in between bouts, were occupied, as we all were, with the useful monotony of happiness. But happiness is not what I thought. Happiness is the lucky pane of glass you carry in your head. It takes all your cunning just to hang on to it, and once it’s smashed you have to move into a different sort of life

(SHIELDS, 2002, p. 1).

Estou passando por uma fase de muita infelicidade e perda. Sempre ouvi as pessoas dizerem que estão sofrendo, arrasadas de corpo e alma, mas não entendia o que elas queriam dizer. Perder. Ter perdido. Eu achava que essas visitações das trevas duravam só alguns minutos ou horas e que, entre uma crise e outra, aquelas pessoas tristes se ocupavam, como todos nós, da benéfica monotonia da felicidade. Mas a felicidade não é o que eu pensava. Felicidade é a auspiciosa vidraça que você carrega na cabeça. Você precisa de toda a sua habilidade para conservá-la e, se ela estilhaça, você tem que mudar para outro tipo de vida

(SHIELDS, 2007, p. 9).

O trecho como um todo não apresenta grandes divergências tradutórias. Na reinterpretação sígnica em língua portuguesa manteve-se o conteúdo do trecho original, bem como o estilo, por meio da manutenção de metáforas, como “visitations of darkness”/ “visitações das trevas” e “happiness is the lucky pane of glass”/ “felicidade é a auspiciosa vidraça”) e da pontuação, como em “To lose. To have lost”/ “Perder. Ter perdido”.

Apesar da infelicidade, Reta reflete com leveza e bom-humor, sobre diversos momentos, anteriores e posteriores ao abandono de Norah, em busca da compreensão do que teria levado a filha a um desprendimento e a uma total passividade diante da vida e do mundo. E assim, em tom de protesto e muitas vezes inflamado (principalmente nas cartas que não envia a ninguém), ela começa a tratar de inúmeras questões que afetam as mulheres, entremeando observações sobre a sua vida doméstica e profissional. Em suas palavras, “Preciso falar mais sobre esse problema das mulheres, excluídas dos direitos mais elementares, que são negados a elas” (p. 89). Nessa busca, Reta levanta questões sobre amizade, compras, escrita, feminismo, literatura, tradução, trauma, trilobitas e teoria da relatividade. Reta faz um percurso do cotidiano ao cosmos, a fim de compreender os motivos do comportamento da filha que tanto a aflige. Shields faz do sofrimento de uma mãe matéria para questionamentos críticos acerca da posição feminina em sociedade. Posição essa que tem em Norah sua representação mais extrema. Ao perceber que jamais seria capaz de participar do mundo, Norah opta pela total obliteração, posicionando-se à margem de tudo o que conhecia. Seu gesto extremo sugere não só aceitação da posição que lhe foi socialmente conferida, ainda que de modo indireto, velado, mas também profunda revolta e inconformismo. Em um gesto responsivo ao que o mundo a dizia, ela escolhe o caminho da bondade, da anulação de seus próprios desejos, já que não poderia participar plenamente do mundo. Nas palavras de Reta, “A trama do mundo se esgarçou, o mundo não pertence a ela, ao contrário do que lhe disseram” (p. 117).

Toda a narração é pontuada de reflexões metaficcionais, que enfatizam questões pertinentes à escrita e ao processo de produção editorial, que é impregnado pela dominância masculina, na figura do editor Arthur Springer, que em seus diálogos com Reta a interrompe constantemente, demonstrando uma intenção de impor o ponto de vista dele em detrimento do posicionamento dela. Bondade é uma obra traduzida por uma mulher (Beatriz Horta), escrita por uma mulher (Carol Shields) sobre uma mulher (Reta Winters) que, por sua vez, traduz obras de uma mulher que escreve (Danielle Westerman, com a qual Reta tem grande afinidade) e escreve um romance sobre uma mulher (Alicia). Na prosa de Shields, esses ecos metaficcionais compõem uma escrita que pensa a si mesma durante o processo, de modo a suscitar observações sobre o ofício da escrita e da tradução, como “[...] a tradução, principalmente de poesia, é um ato criativo” (p. 11); “[...] escrever e traduzir são similares, não opostos, e não há hierarquia entre os dois” (p. 11), dentre muitas outras.

Cada um dos 37 capítulos é curiosamente intitulado com uma unidade gramatical. Apresentamos, a seguir, essas unidades com suas respectivas traduções entre parênteses: Here’s (Eis), Nearly (Quase), Once (Uma vez), Wherein (Donde), Nevertheless (Contudo), So (Pois é), Otherwise (Por outro lado), Instead (Em vez de), Thus (Portanto), Yet (Ainda), Insofar as (À medida que), Thereof (Portanto), Every (Cada), Regarding (Com relação a), Hence (Por esta razão), Next (Em seguida), Notwithstanding (Todavia), Thereupon (Quanto a isso), Despite (Apesar de), Throughout (Durante), Following (Conforme tal), Hardly (Quase), Since (Visto que), Only (Só), Unless (A não ser que), Toward (Rumo a), Whatever (O que seja), Any (Qualquer), Whether (Se), Ever (Jamais), Whence (Daí), Forthwith (Em seguida), As (Enquanto), Beginning with (Começando por), Already (Já), Hitherto (Até o momento), Not yet (Ainda não). No TO não há repetições de unidades gramaticais; cada ocorrência, enquanto intertítulo, é única. No TT, contudo, duas unidades diferentes em inglês, Thus e Thereof, por exemplo, receberam a mesma tradução em português “Portanto”. Next e Forthwith também foram traduzidas da mesma forma, “Em seguida”. Essas diferenças alteram apenas a forma, de modo que o conteúdo se mantém semelhante. Mesmo assim, não podemos deixar de conjecturar que há outras unidades gramaticais no português que poderiam ter sido utilizadas na tentativa de manter a não-repetição de unidades gramaticais como no TO. “Assim” e “Em sequência” poderiam ter sido opções para os casos anteriormente mencionados.

Visto que a narradora é escritora e tradutora, o trabalho com a língua faz parte de sua vida. Por isso, interpretamos que ela busca estabelecer uma relação entre vida e linguagem, chegando ao entendimento de que são por meio dessas unidades gramaticais, elementos coesivos, que temos condições de estabelecer relações entre os eventos muitas vezes díspares e contraditórios da vida, a fim de formar um todo narrativo coeso e coerente, a partir do qual construímos significados. Ao mesmo tempo, é expressa a fragilidade dessas conexões, já que esses elementos são difíceis de serem definidos por serem meras abstrações. No último capítulo, iniciado conforme excerto seguinte, entendemos que as unidades gramaticais (“chips of grammar”) são responsáveis pelo encadeamento e pela expressão das relações entre os eventos de uma vida narrada:

A life is full of isolated events, but these events, if they are to form a coherent narrative, require odd pieces of language to cement them together, little chips of grammar (mostly adverbs or prepositions) that are hard to define, since they are abstractions of location or relative position, words like therefore, else, other, also, thereof, theretofore, instead, otherwise, despite, already, and not yet

(SHIELDS, 2002, p. 313).

A vida é cheia de fatos isolados, mas, para formar uma narrativa coerente, esses fatos exigem estranhas peças de linguagem que os juntem, pequenas lascas de gramática (principalmente, advérbios e preposições) que são difíceis de definir, já que são abstrações de lugares ou posição relativa – palavras como, portanto, e ainda, também, em vez de, dessa forma, apesar de, já e ainda não

(SHIELDS, 2007, p. 263).

A comparação dos trechos anteriores revela que das onze unidades gramaticais grafadas em itálico no TO, apenas oito foram traduzidas. O conteúdo de else e other parece estar contido na mesma unidade, e ainda. Theretofore não foi traduzido, nem otherwise, de modo que o significado que mais se aproxima de thereof é o de dessa forma. Essas observações sugerem que unidades gramaticais não são apenas difíceis de serem definidas, mas de serem traduzidas também. Destacamos que a unidade gramatical unless, que intitula o romance, é poeticamente definida da seguinte forma:

The conjunction and (sometimes) adverb unless, with its elegiac undertones, is a term used in logic, a word breathed by the hopeful or by writers of fiction wanting to prise open the crusted world and reveal another plane of being, which is similar in its geographical particulars and peopled by those who resemble ourselves

(SHIELDS, 2002, p. 313-314).

A locução a não ser que, como seus subtons plangentes, é uma expressão dita pelos que têm esperança ou por escritores de ficção que querem abrir à força o mundo encrostado e mostrar outro plano de ser, semelhante em seus detalhes geográficos e habitado pelos que se parecem conosco

(SHIELDS, 2007, p. 263-264).

Em inglês, a unidade unless é classificada em classes gramaticais diferentes de sua tradução no português. Assim, a tradutora fez bem em não traduzir literalmente, de modo a fazer referência à classe de ‘a não ser que’ no português, como uma locução. Unless adquire uma significação maior no romance do que o seu significado em um dicionário. No romance, essa palavra gramatical sugere que só vivemos como vivemos, a não ser que algo aconteça e nos obrigue a mudar. Ela sugere a provisionalidade da vida, que só é como é porque outra coisa não aconteceu para torná-la diferente, e assim, permite-nos vislumbrar possibilidades distintas de nosso estado atual, novas formas de existência. É como se a própria vida dependesse do que ainda não aconteceu. É nesta conjunção, unless, que Shields sugere estar ancorado o próprio fazer ficcional literário, que tenta “mostrar outro plano de ser” que, semelhante ao mundo como conhecemos, permite-nos pensar sobre a vida de outras pessoas, sobre como o estado atual do mundo poderia ser diferente. Ainda sobre a conjunção unless, a narradora diz que:

Unless is the worry word of the English language. It flies like a moth around the ear, you hardly hear it, and yet everything depends on its breathy presence. Unless – that’s the little subjunctive mineral you carry along in your pocket crease. It’s always there, or else not there. (If you add a capital s to unless, you get Sunless, or Sans Soleil, a very odd Chris Marker film.)

Unless you’re lucky, unless you’re healthy, fertile, unless you’re loved and fed, unless you’re clear about your sexual direction, unless you’re offered what others are offered, you go down in the darkness, down to despair. Unless provides you with a trapdoor, a tunnel into the light, the reverse side of not enough. Unless keeps you from drowning in the presiding arrangements. Ironically, unless, the lever that finally shifts reality into a new perspective, cannot be expressed in French. À moins que doesn’t have quite the heft; sauf is crude. Unless is a miracle of language and perception, Danielle Westerman says in her most recent essay, “The Shadow on the Mind.” It makes us anxious, makes us cunning. Cunning like the wolves that crop up in the most thrilling fairy tales. But it gives us hope

(SHIELDS, 2002, p. 224-225).

A não ser que é uma expressão problema da nossa língua. Ela fica voando em volta do ouvido como uma mariposa, você mal a ouve, mas tudo depende do sopro de sua presença. A não ser que – este é o pequeno mineral subjuntivo que você leva na dobra do bolso. Está sempre lá, ou não está. A não ser que tenha sorte e saúde, seja fértil, amada e bem nutrida, a não ser que tenha certeza de sua orientação sexual, a não ser que receba o mesmo que os outros – você desce para as trevas, para o desespero. A não ser que dá a você um alçapão, um túnel que leva à luz, o inverso de não ter o suficiente. A não ser que impede que você se afogue nos arranjos dominantes. Por ironia, a expressão a não ser que – a alavanca que finalmente dá uma nova perspectiva à realidade – em inglês, unless – não existe em francês. À moins que não tem o mesmo peso, enquanto a palavra sauf (salvo se) é áspera. A não ser que é um milagre de linguagem e percepção, diz Danielle Westerman em seu ensaio mais recente, “A sombra da mente”. Essa expressão nos deixa ansiosos e sagazes. Astutos como os lobos que aparecem nas mais emocionantes histórias da carochinha. E nos dá esperança

(SHIELDS, 2007, p. 192).

No TT anterior notamos a supressão de uma referência intertextual entre parênteses presente no TO: (If you add a capital s to unless, you get Sunless, or Sans Soleil, a very odd Chris Marker film.). Optou-se por tal omissão provavelmente devido à dificuldade de se expressar a ideia do TO, dada as diferenças lexicais do português. Há também o acréscimo do significado de sauf entre parênteses no TT. A pontuação também diverge nesse trecho, com maior uso do travessão (–) no TT, como em “Por ironia, a expressão a não ser que – a alavanca que finalmente dá uma nova perspectiva à realidade – em inglês, unless – não existe em francês”. Mesmo com esses acréscimos e supressões, o uso do itálico no TO foi preservado no TT. Nesses trechos, o itálico é fundamental para preservar a referência metalinguística à conjunção unless, que nas instâncias italicizadas não atualiza sua função de conjunção.

A apresentação do discurso das personagens é, em sua maioria, realizada de forma direta com aspas, sem indicação de verbos de elocução. Quando ocorre essa indicação, o TT a mantém, mas em certos momentos há uma troca na ordem (do meio da fala para o final), que não resulta em maiores problemas, como se observa nas últimas falas dos trechos seguintes:

“When I was pregnant with you, Chris, I never had a drop of wine for nine months. I never took so much as an aspirin. I drank three glasses of milk, every day, and you know I hate milk.”

“Wow! You were a real martyr to the cause of motherhood.”

“I wanted you to be healthy.”

“So you could lay a guilt trip on me when I got older.”

“I just hoped -”

“No wonder Norah -” She stopped herself.

No wonder Norah left home. I looked into her stricken face and could read the words she had come so close to engraving on the air.

“It’s all right,” I said, gathering her in my arms.

“I hate smoking anyway,” she whispered. “It was just something to do.”

(SHIELDS, 2002, p. 73-74)

Chris, quando eu estava grávida de você, passei nove meses sem uma gota de vinho. Jamais tomei nem uma aspirina. Bebia três copos de leite todos os dias, e você sabe que detesto leite.”

Poxa! Você foi uma verdadeira mártir da maternidade.”

“Eu queria que você fosse uma criança saudável.”

“Assim, podia me fazer sentir culpada quando eu crescesse.”

“Eu só queria...”

“Não é de estranhar que Norah...” Ela interrompeu o que ia dizer.

Não é de estranhar que Norah tenha saído de casa. Olhei para o rosto assustado dela e li as palavras que quase tinha escrito no ar.

“Não tem problema”, falei, abraçando-a.

Olha, eu detesto fumar, só fiz isso por falta do que fazer”, disse ela, baixinho

(SHIELDS, 2007, p. 69.).

Em negrito, destacamos opções do TT que contribuíram para dar mais fluência ao diálogo em português. A expressão sublinhada no TO é idiomática e informal. No TT optou-se por traduzir apenas o seu significado, sem utilizar uma expressão correspondente no português, perdendo um pouco do registro informal da personagem adolescente.

Enquanto o TO não contém notas de rodapé, o TT contém 28 notas da tradutora distribuídas em 20 páginas e duas notas da editora. No geral, as notas foram acrescentadas para aclarar significados de expressões usadas em língua estrangeira no texto principal. Expressões como école d’été, worth, espírito soixante-huitard, Qu’est-ce qu’on peut faire? receberam os seguintes esclarecimentos em notas respectivamente, escola de verão, valor, espírito da geração de 1968, o que se há de fazer?. Uma vez que foram mantidas as grafias originais dos nomes das personagens, no momento em que a narradora traça comentários a respeito de seu sobrenome de solteira (Summers) e de casada (Winters), foram acrescentadas duas notas respectivamente, verões e invernos. Sem essas notas, o leitor não-familiarizado com a língua inglesa não compreenderia as observações da narradora. As notas da editora ficaram por conta de explicar jogos de palavras, como em “O título em inglês, My Thyme Is Up, joga com a semelhança fônica entre thyme (tomilho) e time (tempo).” Essa nota permite que o leitor compreenda o humor presente nesse trocadilho. Assim, todas as notas são muito bem-vindas e auxiliam o leitor brasileiro na compreensão de trechos que ficariam obscuros caso as notas não tivessem sido inseridas.

A conclusão da obra, como a própria narradora aponta, atinge apenas um equilíbrio temporário. A necessidade de fechamento da narrativa, de um fim, não promete a certeza de um final feliz, mas a esperança de continuidade que está além das últimas palavras do texto.

It doesn’t mean that all will be well for ever and ever, amen; it means that for five minutes a balance has been achieved at the margin of the novel’s thin textual plane; make that five seconds; make that the millionth part of a nanosecond. The uncertainty principle; did anyone ever believe otherwise?

(SHIELDS, 2002, p. 318)

Não quer dizer que tudo estará bem por todos os séculos dos séculos amém, mas que se conseguiu um equilíbrio de cinco minutos conforme o tênue plano do texto do romance; que seja um equilíbrio de cinco segundos; que seja de um milésimo de segundo. O princípio da incerteza: será que alguém alguma vez acreditou em outra coisa?

(SHIELDS, 2007, p. 267)

Por mais incerto que seja esse equilíbrio tão delicado, é nele que se apoia toda a esperança de uma vida nova, de um recomeço, que parece apontar não só para Norah, mas para a vida de todas as mulheres.

Em uma apreciação geral, diríamos que é uma tradução inteligente e cuidadosa, preocupada com a compreensão do leitor brasileiro quanto ao uso de expressões estrangeiras desconhecidas, sem deixar de lado a poeticidade que ilumina a prosa e o tom subjetivo que permeia toda a narrativa. É uma tradução em que se percebe a presença da tradutora, seja nas inserções de nota, nas supressões e acréscimos, seja nas adaptações que aproximam o TO à língua portuguesa. De modo elusivamente simples, a obra de Carol Shields reúne crítica social, poeticidade, humor e ironia em um verdadeiro protesto contra a vida silenciada das mulheres. No outro lado do silêncio de Norah, está o grito daquelas que clamam pelo reconhecimento de suas vozes. E, felizmente, essas características não se perderam na tradução de Beatriz Horta.

  • 1
    Expressão usada para indicar a última obra de um artista antes de sua morte. Nesse caso, o seu último romance.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    05 Dez 2016
  • Aceito
    10 Mar 2017
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