resumo
A crítica cultural no Brasil teve no paulistano Sérgio Milliet (1898-1966) um de seus expoentes máximos. Foi ele o mais “internacionalizado” dos intelectuais brasileiros. Sua produção não apenas como crítico, mas também como tradutor, poeta, pintor, pensador e ensaísta, bem como sua atuação institucional, notadamente como diretor da Biblioteca Municipal Mário de Andrade, coloca-no em primeiro plano na vida cultural, política e institucional do país. Muito jovem, estudou e trabalhou na Suíça nas primeiras décadas o século XX, convivendo com personalidades internacionais, porém regressando em tempo de participar da Semana de Arte de 1922 em São Paulo. Atuou como homem-ponte entre as culturas europeias e a brasileira. Atento à vida cultural nacional e internacional de seu tempo, trabalhou como “passeur” transcultural, como atestam seus dez volumes do Diário Crítico e notáveis traduções.
palavras-chave: Sérgio Milliet; Internacionalização; Crítica cultural
abstract
One of the leading exponents of cultural criticism in Brazil was São Paulo-born Sergio Milliet (1898-1966), one the most “internationalized” of Brazilian intellectuals. His production, not only as a critic, but also as a translator, poet, painter, thinker and essayist, as well as his institutional work, notably as director of the Mário de Andrade Municipal Library, place him in the foreground of the cultural, political and institutional life of his country. Still very young, he studied and worked in Switzerland in the early decades of the twentieth century among international personalities, but returned in time to participate in the Art Week of 1922 in São Paulo. He was a veritable man-bridge between European and Brazilian cultures. Attentive to the national and international cultural life of his time, he worked as a transcultural “passeur”, as evidenced by the ten volumes of his Critical Diary and numerous notable translations.
keywords: Sérgio Milliet; Internationalization; Cultural criticism
Para Francisco Alambert, historiador da cultura e crítico.
Uma de minhas envaidecedoras surpresas na Europa foi ouvir dos estudantes franceses e suíços as mais simpáticas referências à arquitetura moderna
brasileira [...]. Comentários sérios, reveladores do perfeito conhecimento que tinham das obras realizadas no Brasil. (Milliet, 1981, p.260-1).
O tema da internacionalização vem adquirindo foros de novidade e de necessidade para atendimento de imposições oficiais voltadas ao reconhecimento burocrático. “Internacionalização”, um conceito oco? Tal vocábulo ocupa hoje o lugar da chamada globalização, conceito vazio segundo o historiador Eric J. Hobsbawm, ou seja, o lugar das denominadas relações internacionais, daquela época em que eram referências importantes coleções como a História das Relações Internacionais, dirigida por Pierre Renouvin. Neutro, porém mais abrangente, é o termo mundialização, ora em voga nos círculos afrancesados.
Na atualidade, o termo “internacionalização” aparece com algum exagero em congressos, seminários, papers, currículos, demandas burocráticas. Banalizado, utilizado em “repetições satisfeitas” criticadas por Sérgio Milliet, corre-se o risco de perder densidade. “Não se confunda o modo com a moda”, alertava Milton Santos.
Hoje tudo parece estranhamente “novo”, “importante”! Mas... novo? Esquecemo-nos das gerações de intelectuais que nos precederam e formaram, e foram, sem fazer ruído, internacionalizadas, vez que possuíam, desde o ginásio, sólido conhecimento sobre o globo terrestre, obtido em aulas de História e Geografia (com Atlas e mapas!) nas escolas de então. Os jornais, utilizados como material didático, dedicavam páginas e informações sobre o que ocorria no mundo, sacudido pela profunda crise econômico-social de 1929, por duas guerras mundiais e por revoluções descolonizadoras na África, Ásia e América Latina.
Foi um tempo em que, no Brasil, intelectuais e professores eram internacionalizados e internacionalizantes, desde José Bonifácio até Joaquim Nabuco e Anísio Teixeira. E ponto. Sérgio Buarque de Holanda na Alemanha; Érico Veríssimo, Gilberto Freyre, Vinicius de Morais e Viana Moog nos Estados Unidos; Caio Prado Júnior na Inglaterra e na fronteira da França com a Espanha durante a Guerra Civil Espanhola; Celso Furtado servindo na FEB, na Itália, durante Segunda Guerra, depois atuando nos Estados Unidos, França e Chile; Jorge Amado na França e na então União Soviética; Clarice Lispector e Lígia Fagundes Telles no mundo; Oswald de Andrade na França, e centenas de outros intelectuais conectados internacionalmente com Europa, Estados Unidos e, menos, com a ex-União Soviética. Como se recorda, Monteiro Lobato viveu nos Estados Unidos como adido comercial, e Anísio Teixeira trabalhou com John Dewey. Lobato e Anísio, leitores ávidos do massudo New York Times discutiam artigos nas tardes de domingo na Union Square, em Nova York...
Desnecessário lembrar que também universidades e escolas foram aqui marcadas pela “cultura mundial”, embora nem sempre pelo que havia de melhor. No Brasil sempre foi assim, imersas que estavam no caldo cultural do imperialismo inglês e, depois, nas ilusões da dependência dos Estados Unidos.
Nada obstante, alguns intelectuais ultrapassaram tais experiências, como foi o caso do paulistano Sérgio Milliet (1898-1966).
Sérgio Milliet, o grande internacionalista/internacionalizador
Sérgio Milliet, ou Serge Milliet, foi personagem maior na história das chamadas “influências culturais”. Órfão “internacionalizado à força” desde seus anos de infância e pré-adolescência em São Paulo, foi mandado pela família para estudar na Suíça aos catorze anos. E tornou-se cosmopolita como poucos.
Sérgio Milliet da Costa e Silva estudou e amadureceu fora do país, em Genebra e Berna, com idas a Paris e Bruxelas, sempre com poucos recursos, diversamente de outros estudantes brasileiros na Europa, como Ribeiro Couto, Oswald de Andrade, Caio Prado Júnior, Tarsila do Amaral, e tantos mais... De retorno ao Brasil no começo dos anos 1920, ficou por algum tempo conhecido como “Serge”, em pequenos círculos paulistanos e da Europa, que lá incluíam Blaise Cendrars, Stefan Zweig, Charles Baudoin...
Mais tarde, em São Paulo, alcunhado “o Suíço”, se tornaria um dos principais intelectuais brasileiros de todos os tempos. Talvez o principal, como se verá, por ter atuado em vários campos e instituições no Brasil e no exterior, inclusive na Unesco, pois unia sem alarde teorias e ideias à prática em ações institucionais e político-ideológicas, como no caso da criação do Departamento de Patrimônio Histórico do Estado de São Paulo e da direção da Biblioteca Municipal. Ao mesmo tempo, sem perder suas conexões europeias, afirmou-se como poeta, pintor mas sobretudo como crítico cultural.
Em seu retorno, o jovem escritor procurou situar-se na vida cultural e política paulistana e, sempre discreto, foi se tornando conhecido e influente. Carlos Drummond de Andrade foi quem melhor o definiu: “Nenhum entusiasmo barato, mas também nenhuma passividade intelectual”. Tal comentário vale para caracterizar Milliet em todas as etapas de sua vida adulta, até seu falecimento em 1966 em São Paulo.
Segundo Milliet, “a crítica pode ser encarada como obra de arte, como realização análoga à obra de ficção. E pode, também, ser encarada como uma pesquisa da verdade”, pontuou em entrevista a Silveira Peixoto, publicada em Falam os escritores (v.II, São Paulo, 1971, p.112).
Recém-retornado a São Paulo e não mais falando o português com fluência, sua língua materna, participou discretamente da Semana de Arte Moderna de 1922. A partir de então “redescobriu-se paulistano” e, instigado por Mário de Andrade, passou a escrever e atuar como crítico de arte e de literatura, arquitetura, história e outros campos das Humanidades. Tornou-se importante atualizador da cultura paulistana, ainda provinciana e mais voltada ao pitoresco. Bilíngue, tradutor rigoroso e inspirado de obras históricas e literárias referenciais, especialmente em francês, foi logo reconhecido e estimado por seu agudo espírito crítico e temperamento ameno.
Como definiu Maria Lívia Nobre Goes, foi “um modernista contido”. “Um intelectual oblíquo”, definiu-o Francisco Alambert (1991). Seja como for, Sérgio valorizou como poucos o ofício de tradutor, afirmando-se como referência insuperada na especialidade. Consagrou-se sobretudo por conta de sua tradução da volumosa obra Ensaios, do renascentista Michel de Montaigne, humanista que tanto o influenciou: na tradução dessa obra-mestra criou soluções notáveis, fiel ao espírito do autor e da época.
Com efeito, a internacionalização cultural do país deve muito a intelectuais empenhados nessa atualização. Embora voltados para a questão das identidades socioculturais brasileiras na produção e afirmação da nacionalidade, abriram janelas para lufadas de ar carregados de ideias inovadoras, estilos novos e novos modos de pensar e buscar respostas ao desafio de sabermos quem somos, como nos expressamos, o que valemos no plano da cultura mundial. Dentre eles Sérgio Milliet, Monteiro Lobato (tradutor dos volumes de História das Civilizações, escritos por Will Durant, entre outras), Carlos Drummond de Andrade e Mário Quintana (tradutores de volumes da obra de Marcel Proust, entre outras). Em verdade, foram todos eles homens-ponte, internacionalizados, ou “passeurs” de mérito. Atualizadores, conceituou Anísio Teixeira.
Na Europa, a vida de aventuras e desventuras de Milliet permaneceu intensa, assim como seria no Brasil. Exerceu atividades variadas, dado seu orçamento precário, tendo trabalhado como caixeiro de livraria, arquivista da Sociedade das Nações (sediada na Suíça), e até professor de tango para senhoras entediadas em Genebra. No retorno a São Paulo, foi bibliotecário na Faculdade de Direito da USP, Secretário da recém-fundada USP e, depois, professor na Escola Livre de Sociologia e Poíitica, onde lecionou e escreveu, além de ajudar Claude Lévi-Strauss a viabilizar suas expedições científicas ao interior do país. E, finalmente, tornou-se diretor da Biblioteca Municipal de São Paulo, em que, instalado nesse posto, indicou rumos para cidadãos-leitores em busca de renovação mental, recebeu pesquisadores nacionais e estrangeiros de vários quadrantes e construiu caminhos para a intelectualidade jovem e para a cidadania do país.
Até que se aposentou, melancolicamente. Vítima da autofagia cultural brasileira, foi por longo tempo esquecido, sem direito a uma saleta sequer na Biblioteca para receber como de hábito outros escritores, artistas, leitores e amigos no edifício icônico da rua da Consolação, que ajudou a conceber.
Com sua aposentadoria, saía do cenário o notável intelectual multidisciplinar de altos voos e surgia na Biblioteca uma brigada de bibliotecárias formadas na profissão, comandadas pela austera bibliotecária Adelpha de Figueiredo à frente, ex-estagiária na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos da América, por indicação de Rubens Borba de Morais.
Milliet e as cidades
Historiador e humanista, cronista de sensibilidade rara, Milliet escreveu memórias densas e intensas sobre as cidades em que viveu: São Paulo, Genebra, Roma, Veneza, Paris e outras, inclusive nos Estados Unidos. São preciosos seus apontamentos sobre bairros de sua cidade natal, São Paulo, e de Paris, cidades onde se instalou em condições quase sempre modestas. Essa informação pode ser encontrada nas páginas de boa prosa nos dez volumes de seu Diário Crítico. E também nos apontamentos sobre personalidades com as quais conviveu, entre outros Mário de Andrade (a quem enviava livros e contava novidades da Europa), Antonio Candido (que o definiu como “homem-ponte” no esclarecedor prefácio do Diário Crítico), Cícero Dias, João Antonio, Júlio de Mesquita Filho, Jean Cocteau, Paulo Duarte, Luís Martins e dezenas, talvez centenas de outros, além de Tarsila do Amaral, que o retratou na célebre pintura “O Homem Azul”, havendo indícios da amitié amoureuse que então cultivaram por breves estadas em Paris.
No campo das Artes, atuou como crítico insuperável. Foi diretor e animador da 2ª, da 3ª e da 4ª Bienal Internacional de São Paulo, entre 1953 e 1958. Criador de instituições, foi também historiador e poeta, além de ter criado, com outros, a Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA). Escreveu obras dedicadas às artes plásticas, Pintores e pintura (Livraria Martins, 1940), Marginalidade da Pintura Moderna (Departamento de Cultura, 1942) e A pintura norte-americana (Livraria Martins, 1943), além de vários artigos e ensaios. Foi também um dos criadores do Museu de Arte Moderna e diretor artístico do Museu de Arte Moderna (MAM), que dirigiu de 1952 a 1957.
Enquanto crítico de Artes Plásticas, Milliet foi objeto de exame minucioso por Lisbeth Rebolo Gonçalves (2005).
O que os arquitetos paulistanos e brasileiros devem a Milliet?
Devem muito, a começar pela Seção de Arte, na Biblioteca Municipal hoje Seção de Arte Sérgio Milliet.
Sérgio Milliet em sua sala, na direção da Biblioteca Municipal de São Paulo [com paletó e gravata]: “Nenhum entusiasmo barato, mas também nenhuma passividade intelectual”, escreveu Carlos Drummond de Andrade.
Quando diretor da Biblioteca Municipal, além de haver sugerido o nome do amigo Mário de Andrade para nominá-la, o que ocorreria alguns anos depois, Milliet doou para a Seção de Artes grande parte de seu acervo pessoal, composto de pinturas e debuxos de artistas nacionais e internacionais seus amigos, e de croquis e livros de autoria de brasileiros e estrangeiros. A Seção de Arte tornou-se local de frequência obrigatória para arquitetos, artistas e historiadores da arte, além de leitores comuns.
Na Biblioteca, instalada no centro da metrópole paulistana, à rua da Consolação, consolidou-se um núcleo de pesquisas importantíssimo, seleto, a Seção de Arte, voltado sobretudo a arquitetos, historiadores da cultura e artistas de todo o país, com participação de Maria Eugênia Franco, bibliotecária e crítica. Vale notar que a biblioteca da FAU-USP e outros centros culturais com acervos e bibliotecas especializadas eram raríssimos. Núcleos com decidida vocação para pesquisa só surgiriam e se afirmariam muitos anos depois.
Na segunda metade dos anos 1940, Milliet lecionou Estética na Universidade Mackenzie, por breve período. Em suas memórias, disse que aquilo de que mais gostaria era ter sido professor; e certamente de História da Arte e Estética. Ele, intelectual poliédrico e multidisciplinar, atuava malgré lui como referência cultural superior, sereno, grande erudito amigo de intelectuais de várias regiões do país e do mundo, de artistas amadores - como ele proprio - ou não, de pesquisadores de variada formação, que recebia em seu gabinete de diretor da Biblioteca Municipal. Ou, com maior prazer e mais tempo, no Paribar, nos fundos da Biblioteca, na Praça D. José Gaspar.
Sérgio e seu iracundo cunhado, o jornalista Paulo Duarte, atuavam como intelectuais orgânicos, criadores de instituições, militantes de um Humanismo com tinturas ideológicas jacobino-socializantes, em cores algo indefinidas. Na verdade, do ponto de vista social, eram intelectuais de mente aberta, próximos ao pobretão Mário de Andrade, os três muito menos abastados que Osvald de Andrade, Tarsila e outros.
No livro de Paulo Duarte, Mário de Andrade por ele mesmo, se encontram, além de cartas trocadas com Mário, várias de Sérgio Milliet, que revelam as agruras - inclusive falta de dinheiro -, pelas quais passaram, em diferentes momentos, em Paris, Genebra e outras cidades, inclusive São Paulo.
Milliet, quando muito jovem, viveu nas bordas dos estamentos aristocráticos, na parte inferior de um palacete onde hoje se situa o Conjunto Nacional. Órfão, foi protegido pelo tio Horácio Sabino, quem, com sua avó, o enviou a estudar na Suíça. Já Paulo Duarte, interiorano, cresceu com ademanes de pequena nobreza fazendeira. Aprendeu novos hábitos, como gostar de bons vinhos, usar vistosa gravata borboleta, e foi buscar contatos no exterior, sobretudo na França, onde cultivaria relações produtivas com intelectuais como Sartre e Lévi-Strauss, e pesquisadores na Maison des Sciences de l’Homme.
Milliet, a arquitetura e a crítica de arte
Sobre a Arquitetura Moderna no Brasil, escreve Milliet, “ela não se explica por motivos de ordem sociológica, pois as mesmas razões não a implantaram em outros países. Ela se explica antes por elementos de nossa psicologia. Seduz-nos a novidade, somos atraídos pelo que se nos afigura acentuadamente progressista, dinâmico, promissor” (Milliet, 1981, p.261).
Nas páginas finais do volume X do Diário crítico, Milliet tece vivas considerações sobre arquitetura e pintura, comentando livro de Mindlin impresso na Suíça, e citando Mondrian, Vasarely e Max Bill. E critica os concretistas (“o que me desagrada habitualmente é sobretudo a probreza inventiva de seus adeptos”, ibidem, p.262). Mas suaviza a crítica, comentando que, “como se trata de uma fase de transição, há que se conceder um crédito mais dilatado aos nossos inovadores”.
Nessas páginas do Diário crítico comparecem figuras do universo arquitetônico mundial, como o suíço Le Corbusier, Niemeyer, Lucio Costa, Rino Levi, os irmãos Roberto, e escritores como Ferreira Gullar e Vão Gogo (Millôr Fernandes).
Milliet, ao longo de seus escritos e crônicas, tinha o dom de “descobrir” e dar atenção a figuras então menos conhecidas no Brasil. Tal foi o caso do escultor inglês Lynn Chadwick, então com 42 anos, revelado na premiação em Veneza em junho de 1956, de cujo júri Milliet participou. Num contexto em que se encontravam nas salas brasileiras Di Cavalcanti, Grassman, Caribé, o desenhista Aldemir Martins (que ganhou o premio internacional de desenho, disputando com outros vinte artistas), Fayga Ostrower e Renina Katz, entre outros e outras, Milliet voltou sua atenção para esse relativamente jovem escultor inglês, Lynn Chadwick (1914-2003), de quem se tornaria amigo, chegando a lhe oferecer uma pintura a óleo de sua autoria, representando um vaso com flores e folhagens. Tendo se desencontrado do inglês em seu retorno, Sérgio guardaria o belo e sóbrio quadro de sua autoria, pendurando-o na sala-cozinha de sua casa modesta na Praia Grande, situada perto do pequeno e histórico aeroporto em que certa vez aterrisou o piloto Mermoz, da Aeropostale, com correspondência, na linha de Toulouse ao Chile...
Um breve trecho de seu comentário permite ter-se uma ligeira amostra do tom de seu criticismo:
A obra realmente convincente de um moço pode levar o júri ao abandono do critério habitual. Então passa o premio a significar descoberta e incentivo. Foi o que desta feita ocorreu com o escultor inglês Chadwick e com o desenhista brasileiro Aldemir Martins. Enquanto se consagrava o nome de Jacques Villon, um dos primeiros cubistas e que mais fiel se mostrou à escola, como se consagrava a obra de Munakata muitas vezes admirada e premiada em exposições internacionais, ao jovem escultor inglês iam os votos dos que nela viam um tratamento inteiramente original de escultura. Embora figurativa, nela a figura tem uma importância secundária. O que admiramos em Chadwick, além do jogo formal de grande equilíbrio e da matéria belíssima obtida, não apenas pela pátina porém igualmente pelo trabalho em ferro, é a imaginação criadora, e é também, a presença de um estilo inconfundível, revelando uma concepção estética nova e sensibilidade extremamente requintada. (Milliet, 1981, p.261).
Esboço de figura de Sérgio Milliet (caricatura), segundo Quirino Campofiorito, amigo do crítico. Ao lado, fotos do crítico na mocidade. Para ele, “a crítica pode ser encarada como obra de arte, como realização análoga à obra de ficção. E também pode ser encarada como uma pesquisa da realidade”. (in Falam os escritores, em entrevista a Silveira Peixoto, v.II, 2.ed.: São Paulo, 1971, p.12)
Tal conclusão, feita por um crítico já então renomado, soou como um alerta àqueles que cultivavam “repetições satisfeitas”, não apenas na produção artística, mas em todos os campos da crítica cultural, das artes, da arquitetura, do urbanismo, da historiografia:
A obra de Chadwick exprime, em meio aos malabarismos e às fórmulas de uma arte exaustiva na sua repetição satisfeita, a mensagem de um homem de nosso século XX, insensível às facilidades dos gregarismos escolásticos do momento (Milliet, 1981, p.184).
Referências
- ALAMBERT, F. Um melancólico no auge do Modernismo: Sérgio Milliet: uma trajetória no exílio. São Paulo, 1991. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo, 1991.
- ALAMBERT, F.; CANHÊTE, P. Bienais de São Paulo: da era do Museu à era dos curadores. 2004.
- CAMPOS, R. S. Ceticismo e responsabilidade. Gide e Montaigne na obra crítica de Sérgio Milliet. São Paulo: Annablume; Capes, 1996. Prefácio de Carlos G. Mota.
- GONÇALVES, L. R. Sérgio Milliet, crítico de arte. São Paulo: Perspectiva: Editora da Universidade de São Paulo, 1992.
- _______. (Org.) Sérgio Milliet 100 Anos. Trajetória, Crítica e Ação Cultural. São Paulo: Imprensa Oficial; ABCA, 2005 (Com textos de vários autores, dentre os quais Antonio Candido, Francisco Alambert e Regina Salgado Campos. Inclui detalhada cronologia biográfica e o ensaio de Sérgio Milliet “Marginalidade da Pintura Moderna” (1942))
- GONZALES, P. C. Sérgio Milliet e a metrópole paulistana. Crítica, urbanismo e cultura (1920-1958). São Paulo: Editora Mackenzie, 2016. Prefácio de Carlos G. Mota.
- MILLIET, S. Diário Crítico (16 dez.1959). 2.ed. São Paulo: Martins; Edusp, 1981. v.X, p.260-1. Prefácio de Antonio Candido no v.I.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
12 Ago 2019 -
Data do Fascículo
May-Aug 2019
Histórico
-
Recebido
21 Nov 2018 -
Aceito
18 Dez 2018