Open-access Ensino e aprendizagem de Física no Ensino Médio e a formação de professores

RESUMO

Neste artigo, apresentamos e discutimos questões necessárias para o planejamento e a implementação de aulas de Física em que o foco está duplamente colocado sobre o ensino e sobre a aprendizagem. Destacamos o papel das práticas investigativas e argumentativas como essenciais para a abordagem da Física em sala de aula. Apresentamos conhecimentos necessários que o professor de Física precisa considerar em sua atividade profissional e destacamos algumas ações que podem ser realizadas em formação inicial.

PALAVRAS-CHAVE: Ensino de Física; Ensino Médio; Formação de professores; Práticas investigativas e argumentativas

ABSTRACT

In this paper, we present and discuss issues concerning the planning and implementation of Physics lessons focused on both teaching and learning. We highlight the role of inquiry and argumentative practices as central to approaching Physics in the classroom. We present the essential knowledge that Physics teachers must consider in their professional activity, and highlight some actions that can be performed in their initial training.

KEYWORDS: Physics teaching; Senior High School; Teacher education; Inquisitive and argumentative practices

Introdução

A escrita deste texto surge do convite para dissertamos sobre “Ensino de Física e a formação de professores”. No entanto, décadas de pesquisa em ensino de Física levam-nos a considerar pouco profícua, nos dias atuais, a possibilidade de escrevermos sobre o ensino de Física e a formação de professores para esse ensino sem a “aprendizagem”. O substantivo “aprendizagem” não é só uma palavra a mais no título, pois expressa nosso posicionamento educacional de consideração do aluno como parte essencial do processo e das interações que se estabelecem em situações didáticas. Quando tratamos do “ensino de Física e formação de professores”, pensamos nos conteúdos programáticos que o professor vai ensinar e o que ele precisa saber desses conteúdos para bem ensinar; já quando nos propomos ao “ensino e aprendizagem de Física e formação de professores”, é necessário ir além, explorando instâncias das relações que os alunos estabelecem com o conhecimento. Nessa perspectiva, inegavelmente o professor precisa saber o conteúdo que vai ensinar, mas precisa saber também como vai ensinar para os alunos aprenderem.

E junto com essa mudança de referencial - de o que se ensina para o que os alunos aprendem - veio também uma mudança no conceito de aprendizagem. Dizíamos que os alunos aprendiam quando eles sabiam repetir na prova de avaliação o que o professor tinha falado em classe, o que eles tinham decorado do livro texto e, também, quando o aluno acertava os problemas muito parecidos com a lista de exercício já resolvidos em aulas. Um aluno que estudasse na véspera da prova era um bom aluno. Mas esse padrão de ensino, no qual o professor é o agente que pensa e o aluno é o agente passivo, que segue o raciocínio do professor, mudou. Passou-se a exigir que o professor levasse o aluno a construir ele próprio a estrutura do pensamento. Era importante ter um aluno intelectualmente ativo. E isso não é fácil. A profissão de professor ficou muito mais difícil.

Essa mudança implica considerar a necessidade de o professor conhecer não apenas os conteúdos da Física, mas também conhecer conteúdos de Didática e Pedagogia, de modo a poder planejar e implementar propostas para o ensino de conhecimentos científicos, além de avaliar se houve a aprendizagem desses e a relação das ações de ensino com a aprendizagem na expectativa de aprimorar sua prática.

Física como tópico de ensino, aprendizagem e avaliação nos dias atuais

Nos últimos anos, a pesquisa em ensino de Ciências em todo o mundo tem se preocupado em apontar o papel da linguagem no ensino e na aprendizagem, destacando a importância de que interações discursivas entre professor e alunos podem ser um caminho por meio do qual os conhecimentos científicos são debatidos e compreendidos em sala de aula. Essa concepção encontra amparo não apenas nas pesquisas em sala de aula (por exemplo, Lemke, 1997; Sutton, 1997; Mortimer; Scott, 2002; Carlsen, 2006), mas também se fundamenta em perspectivas sociológicas e filosóficas das ciências que entendem a produção científica como uma atividade social (Longino, 1990; Knorr-Cetina, 1999).

Reformas curriculares recentes têm destacado a importância de que práticas científicas de investigação e de argumentação sejam vivenciadas pelos estudantes nas situações de ensino e aprendizagem de ciências (NGSS, 2012; MEC, 2017). Consonante a isso, avaliações externas e em larga escala em todo o mundo (PISA e TIMSS, por exemplo) e também no Brasil (SAEB e Prova Brasil, entre outros) têm buscado, cada vez mais, encontrar estratégias para que as práticas científicas sejam avaliadas, reconhecendo que ensinar e aprender ciências vai para além da memorização de fatos e conceitos.

Esse fato revela a intenção exposta em currículos e avaliações de que sejam oferecidas oportunidades aos estudantes para contato com elementos conceituais, sociais e epistêmicos das ciências como objetivos do ensino e da aprendizagem dessas disciplinas (Duschl, 2008). Esse olhar ampliado sobre o que os estudantes merecem aprender sobre ciências nas situações formais de ensino revela a preocupação de que a Física apresentada em sala de aula contribua para atuação e participação efetivas dos indivíduos em uma sociedade científica e tecnológica, pródiga em informações, mas ainda carente em maneiras de construir conhecimentos sobre elas. E defendemos que esse fato corrobora nossa concepção de que o ensino de Física pode contribuir para essa formação na medida em que essa disciplina seja apresentada como um campo de conhecimento e, por isso, como uma maneira social de construir conhecimento sobre o mundo natural.

O papel das práticas nas ciências

Fundamentamos nossa argumentação na percepção da atividade científica como prática social (Longino, 1990; Knorr-Cetina, 1999). Um trabalho relevante que destaca essa percepção é o estudo realizado por Latour e Woolgar (1986). Baseando-se em uma metodologia de estudos antropológicos e etnográficos, Latour instalou-se por cerca de um ano em um laboratório de neuroendocrinologia. Nesse período, conviveu cotidianamente com pessoas que realizavam atividades que, cada uma a seu modo, eram-lhe familiares ou estranhas.

No livro, Latour e Woolgar (1986) expressam a construção de fatos científicos por meio da ideia de inscrição literária. Essas podem ir se alterando ao longo do trabalho, o que não significa que uma inscrição seja substituída por outra; embora isso possa ocorrer, em muito casos elas se ampliam e são aprimoradas, tornando-se cada vez mais específicas e especializadas para uma situação em estudo. Conforme descrevem os autores, o objetivo final dos estudos realizados no laboratório é a publicação de artigos. O estudo de Latour e Woolgar (1986) permite colocar em análise práticas realizadas na construção de conhecimento científico. Ainda que todo agrupamento possa trazer certo reducionismo, parece-nos possível sintetizar as ações descritas por Latour e Woolgar e que resultaram em fatos construídos pelo grupo do laboratório em estudo. As práticas concentram-se em quatro principais tipos que demonstram: a obtenção de inscrições na constituição e teste de hipóteses, testes com controle de variáveis, testes com mudança ou manutenção de procedimentos; o trabalho com as inscrições pela organização, classificação e seriação de inscrições produzidas ou advindas de contato com outros grupos (seja por meio de revisão literária, seja por participação em debates de outros grupos); a construção de explicações, transformando inscrições em evidências, estabelecendo de justificativas ou contraponto para uma alegação; e o processo de escrita, que ocorre pela comparação e contraste de inscrições com a revisão da literatura.

Essas práticas revelam interações sociais e, conforme indicam Longino (1990, 2002) e Knorr-Cetina (1999), a crítica analítica a novas proposições deflagra a inserção de processos cognitivos na constituição de um conhecimento durante e após as atividades que permitiram construir tais suposições. Longino (2002, p.129) chega a afirmar que “interações discursivas críticas são processos sociais de produção de conhecimento” (tradução nossa).

Após um extenso estudo sobre a construção e disseminação de conhecimentos científicos, Longino (2002) propõem “normas sociais do conhecimento social”, como sendo elementos que ajudam a conferir objetividade às novas proposições. Para ela, essas normas baseiam-se na existência de: fóruns que representam espaços reconhecidos pela comunidade científica para apresentação de resultados de pesquisas e para crítica e revisão dessas propostas; receptividade à crítica e a possibilidade por ela conferida de reflexão sobre o tema em debate podendo implicar mudanças nos conhecimentos; padrões públicos de análise que evidenciam a existência de um conjunto de conhecimentos estabelecidos que se transformam em critérios para a análise de novas proposições; e constituição de igualdade moderada de autoridade intelectual entre os participantes de uma comunidade, convencionando que são os níveis de conhecimento de alguém o que impacta em sua possibilidade de participação e não a posição ou o status social adquiridos por um membro da comunidade.

Mediante essas ideias, refletir sobre o ensino e a aprendizagem da Física indica considerar se a realização de práticas científicas é oportunizada aos estudantes e como elas são implementadas na sala de aula. Um elemento central que aflora é a importância da investigação e da argumentação no ensino das Ciências, uma vez que essas são práticas essenciais desse campo de conhecimento.

O ensino e a aprendizagem da Física por meio de práticas investigativas e argumentativas

O ensino por investigação tem sido utilizado como estratégia de ensino de Ciências há mais de meio século. Em seu estudo, Abd-el-Khalick et al. (2014) relatam a diversidade de modos de ação associada ao ensino por investigação. Esses modos de ação relacionam-se a trabalhos práticos, caso, por exemplo, de atividade hands on e o uso de objetos e técnicas para coleta e organização de dados e informações, a trabalhos intelectuais como o estabelecimento e o teste de hipóteses para a resolução de um problema e a análise de situações, a definição de explicações e a busca pelos limites e condições dessas.

Defendemos o ensino por investigação como a resolução prática ou intelectual de problemas em que é necessário o envolvimento com ações que permitam analisar variáveis, coletar dados, identificar influências, formular explicações e estabelecer limites e condições para os quais elas sejam válidas. Todas essas ações não estão previamente definidas aos estudantes, sendo importante que as construções sejam realizadas por eles.

Nessa perspectiva, o trabalho com a investigação em sala de aula pode permitir relacionar e integrar práticas como as destacadas dos trabalhos de Latour e Woolgar (1986) e Longino (2002) que seriam representadas por ações para coleta, organização e análise de informações com o objetivo de construir explicações e por ações de avaliação dos processos que vão sendo realizados, como um monitoramento das estratégias utilizadas para eventual replanejamento de ações. Essas práticas seriam sempre acompanhadas de discussões em que a argumentação pelas ideias em construção tem função dupla de apresentar as ideias e de contribuir para fundamentação, análise e legitimação delas.

Entretanto, antes de entrarmos no mérito de um ensino que leve os alunos a investigar e a argumentar, é importante novamente destacar que existe uma distância muito grande entre os físicos, e os objetivos que têm com a construção de novos conhecimentos, e os alunos que aprendem conhecimentos e elementos da Física na escola básica. De modo geral, na sala de aula, os alunos ainda pouco conhecem sobre Física, não têm todo o conhecimento prévio de um cientista, nem ainda o desenvolvimento intelectual desses. Portanto, precisamos ter cuidado para não pensarmos em nossos alunos como cientistas-mirins, tampouco objetivarmos tão somente a formação de cientistas para o futuro. Mas podemos e precisamos estudar os principais aspectos que circundam as práticas científicas de modo que seja possível encontrar modos de apresentar os conceitos e as noções das ciências com referências aos modos de construir e validar conhecimentos nessas áreas.

Esse é um ponto essencial para a formação de professores de Ciências e de Física. Como planejar problemas importantes e interessantes para os alunos? Como planejar aulas de tal forma que os alunos possam discutir com seus colegas e que nos relatos finais dos grupos o professor possa organizar uma síntese com a linguagem científica e a conceituação correta?

Quando centramos nosso ensino em problemas investigativos sobre os fenômenos (para que haja argumentação dos alunos), Lawson (2002) nos mostra que estamos também dando oportunidade para que os alunos se desenvolvam no raciocínio hipotético-dedutivo. Assim, ao construírem os conceitos, eles também aprendem a raciocinar cientificamente. Outro ponto importante que retiramos dos trabalhos de Lawson (2002) é que “o professor precisar salientar, após as discussões, durante a sistematização destas, as hipóteses sobre as quais foram obtidos os dados e a estrutura da argumentação que levou tais dados às conclusões”.

Essa nova atitude dos professores é importante para superarmos o problema apontado por Lemke (1997, p.105):

[...] ao ensinar ciência, ou qualquer matéria, não queremos que os alunos simplesmente repitam as palavras como papagaios. Queremos que sejam capazes de construir significados essenciais com suas próprias palavras... mas devem expressar os mesmos significados essenciais se hão de ser cientificamente aceitáveis.

A pesquisa em ensino de Ciências tem estudado a argumentação estabelecida em sala de aula em múltiplas perspectivas que trazem aspectos associados à formação de professores para o desenvolvimento da argumentação (Ferraz; Sasseron, 2017; Ibraim; Justi, 2016; McNeill et al., 2016; Erduran; Simon; Osborne, 2004), o envolvimento dos estudantes e dos professores com a argumentação em sala de aula (Scarpa; Trivelato, 2012; McNeill; Pimentel, 2010; Capecchi; Carvalho, 2006; Capecchi et al., 2000; Jiménez-Aleixandre; Bugallo-Rodriguez; Duschl, 2000) e também elementos teóricos que necessitam ser considerados para o planejamento e implementação de estratégias argumentativas em aulas de Ciências (Sasseron; Carvalho, 2014; Jiménez-Aleixandre, 2010; Erduran; Jiménez-Aleixandre, 2008; Kelly, 2008). Todos esses estudos buscam desvelar aspectos para compreender se e como ocorre o desenvolvimento da linguagem científica e da argumentação em ambiente escolar.

Todas essas pesquisas exercem influência no planejamento de ensino que tem por objetivo levar os alunos a argumentar e a construir conhecimentos sobre fenômenos natureza na perspectiva das ciências.

Em nossas pesquisas e na discussão que aqui trazemos, os trabalhos já citados representam algumas diretrizes importantes. A primeira é que a linguagem científica é argumentativa; em outras palavras, não se faz Física sem argumentar sobre os fenômenos, sobre as interpretações dos “fatos científicos”, pois é necessário apresentar um ponto de vista com justificativas para transformar fatos e dados em evidências. Isso é bastante importante para o ensino de Física, pois temos como consequência o entendimento de que as observações e os experimentos não são a rocha sobre a qual as ciências estão construídas: essa rocha é a atividade racional de geração de interpretações de argumentos com base nos dados obtidos. Essa inferência faz que o ensino sofra modificações fundamentais, pois no ensino tradicional os fatos são mostrados e as conclusões são explicitadas, e muito raramente encontramos um professor que mostre (ou pergunte) sobre o porquê da relação entre os fatos e as conclusões. A segunda é que a argumentação científica obedece a uma estrutura muito particular de pensamento e que pode ser vista como um pensamento basicamente hipotético-dedutivo (se/então/portanto). Nesse caso, podemos dizer que os professores precisam auxiliar seus alunos a construírem justificativas e explicações para os fenômenos estudados. A terceira diretriz é que as justificativas e/ou as explicações estão relacionadas aos campos de conteúdos que estão sendo pesquisados, isto é, dependem do contexto. Assim, quanto mais o contexto for do domínio do estudante, mas facilmente ele poderá fazer relações causais.

Mas como estamos no âmbito da Física, além da linguagem argumentativa, é importante considerar a linguagem matemática como um modo de comunicação essencial na construção de ideias e para a disseminação de conhecimentos. Os trabalhos de Latour e Woolgar (1986), Lemke (1998) e Kress et al. (2001) expuseram que a habilidade para um uso competente de gráficos e outras formas de representação apresentadas pelos cientistas só é adquirida a partir de trabalho extenso de convivência com processos de inscrição. Esse é um sério problema para o ensino de Física, quem sabe o mais sério, pois, enquanto para cientistas um gráfico e as fórmulas são, praticamente, o próprio fenômeno em estudo (Roth, 2002), para os estudantes trata-se de linguagens a serem decodificadas tornando-se apenas mais um formalismo a ser decorado, desprovido de sentido. Assim, os alunos precisam ser apresentados a situações em que possam aprender a transitar entre essas diferentes linguagens, interpretando os significados nelas envolvidos (Carmo; Carvalho, 2012; Capecchi; Carvalho, 2006).

A aprendizagem dos alunos e as práticas profissionais dos professores - reflexões sobre os cursos de formação

Como temos mencionado ao longo do texto, a transformação da ideia do ensino associada à importância da aprendizagem implica considerar a alteração do papel do professor em sala de aula. E uma consequência imediata disso é uma mudança significativa nas formações inicial e continuada de professores.

Para ensinar os alunos a argumentar, o professor precisa fazer o aluno falar. Sabemos que as participações dos alunos nas aulas não acontecem espontaneamente, muito menos intervenções em que os alunos mostrem com suas próprias palavras o seu raciocínio argumentativo. Normalmente essas participações são repetições das palavras, das ideias e do raciocínio do próprio professor. Perguntas, quando existem, refletem menos as dúvidas sobre o tema em discussão e mais o não entendimento da linguagem do professor. E essa participação intelectualmente pobre dos alunos em sala de aula não é um problema somente brasileiro. Grandy e Duschl (2007) também relatam que durante os primeiros anos escolares os alunos trazem muitas questões, mas essas não são questões científicas, e em vez de aprenderem a propor questões científicas, simplesmente deixam de perguntar.

Para fazer os alunos falarem é preciso uma interação construtiva entre o professor e o aluno, e para isso é necessário que o professor pergunte, e perguntas relacionadas com o conteúdo, muito além de “vocês estão entendendo?” ou “alguém tem alguma dúvida?”. Para que apareçam argumentações dos alunos em sala de aula, a prática do professor deve considerar já em seu planejamento a possibilidade de interações dos alunos com o conhecimento, criando ambientes não coercitivos nos quais os alunos possam apresentar sem medo seus argumentos, estejam esses corretos ou não.

Carvalho e Gil-Pérez (2011) apresentaram como deveria ser uma nova formação de professores que tem a proposta de aprendizagem como construção de conhecimento com as características de uma pesquisa científica. Os autores elaboraram um quadro (Quadro 1) à luz das pesquisas em ensino de Ciências, em que colocaram oito pontos que os professores precisam “saber” e “saber fazer” em suas aulas, quando visam a uma formação de seus estudantes aos moldes das ideias até aqui discutidas.

Quadro 1
Oito pontos que os professores precisam “saber” e “saber fazer”

O primeiro ponto, como não poderia deixar de ser, é “conhecer a matéria a ser ensinada”. Considerando as discussões que trazemos, isso significa conhecer os conceitos, as leis, as teorias e os modelos científicos que serão abordados com os estudantes, mas também reconhecer que os modos de construção de conhecimento nas ciências, representados pelas dimensões sociais e epistêmicas desse processo, também são conteúdos a serem explorados com os estudantes. Isso implica, ao mesmo tempo, reconhecer os movimentos históricos e as influências do período e da sociedade nos estudos que resultaram em conhecimentos ainda estudados nos dias atuais; em mesma medida, implica reconhecer as influências mútuas entre ciência, tecnologia, sociedade e ambiente, considerando como cada uma pode representar avanços e problemas para as demais esferas.

O segundo ponto destacado no Quadro 1, “conhecer e questionar o pensamento docente espontâneo”, parece simples, mas pode ser complexo e é necessário. O senso comum diz que ensinar é fácil, bastando conhecer a matéria, ter experiência e encontrar a receita adequada. É importante na formação de novos professores questionar, por exemplo, o caráter natural do fracasso dos alunos em Física, o determinismo biológico - alunos bons e alunos fracos, e o sociológico - nada pode ser feito com alunos que vivem em meios culturalmente desfavorecidos. É também importante questionar que os professores têm atitudes diferentes em relação a alunos e alunas quanto ao aprendizado de Física e, principalmente, questionar a suposta objetividade das avaliações e o seu uso quase exclusivo para julgar os alunos. Outro aspecto importante a ser questionado é a própria forma de estruturar e apresentar atividades em aula: é comum encontrarmos professores que reproduzem ações em sala de aula as quais vivenciaram como estudantes, sem refletir se essas ações são adequadas para o ensino nos dias atuais.

O terceiro saber destacado no Quadro 1 diz respeito a “adquirir conhecimento teórico sobre aprendizagem e aprendizagem de Ciências”. Todo o conhecimento produzido na área de ensino e de aprendizagem, de modo geral, e na área específica de Física precisa ser conhecido pelos professores para que esses possam entender seus alunos e planejar atividades problematizadoras. Esses conhecimentos são a melhor maneira de questionar o senso comum sobre ensino e aprendizagem e de trazer aos professores novas estratégias e abordagens de ensino mais adequadas ao que recomendam as diretrizes curriculares.

Esses conhecimentos dão base para o quarto item que é “crítica fundamentada no ensino habitual”. Na primeira década do século XX tivemos dois grandes pensadores: Einstein, na área da Física, e Dewey, na área de educação. As ideias de Einstein já modificaram o cotidiano de nossas vidas, apesar de ainda não terem chegado à escolarização obrigatória para toda a população. A teoria da Escola Nova de Dewey se contrapunha ao sistema tradicional de educação, propondo o modelo de ensino-aprendizagem focado no aluno como sujeito da mesma. A teoria previa ainda que a aprendizagem devia partir da problematização dos conhecimentos prévios do aluno. As ideias de Dewey ficaram relegadas à Educação Infantil. Faltaram pesquisas em ensino e aprendizagem nos conteú- dos específicos que dessem sustentação empírica as ideias de Dewey. A partir da segunda metade do século XX, com trabalhos como os de Viennot (1979) e Driver, Guesne e Tiberghien (1985), mostrando a existência dos conceitos espontâneos e a influência desses na aprendizagem de Física dos estudantes do correspondente ao Ensino Médio atual e também nos universitários. Esse é um fato importante para uma crítica ao ensino tradicional.

O quinto item exposto no Quadro 1 é “Saber preparar atividades”. Isso não é fácil, e é a principal atividade docente. Em consonância com o que temos defendido, é importante que as atividades permitam que os estudantes compreendam conceitos e aspectos das ciências por meio das vivências de práticas investigativas e argumentativas; e elas podem surgir em uma variedade de modos: experiências de laboratório, leitura de textos históricos, pesquisas bibliográficas, elaboração de sínteses e relatórios, programas de vídeo e computacionais etc.

“Saber dirigir as atividades dos alunos” surge como o sexto item do Quadro 1 e se relaciona diretamente com a possibilidade do envolvimento dos estudantes com as atividades. Esse item diz respeito à apresentação adequada das atividades a serem realizadas, a fim de tornar possível aos alunos adquirir uma visão global da tarefa e o interesse por esta, e à realização de sínteses e reformulações que valorizem as contribuições dos alunos e orientem devidamente o desenvolvimento da tarefa. Isso implica que o professor deve exercer atividades de gerenciamento da turma, sabendo, por exemplo, dividir a turma de pequenos grupos para a realização das tarefas, permitindo intercâmbios enriquecedores entre os grupos, mantendo a disciplina da classe sem inibir os alunos, e criando um ambiente intelectualmente positivo. Em uma visão mais detalhada esse é o momento em que o professor vai promover interações discursivas auxiliando os alunos a relacionar dados, evidências e variáveis no estabelecimento das justificativas para na síntese, elaborada por ele ou pelos alunos, os significados científicos (os argumentos) sejam construídos (Sasseron; Carvalho, 2014). Um grande obstáculo para o desenvolvimento de tarefas que proporcionem discussões em sala de aula é a dificuldade do professor em organizá-las, desde a administração da gradativa adaptação dos alunos ao processo de ouvir os colegas, até o direcionamento de suas questões para uma sistematização de ideias, que leve a conclusões.

O Quadro 1 apresenta no item 7 “Saber avaliar”, o que também é muito importante, pois queiramos ou não os alunos e a sociedade dão à avaliação muito valor. Para os alunos as atividades de avaliação devem permitir um feedback adequado de sua aprendizagem e para o professor, tendo uma visão da classe, é a avaliação de seu ensino e a partir da avaliação pensar no que fazer para alcançar o resultado desejado. Toda avaliação considera o aluno, mas também o ensino do professor. Além disso, para buscar uma coerência com o ensino planejado devem-se avaliar não só os conteúdos conceituais, mas também as habilidades e atitudes, como forma de identificar o envolvimento dos estudantes com as ciências e seus modos de construir conhecimentos.

Por fim, no item 8, mas permeando cada um dos itens anteriores, surge a importância de “Utilizar a pesquisa e a inovação”, relevando a necessidade de as pesquisas geradas pelas áreas de Ciências e de Educação sejam consideradas pelos professores como forma de aprimorar seu trabalho.

E como preparar os professores para essa prática?

Começamos por dizer o óbvio: como formadores de professores, temos de ser coerentes. Se advogamos por um ensino de Ciências em que haja interações discursivas e em que os estudantes realizem investigações, precisamos buscar realizar o mesmo na formação de professores. Assim, temos de promover interações discursivas com os futuros professores auxiliando-os a relacionar dados, evidências e variáveis encontrados em suas situações de estágios realizados nas escolas da comunidade para o planejamento e a defesa de um ensino que leve os alunos a aprenderem e gostarem de Ciências e de Física. Com esse objetivo, temos promovido estágios de formação inicial como um laboratório em que os futuros professores buscarão identificar e resolver problemas para um profícuo trabalho com o ensino e a aprendizagem de seus estudantes.

Um exemplo do que realizamos nos estágios, com base nas informações do Quadro 1, é permitir aos futuros professores uma visão crítica e contextualizada para a prática do ensino de Ciências e de Física. Assim, em um primeiro momento, os professores em formação são instigados a realizar observações e reflexões sobre a escola induzindo um trabalho com os saberes 3 (Adquirir conhecimento teórico sobre aprendizagem e aprendizagem de Ciências), 4 (Crítica fundamentado ao ensino habitual) e 8 (Utilizar a pesquisa e a inovação). Em um segundo momento, em que os professores em formação devem atuar em aula, implementando uma proposta de ensino e aprendizagem, levamo-los a mobilizarem os saberes 5 (Saber preparar atividades), 6 (Saber dirigir as atividades dos alunos), 7 (Saber avaliar) e 8 (Utilizar a pesquisa e a inovação).

É importante também que na formação dos professores os estágios e as aulas teóricas na Universidade caminhem lado a lado. Para os estágios de observação, textos teóricos e as pesquisas em ensino e aprendizagem de Ciências podem fundamentar os problemas a serem investigados e a análise dos dados obtidos. Assim como trazem elementos para a reflexão dos futuros professores sobre a prática docente, as observações de sala de aula devem trazer informações importantes a serem consideradas para o planejamento de suas atividades de regência. Assim, vão surgindo perguntas que revelam a necessidade de considerar os saberes descritos no Quadro 1: Qual conteúdo escolher? Quais elementos desse conteúdo são fundamentais para a abordagem desse tema com essa turma? O que não é fundamental de se abordar nessa oportunidade? Quais os principais problemas relacionados a esse conteúdo? Qual a influência desse tópico na sociedade? Como transformar a abordagem desse tema em oportunidades de atuação dos alunos com práticas investigativas e argumentativas? Como promover a investigação e a argumentação entre os estudantes para a análise do tema escolhido? Como avaliar se os estudantes progrediram na aprendizagem conceitual e epistêmica a partir das aulas realizadas?

Todas essas perguntas revelam a complexidade da atividade docente. E é importante que os professores em formação tenham contato com elas de modo a perceberem que seu trabalho deve ser planejado, não sendo natural ou espontâneo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    07 Ago 2018
  • Aceito
    02 Set 2018
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