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Bruno Palma, escolhedor de palavras

DOSSIÊ TRADUÇÃO LITERÁRIA

Bruno Palma, escolhedor de palavras

Marcus Fabiano Gonçalves

Professor da Universidade Federal Fluminense e recentemente publicou Arame farpado (poemas) pela editora 7Letras. A presente entrevista originou-se do seu ensaio Bruno Palma, escolhedor de palavras – ensaio sobre a arte e o ofício de um tradutor (Editora Com-Arte, no prelo). @ – marcusfabiano@terra.com.br

Bruno Palma estudou na França de 1950 a 1956 e de 1972 a 1976. Precocemente iniciado em sua casa na leitura de clássicos da poesia, esse filho de um imigrante português radicado em São Paulo converteu-se à fé católica aos 21 anos de idade, ingressando na Ordem Dominicana. Ordenado sacerdote por Dom Helder Câmara em 1957 (com quem trabalhou durante alguns anos), ele havia realizado estudos de filosofia e teologia por seis anos no convento de Saint-Maximin-la-Sainte-Baume. Após exercer diversos encargos eclesiásticos no Brasil, retornou à França sob a orientação do linguista russo-lituano Algirdas Greimas, na antiga École Pratique de Hautes Études, onde desenvolveu pesquisas sobre a tradução dos significados dos gestos litúrgicos em diferentes culturas. Agraciado com o Prêmio Jabuti em 1980, dedicou-se desde 1958 a traduzir a obra de Saint-John Perse. Traduziu, entre outros, Marcas marinhas (Amers), de Saint-John Perse, e Duplo canto e outros poemas (Double chant), de François Cheng, ambos publicados no Brasil pela Ateliê Editorial em edições bilíngues.

Marcus Fabiano Gonçalves – A ideia de tom poético, para Émilie Noulet, diz respeito à afinação do canto, algo que transcende a mera apreensão do estilo e da mundividência de um autor a ser traduzido. Qual é o tom que você procurou imprimir a Saint-John Perse e François Cheng em português?

Bruno Palma – Não fui eu quem "procurou imprimir" o tom poético na minha tradução das obras poéticas de Saint-John Perse e de François Cheng, pois o tom poético, segundo Émilie Noulet (1971), é uma característica única e inconfundível de um autor ou de uma obra poética. Esse tom se impôs a mim, quando mergulhei naquelas obras. Porém, para que a minha tradução fosse fiel a ele, precisei descobrir e levar em conta os procedimentos sintáticos, semânticos e prosódicos de que se serviram seus autores para conferir às suas obras aquele tom especialíssimo.

Por isso, a minha tradução de Saint-John Perse passou por etapas de compreensão e de amadurecimento sobre as intenções profundas da sua obra, e dos processos que foram (também progressivamente) usados pelo poeta para encontrar ou adquirir o SEU tom pessoal.

De fato, o tom poético em Saint-John Perse se manifesta de modo diferente nas suas diversas obras. E, para compreender o resultado final desse itinerário (evito o termo evolução) – que vemos realizado admiravelmente em Marcas marinhas –, foi preciso que eu "frequentasse", anos a fio, toda a obra poética persiana. Assim, ao enfrentar a tradução da sua obra mais complexa – que é o clímax de todas elas, Amers – já estava familiarizado com aquele tom poético, que poderíamos caracterizar por seu aspecto hierático, solene, grave, impositivo e até grandiloquente. E todo ele, em Marcas marinhas, orquestrado sinfonicamente, como um grande "oratório". Assim, essa relação entre som e sentido (que especifica a poesia, segundo Valéry), ganha uma força estupenda e exige do tradutor um ouvido apurado, para que nada se perca dessa música fascinante dos versos – dos versículos, melhor dizendo – da poesia persiana em Marcas marinhas.

Já François Cheng é um outro universo poético e, por isso, um outro tom poético. Tive, aqui também, que frequentar cordialmente e durante anos a poesia desse admirável poeta sino-francês, para conseguir me afinar ao seu tom poético, feito de contenção, despojamento, simplicidade (que preserva a densidade do conteúdo poético), musicalidade discreta, com outros ritmos e outros instrumentos, que torna sonoros até os seus silêncios.

MFG – Você dedicou trinta anos à tradução de Marcas marinhas (Amers). O universo persiano pode parecer altamente erudito e inclusive hermético a quem não se disponha a alcançar suas fontes. Como você foi procurá-las? E quando decidiu incorporar à tradução os cuidados rímico e rítmico?

BP – O universo poético persiano pretende abarcar toda a imensa riqueza da vida humana e da vida da Terra, do mundo onde se desenrola o drama da sua existência. Roger Caillois (1972), no seu célebre livro Poétique de Saint-John Perse, chama a poesia de Perse de "enciclopédica". Prefiro, com Albert Henry, chamá-la de "ecumênica", isto é, etimologicamente "universal", pois abrangendo o mundo inteiro e todos os problemas humanos.

Por isso, os termos erudito e hermético não exprimem tudo o que o poeta é e tudo o que ele quis que sua obra fosse. E ele tem razão se recorre, quando necessário, a termos precisos para nomear exatamente um elemento da natureza ou um instrumento usado num ofício, numa atividade humana. Para Saint-John Perse esses termos são objeto do conhecimento normal e cotidiano das pessoas que têm contato direto com a natureza ou praticam essas atividades e ofícios. Para nós, que temos deles um conhecimento distante e indireto, é que poderão parecer eruditos e dar à sua poesia, por causa disso, um ar "hermético". Ademais, para Perse, até esses termos técnicos ou científicos têm valor poético. Ele faz sua a célebre frase de Novalis: "Quanto mais verdadeiro, mais poético".

À sua pergunta – "Onde foi procurar as fontes" ou os elementos que me ajudaram a compreender esses termos "eruditos"? – ou interpretar autenticamente essa poesia, que parece "hermética"? – respondo: Foi lendo as principais obras sobre ela e recorrendo a excelentes traduções dela em outras línguas.

À outra pergunta – "Quando decidiu incorporar à sua tradução os cuidados rímico e rítmico?" – respondo: Se houve, como já disse, um progresso na compreensão que tive da obra poética de Saint-John Perse, desde a minha primeira incursão nela, desde a minha primeira tradução de um poema seu (que foi Pluies), percebi o quanto seus elementos fônicos eram essenciais para a transposição daquela poesia para o português. Contudo, as minhas primeiras tentativas tradutórias tiveram que passar por uma reelaboração, visando uma fidelidade maior ao que o poeta chama de sua "métrica interna" – inaparente e, por isso, exigindo maior atenção –, e aos ritmos criados por todos os procedimentos prosódicos de que Perse se serve para orquestrar seus poemas.

MFG – François Cheng é um cristão taoísta, um poeta cuja alta fatura estética nutre-se de fontes um tanto estranhas à tradição ocidental. Como foi o seu processo de aproximação ao taoísmo e à sinologia e de que maneira isso influiu na tradução e na elaboração das notas de Duplo canto e outros poemas?

BP – Eu não chamaria simplesmente François Cheng de "cristão taoísta", mas de um verdadeiro cristão – católico praticante –, que julga possível guardar sua visão do mundo, em que os elementos da cosmologia taoísta e budista zen são integrados. Ele mesmo o disse, em público, que não vê por que abandonar esses elementos filosóficos, que julga compatíveis com a sua fé cristã.

Respondo, por partes, à sua pergunta:

O meu processo de aproximação do taoísmo foi uma leitura de obras sobre ele e os demais elementos da cosmologia e do pensamento chineses. Para isso, vali-me das obras fundamentais de Anne Cheng (Histoire de la pensée chinoise), de Marcel Granet e do próprio François Cheng (seus livros de meditações filosóficas e sua obra poética).

Creio, porém, que minha tradução da obra poética de François Cheng foi ajudada pela minha experiência anterior, a tradução de obras de Saint-John Perse. Pode parecer estranho, pois Perse é muito diferente de Cheng. Contudo, ambos são "poetas do ser", como diz François Cheng, e se encontram por isso no essencial: na sua maneira de ver o mundo e de se relacionar com ele.

E à questão: Como o conhecimento do taoísmo, que marca a poesia de François Cheng, influiu no processo de tradução e de elaboração das notas de Duplo canto e outros poemas? – respondo:

É fatal que essa característica da poesia de François Cheng – a presença marcante da cosmologia taoísta na sua obra poética – tenha influenciado o meu processo de tradução dessa obra, visto que traduzir bem exige assumir como a sua maneira de pensar e de exprimir o mundo próprio do autor do qual se traduz uma obra, se essa filosofia deixa traços no seu modo de elaborar a sua obra poética.

No caso de François Cheng, pude verificar esses traços na sua maneira de estruturar seus poemas, percebendo que há, na fatura deles, o desejo de corporificar certos conceitos da cosmologia taoísta, como o fan (retorno), conceito fundamental do taoísmo. E cheguei até a elaborar alguns gráficos dessa materialização ou corporificação desse e de outros conceitos da cosmologia taoísta. Esses gráficos são ensaios dessa leitura em profundidade dos poemas de François Cheng, em que o poeta busca fazer, na escritura fonética da língua francesa, o que os poetas chineses, usando ideogramas, conseguem: uma pluridimensionalidade, permitindo que o poema seja lido em várias direções, e, com isso, que sua densidade poética seja acrescida. Porém, nos seus poemas franceses François Cheng obtém um efeito semelhante por meio de outros procedimentos – sintáticos, semânticos e prosódicos –, fazendo que o sentido circule por "percursos de leitura" dinâmicos, que se entrelaçam e enriquecem mutuamente.


MFG – Frei Bruno Palma, em suas entrevistas sobre a atividade tradutória, percebi que você usou sucessivamente algumas analogias para exprimir esse trabalho de passagem de uma língua para outra: a) a do brinquedo, que é desmontado e remontado; b) a do trabalho de um cozinheiro na confecção de um prato; c) a da transposição de uma peça musical, escrita para um instrumento, para outro instrumento. Qual delas você julga hoje a mais adequada?

BP – Creio que é a terceira. A primeira comparação é imperfeita, visto que não se trata de encontrar, na remontagem de um brinquedo, tais quais, as mesmas peças, pois, na passagem de uma língua para a outra, as "peças do brinquedo" mudam de forma e de cor, e o resultado é, como diz Per Johns, um "outro original".

A segunda também é claudicante, pois o que faz um bom prato não é propriamente uma boa receita, mas a habilidade do cozinheiro, que se chama vulgarmente de "mão boa". E, é claro, isso também se pode aprender; porém, nas mãos de outro cozinheiro, o prato será diferente. Entretanto, para se obter uma boa tradução poética, não há receita ou fórmula – que corresponde ao plano da montagem dum artefato –, que possa ajudar.


A terceira – a da transposição para outro instrumento duma peça musical escrita para determinado instrumento – é, sem dúvida, a mais adequada. Referi-me, certa vez, à transposição que Bach fez para órgão ou cravo de concertos que Vivaldi compôs para violino. Essa atividade condiz melhor com a do tradutor, pois essa transposição exige do compositor uma adaptação ao instrumento (à forma musical, que, em literatura, é o campo da sintaxe e da prosódia) e à linguagem musical (o conteúdo: em literatura, o campo da semântica). Evidentemente, não se pode separar forma e conteúdo, pois, como lembra Octavio Paz (1956, p.70), o próprio ritmo, num poema, já é significativo. E o tradutor, insiste Henri Meschonnic, não traduz a palavra, mas o discurso – onde todos esses campos se encontram e interagem.

MFG – Frei Bruno, se o tradutor não traduz as palavras mas antes o discurso de um autor, que importância têm elas nessa transposição de uma língua a outra? Fale um pouco desse problema crucial na tradução, o da fidelidade ao original em face da escolha das palavras na versão da língua de chegada.

BP – Não se pode limitar a fidelidade ao original à atenção às palavras que constituem o discurso. Se elas são a matéria de que ele é feito, não são meros conteúdos intercambiáveis. Dizendo de outra maneira: tradução não é apenas uma questão de bons dicionários. Pois, em cada cultura – e diria, com Meschonnic, em cada época –, as palavras adquirem outros significados. E é a poesia que explora essa riqueza polissêmica de cada palavra e aquilo que ela é como música. Ademais, sua valência depende do contexto em que se encontra, na frase e no inteiro corpo do texto que se deseja transpor. E acrescentaria: naquele poema, naquela obra, daquele poeta...

Quando se fala em fidelidade é preciso levar em conta sua correspondência homóloga na língua de chegada. Por isso, para se obter um bom resultado, é mais importante conhecer-se bem a língua para a qual se traduz. E TUDO é importante para que haja fidelidade ao original: até um simples fonema, ou mero sinal, um hiato, um silêncio. Porém, isso não implica uma servilidade, visto que, na viagem de uma língua para outra, algo se perde mas algo também se ganha. Como na transposição dos concertos de violino de Vivaldi, Bach, ao submeter-se aos instrumentos para os quais transpunha, ganhou e perdeu alguma coisa. O bom tradutor é aquele que perde o menos possível.

Recebido em 10.9.2012 e aceito em 20.9.2012.

A entrevista foi concedida por escrito, com frei Bruno Palma, tradutor das obras Marcas marinhas (Amers), de Saint-John Perse, e Duplo canto e outros poemas, de François Cheng, ambos publicados no Brasil pela Ateliê em edições bilíngues.

  • CAILLOIS, R. Poétique de Saint-John Perse Paris: Gallimard, 1972.
  • NOULET, E. Le ton poétique Paris: José Corti, 1971.
  • PÁZ, O. El arco y la lira México: Fondo de Cultura Economica, 1956.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2012
  • Data do Fascículo
    Dez 2012
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