DOSSIÊ CUBA
Cuba e o socialismo possível
Luiz Carlos Bresser-Pereira
A revolução cubana de 1959 derrubou um ditador corrupto que representava os interesses de uma elite local associada aos Estados Unidos. Foi, portanto, uma revolução nacionalista contra um esquema de poder
clássico - o da associação do império com elites locais dependentes. Mas ocorreu no auge da guerra fria e, dada a rejeição radical que teve do governo americano, inconformado com a nacionalização de empresas, não demorou muito para se tornar uma revolução comunista. Não importa, agora, saber se a revolução teria se limitado a ser uma revolução nacional se os Estados Unidos houvessem então aceitado as nacionalizações e negociado. Essa foi a tese que C. Wright Mills defendeu com energia em 1960, depois de ter feito uma demorada visita a Cuba naquele momento decisivo, em seu livro, Listen. Yankee. O que importa agora saber é se Cuba teve êxito ou não, e qual o futuro que tem diante de si.
O bom êxito de uma revolução nacionalista não pode ser medido por ter ela implantado a democracia no país. Seu objetivo e, portanto, o critério de seu sucesso é o fato de ela ter sido capaz de promover a revolução capitalista - de haver formado um Estado-nação autônomo e promovido a revolução industrial -, a condição necessária para que o processo de desenvolvimento econômico se torne sustentado e para que a democracia se consolide em um país. O bom êxito de uma revolução socialista, por sua vez, depende de haver ela logrado aumentar substancialmente a igualdade econômica entre seus cidadãos e, também, que esse resultado represente um caminho em direção à democracia.
Dados esses critérios, está claro que a Revolução Cubana foi bem-sucedida em alcançar a autonomia nacional, mas a formação de um Estado-nação não foi uma condição suficiente para que o país realizasse sua revolução industrial. Seu desenvolvimento econômico foi modesto e o país continuou primário-exportador. Deixou de ser grande exportador de açúcar, para o ser de zinco. Para se industrializar e passar a exportar bens manufaturados, Cuba precisaria de um mercado interno maior para servir de base para sua indústria e precisaria ter neutralizado sua doença holandesa. Montar um parque industrial diretamente para exportar é possível, mas é muito mais difícil. Nos outros países do Caribe e da América Central, nos quais o território e a população são pequenos, foi provavelmente essa a principal razão para que não se industrializassem além da falta de autonomia nacional. Cuba teve a vantagem, em relação a seus vizinhos, de ter realizado sua revolução nacional, mas sofreu o bloqueio comercial dos Estados Unidos que deve ter sido suficiente para neutralizar essa diferença. Se seu mercado fosse maior, e se houvesse administrado sua taxa de câmbio para que ela se mantivesse competitiva, a primeira fase da industrialização básica - a construção da infraestrutura econômica e da indústria de base - poderia ter sido conduzida pelo Estado, para, em seguida, o país se abrir para o capitalismo e crescer rapidamente, como ocorreu na China.
E quanto ao socialismo? As experiências da União Soviética e da China demonstraram que realizar uma revolução socialista em um país pobre não é viável do ponto de vista econômico. O Estado é capaz de promover a industrialização básica, mas é ineficiente para alocar recursos em economias complexas. A Revolução Cubana foi bem-sucedida em construir uma sociedade bastante igualitária, que incluiu a universalização com boa qualidade dos cuidados de saúde e da educação, mas não logrou alcançar a fase da industrialização complexa que é necessária para o desenvolvimento econômico rápido - para o alcançamento.
Como todos os demais países latino-americanos, Cuba é vítima da doença holandesa. A abundância e o baixo custo de exploração de seus recursos naturais tornam a taxa de câmbio permanentemente sobreapreciada - uma taxa de câmbio satisfatória para a exportação de commodities que usem esses recurso, mas incompatível com a sobrevivência de empresas industriais que utilizem tecnologia no estado da arte mundial. Durante a guerra fria, Cuba contou com subsídios da União Soviética que, entretanto, não ajudaram a neutralizar a doença holandesa; pelo contrário, devem tê-la agravado. Enquanto Cuba não neutralizar sua doença holandesa, administrando sua taxa de câmbio com esse objetivo, não se industrializará.
Quando a União Soviética entrou em colapso, os subsídios desapareceram, e Cuba passou por grande crise. Mas há vários anos essa crise foi relativamente superada, e o país voltou a pensar em seu futuro. Que futuro poderá ser esse? O "Ocidente" supõe sempre que a Revolução Cubana, mais tarde ou mais cedo, entrará em colapso. Contava que isso ocorreria quando Fidel Castro morresse. Fidel não morreu, mas cedeu a gestão do país a seu irmão, e o regime político continuou sólido. Ainda que não haja democracia em Cuba, está claro que o sistema econômico e político conta com o apoio da população. Embora o país não experimentasse desenvolvimento econômico satisfatório, construiu um sistema econômico igualitário e, por isso, foi capaz de melhorar os padrões de vida da população. Não há, portanto, perspectivas de que a Revolução fracasse nos próximos anos, e Cuba se torne uma "democracia" como a da maioria dos demais países vizinhos - uma sociedade dominada por uma oligarquia associada ao Ocidente. Sempre poderia se transformar em um país como a Nicarágua ou Salvador no qual governos de esquerda tentam governar com autonomia nacional enfrentando a oligarquia local colonialista, mas essa não parece uma alternativa desejável para o povo cubano.
A situação atual, entretanto, não pode se perpetuar. Os cubanos estão bem cientes de que não poderão se manter eternamente um país semissocialista, autoritário, e pouco desenvolvido. Têm, por isso, um projeto: o de seguir o caminho da China. Sabem que a Rússia cometeu um duplo erro ao haver feito a abertura política ao mesmo tempo que a econômica, e ao haver aceito a abertura econômica proposta pelos Estados Unidos. O desastre econômico e o sofrimento humano causados ao povo russo pelos governos Gorbatchov e Yeltsin ao terem adotado esse caminho foram terríveis. Em vez disso, os cubanos querem seguir o exemplo da China e fazer a abertura para o capitalismo sob o controle do Partido Comunista. Querem, portanto, primeiro, fazer a abertura econômica e depois, a política. Supõem que assim poderão estabelecer um sistema econômico misto superior ao do capitalismo ocidental - um sistema no qual Estado e mercado, profissionais e empresários, combinam seus esforços e se fortalecem mutuamente, levando o país a crescer rapidamente e a lograr o alcançamento.
O governo de Raúl Castro está apostando nesse caminho. E vem fazendo gradualmente reformas que abrem o sistema econômico cubano para o capitalismo sem que o Estado deixe de ser um ator decisivo na coordenação do sistema econômico, e sem que o Partido Comunista perca o controle político. Em princípio, essa é a única opção que permitirá aos cubanos conservar uma parte da igualdade econômica alcançada e, ao mesmo tempo, lograr o crescimento sustentado. O aumento da desigualdade será inevitável, mas será limitado. Em sua fase inicial o preço do desenvolvimento capitalista é o aumento das desigualdades. Mas, se a aposta tiver êxito, o padrão de vida da grande maioria dos cubanos melhorará e, em um segundo momento, poderemos assistir à transição para a democracia.
O êxito dessa aposta cubana está, porém, longe de estar assegurado. Quando, a partir de 1979, a China fez seu salto para o capitalismo sob a liderança de Deng Xiaping, ela já havia antes, com Mao Tsé-tung, feito sua revolução nacional e industrial, já havia educado toda a população e já havia feito os investimentos fundamentais na infraestrutura e na indústria de base. Embora Mao Tsé-tung estivesse construindo uma sociedade igualitária, e seu objetivo fosse o socialismo, ele, na verdade, havia completado a primeira parte da revolução capitalista chinesa. Os cubanos não lograram esse resultado. Eles também educaram suas crianças, mas não lograram estabelecer uma base industrial. Sua vantagem sobre os chineses foi haver estabelecido um Estado social sólido a um custo relativamente baixo. Suas desvantagens, um mercado interno pequeno, e uma base industrial pouco desenvolvida.
Cuba é para muitos uma espécie de última esperança do socialismo. É um equívoco pensar nesses termos. Seria muito bom para o mundo que uma sociedade razoavelmente igualitária como é a de Cuba lograsse se desenvolver e se tornar democrática. Mas é preciso pensar em um socialismo possível que provavelmente só se afirmará em países que tiverem satisfeito um conjunto de condições: (a) já tiverem alcançado um elevado nível de desenvolvimento econômico; (b) o progresso técnico for poupador de capital de forma que os salários poderão crescer a uma taxa maior do que a produtividade sem prejudicar uma taxa de lucro satisfatória para os empresários investirem; (c) as taxas de juros e de aluguel recebidas pelos rentistas - pelos que ganham sem trabalhar sem estarem ainda aposentados - forem as menores possíveis; (d) as oportunidades de realização pessoal forem razoavelmente iguais para todos mediante uma educação efetivamente igualitária; (e) mas as diferenças de remuneração em razão do mérito forem relativamente pequenas - as estritamente necessária para estimular o trabalho e a inovação.
São condições que supõem a vontade política de criar uma sociedade mais livre e mais justa, o aumento da produtividade tanto do trabalho quanto do capital, a capacidade de administrar as organizações ou empresas e o aparelho do Estado de forma cada vez mais eficiente, o reconhecimento dos conflitos combinado com a valorização do entendimento e da harmonia. São condições econômicas e políticas que só são alcançáveis pela política - pela capacidade de cidadãos com espírito republicanos de argumentar e fazer concessões mútuas para governar, orientados pelos valores da liberdade e da igualdade, e, especialmente, da fraternidade ou solidariedade.
São condições que eu aqui não discutirei, mas que enumero, porque, ao pensar no povo cubano e em sua grande luta, não posso deixar de afirmar minha crença no desenvolvimento humano, que, porém, só será pleno se, além de democrático, for socialista; se tiver no horizonte, além da liberdade, uma razoável igualdade de condições de vida.
São Paulo, 28 de maio de 2011
Recebido em 6.6.2011 e aceito em 10.6.2011.
Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor emérito da Fundação Getulio Vargas (SP). @ - lbresser@uol.com.br/ www.bresserpereira.org.br
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
05 Set 2011 -
Data do Fascículo
Ago 2011