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Davis, Lydia. Nem vem. Tradução de Branca Vianna. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, 126 p.

Davis, Lydia. Nem vem. Vianna, Branca. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 126

A norte-americana Lydia Davis, nascida em 1947, é escritora, tradutora e professora de escrita criativa da Universidade de Albany, NY. Especialista na tradução da literatura francesa para o inglês, traduziu Flaubert, Proust e Jouve, além de ter ganhado o French-American Foundation Translation Prize de 2003, por sua tradução de No caminho de Swann, de Proust. Entre suas obras ficcionais estão o romance O fim da história (José Olympio, 2016) e quatro antologias de histórias curtas, dentre as quais está Tipos de perturbação (Companhia das Letras, 2013). Em 2013, ganhou o Man Booker Prize, pelo conjunto de sua obra.

Davis é apontada como uma renovadora da prosa de língua inglesa e uma das precursoras da escrita de narrativas curtas (as chamadas flash fictions) e inclassificáveis, próximas da poesia e da reflexão metafísica:

Davis’s curtest works have a lot in common with poetry: this poised, metaphysical jest about time, death and language owes a debt to its line endings. Yet even at her most poetic Davis is a storyteller […].

(Kidd1 1 Resenha de James Kidd para o jornal britânico Independent, intitulada Can’t and won’t by Lydia Davis, book review: short stories aspire to the condition of poetry in this pithy and witty collection. Disponível em: https://goo.gl/Jq41Tq. ).

Branca Vianna é linguista, tradutora, intérprete e professora da PUC-Rio. Bacharel em Letras e especialista em Interpretação Simultânea (ambos pela PUC-Rio), mestre em Linguística (University College London) e mestre em Formação de Intérpretes (Université de Genève). Traduziu duas obras de Lydia Davis para a Companhia das Letras (Tipos de Perturbação e Nem vem).

Nem vem (Companhia das Letras, 2017), é o terceiro livro da autora traduzido no Brasil. Publicado pela primeira vez em 2014, em Nova Iorque, pela editora Farrar, Straus & Giroux, é uma antologia de textos lançados anteriormente, com poucas alterações, em importantes periódicos, como Harper’s Magazine, The New York Times e The Paris Review.

Sobre o que escrever no século XXI, quando muitos pensam que todas as grandes histórias já foram contadas? Em cento e vinte duas narrativas curtas, Davis não parece se preocupar muito com a resposta, nem com a originalidade, o enredo ou mesmo as reflexões que sua prosa possa suscitar. A escrita é fragmentada e breve, o que confere a Nem vem ares de caderno de notas em que estão esparsos humor, crítica, devaneios e observações sobre o cotidiano.

Há cartas insólitas (“Carta a um gerente de hotel”, “Carta a um fabricante de ervilhas congeladas”, “Carta a um gerente de marketing”, “Carta a uma fábrica de balas de menta”, “Carta ao presidente do Instituto Biográfico Americano Ltda., 294”), que por vezes impressionam pelas suas motivações:

Caro Gerente,

Escrevo para alertá-lo de que a palavra “cherne” está grafada erradamente no cardápio de seu restaurante. Aparece como “scherne”, com “sch.”

(Davis, “Carta a um gerente de hotel” 241Davis, Lydia. Não posso nem quero [Can’t and won’t]. Trad. Inês Dias. Lisboa: Relógio d’Água, 2015.).

Os relatos de sonhos (“Acordada à noite”, “No banco”, “No banco 2”, “O guarda-costas”, “Jantar”, “A lua” etc.), indicados pela palavra “sonho” em itálico ao final, são um caso intrigante: Davis aproveita o material imagético e simbólico oferecido pelos sonhos, reelaborando-o verbalmente, ou tenta escrever como se estivesse relembrando um sonho e, desse modo, narra algo imaginado criativa e conscientemente? A autora afirma que as ideias surgem de seus próprios sonhos2 2 Informação retirada da resenha “Can’t and won’t review: Lydia Davis drops her guard”, por William Skidelsky, publicada no jornal britânico The Guardian. Disponível em: https://www.theguardian.com/books/2014/apr/20/cant-and-wont-review-lydia-davis. . Seja como for, nessas ficções a linguagem é mais elaborada, conforme atesta esta passagem de “A criação do meu amigo”:

Estamos numa clareira, à noite. De um lado, quatro deusas egípcias gigantescas estão posicionadas de perfil e iluminadas por trás. Formas escuras humanas entram na clareira e deslizam por sobre as silhuetas. A lua está colada contra o céu escuro.

(Davis 126Davis, Lydia. Can’t and won’t. New York: Farrar, Straus & Giroux, 2014.).

Histórias de cunho autoficcional são a maioria (“Comendo peixe sozinha”, “O pouso”, “Minha irmã e a rainha da Inglaterra” etc.) e atingem sua máxima intersecção com a vida de Lydia Davis em duas narrativas mais longas, escritas em primeira pessoa e com vários índices autobiográficos: “As focas” e “Carta à Fundação”. “Carta à Fundação” é o relato das desventuras de uma professora universitária que não se sente confortável ao dar aulas e sonha em se livrar dessa obrigação após receber uma bolsa de estudos. O segundo texto é talvez o mais pungente de Nem vem, e narra os meandros das relações da narradora com a irmã e o pai, já falecidos, e a dificuldade em superar essas perdas.

Nem vem ainda traz reflexões metalinguísticas e/ou metaliterárias (“Revisar 1”, “Revisar 2”, “Dois personagens em um parágrafo (sonho)”, “Breve incidente com oclusiva velar, fricativa velar e bilabial”, “A língua falada pelos objetos da casa”, dentre outros). “Revisar:1” narra as operações envolvidas na revisão crítica de um texto literário por seu autor:

O fogo não precisa ser classificado como quente ou vermelho. Eliminar muitos outros adjetivos.

O ganso é disparatado demais: sai o ganso. Já basta a busca pelas pegadas.

(Davis (c), “Revisar: 1”, 222Davis, Lydia. Nem vem [Can’t and won’t]. Trad. Branca Vianna. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2017.).

Outras narrativas dão conta de temas do cotidiano, abordando, por exemplo, impressões colhidas em viagens de trem, conversas de estranhos e observações sobre a vida moderna. As ficções de Davis são, em última análise, e com algumas exceções, exercícios narrativos a propósito de qualquer tema, como por exemplo, uma lata de balas ou vacas pastando. “Os dois Davis e o tapete”, “Como leio o mais rápido possível os números atrasados do suplemento literário do Times”, “Se no casamento (no Jardim Zoológico)”, “Historinha sobre uma caixinha de chocolates”, “As vacas” e “Obituários locais” são exemplos de histórias em que isso é levado ao extremo

No plano da crítica, há quem idolatre qualquer linha escrita por Davis, como comprovam os textos My hero: Lydia Davis by Ali SmithSmith, Ali. “My Hero: Lydia Davis by Ali Smith”. The Guardian, 24 mar. 2013. Disponível em: https://www.theguardian.com/books/2013/may/24/my-hero-lydia-davis-smith.
https://www.theguardian.com/books/2013/m...
3 3 Disponível em: https://www.theguardian.com/books/2013/may/24/my-hero-lydia-davis-smith. (cujo título dispensa maiores comentários), publicado no jornal britânico The Guardian, e a defesa de Peter OrnerOrner, P. “Illuminations”. The New York Times, 4 abr. 2014. Disponível em: https://www.nytimes.com/2014/04/06/books/review/cant-and-wont-by-lydia-davis.html.
https://www.nytimes.com/2014/04/06/books...
, a propósito de Can’t and won’t, no periódico norte-americano New York Times4 4 Disponível em: https://www.nytimes.com/2014/04/06/books/review/cant-and-wont-by-lydia-davis.html. :

Others might blow by it and say, well O.K., nice couple of lines, but they aren’t, you know, a story. A story has to have such and such elements, you know, to be a story. In the name of purity, literary police officers may relegate this very short piece and other one-or two- or three-page stories scattered throughout “Can’t and Won’t” to something less than stories, call them short-shorts or micro-fiction, or something known as “flash,” or any of the other labels meant to reinvent what has long been invented. The wonderful thing about narrative is how elastic and wildly various it can be, and very short stories have been around since any other sort of story.

(Orner).

Mas há quem não veja na leitura de Can’t and won’t nada mais do que um passatempo frívolo e uma ficção fácil e reconfortante, ou ainda um livro superestimado por conta da reputação da autora:

Can’t and won’t: a book that functions as do a pack of cigarettes or a box of Nespresso cartridges. These are not so much stories as they are things that might get you through the week, things that have the capacity to punctuate your day with their delights.

And for the liberal egoist what is more delightful than meaningfulness?

[…]

It is not fiction per se, but it is a fiction that fits..

(HofstadterHofstadter, A. The American Reader, v. 2, n. 2, 2014. Disponível em: http://theamericanreader.com/review-on-lydia-davis-cant-and-wont/.
http://theamericanreader.com/review-on-l...
) 5 5 Resenha publicada no periódico The American Reader, em 2014. Disponível em: http://theamericanreader.com/review-on-lydia-davis-cant-and-wont/.

This is reading as hard slog. I suspect that some of the blurb writers —

banjaxed by her ethereal sensibility, or stupefied by her towering reputation — didn’t realise they were doing all the work. Didn’t think to mention that the emperor is looking a little underdressed.

(ClarkeClarke, A. “Can’t and won’t by Lydia Davis”. The Times, 12 abr. 2014. Disponível em: https://www.thetimes.co.uk/article/cant-and-wont-by-lydia-davis-5lt7pt922rg.
https://www.thetimes.co.uk/article/cant-...
) 6 6 Originalmente publicado em resenha do jornal The Times, em 2014. Disponível em: https://www.thetimes.co.uk/article/cant-and-wont-by-lydia-davis-5lt7pt922rg. .

Não é que dos assuntos considerados triviais não se possam tecer ótimas narrativas, como bem sabemos. Acontece que a narrativa em si é levada a exaustão por Davis em alguns relatos, sem maiores implicações estéticas. Em Can’t and wont by Lydia Davis review – stories about obsession, a escritora Helen Oyeyemi7 7 Resenha publicada no jornal britânico The Guardian, em abril de 2014. Disponível em: https://www.theguardian.com/books/2014/apr/04/cant-wont-stories-lydia-davis-review. inclusive afirma que a marca de Can’t and won’t é a obsessão:

Many of the characters we hear from in Can’t and Won’t, her first collection since winning the Man Booker international prize, are highly detail-oriented, and there is a variety of ways in which this affects their observations and interactions.

(OyeyemiOyeyemi, H. The Guardian, 4 abr. 2014. Disponível em: https://www.theguardian.com/books/2014/apr/04/cant-wont-stories-lydia-davis-review.
https://www.theguardian.com/books/2014/a...
).

Em “As vacas”, por exemplo, temos um exercício ficcional que talvez constitua, excetuando a literatura da biologia ou da veterinária, o mais completo relato sobre vacas jamais escrito. A polissemia das expressões ou da construção global do texto poderia justificar as descrições pormenorizadas da vida bovina, porém, ao menos em nossa leitura, isso não ocorre. A plasticidade, no entanto, é inegável:

Às vezes formam uma massa negra, uma mancha escura em contraste com a neve, com uma cabeça de cada lado e muitas patas no meio.

Ou as três, vistas de perfil, todas olhando na mesma direção, ombro a ombro, formam uma só vaca com três cabeças, duas para cima e uma para baixo.

(Davis (c), 139Davis, Lydia. Nem vem [Can’t and won’t]. Trad. Branca Vianna. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2017.).

Como leitora e tradutora de Flaubert, é possível que Davis tenha tentado repetir os famosos exercícios narrativos que o autor francês empreendia, levando-o a descrever exaustivamente um cenário ou um animal para, depois, cortar o texto e ficar apenas com le mot juste.

Há onze textos com a indicação “a partir de Flaubert” – “A lição da cozinheira”, “Depois que você partiu”, “Consulta ao dentista”, “O enterro”, “O cocheiro e a lombriga”, “A execução”, “Os bancos da igreja”, “Meu amigo da escola”, “Indústria”, “A lavadeira” e “Hospedado na casa de um farmacêutico” –, os quais revelam a ligação entre os processos de tradução e de criação ficcional de Davis. Nos comentários ao final do livro, a autora explica:

[...] Meu objetivo era alterar o menos possível a linguagem e o conteúdo do material original de Flaubert, moldando o trecho o suficiente apenas para criar um conto equilibrado, embora tenha tomado liberdades quando necessário (num caso, por exemplo, combinando material de duas cartas para que duas histórias relacionadas se transformassem em uma; noutro caso, acrescentando fatos reais ao conto para dar mais contexto a um personagem.

(Davis (c), 302Davis, Lydia. Nem vem [Can’t and won’t]. Trad. Branca Vianna. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2017.).

Assim, entendemos que, para Davis, a tradução, por mais fiel que tente ser ao original, constitui por si só um ato criador, pressuposto que é explorado para dar forma a uma reescrita de Flaubert que, apesar das semelhanças com o texto em francês, já carrega outros sentidos, motivados tanto pela transposição para o inglês quanto pela manipulação e reconfiguração narrativas operadas pela escritora. É interessante que, através da tradução dos textos a partir de Flaubert para o português, os escritos são novamente transfigurados para outra língua, resultando em uma estrutura semântica e formal duplamente distanciada do original em francês, sem considerar as modificações narrativas realizadas por Davis. Caberia um estudo pormenorizado desse aspecto, que analisasse esses movimentos tradutórios e (trans) criadores do francês para o inglês e do inglês para o português.

Na contracapa de Nem vem, lemos que o livro

dá ao leitor a chance de ver o mundo através dos olhos de Lydia Davis. Seja observando o comportamento das vacas pela janela da cozinha, seja ponderando sobre o aspecto das ervilhas numa embalagem, a escritora inaugurou um gênero absolutamente inclassificável, marcado por inteligência, humor e uma boa dose de estranheza.

(Davis (c)Davis, Lydia. Nem vem [Can’t and won’t]. Trad. Branca Vianna. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2017. , contracapa).

É certo que a contracapa tem por objetivo seduzir o leitor a comprar o livro e não realizar uma crítica contundente, mas não podemos deixar de aproveitar esse texto para rebater duas concepções bastante ingênuas sobre a ficção de Davis, que se encontram divulgadas tanto no Brasil quanto no exterior. A primeira é a de que os textos de Davis, escritos muitas vezes em primeira pessoa, expressam diretamente o olhar da autora empírica sobre o mundo, como uma espécie de confissão ou diário íntimo. A segunda é a de que Davis inaugura um gênero novo e indefinível.

Em contrapartida, o leitor crítico logo percebe que Nem vem é um conjunto de ficções e, por isso, por mais próximas da Lydia Davis real que possam ser, trazem a marca e o distanciamento do texto narrativo concebido como literatura. Essas ficções são inusitadas, no entanto, não constituem um gênero novo, antes assumem o já consagrado conceito de intergenericidade8 8 Em 1929, Bakhtin já discutia a intergenericidade ao estudar a polifonia do romance de Dostoiévski (v. Referências). , ou ainda, transgenericidade. Além disso, é preciso dizer que, embora Davis não siga modelos definidos, e essa imprecisão faça parte de seu estilo, o inclassificável das narrativas se dá pelo simples fato de que muitas vezes é difícil encontrar algum sentido além do óbvio e decepcionante conteúdo dos enunciados, como é o caso das ficções transcritas a seguir, na íntegra:

Agora que já estou aqui há um tempinho, posso dizer com certeza que nunca estive aqui antes.

(Davis, “Bloomington”, 20).

Poderia ser o nosso cachorro.

Mas não é.

Por isso late pra gente. (Davis, “Contingência (vs. necessidade)”, 30).

Estes anos todos pensei em ter um Ph.D. Mas eu não tenho um Ph.D.”

(Davis (c)Davis, Lydia. Nem vem [Can’t and won’t]. Trad. Branca Vianna. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2017., “Ph.D.”, 298).

A leitura do original não desfaz essas impressões. A qualidade da prosa de Davis não é prejudicada pela tradução de Vianna, que consegue manter a fluidez e o ritmo ágil de Can’t and won’t, encontrando soluções criativas para a tradução de expressões idiomáticas e de termos da linguagem coloquial – amplamente utilizados por Davis.

Em A tradução como manipulação,Cyril Aslanov (2015)Aslanov, Cyril. A tradução como manipulação. Col. Debates. São Paulo: Perspectiva, 2015. destaca a importância estratégica da tradução dos títulos de obras literárias no que tange à comercialização e ao direcionamento que estes podem dar à interpretação. A Companhia das Letras é considerada a maior editora do Brasil, pouco mais de três décadas após sua fundação, o que certamente não se construiu sem planejamento de marketing.

Sendo assim, o conceito de tradução manipuladora de Aslanov ajuda a desvendar os processos linguísticos e extralinguísticos envolvidos na tradução de uma obra de projeção internacional, como é a de Davis, por uma editora importante, como a Companhia das Letras:

A tradução manipuladora busca levar em conta os pressupostos implícitos que facilitam a compreensão intuitiva da mensagem. Quando se trata de uma fórmula breve ou de um título, essa compreensão precisa ser imediata e subliminar.

(Aslanov, 68Aslanov, Cyril. A tradução como manipulação. Col. Debates. São Paulo: Perspectiva, 2015.).

Em relação às modalidades de tradução (Vinay & Dalbernet apudCamargoCamargo, D. C. “As modalidades de tradução e o texto literário”. TradTerm, São Paulo, n. 3, p. 27-33, 1996.) empregadas por Vianna, predomina a tradução direta – sobretudo literal e, às vezes, decalque. Entretanto, as acertadas escolhas da tradução oblíqua (transposição, modulação, equivalências e adaptação) são o que permite a manutenção do tom coloquial e contemporâneo do texto de Davis.

A tradução do título já apresenta uma boa equivalência para a expressão em inglês: Can’t and won’t é a forma contraída (frequentemente empregada no inglês informal falado e escrito) de I cannot and I will not que, literalmente, significa “Não posso e não vou”, sendo que will ainda se refere à “vontade”, no sentido de querer. Branca Vianna poderia ter traduzido os termos literalmente, tal como fez Inês Dias na edição portuguesa, adotando “Não posso nem quero”. Ao invés disso, encontra no dito popular “Não vem que não tem”, do português brasileiro, a solução para transmitir a irreverência e a marca da oralidade do original, bem como favorecer a compreensão direta do conteúdo por parte do público. É comum ainda que se abrevie esse ditado para “Nem vem”, o que reforça a pertinência da escolha e ainda serve para a tradução da ficção “Nem vem”, texto que reforça, indiretamente, a opção de Davis pelas formas breves.

A busca pela máxima equivalência possível de sentido demonstra amplo domínio do português e do inglês americano contemporâneos por parte da tradutora, que percebe com perspicácia quando um termo pode ser traduzido ou, seja pelo uso consagrado do termo em inglês (ex.: hall, frisbee), seja pela ausência de equivalente exato (ex.: hostess), é preferível manter-se a expressão em inglês. A palavra clean, por exemplo, foi traduzida para “limpo” em “Observações sobre a limpeza da casa”, mas foi mantida (sem o tradicional itálico utilizado para indicar estrangeirismos) em “Os dois Davis e o tapete”; observemos:

Debaixo de tanta sujeira

O chão está na verdade muito limpo. (Davis, “Observação sobre a limpeza da casa” – texto integral, 104, grifo nosso).

Hesitou, no entanto, porque a estampa era mito arrojada e as cores um branco, um vermelho e um preto tão intensos que ele ficou na dúvida se ficaria bem na sua casa, apesar de estar mobiliada de um modo clean e moderno.

(Davis, “Os dois Davis e um tapete” – trecho, 26, grifo nosso).

Isso demonstra a atenção de Vianna aos contextos em que a palavra está inserida: no primeiro texto, a opção pela tradução se justifica por conta da relação com a limpeza do chão; em contrapartida, no segundo texto, a manutenção da palavra em inglês se mostra adequada dentro da referência ao universo da decoração, sendo que o significado de clean se vincula à sobriedade e à discrição.

Algumas das adaptações mais criativas, por conta de sua complexidade, podem ser observadas nas traduções do início de “Minha irmã e a rainha da Inglaterra” (em inglês: “My sister and the Queen of England”) e “Carta a uma fábrica de balas de menta” (em inglês: “Letter to a Peppermint Candy Company”):

  • For fifty years now, nag nag nag and harp harp harp. (Davis (a)Davis, Lydia. Can’t and won’t. New York: Farrar, Straus & Giroux, 2014., “My sister and the Queen of England”, 29).

  • Já são cinquenta anos de um resmungar sem fim, um pegar no pé sem fim. (Davis (c)Davis, Lydia. Nem vem [Can’t and won’t]. Trad. Branca Vianna. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2017., “Minha irmã e a rainha da Inglaterra”, 41).

  • ****************************

  • Dear Manufacturer of Old Fashioned Chewy Peps, (Davis (a)Davis, Lydia. Can’t and won’t. New York: Farrar, Straus & Giroux, 2014., “Letter to a Peppermint Candy Company”, 136).

  • Caro Fabricante de Puxa-Puxa Peps da Vovó, (Davis (c)Davis, Lydia. Nem vem [Can’t and won’t]. Trad. Branca Vianna. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2017., “Carta a uma fábrica de balas de menta”, 147).

Em relação à expressão idiomática nag nag nag and harp harp harp, a tradutora poderia ter traduzido nag simplesmente como “resmungar” e harp como “ralhar”. Vianna, entretanto, não descuida da sonoridade da frase, devida tanto às repetições quanto à carga semântica das palavras (harp ainda se associa à “harpa”, ou melhor, neste contexto, à gaita, remetendo ao som do instrumento) e, dentro das possibilidades da língua de chegada, adiciona a expressão “sem fim” ao lado de “resmungar” e de “pegar no pé”, enfatizando a continuidade da ação e mantendo a informalidade de harp harp harp.

Adaptar Old Fashioned Chewy Peps para “Puxa-Puxa Peps da Vovó” é outra solução sagaz de Vianna que, para contornar a armadilha de traduzir old fashioned pelo usual “fora de moda”, ou “ultrapassado”, ou ainda “antiquado” (escolhas que soariam esdrúxulas quando associadas a doces), associa o termo à “vovó”, provavelmente pela relação de old fashioned com algo antigo, ou seja, do tempo da vovó e, por ampliação, da vovó. Chewy (algo difícil de mastigar) é traduzido por “puxa-puxa” que, no português brasileiro, se refere a um tipo de bala bastante duro e resistente à mastigação, reafirmando o conhecimento da tradutora sobre o inglês americano e o português brasileiro coloquiais. Neste sentido, é curiosa a opção por se manter a palavra peps em inglês, quando, ao que parece, poderia ter sido traduzida por “balas” ou, genericamente, por “doces” ou “guloseimas”.

Nossos últimos comentários são sobre dois textos que enquadramos como reflexões metalinguísticas, as quais julgamos ser o grande desafio de tradução de Can’t and won’t, pelo óbvio motivo de que inglês e português são idiomas distintos e, assim, não expressam as mesmas possibilidades de indagação sobre a linguagem.

A tradução de “I Ask Mary About Her Friend, the Depressive, and His Vacation” (traduzido por “Pergunto a Mary sobre seu amigo, o depressivo, e as férias dele”) é mais um exemplo bem-sucedido de adaptação. De acordo com o contexto e o cotexto, Vianna traduz Badlands e Black Hills por nomes de cidades brasileiras turísticas: Solidão (na serra pernambucana) e Sombrio (no litoral catarinense), respectivamente. Dessa forma, são mantidas as referências aos lugares (Badlands, parque nacional norte-americano, e Black Hills, região montanhosa e isolada, ambos localizados na Dakota do Sul) e as suas conotações soturnas.

Em “Brief Incident in Short a, Long a, and Schwa”, traduzido como “Breve incidente com oclusiva velar, fricativa velar e bilabial”, Vianna recorre à linguística (fonética e fonologia) para traduzir o título e, através dele, ir da língua de partida à língua de chegada sem alterar a classificação do tipo de som produzido, a qual diverge, por conta da pronúncia, no inglês e no português. O sentido original é pouco alterado, tendo em vista a natureza das modificações, como verificamos nos excertos a seguir:

Brief Incident in Short a, Long a, and Schwa

Cat, gray tabby, calm, watches large black ant. Man, rapt, stands staring at cat and ant. Ant advances along path. Ant halts, baffled. Ant backtracks fast – straight at cat.

(Davis (a)Davis, Lydia. Can’t and won’t. New York: Farrar, Straus & Giroux, 2014., 19).

Breve incidente com oclusiva velar, fricativa velar e bilabial

Gato pardo, malhado, plácido, observa rã preta. Homem, fascinado, parado, assiste ao gato observando a rã. Rã avança pelo caminho. Rã para, perplexa. Dá ré, rápida – direto na direção do gato.

(Davis (c)Davis, Lydia. Nem vem [Can’t and won’t]. Trad. Branca Vianna. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2017., 31).

Nosso último comentário é sobre a tradução de “A língua falada pelos objetos da casa” (em inglês, “The Language of Things in the House”), ficção construída sobre associações entre o ruído dos objetos domésticos e o significado da palavra que os designa, motivos pelos quais a tradução enfrenta, novamente, a diferença das palavras e das pronúncias do inglês e do português. Vianna prefere, a nosso ver, acertadamente, sacrificar a tradução literal (firefighter, ao invés de bombeiro, passa a fugitivo, por exemplo) na tentativa de manter a correspondência da pronúncia da palavra e o som produzido pelo objeto a que ela se refere, em conformidade com a proposta do texto de Davis:

The Language of Things in the House

The washing machine in spin cycle: “Pakistani, Pakistani.”

The washing machine agitating (slow): “Firefighter, firefighter, firefighter, firefighter.”

(Davis (a)Davis, Lydia. Can’t and won’t. New York: Farrar, Straus & Giroux, 2014., 219).

A língua falada pelos objetos da casa

A lavadora no ciclo de centrifugação: “Paquistão, Paquistão.”

A lavadora agitando a roupa (ciclo lento): “Fugitivo, fugitivo, fugitivo, fugitivo.”

(Davis (c)Davis, Lydia. Nem vem [Can’t and won’t]. Trad. Branca Vianna. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2017., 234).

Considerando o exposto, verificamos que a tradução de Branca Vianna está de acordo com o texto original de Lydia Davis na medida das possibilidades do processo tradutório, o qual envolve operações linguísticas que mobilizam sentidos que ultrapassam os limites da mera tradução literal, exigindo interpretação, pesquisa, capacidade de análise, senso de perspectiva e, admitamos, criatividade.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    28 Abr 2019
  • Aceito
    14 Jun 2019
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