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Independência: história e historiografia

RESENHAS

Independência: história e historiografia

Lucília Siqueira

O MÍNIMO QUE se pode esperar de um livro de 27 historiadores com mais de novecentas páginas sobre um único tema é que ele venha com novidades. Pois o Independência: história e histo-riografia, lançado no segundo semestre de 2005 pela Hucitec e pela Fapesp, inovou na maneira de contar a história do processo de separação entre Brasil e Portugal.

Acostumamo-nos a entender a Inde-pendência do Brasil como um desfecho conservador para o período turbulento de crise nas relações entre a colônia e a metrópole, como um arranjo das elites marcado pelas permanências, onde os grupos dominantes trataram de garantir seus interesses por intermédio de D. Pedro que, por sua vez, assegurou a continuidade da Monarquia e da es-cravidão. Essa tem sido a história da Independência ensinada nos bancos escolares. Longe dela, no entanto, têm estado os resultados da pesquisa acadêmica.

O artigo "A Independência na historiografia brasileira" de Wilma Peres Costa, segundo texto do livro Inde-pendência: história e historiografia, constitui um excelente auxílio para o en-tendimento dos resultados alcançados pela historiografia mais recente, bem como do tratamento dado ao tema da Independência pelos historiadores desde o século XIX. Nesse artigo, a professora da Unicamp lembra que atualmente os historiadores estão mais dispostos a discutir e a enfrentar como problemas de pesquisa as continuidades e as transformações que se deram entre o período colonial e o Brasil nascente. Naquelas décadas de crise do Antigo Regime português e de montagem do Estado nacional brasileiro, muita coisa permaneceu como era antes, mas muito se transformou e, mais ainda, muitos acontecimentos, idéias e personagens que desconhecíamos têm sido agora documentados nos novos trabalhos historiográficos, como se vê pelo livro aqui em análise.

O livro foi organizado pelo professor István Jancsó e derivou do Seminário Internacional "Independência do Bra-sil: história e historiografia", realizado em setembro de 2003 na Universidade de São Paulo. O seminário e o li-vro fazem parte das atividades e publicações promovidas em torno do Projeto Temático "A formação do Estado e da Nação brasileiros (1750-1850)", que por sua vez é coordenado pelo professor István e vinculado ao Instituto de Estudos Brasileiros — IEB/USP. Aliás, é uma pena que o leitor tenha sido privado de saber quais dentre os autores pertencem ao grupo do Temático, bem como de conhecer alguns dados sobre cada pesquisador, para que pudesse discernir entre aquele que começa a trabalhar com o período e outro, cujo texto abriga estudos e reflexões amealhados durante mais de uma década; talvez esse seja o único reparo a se fazer numa nova edição. No mais, o livro prima pelas características das demais obras publicadas pela Hucitec, tornando-se agradável ao leitor-historiador por suas muitas e extensas notas no rodapé de página.

A complexidade das abordagens dos historiadores desse livro torna difícil estabelecer fronteiras entre seus textos e tipificá-los a ponto de se encaixarem com exatidão numa das cinco partes em que o Independência: história e historiografia foi dividido: "Historiografia da Independência", "Independência e abrangências impe-riais", "A Independência nas partes do Brasil", "Instrumentos da política" e, finalmente, "Idéias e interesses". O leitor pode percorrer o livro da maneira que achar mais conveniente, sem uma ordem necessária para os textos, já que a consistência alcançada pelos resultados de pesquisa e o intercâmbio que existe entre a maior parte desses pesquisadores tornam o conjunto dos artigos bastante coeso, sem nenhuma grande desigualdade entre eles.

Uma das perspectivas que se so-lidificaram entre os historiadores nos últimos tempos é a de investigar o passado colonial do Brasil tomando-o como América portuguesa, isto é, como uma construção de variadas formações sociais e econômicas, em variados lugares do território da América meridional que, de diversas maneiras, inseriam-se no conjunto do Império português. Para o estudo da Independência, is-so significa, por exemplo, tomar as idéias e os confrontos políticos como imersos na cultura política do Antigo Regime lusitano, estar atento à sua historicidade e não os examinar a partir de um conteúdo liberal igualitário que só estaria consolidado algumas décadas depois da retirada do Brasil da Monarquia portuguesa — e mesmo então com suas especificidades. Significa também entender que, no território ultramarino, o colono criava variadas formas de ser português, assunto a que voltaremos adiante.

Ilmar Rohloff de Mattos, da PUC do Rio de Janeiro, procura mostrar como "Império do Brasil" foi uma denominação construída a partir de uma trama de interesses que re-montava ao processo colonizatório e à ilustração portuguesa; os homens que viviam no Rio de Janeiro no tempo da emancipação política criavam um corpo político e uma unidade política a partir de uma denominação e de um território que herdaram. Daí o nome que o historiador deu a seu texto: "Construtores e herdeiros: a trama dos interesses na construção da unidade política", desde já um artigo indispensável para a história política do Brasil, da mesma maneira que os textos de Wilma Costa e de István Jancsó contidos nesse livro.

Perscrutar no terreno da história política do desmantelamento do Antigo Regime requer examinar os muitos significados de um único vocábulo para diferentes grupos, num período de transição, quando as circunstâncias variam rapidamente. As idéias e os posicionamentos políticos tinham facetas múltiplas, como as reações suscitadas pela visita do príncipe Pedro nas localidades de Minas Gerais em abril de 1822.

Ana Rosa Cloclet da Silva, em "Identidades políticas e a emergência do novo Estado nacional: o caso mineiro", à p.536, fazendo referência aos estudos de Iara Lis Carvalho Souza (Pátria coroada. O Brasil como corpo político autônomo, 1780-1831. São Paulo: Unesp, 1999), lembrou que em alguns lugares D. Pedro foi acolhido como um soberano bem ao modo do Antigo Regime, tendo sido louvado por levar adiante sua dinastia; noutros, entretanto, glorificava-se o "libertador" do Brasil ou o líder político capaz de sustentar a ordem constitucional. Naqueles tempos, portanto, o repertório político comportava uma vasta gradação entre o amor de súdito por D. João ou D. Pedro até a oposição ao poder da Monarquia sem constituição, com adesão aos revolucionários portugueses ou ao círculo do príncipe no Rio de Janeiro. Nesse amplo leque de possibilidades, Cloclet da Silva aponta que as elites mineiras procuravam enquadramentos políticos que fossem unificadores, mas que assegurassem o atendimento de seus interesses locais, como "Pátria" e "Império", noções mais abrangentes que lhes permitiram acomodar-se em torno de D. Pedro.

Segundo os autores do livro que estudaram Pernambuco, Bahia, Pará, Maranhão, Rio Grande do Sul e São Paulo, a mesma luta por autonomia ocorreu em outras províncias do Reino do Brasil. Em todas essas regiões, as autoridades provinciais e locais — mais e menos divididas em cada lugar de acordo com os abalos provocados pela instabilidade institucional — agarraram-se à autonomia que conquistaram durante o período colonial e, sobretudo, àquela decorrida do início do movimento revolucionário no Reino de Portugal, em 1820. Segundo mostrou Denis Antonio de Mendonça Bernardes em "Pernambuco e sua área de influência: um território em transformação (1780-1824)", os homens da "área de influência de Pernambuco" tinham uma experiência política acumulada nos tempos coloniais, o que se desenvolveu durante o período das Juntas de Governo, quando emergiu com força o constitucionalismo que marcaria os anos conflituosos da separação de Portugal e da montagem do Estado monárquico brasileiro.

A cada artigo do livro, o leitor vai se familiarizando, assim, com as muitas especificidades envolvidas no processo de Independência. A movimentação política em cada região dependeu, entre outros fatores, da quantidade de escravos presentes no conjunto da população, da maior ou menor penetração na economia internacional, do grau de coesão política existente entre a elite regional e do quanto a massa de gente pobre amedrontava as elites.

Cada província enviou seus repre-sentantes às Cortes de Lisboa — algumas delas demoraram demasiadamente a fazê-lo —, e de fato não houve uma posição unificada do Reino do Brasil diante do reordenamento institucional e político por que passava o Império lusitano, os deputados consideravam-se representantes provinciais e dessa forma atuaram. Miriam Dolhnikoff, em "São Paulo na Independência", apresenta como o projeto paulista foi angariando adesões das demais províncias em prol de uma Monarquia constitucional que governasse o império luso-brasileiro, no qual os reinos Brasil e Portugal coexistissem em igualdade. Autor desse projeto que alcançou penetração nas Cortes, José Bonifácio, depois de consumado o rompimento com Portugal, perderia projeção com o passar dos anos, pois suas propostas de reformas sociais não coadunavam com a política da elite fazendeira dos paulistas — e também de outras elites provinciais —, para a qual a defesa da unidade nacional jamais podia colocar em risco seus interesses, tampouco afetar sua autonomia regional; conforme a interpretação da própria autora para a posição federalista das lideranças paulistas no início do Império brasileiro: "A federação era a fórmula aceitável para uma organização nacional que preservasse, simultaneamente, a unidade e os interesses dos grupos provinciais".

Habituamo-nos com a idéia de que as dissensões entre brasileiros e portugueses agudizaram-se durante as Cortes Constituintes de Lisboa, quando os deputados brasileiros reagiram às tentativas de recolonização de Portugal. Márcia Regina Berbel, em "A retórica da recolonização", aponta que os deputados portugueses buscavam erigir um governo centralizado e forte para o Império português, que seria administrado a partir de Lisboa; afirma que os lusitanos eram integracionistas e não recolonizadores, pois pretendiam acima de tudo manter a unidade imperial, atribuindo maior capacidade de controle ao Estado. Se realizadas as intenções integracionistas dos deputados de Portugal, o Reino brasileiro perderia os órgãos jurídicos e administrativos aqui sediados desde 1808, as províncias teriam seus poderes restringidos e, ainda por cima, Lisboa centralizaria o controle das relações econômicas entre as partes do Império português e entre essas e o estrangeiro. Segundo Berbel, os deputados oriundos das províncias brasileiras acusaram seus congêneres lusitanos de recolonizadores porque não aceitavam as restrições que decorreriam da centralização por eles pretendida.

Examinando de perto o que se passava em cada região do Brasil nos meses e anos imediatamente anteriores e posteriores ao 7 de setembro de 1822, os autores do Independência: história e historiografia percebem co-mo eram muitas as possibilidades de encaminhamento para os impasses políticos locais e provinciais, e como custou a aparecer a orientação para a ruptura definitiva, ou seja, para a retirada do Brasil da Monarquia por-tuguesa. A adesão ao bloco do Rio de Janeiro liderado por D. Pedro — como uma das maneiras de se separar de Portugal — deu-se em momentos distintos, variando de motivação entre as províncias; para os pernambucanos e para os baianos, proporcionaria uma ordem constitucional; para o Pará e o Maranhão, a aliança com o governo de D. Pedro representava a possibilidade de conter a desordem social e de diminuir as fissuras entre os grupos dominantes regionais.

Em "As esquadras imaginárias. No extremo norte, episódios do longo processo de Independência do Brasil", André Roberto de A. Machado alerta para a impossibilidade de compreender o processo de Independência no Pará separando os paraenses entre brasileiros e portugueses, investigando aqueles anos a partir da pergunta "queriam os paraenses aderir ao Império do Brasil ou permanecer unidos a Portugal?". Segundo o pesquisador, as divisões e os projetos de futuro existentes na sociedade paraense ultrapassavam o âmbito dessa pergunta simplificadora, o que ficou comprovado com a continuidade dos conflitos mesmo depois da adesão ao governo imperial do Rio de Janeiro, em agosto de 1823. Com efeito, muitos documentos atestam, antes e depois de consolidada a Independência, a preocupação das autoridades com a inquietude dos homens livres pobres e dos escravos, principalmente com aqueles livres que haviam desertado das tropas armadas e que, em várias situações, demonstravam projetos e interesses influenciados pela movimentação vintista liberal.

Eis aí um ponto importante para a história da Independência que cada vez mais se esclarece com a pesquisa dos historiadores: a atuação política da "arraia miúda" no período de desintegração do Antigo Regime e da formação do Estado nacional brasileiro. Se a "populaça" não chegou a participar das decisões políticas no nível dos órgãos de governo e dos partidos, certamente foi uma força política bastante presente em todo o território da América portuguesa e do Império do Brasil, exercendo pressão eficaz sobre os grupos dominantes, o que ficou documentado inclusive nos papéis oficiais.

Na Bahia, houve guerra em torno do rompimento com Lisboa; brasileiros e portugueses estiveram em confronto armado nos anos de 1822 e 1823, quando esses últimos ficaram sitiados em Salvador. Pesquisando as relações entre o abastecimento da cidade e o andamento da guerra, em "‘Ao mesmo tempo sitiantes e sitiados’. A luta pela subsistência em Salvador (1822-1823)", Richard Graham assegura que o fato de os barqueiros interromperem o fornecimento de farinha para Salvador foi decisivo para o final do conflito. Oriundos dos estratos mais baixos da sociedade baiana, os barqueiros eram escravos, forros, negros livres e brancos pobres que inviabilizaram a continuidade do confronto para as tropas portuguesas, que foram obrigadas a recuar.

Pernambuco passou por muitas insurreições na época da Independência e nas primeiras décadas do Brasil imperial. Marcus J. M. de Carvalho, em "Os negros armados pelos brancos e suas independências no Nordeste (1817-1848)", investigou a formação das lideranças populares na região pernambucana e percebeu que alguns indivíduos da gente pobre, parda e negra, ao atuar com regularidade nas tropas das diferentes forças políticas que se confrontavam militarmente naqueles tempos, passavam por um processo de politização que fugia ao controle dos grupos dominantes. Para manter a ordem, as elites armaram os homens pobres; esses, no entanto, entenderam que seus interesses não estavam contemplados naqueles confrontos e "às vezes, eram os desertores, os ex-milicianos a ameaça maior à ordem que eles (como soldados) deveriam ajudar a instituir".

Os historiadores do Independência: história e historiografia não estão a pensar apenas a partir das especificidades e das diferenças regionais que existiam no Brasil do final do Setecentos e da primeira metade do Oitocentos; como István Jancsó afirma no texto de abertura do livro: "A história do mosaico luso-americano é inseparável da história de sua moldura, isto é, do Estado que esteve à frente de sua formação". Assim, os pesquisadores atentam para a relação de cada porção do território americano com Lisboa e com o Rio de Janeiro, conforme o período em estudo. Foram muitas as alterações que se passaram no centro do governo imperial: a vinda da Corte em 1808, a criação do Reino Unido em 1815, a eclosão revolucionária de 1820 em Portugal, o retorno de D. João VI para Lisboa em 1821, a instauração das Cortes Constituintes de Lisboa, o juramento à constituição por parte de D. João, a recusa do príncipe regente em deixar o Brasil no início de 1822 e o rompimento definitivo do príncipe com a Monarquia portuguesa, com a criação do Império do Brasil sediado no Rio de Janeiro.

Cada uma dessas alterações rever-berou de modo diferente em cada região do Brasil, provocou mudança na relação entre o centro e as periferias e, ainda, modificou o equilíbrio existente entre as várias "partes do Brasil". Junto com tudo isso, transformava-se nos indivíduos a noção de pertencimento ao Império português e, aos poucos, consolidava-se o Brasil como corpo e referencial político. E mesmo antes dessa fase em que as mudanças políticas eram mais contundentes, durante os séculos de colonização as formas de ser português, de sentir-se parte da Monarquia portuguesa, variaram ao longo do tempo e das diversas "partes do Brasil". Como indica o professor István Jancsó:

Quanto ao plano identitário, a conti-nuada expansão territorial e humana da nação portuguesa, até entrado o século XIX, observou rigorosa regularidade: a identidade nacional portuguesa, qual moldura, acomodava, tensa ou confor-tavelmente a depender da situação con-creta que se considere, as identidades de recorte local (paulista, baiense, paraense) correspondentes às muitas pátrias criadas pela colonização. (p.21)

Arriscando reduzir as muitas no-vidades trazidas pelos historiadores do Independência: história e historio-grafia, cremos que os principais traços distintivos da historiografia a que per-tence essa coletânea são: entender as transformações daquele período como manifestações da crise do Antigo Regime português e não como um processo evolutivo em direção à separação de Portugal que, aliás, não foi a questão em torno da qual se deram os conflitos; atentar para a alteridade dos conceitos e do repertório político daqueles tempos, quando conviviam as idéias políticas que remontavam a uma tradição secular com o frescor das idéias de liberdade e de valorização da constituição; con-templar as especificidades regionais sem descuidar das suas relações com o centro do Império, lusitano ou bra-sileiro; e, finalmente, tratar da atuação política das camadas mais baixas da população no final do período colonial e nas primeiras décadas do Brasil in-dependente também distingue esta historiografia.

A amplitude e a qualidade dos re-sultados de pesquisa apresentados pe-los historiadores no Independência: história e historiografia tornam esta resenha um texto curto e superficial. As inovações trazidas pelo livro impõem nossa leitura, a fim de reconstruirmos aquilo que estamos acostumados a chamar de Independência do Brasil.

Lucília Siqueira é professora da PUC-SP e autora do livro Bens e costumes na Mantiqueira . Socorro no prelúdio da cafeicultura paulista, 1840-1895. @ — lucilia-siqueira@uol.com.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jan 2008
  • Data do Fascículo
    Ago 2006
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