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Alcântara Machado: testemunha da imigração

TEXTOS

Alcântara Machado: testemunha da imigração

Rubens Ricupero

Para escrever esta apresentação só disponho, a rigor, de um título: o de haver nascido e crescido no Brás, no seio de velha família italiana desse bairro, dez anos apenas após o aparecimento de Brás, Bexiga e Barra Funda.

Vinte anos antes e eu teria vivido no mundo dos personagens do livro, o mundo da juventude de meus pais, o da primeira geração de filhos de imigrantes italianos nascidos no Brasil.

As duas primeiras décadas do século marcam o momento de maior intensidade da maneira de ser ítalo-brasileira. Antes, predominava o ítalo, o estrangeiro inseguro, preocupado em sobreviver, ignorante da língua e dos costumes. Depois, irá prevalecer, pouco a pouco, o brasileiro, o neto ou bisneto de italianos integrado na comunidade, vivendo em bairros de gente afluente, não guardando mais do que algumas palavras na língua dos avós.

Entre esses dois pólos extremos, de cultura mais ou menos homogênea, estende-se o período híbrido da mistura das línguas e das comidas, do apagar gradual dos valores e imagens do país que ficou atrás e do engajamento progressivo na realidade nova.

É quando os filhos de imigrantes, confiantes em seus direitos de brasileiros natos, mais à vontade na língua que aprenderam no Grupo Escolar do que no dialeto ouvido em casa, se lançam à luta pela conquista de um lugar melhor na sociedade de adoção.

Às vezes com agressividade, sempre com energia, esses ítalo-brasileiros vão abrir um espaço próprio, que a cidade lhes concede com maior ou menor dificuldade, pois está também em plena expansão.

Do burgo provinciano e modorrento de 1800, só animado pelos estudantes da velha Escola de Direito, quase perdendo para Campinas sua condição de Capital da Província, São Paulo prepara-se para ingressar no ciclo contínuo de transformações que irá multiplicar-lhe 40 vezes a população — dos 165 mil habitantes de 1890 para os mais de 7 milhões atuais.

A prosperidade do café na segunda metade do século XIX, antes das crises de superprodução deste século, gera a acumulação de capitais que vai tornar possível a arrancada da industrialização. Uma convergência de circunstâncias propícias concorre para fazer de São Paulo a grande metrópole industrial de hoje: os capitais dos barões e comissários do café; a energia elétrica produzida pelos canadenses da Light na represa Billings, vizinha à cidade; a mão-de-obra e o mercado consumidor fornecidos pelos imigrantes; as restrições às importações conseqüentes à Primeira Guerra Mundial.

Os imigrantes italianos serão, ao mesmo tempo, agentes ativos e beneficiários da industrialização e os nomes peninsulares ficarão para sempre ligados à revolução industrial paulista. A participação italiana é sensível já na fase inicial de indústria de bens de consumo, alimentos ou tecidos, dominada pelos Matarazzos e Crespis, durante a qual o Conde Francisco Matarazzo aparece como a figura simbólica dos novos magnatas, uma espécie de Rockefeller paulista. Mais tarde, ela se acentua no desenvolvimento da indústria pesada de máquinas e equipamentos, onde a inventividade mecânica dos italianos do norte vai criar os gigantes industriais de hoje, os Bardellas, os Dedinis, os Romis.

Se a História, mais sensível ao êxito ostensivo do que às vidas obscuras, vai guardar apenas os nomes dos donos de fábricas, é preciso não esquecer que eram também, em geral, italianos os que operavam essas fábricas. E serão italianos os trabalhadores que introduzirão no Brasil as correntes de pensamento e ação sociais da Europa contemporânea, o que se chamava, na linguagem policial de então, as doutrinas exóticas: o anarquismo, o socialismo, o movimento sindical, a organização das primeiras greves.

É nesse contexto dinâmico de expansão econômica, de aumento da população, de modernização urbana, de criação de oportunidades que se situam dois fenômenos, um cultural, outro sociológico: a Revolução Modernista de 22 e a emergência da geração dos filhos de imigrantes. Do encontro desses mundos vai surgir o livro de Alcântara Machado.

Os dois movimentos apresentam afinidades evidentes. Ambos são jovens, vigorosos, modernos, inovadores, numa postura que se pode resumir como basicamente otimista diante da possibilidade de construir o futuro.

E o que vai explicar, no livro, de um lado, a ênfase na descrição do que é força, ascensão, êxito, na vida do imigrante e, de outro, o silêncio sobre o problemático e as tensões mais profundas, a presença da dor apenas sob a forma de sentimento individualista.

Produto e, em parte, causa da súbita metamorfose paulista do início do século, o modernismo de 22 não podia deixar de reagir ao imigrante, principal manifestação da mudança na paisagem humana.

A sensibilidade dos modernistas à palavra faz com que o primeiro registro do fenômeno novo ocorra no domínio da linguagem. A prosódia das vogais exageradamente abertas, o ritmo cantante da frase, o sabor das palavras híbridas e das distorções gramaticais ferem o ouvido dos jovens escritores como um som irreverente e bem-vindo, uma espécie de reforço popular e inesperado na luta contra os Coelhos Neto, os Ruis Barbosa e outros que macaqueavam a sintaxe lusíada.

Antes de Alcântara Machado, já Mário de Andrade, o grande nome da Escola, iniciara o processo de incorporar à linguagem literária as manifestações populares do dialeto ítalo-paulistano em textos bilíngües citados por Alfredo Bosi:

E os bondes riscam como um fogo de artifício,

sapateando nos trilhos,

ferindo um orifício na treva cor de cal....

- Batat' assat' ó furnn.....

(Noturno)

Lá para as bandas do Ipiranga as oficinas tossem....

Todos os estiolados são muito brancos.

Os invernos de Paulicéia são como enterros de virgem....

Italianinha, torna al tuo paese.

(Paisagem nº 2)

Laranja da China, laranja da China, laranja da China.

Abacate, cambucá e tangerina.

Guardate. Aos aplausos do esfuziante clown,

heróico sucessor da raça heril dos bandeirantes,

passa galhardo um filho de imigrante,

loiramente domando um automóvel.

(O Domador)

O domador de automóvel bem poderia ser Adriano Melli, filho do Cav. Uff. Salvatore Melli do conto A Sociedade., o mesmo que, ao volante do Lancia Lambda vermelhinho e com a ajuda dos milhões do pai, conquista a filha da orgulhosa família paulista do Conselheiro José Bonifácio de Matos e Arruda.

Mais do que em Mário e Alcântara Machado, a língua do imigrante vai surgir, não como frase ou pregão enxertados no texto, mas como o próprio texto, no Trilussa do dialeto ítalo-paulistano, o poeta Juó Bananére, também conhecido como Alexandre Marcondes Machado. É ele o único a tentar, como o Guimarães Rosa codificador dessa nova língua, sua reelaboração caricatural, como estrutura verbal da expressão humorística. É pena que a forma satírica de A Divina Increnca ou o humor ainda jovem de paródias como U Lobo i u Curdeirigno tenham comprometido, aos olhos críticos, o sentido original da experiência lingüística. Juó Bananére ainda espera por alguém que o valorize.

Quase vinte anos após Brás, Bexiga e Barra Funda, Oswald de Andrade iria, igualmente, recolher em Marco Zero (1943-1945), alguma coisa da língua e da atmosfera humana da imigração, não só italiana mas também japonesa.

A meio caminho, lingüisticamente, entre a nota italiana isolada de Mário e o texto, em português macarrônico, de Marcondes Machado, Alcântara Machado vai usar a expressão bilíngüe não só como recurso estilístico, mas como elemento relevante da narrativa e da composição dos personagens. O Cav. Uff. Salvatore Melli, proclamando que o capital sono io ou o barbeiro Tranquillo Zampinetti, comentando, no Centro Político do Brás, que a gente bisogna no Brasil, bisogna mesmo., é d'un buono governo, mais nada, não existiriam, não teriam consistência se não misturassem as línguas.

A originalidade de Brás, Bexiga e Barra Funda não está, porém, em haver captado o fato lingüístico novo, o que outros haviam feito antes, mas em ter ido além. No livro, o italiano não é só personagem episódico, como em Mário de Andrade, ou pretexto de sátira, como em Juó Bananére. O imigrante dos contos de Alcântara Machado, sua vida e a dos seus filhos, os triunfos e desgraças pequeno-burgueses que se desenrolam nas casas modestas das ruas do Gasómetro ou do Oriente, constituem, pela primeira vez, a própria trama, o núcleo central, a matéria exclusiva da obra literária.

É nisso que reside a contribuição principal, única e insubstituível, de Alcântara Machado. Única porque o seu pioneirismo não teve imitadores no mesmo nível. Insubstituível porque o escritor fixou, em sua fugacidade, um mundo que não mais existe.

O Brás da minha infância já não era o bairro maciçamente italiano do barbeiro Tranquillo Zampinetti, do conto Nacionalidade. A própria ascensão social do barbeiro e de muitos outros que não foram personagens de Alcântara Machado provocara o êxodo dos antigos imigrantes para bairros de classe média. As ruas das imediações da velha estação ferroviária do Norte esvaziaram-se de italianos e foram invadidas por levas de imigrantes mais recentes: primeiro, os andaluzes, nos anos 40; mais tarde, os brasileiros do Nordeste.

Bastaram pouco mais de dez anos para fazer desaparecer para sempre a pequena Itália que Alcântara Machado retratou, no efêmero do seu apogeu. Era inevitável que a mobilidade social de São Paulo fosse incessantemente apagando com u'a mão, as paisagens humanas e sociais que o dinamismo urbano desenhava com a outra.

Foi um acaso pelo qual devemos ser gratos que aquele momento passageiro tivesse encontrado o intérprete capaz de dar-lhe vida perene, através da transposição literária. Não fosse a sensibilidade de um jovem de 26 anos, esse mundo colorido e forte teria se desvanecido sem deixar traços, a não ser os que sobreviveram na reminiscência dos que vão partindo. Desses traços, poucos fixaram-se em letra de imprensa, como o livro de memórias de Zélia Gattai, Anarquistas Graças a Deus, os depoimentos de Memórias e Sociedade, feitos a Ecléa Bosi, as evocações sobre o Bexiga de época mais recente, de autoria da Haim Grunspun.

Flagrantes rápidos, fotográficos, os contos de Alcântara Machado capturaram, com o gesto impulsivo de retratista, a linha essencial daquelas vidas humildes. Quem traz em si a herança da imigração não precisa procurar além dos limites da própria família para encontrar os que podiam ter servido de modelo às figuras deste livro: o velho italiano que se aposenta, com prédios e dinheiro no banco e vai se dedicar a acompanhar diariamente a construção da capela da família no cemitério do Araçá, símbolo sólido da ancoragem definitiva na nova terra; o imigrante que conserva orgulhoso a velha nacionalidade, sem por isso deixar de votar com carteira falsa e tornar-se cabo eleitoral e sustentáculo da oligarquia do Partido Republicano Paulista; o sonho da riqueza, que quase sempre toma a forma concreta do palacete na avenida Paulista, do Isotta Fraschini de luxo, do filho colando grau de bacharel, com a volta triunfal para casa, de cartola, a fim de esmagar os vizinhos....

A imagem do italiano que se reflete nestas histórias é, em geral, positiva e benevolente, com a ponta de condescendência de um superior social que se sente fora do alcance da competição. É inegável a empatia do escritor pelos seus personagens, nenhum dos quais é totalmente reprovado. Há, é claro, alguma ambigüidade com relação à petulância desafiadora, à ameaça latente do imigrante em ascensão. A figura de Natale Pienotto, por exemplo, próspero proprietário do Armazém Progresso de São Paulo, especulador de gêneros alimentícios, corresponde — em Alcântara Machado — ao vilão Venceslau Pietro Pietra — do Macunaíma de Mário de Andrade —, e sua raiz é a mesma condenação social à agressividade incômoda do imigrante de sucesso. Mas o vendeiro do Bexiga é, no fundo, muito mais simpático e gostável do que o misto de ogre e gangster Pietro Pietra, subdito do Vice-Reinado do Peru, e de origem francamente florentina, como os Cavalcantis de Pernambuco.

O estereótipo popular contra o estrangeiro raramente aparece e, quando o faz, não se dirige significativamente contra o italiano, mas sim contra o alemão, tido na conta de elemento refratário à absorção. Em Tiro de Guerra nº 35, por exemplo, o patriotismo exaltado de Aristodemo Guggiani não suporta a gozação insolente com que o praça Guilherme Schwertz escracha com o hino nacional e, depois de xingar-lhe a mãe, assenta-lhe violento tabefe, no momento em que o alemão alega não ser a mãe brasileira para merecer o xingamento... Está nítido, nesse conto, o contraste entre dois estereótipos: o do italiano, fácil de integrar, até patriota, por isso visto com simpatia e alívio e o do alemão, odioso no seu desprezo pelo nacional.

A ideologia camuflada nestas fábulas é, em outras palavras, a da absorção rápida do imigrante. Os pobres integrar-se-ão através do fascínio da riqueza entrevista junto aos poderosos da terra, o Buick que seduz Carmela, o ursinho felpudo que faz chorar Lisetta, todos símbolos de status desejável, que só requer adesão e trabalho duro. Os ricos serão admitidos à aliança pelo casamento, com as boas famílias empobrecidas, caso de Adriano Melli, ou serão cooptados pela classe dominante quando revelem velhacaria inata, disposta a renunciar ao próprio nome, como no caso do orfãozinho Gennaro, que se transforma no futuro deputado Januário Peixoto de Faria.

Nesse sentido, o conto-síntese do livro, não por acaso situado em seu fecho, é Nacionalidade, que descreve a lenta evolução de Tranquillo Zampinetti, de barbeiro pobre a rico proprietário de imóveis, de patriota arrebatado pelas façanhas militares italianas, às turras com os filhos renitentes à língua paterna, a oportunista político, coluna do Partido Republicano Paulista, que, pela mão do filho advogado, requer sua naturalização.

Zampinetti, domesticado e nacionalizado, simboliza a dissolução final da ameaça italiana. Com sua capitulação no término do volume, o escritor inconscientemente exorcizou e liquidou aquele mundo que lhe inspirou os contos, pitoresco, é verdade, mas inquietante na sua diversidade, na sua estranheza, no seu vigor.

A língua das histórias é enxuta, rápida, ágil, telegráfica. Tristão de Ataíde já havia destacado o estilo cinematográfico de Pathé Baby, na velocidade dos cortes, no ritmo acelerado das seqüências, na fugacidade das impressões. A frase é elétrica, curta, mais nervo que carne, mais verbo que adjetivo, mais ação que descrição. Há pouca introspecção e subjetividade. A realidade exterior é que conta. Como nos Futuristas italianos que influenciaram o nosso Modernismo — Marinetti, Carra ou Boccioni —, há um verdadeiro fascínio com o movimento, sinônimo de modernidade. No texto aparecem, relativamente com menor freqüência, cores ou cheiros.

O que sobra é som, barulho, movimento. Até o frio se escuta, o grito do claxon dos automóveis ponteia as narrativas, o sargento clarina as ordens de comando, a mãe beija a testa do menino chuchurreadamente, o vestido grudado à pele serpeja no terraço, a locomotiva fumegando no carrinho de mão apita amendoim torrado, os bondes formando cordão esperam campainhando o zé-pereira.

Os contos são estrepitosos, povoados de berros, estrondos, gritos, freadas de carros, canções e bandas marciais.

Um resumo disso tudo é o Corinthians (2) vs. Palestra (1), das primeiras aparições em nossa literatura do que viria a ser a paixão nacional, o futebol, naquele tempo ainda não profissionalizado. O conto é puro movimento e ação, cinema já com banda sonora, roteiro pronto para filmagem, sem faltar os cortes.

É por esse caráter eminentemente urbano, paulistano até a medula, que Agripino Grieco quis fazer a aproximação de Alcântara Machado com Manoel Antônio de Almeida, ambos citadinos, ambos descobridores da vida popular das ruas e praças. A analogia pára aí, todavia, na frescura plebéia dos diálogos e dos tipos, pois o tempero picaresco de Memórias de um Sargento de Milícias tem sabor muito distinto dos quadros alegres ou melodramáticos, mas sempre vertiginosos, da Paulicéia apressada de Brás, Bexiga e Barra Funda.

Houve quem se admirasse, Francisco de Assis Barbosa, por exemplo, no prefácio magistral e definitivo que escreveu para as Novelas Paulistanas, de que fosse de um paulista de 400 anos a vocação de afinar e sintonizar com esse pequeno universo barulhento e vigoroso dos bairros populares. De fato, à primeira vista não podia ser mais marcante o contraste entre a parte da cidade que deu nome ao livro e as origens aristocráticas de Antonio Alcântara Machado, bisneto de um presidente de cinco províncias do Império, neto e filho de professores da Faculdade de Direito; seu pai, José de Alcântara Machado d'Oliveira, além de jurista, tendo sido Senador Federal, Constituinte, autor de Vida e Morte do Bandeirante, membro da Academia Brasileira de Letras. O filho Antônio andou a meio caminho de reproduzir a carreira político-literária do pai (participou da Revolução de 1932, foi secretário da bancada paulista na Assembléia Constituinte e chegou a ser eleito Deputado pelo Partido Constitucionalista de São Paulo), só não o fazendo devido à morte prematura com apenas trinta e quatro anos, em conseqüência de uma operação tardia de apendicite.

O contraste entre a aristocracia do autor e a vitalidade plebéia do tema funciona, no entanto, mais como estímulo do que como estorvo. Além da atração dos opostos, raiz provável do impulso inicial do livro, outra razão explica o aparente paradoxo: era preciso estar situado longe, o mais longe possível daquele mundo de imigrantes para captar-lhe a originalidade e o sabor, imperceptíveis para os participantes, que não dispunham de perspectiva, nem de distância emocional. E se realmente as tivessem, é mais provável que percebessem como defeitos e não como qualidades tudo o que os tornava diferentes, a começar pelos nomes, empenhados como estavam os filhos de imigrantes em se fazerem aceitos, em serem iguais.

Ou se julga acaso que era por outro motivo que Lorenzo e Bruno se recusam a entender as ordens em italiano de Tranquillo Zampinetti ou que Aristodemo Guggiani tivesse ajudado a empastelar o Fanfulla que falou mal do Brasil?

É sugestivo, a esse respeito, que, enquanto paulistas genuínos como Mário de Andrade, Marcondes Machado, Alcântara Machado se deixavam seduzir pelos temas e pelo dialeto ítalo-paulistanos e escreviam sobre o Brás, o Bexiga e a Barra Funda, o ítalo-brasileiro Menotti del Picchia ia, pouco antes, buscar inspiração no mais tradicional regionalismo brasileiro para compor seu Juca Mulato (1917).

Mas, se a distância e a elevação sociais conferem ao observador senso de perspectiva e visão dos contornos exteriores, tendem, ao mesmo tempo, a negar-lhe a compreensão mais profunda da realidade interior.

É o que Alfredo Bosi aponta em Alcântara Machado, no qual reconhece o grande prosador do Modernismo paulista, o renovador da estrutura e do andamento da história curta. Depois de aproximá-lo a Lima Barreto, no realismo de uma literatura voltada para as ruas da cidade, o crítico contrasta a pungência do romancista dos subúrbios do Rio com o divertissement das páginas do paulistano. "Nelas, uma análise ideo-estilística mais rigorosa não constata nenhuma identificação coerente com o imigrante, pitoresco no máximo, patético porque criança (o conto do Gaetaninho), mas, em geral, ambicioso, petulante, quando capaz de competir com as famílias tradicionais em declínio. O populismo literário é ambíguo: sentimental, mas intimamente distante... é sensível, a uma leitura crítica dos contos, esse fatal olhar de fora os novos bairros operários e de classe média..." E mais adiante: " foi, assim, uma inclinação liberal e literária pelo pitoresco e pelo anedótico que o fez tomar por matéria de seus contos a vida difícil do imigrante... esses dados de base ajudam a entender os limites do realismo do escritor, visíveis mesmo nos contos melhores, onde o sentimental ou o cômico fácil, mimético, acabam por empanar um visão mais profunda e dinâmica das relações humanas que pretendem configurar".

Há muito de exato nessas observações, em especial a condenação ao abuso do pitoresco e do anedótico. Ao mesmo tempo, o juízo soa severo, talvez por dar ênfase insuficiente ou não admitir como atenuante o contexto histórico-cultural em que se situaram tanto Alcântara Machado como os seus personagens.

A tragédia pessoal de Lima Barreto, seus fracassos, o alcoolismo, a consciência aguda do preconceito contra sua situação de mulato, o tempo histórico e o ambiente depressivo em que atuou, tinham de concorrer para um tipo de obra onde o dramático e o contraditório da condição humana ocupariam naturalmente um lugar de destaque.

Por outro lado, os modernistas paulistas e a primeira geração de ítalo-brasileiros eram gente inclinada, por temperamento e condições de vida, ao otimismo, cheia de entusiasmo pela ação, de ânimo construtivo, resoluta, confiante no homem e no mundo. São Paulo de então era uma cidade adolescente, num nível alto do seu poderio político e econômico, em plena expansão de potencialidades que pareciam não conhecer limites, muito antes de aparecerem as crises do próprio crescimento e, com elas, a percepção perturbadora das insuficiências.

Os próprios imigrantes e seus descendentes, contagiados pelo ritmo da cidade viam, ou acreditavam ver, as oportunidades surgirem a cada canto. Para embalar os sonhos mais impossíveis, aí estavam, como na América do Norte, as histórias exemplares dos condes papalinos, dos barões da indústria — Matarazzo, Martinelli, Crespi —, de que se narrava a trajetória maravilhosa de self-made man surgidos do nada.

Esse ambiente dinâmico, e muito menos o confortável background de homens ricos e cultos de muito dos participantes ou simpatizantes do Modernismo, não convidavam obviamente à visão crítica da sociedade e do homem. Não deixa de surpreender que, apesar de coincidir com o ano de abertura do ciclo de instabilidade militar do Tenentismo, o qual desembocaria na revolução de 30 e na destruição da República Velha, a Semana de Arte Moderna, concentrada na renovação formal e estética, tivesse produzido reflexão relativamente parca sobre os problemas sociais e políticos do Brasil. Excetuam-se, é certo, as obras de Paulo Prado ou, mais tarde, de Sérgio Buarque de Holanda.

Quem sabe uma das explicações para o fato se encontre na situação privilegiada de São Paulo, beneficiário do status quo político e social de então e, assim, pouco inclinado a contestar essa ordem que lhe trazia tantas vantagens. Muitos dos modernistas de 22 ou mais tarde, Paulo Prado, por exemplo, ou Alcântara Machado, estavam seguramente no topo da sociedade paulista, onde também se situava Dona Olívia Penteado, cujos salões foram a sede simbólica da Semana de 22.

Desse ponto de vista, se a ausência de sentido trágico da vida ou de consciência social tiverem de ser vistas como falhas insanáveis do livro de Alcântara Machado, igual condenação deveria ser estendida a todo o Modernismo paulista, cujo forte nunca foi o de problematizar introspectivamente o eu ou de colocar em questão os fundamentos do sistema social dominante.

Foi essa, aliás, uma das razões do distanciamento que logo separou Nordeste e São Paulo: os regionalistas nordestinos Gilberto Freyre, José Lins do Rego, vendo nos paulistas rapazes grã-finos, de boa família, que sabiam falar francês e professavam doutrinas estéticas importadas.

Aí, também, a diferença de contexto histórico-social esclarece, em parte, os motivos do caminho original seguido pelos nordestinos, ao inaugurarem, por exemplo, o ciclo do romance regional da decadência do açúcar ou da seca, com José Américo, José Lins do Rego, Raquel de Queiroz, Graciliano Ramos. Não houve na época, nem provavelmente era de esperar que houvesse, romance social equivalente em São Paulo, por faltarem exatamente as condições sócio-culturais cuja ausência explica que Brás, Bexiga e Barra Funda seja o livro que é e não a visão crítica e desmistificadora da imigração.

Talvez seja até excessivo cobrar tais propósitos de um livro que confessa explicitamente na introdução, intitulada Artigo de Fundo: "Brás, Bexiga e Barra Funda... tenta fixar tão somente alguns aspectos da vida trabalhadeira, íntima e quotidiana... Não comenta. Não discute. Não aprofunda. Principalmente não aprofunda... tudo são fatos diversos. Acontecimentos de crônica urbana. Episódios de rua. O aspecto étnico-social dessa novíssima raça de gigantes encontrará amanhã o seu historiador. E será analisado e pesado num livro".

Crônica urbana, narração de episódios, fixação de aspectos da vida, visão parcial, em suma. O escritor sentiu não ter forças ou oportunidade para mais. Deixou para outros a tarefa, até hoje não tentada, de compor a grande síntese étnico-social do italiano no Brasil.

Teria sido possível esboçá-la, naquele momento ou hoje? E duvidoso. A experiência do encontro do italiano com a terra brasileira foi sempre diversa, heterogênea, partida em fragmentos difíceis de reunir em vitral coerente.

A fragmentação já vinha com o imigrante. A maioria pertencia à geração quase contemporânea da unificação, ainda muito recente e não interiorizada totalmente. A imagem do país que traziam não era a Itália grande, nem mesmo a província, mas a aldeia, o paese, o povoado. O que os unia era certa identidade cultural, não a língua, pois falavam mil dialetos, nem a unidade política recém-conquistada (e alguns ainda figuravam no passaporte como austríacos).

No Brasil, a essa diversidade de origem, ao particularismo importado com o imigrante, vinha somar-se a diversidade das paisagens e circunstâncias da acolhida.

Os extremos da condição de imigrante foram, ou o estrangeiro só, submerso na comunidade luso-brasileira, ou o pequeno grupo transplantado intacto da Itália para o interior do Brasil, com mínimo contacto com os nacionais.

O primeiro foi o destino dos isolados em áreas como o Rio, Minas ou Bahia, onde o imigrante-unidade era logo dissolvido rna massa brasileira, sem guardar muitos traços da velha identidade.

O caso oposto foi o dos colonos do Sul, muitas vezes vênetos, trentinos, aportados à Santa Catarina ou ao Rio Grande do Sul. Lá conseguiram constituir uma agricultura de pequena propriedade, periférica e complementar com relação ao latifúndio pecuário. As terras que lhes couberam eram as desprezadas encostas das serras ou os solos pouco férteis, onde trabalho e engenho criaram uma economia baseada no fabrico do vinho, nos cereais, no porco.

Como os alemães, os colonos italianos dessa região viveram em comunidades fechadas, quase segregados do meio. Quando o Cardeal Luciani, Patriarca de Veneza e futuro João Paulo I, veio ao Brasil, visitou, no Rio Grande, essas colônias onde o dialeto, as canções, os costumes vênetos se preservaram intactos há mais de 100 anos, em vales quase inacessíveis, de nomes misteriosos, como Faxinal do Soturno. E lá e nas colônias alemãs que a Igreja brasileira vai até hoje buscar seus padres, seus futuros cardeais e bispos. Daí saíram também intelectuais, políticos, profissionais, militares que povoam a vida pública dos Estados sulinos de nomes italianos ou alemães. A cultura italiana que se conservou nessas paragens é nitidamente setentrional: a polenta de milho, o vinho, o artesanato de metais (de Abramo Eberle, por exemplo).

Em São Paulo, a experiência foi intermediária. Importado para substituir o negro escravo, o italiano vinha plantar café como assalariado e não para tornar-se pequeno proprietário. Não havia para ele lugar ou acesso à terra no latifúndio cafeeiro. Não admira que, logo, a maioria descobrisse o caminho das cidades, onde ia encontrar patrícios vindos diretamente para o ambiente urbano. Operários de fábrica, pedreiros, carpinteiros, artesãos, oficiais de todos os ofícios, pequenos comerciantes, prestadores dos mil serviços de que se alimenta a cidade grande, esses imigrantes citadinos tinham a vantagem do número e não podiam ser dissolvidos no caldo ralo da população anterior.

Ao chegar à cidade, o primeiro impulso do imigrante era tentar reconstituir a comunidade rural de origem, recompor um ambiente familiar onde a língua, os conterrâneos, os alimentos conhecidos, lhe devolvessem o sentimento de segurança e de unidade que tinham ficado atrás, além do Atlântico. O bairro era, nesse sentido, como que a colônia rural transposta para o contexto urbano, o núcleo de solidariedade grupai que fornecia proteção, tranqüilidade interior, durante o período de aprendizagem da língua e das coisas da terra.

Assim, à medida em que a integração era uma possibilidade real, o bairro do imigrante passava a ser essencialmente transitório, etapa de maior ou menor duração na qual se reuniam forças para o salto da ascensão social. A mobilidade vertical da São Paulo de começos do século se traduz horizontalmente pelas mudanças e deslocamentos para vizinhanças mais apetecíveis, pelo esvaziamento e perda de características dos setores citadinos italianos que nunca chegarão a transformar-se em guetos homogêneos como a Little Italy de Nova York e outras cidades americanas.

Concorria também para isso o fato de que a aparente identidade uniforme do imigrante, quando contrastado ao natural da terra, desaparecia fragmentada em pedaços, no momento em que se abstraía do meio exterior para prestar atenção aos localismos peninsulares, à Babel dos dialetos, aos preconceitos de gente da Alta contra os da Baixa Itália etc.

Durou vinte anos talvez, de 1900 a 1920, o ponto alto, a fase de apogeu dos bairros compactos, maciçamente italianos, os três que deram nome ao livro e outros que poderiam igualmente figurar no título: Belenzinho, Moóca, Pari, Ipiranga.

Quando Alcântara Machado escrevia suas crônicas, a paisagem humana já mudava de aspecto e, uma década depois, aquele momento havia passado para não mais voltar.

Em meus tempos de criança, nos anos 40, restava algo ainda do período áureo de afirmação, no espaço urbano, da primeira geração ítalo-brasileira. Só posso falar, é claro, de minha experiência, que é, como a de todos descendentes de italianos, fragmentária, incompleta, mutilada.

Não posso emprestar a voz para recompor o itinerário dos italianos que foram plantar café no Espírito Santo e se caboclizaram. Nada sei dos colonos vênetos cultivando suas vinhas e estendendo as redes de caçar passarinho nas montanhas de Bento Gonçalves ou de Caxias.

Mesmo em São Paulo, não conheci, nem por mim, nem pela tradição oral de família, o destino dos que antes da cidade grande, passaram pelas casas de colono das fazendas de café.

Da Paulicéia, cenário exclusivo deste volume, meu conhecimento é parcial, restrito, truncado. Dentro da vasta experiência humana dos milhões de italianos ou descendentes que aqui viveram, meu horizonte é pobre e limita-se, praticamente, a dez ou vinte ruas do bairro do Brás e a alguma coisa do Bexiga.

O Brás, dos três Bs do título o mais operário, bairro da estação de estrada de ferro que levava ao porto de Santos, do Mercado, da Hospedaria dos Imigrantes. Hoje ainda permanece, entre os três, o mais pobre e sem brilho.

O Bexiga, bafejado pela proximidade prestigiosa da avenida Paulista, intelectualizado pelos teatros que vieram na trilha do Teatro Brasileiro de Comédia, virou bairro de moda, zona boêmia, de cantinas sofisticadas. Até Museu tem para preservar sua história. O lado bom disso tudo foi ter-lhe permitido conservar os belos sobrados de fachadas de estuque trabalhado — com as datas do princípio do século e iniciais do proprietário, em relevo —, construção de anônimos mestres-de-obra italianos.

Ainda alcancei a época dos cortiços do Brás, vilas imensas, alguns de arquitetura fantástica, em que se apinhavam, em promiscuidade, dezenas de famílias. De cada lado, fileiras de sobrados com dois ou três andares, separados por uma rua central de paralelepípedos, unidos no alto por trave lembrando mastros e que davam ao conjunto uns ares marinhos de galeão encalhado.

Lembro do espanto com que assisti — não deveria ter mais que cinco ou seis anos — à saída, de um desses cortiços, do enterro de uma jovem recém-casada de vinte anos e os gritos lancinantes com que os parentes napolitanos despedaçavam ao solo as imagens de barro dos santos fracassados e ingratos, surdos às promessas, negadores do milagre implorado.

Meu mundo, até os 18 anos, era o próprio miolo, a quintessência do Brás tradicional. Nossa família, uma das últimas a deixar o velho sobrado patriarcal, vivia perto da avenida Rangel Pestana, a algumas centenas de metros da Matriz do Bom Jesus do Brás, ao lado da famigerada rua Caetano Pinto, numa travessa da rua Carneiro Leão. Perto ficavam a rua do Gasômetro, onde Tranquillo Zampinetti brandia perigosamente a navalha e as ruas Piratininga e da Figueira, nas quais o barbeiro, já próspero, vai adquirir prédios de rendimento.

Além dos sobrados e das precárias habitações populares dos cortiços, as ruas daquela zona eram ocupadas por fábricas, armazéns como o de Natale Pienotto, cantinas com queijos e lingüiças pendurados à entrada como mobiles apetitosos.

Muitos dos pioneiros italianos já se haviam mudado para os bairros de maior prestígio, de onde vinham, às vezes, visitar os antigos vizinhos, com secreta inveja da vida simples do Brás, do jogo de bocee nos fundos das cantinas, do café que se tomava com zambucca.

Em lugar dos italianos desertores, os andaluzes, revolucionários anti-franquistas, fundadores do clube de futebol de várzea Os Onze Milicianos, erguiam a bandeira com o roxo espanhol da República. Ao lado das pizzarias, floresciam as casas onde se compravam, nas manhãs frias de névoa e garoa, os churros dourados para acompanhar o café com leite fumegante.

Em meio à multiplicidade das origens peninsulares, naquela colcha de retalhos de dialetos, alguns grupos formavam exceção pela coesão interna, pelo grau de homogeneidade. Tinham quase a característica de clãs, as pessoas ligadas entre si por parentesco, com o padre católico à frente, diretamente importado do paese. Em torno do padre, construíam-se a igreja e a comunidade, preservadas contra os intrusos.

Dois desses grupos se destacavam nas vizinhanças. Um deles, nos fundos da rua Caetano Pinto, era de gente de Caserta ou Pozzuoli, nas imediações de Nápoles, quem sabe conservando ainda alguns genes dos atenienses que fundaram Parténope demasiado perto do vulcão. Eram devotos da Madona de Casaluce, em cuja honra ergueram uma capelinha singela pintada de anil, enquanto esperavam os recursos para edificar a igreja definitiva. Para esse fim, todo ano engrinaldavam a rua de ponta a ponta, com arcos e bandeiras, numa grande quermesse à qual não faltava sequer uma banda de velozes e musicais bersaglieri. O esforço ficou subitamente truncado quando, em lance digno de uma comédia dialetal de Eduardo de Filippo, o tesoureiro fugiu com o dinheiro acumulado na caixa.

Do outro lado da avenida Rangel Pestana, perto do Gasômetro e do Mercado, ficava o feudo dos bareses, gente sisuda, que desaprovava as gabolices e os hábitos tagarelas dos poucos sérios napolitanos. Esses bareses eram, na realidade, pugliese de Polignano a Mare, devotos de San Vito Mártire ou dos irmãos igualmente mártires Cosme e Damião, cujas bandeiras de seda coloridas em vermelho e verde saíam em procissão nas festas dos santos. Eram famosas no bairro as quermesses de San Vito e São Cosme e Damião, encerradas triunfalmente com a prova do pau de sebo e brilhantes espetáculos pirotécnicos, financiados pelos sólidos bareses, donos do comércio atacadista de cereais da rua Santa Rosa, nas imediações do Mercado. Menos estetas que os napolitanos, mas homens práticos, escorados nas realidades tangíveis, a igreja de S. Vito que construíram é feia, desgraciosa, parecendo mais um edifício de apartamentos. Não obstante, lá estava ela, dominando o bairro, quando os rivais de Casaluce pareciam haver abandonado a partida.

Houve outros clãs similares, quase todos meridionais, como o dos calabreses do Bexiga, construtores da Igreja Madona da Acheropita, d imagem não-pintada por mão humana dos gregos, os mesmos gregos ancestrais desses cocheiros calabreses, em cujas Calábria ou Lucânia helênicas haviam florescido Pitágoras, o iniciado, e Parmênides de Élea, o primeiro metafísico a intuir o ser...

Minha avó paterna Mariângela era pugliesa de Barletta, cidade da Disfidda e do Colosso, a estátua do imperador bizantino Heracles e, no seu ciumento localismo, reagiu indignada quando insinuei alguma afinidade entre sua terra e a dos desprezados habitantes de Polignano, a alguns quilômetros de distância. Mais tarde, quando li a história da conquista normanda de Barí e Barletta, algumas décadas após o ano 1000, pelo Conde Roger, irmão de Roberto, o Guiscardo, é que entendi o porte escandinavo, os olhos de um azul aguado, os cabelos de ouro fino de minha impotente nonna. Quem sabe não seria ela parenta longínqua de um daqueles cruzados, que, como o gigantesco Boemundo, pareceram deuses louros às morenas princesas de Bizâncio?

A devoção de minha avó era por uma estranha Virgem negra, representada num quadro no qual hoje reconheço a reprodução de um ícone dourado e sombrio. Seu nome, pelo que pude guardar das palavras do áspero dialeto, soava como Madona de Squeropeceto, seguramente a mesma raiz grega da protetora dos calabreses.

A casa da nonna, hoje demolida, era um espaçoso sobrado, com balcão, medalhão com as iniciais da família, balaustrada de ferro batido. Nos fundos, um vasto terraço onde verdejavam vasos, não de flores, que não havia tempo para isso, mas de plantas úteis — rubros tomates, pimenta malagueta, mangericão, louro, salsa — traía a nostalgia do Mediterrâneo, que quase se esperava ver, do outro lado da amurada, lá embaixo, onde se estendia o Parque Dom Pedro II. No fundo do terraço, um enorme forno oval de lenha, onde se assava, nos grandes dias, o cabrito do Natal ou dá Páscoa.

As comidas mereceriam, nesta evocação, um capítulo à parte. Eram pantagruélicos, lembrando contos de Pirandello, os banquetes familiares das festas, com destaque para as massas laboriosamente feitas em casa, regadas por molhos escariares com porpettas, braciólas recheadas e algumas folhas esmeraldas de mangericão para levantar o aroma. Os doces, recheados de massa de grão-de-bico, castanha e chocolate, eram, dias a fio, mergulhados em tachos de mel. Os biscoitos de sal e erva doce ou os levíssimos, cobertos de glacé de açúcar e casca de limão. As carnes preferidas, cabrito novo, cordeiro, leitão, nunca a vitela dos setentrionais. Dentre as coisas marinhas, o polvo, que se comia na véspera de Natal. Legumes, sobretudo a berinjela recheada ao forno e coberta de queijo parmezzan, os vermelhos pimentões fritos, os tomates em tudo, e de todas as maneiras, os antipastos de berinjela, pimentão assado e abobrinha empapados de azeite e folhinhas de hortela, as alice e azeitonas gigantes, o tempero de orégano, o finòcchio ou erva-doce, que se comia à sobremesa antes das tortas de Páscoa recheadas de ricota e grãos de trigo cozidos em leite, das zèppoli de São José gordas de creme dourado, regados a vinho tinto com fatias maceradas de pêssego, tudo sabendo a Mediterrâneo, a Oriente, a Grécia.

Numa crônica deliciosa sobre os mistérios da cozinha da Amazônia, Carlos Drummond de Andrade dizia que os pratos comidos das mãos da mãe em criança eram a primeira raiz e o último refúgio do patriotismo. Nesses termos gustativos, criou-se, nos bairros de imigração, uma nova tradição culinária que veio juntar-se aos vários ramos regionais da cozinha brasileira. Não se trata apenas de uma abstrata cozinha italiana unificada, mas variantes das mais diferentes regiões da Itália, que só em cidades como São Paulo podem encontrar-se reunidas num só lugar. Em outras zonas de imigração, no Prata, por exemplo, a oferta abundante de carne barata, alimento raro na mesa européia da época, em certa medida ofuscou e fez esquecer a cozinha de origem, o que não sucedeu nos bairros paulistanos. Nestes, os pratos regionais preservaram-se intactos e acabaram por conferir à Paulicéia um dos seus traços marcantes, o centro de uma nova cultura do paladar, diversa ao extremo, onde coexistem, lado a lado, junto às comidas de quatro Continentes, rústicas cantinas meridionais, requintados restaurantes tosca-nos ou lombardos, pizzarias populares, a competição aperfeiçoadora dos gelati e dos panetones, estes últimos já incorporados à mesa paulista, como o prêmio especial do domingo.

Por muito tempo, após deixar o Brás, pensei que as festas religiosas e os costumes que evoquei tivessem desaparecido, vítimas das obras do metrô e dos freeways desfiguradores do bairro, do qual expulsaram desumanamente milhares de moradores. Há pouco, porém, quis comparar minhas memórias com os lugares da infância e retracei o itinerário das igrejas, centros da vida comunitária do Brás. Descobri então, com surpresa, que há em marcha uma espécie de renascimento das tradições do velho bairro, um redespertar talvez da consciência ítalo-paulistana, após um ocaso de décadas. Na matriz do Bom Jesus do Brás, na bela igreja de Nossa Senhora da Paz, onde me casei, evocadora das basílicas cristãs dos primeiros tempos, com os afrescos de simplicidade giottiana da Pennacchi, na igreja de San Vito, onde havia quermesse e a Virgem Addolorata continuava a receber, na sua estranha beleza lânguida e roxa, as preces românticas dos namorados, em toda a parte, vi sinais de vida e atividade. Contudo, o que mais me espantou foi na rua Caetano Pinto, no ponto onde esperava encontrar uma fábrica no lugar da capelinha cor de anil, topar com a definitiva igreja de Casaluce, pequena mas decente, terminada um ano antes, não sei por que artes ou milagres. E não só se reataram alguns fios, como esse, que estavam partidos; novos também foram tecidos, como na igreja de São Januário, na rua da Moóca, onde se inaugurou, de uns anos para cá, o que parece ser uma festa de crescente êxito em honra de San Gennaro.

Nascidos nessas ruas plebéias, alimentados por esses pratos, crescidos à sombra dessas igrejas, os ítalo-paulistanos deram matéria aos contos de Alcântara Machado, enquanto amadureciam os dons e talentos com que haviam de contribuir para a construção da comum nacionalidade brasileira do século XX.

Tem sido imensa, desde então, a variedade desses dons: no futebol, onde fundaram os primeiros clubes populares, Corinthians, Palestra Itália, e não cessaram, em 60 anos, de produzir craques, de Romeo a Rivelino; na música de Camargo Guarnieri, Francisco Mignone, Rada-més Gnatalli; juristas como Vicente Rao e Miguel Reale; médicos como Euríclides Zerbini; cientistas como César Lattes; jornalistas como Mino Carta, Elio Gáspari, os irmãos Abramo; renovadores da indústria de comunicações como Casper Libero, em seu tempo e Vítor Civitta, hoje.

Já se mencionou, no começo destas páginas, o terreno em que, mais do que nos outros, a energia e a criatividade italianas deixaram marcas vigorosas: a indústria manufatureira, como empresários, sem dúvida, mas, com importância ao menos igual, como operários, mecânicos, líderes sindicais.

É curioso que nas finanças bancárias e na política, dominadas longo tempo pelas classes tradicionais paulistas, como reflexo do controle nunca afrouxado sobre a economia latifundiária do café, foram menores o papel e as oportunidades dos ítalo-brasileiros. No sul é que se concentram, em geral, os políticos de nomes peninsulares, os Mene-ghettis, os Guazellis, os Marchezans. Em São Paulo, apesar do número, nenhum descendente de italianos chegou ao Governo do Estado. Nem surgiram, desse meio, grandes vocações políticas de expressão nacional, salvo, em época recente, a figura misto de político e mago da economia que é o Ministro Delfim Neto.

Mesmo na agricultura do café com Lunardelli, ou da cana-de-açúcar, com Ometto, o trabalho italiano conquistou espaço, da mesma forma que ocorreu na renovação da maquinaria da agroindústria açuca-reira com Dedini e Zanini.

Já na fundação da Universidade de São Paulo, ao lado de franceses e alemães ilustres, grandes italianos destacaram-se como Wataghin e Occhialini, na Física; Giuseppe Ungaretti, nos estudos literários; Fantappié e Albanese, na Matemática; Alfonso Bovero, na Medicina.

Mais tarde, exilados do talento como Tullio Ascarelli, no Direito Comercial, Tuilio Liebman, no Processual, em São Paulo, Giorgio Mortara, na renovação dos estudos estatísticos, no Rio de Janeiro, mantiveram alto o prestígio da scholarship italiana no Brasil.

O após guerra trouxe impulso novo a esse contínuo influxo cultural da Península para os centros brasileiros. Foi a época do mecenato de Franco Zampari e seu papel central na modernização do cinema (onde já se ilustrara em Minas, Humberto Mauro), através da fundação dos estúdios da Vera Cruz e na transformação do teatro nacional, com a organização do Teatro Brasileiro de Comédia. Para essa obra, iriam concorrer diretores, atores e cenógrafos notáveis como Adolfo Celli, Ruggiero Jacobbi, Luciano Salce e o de influência mais duradoura, Gianni Ratto, que se deixou ficar entre nós.

Nas letras, nunca faltou o talento italiano, desde os tempos coloniais em que Antonil (o jesuíta João Antonio Andreoni) escreveu Cultura e opulência do Brasil De Antonil e Raul de Leoni, de Menotti del Picchia, Sud Menucci e Dante Milano a Guido Wilmar Sassi, Dalton Trevisan, Gianfrancesco Guarnieri, Décio Pignatari, na crítica de literatura ou teatro com Agripino Grieco e Sábato Magaldi, houve sempre nomes italianos na evolução literária brasileira. E, no entanto, tem-se a impressão de que esse é o domínio por excelência dos luso-brasileiros, donos originários da fala.

Em contraste, por exemplo, com a dimensão relativamente modesta que ocupam nas letras, os italianos ou ítalo-brasileiros alcançam nas artes plásticas posição de realce nuito mais que proporcional ao seu número. O arquiteto Landi, Eliseu Visconti, Henrique e Rodolfo Bernardelli, Anita Malfatti, Vitor Brecheret, Enrico Bianco, Candido Portinari, José Pancetti, Bruno Giorgi, Alfredo Volpi, Aldo Bonadei, Fúlvio Pennacchi, Arcângelo Ianelli, Norberto Nicola, Maria Bonomi, Odetto Guersoni, Hércules Barsotti, Pietrina Checcacci, Ivald Granato, Cláudio Tozzi, Alfredo Ceschiatti, a lista é infindável. Se a ela se somam os nomes de Ciccilo Matarazzo, a cujo mecenato ficamos a dever a Bienal de São Paulo e a base da coleção do Museu de Arte Contemporânea da mesma cidade e o de Pietro Maria Bardi, cuja obra admirável de organizador do Museu de Arte de São Paulo só tem paralelo no seu incansável trabalho de crítico e animador cultural, não há como negar que uma afinidade especial deve estar na raiz dessa participação verdadeiramente espantosa em quantidade e qualidade.

Não pretendendo ser um levantamento exaustivo como o Italianos no Brasil, de Franco Cenni (Martins-USP, 2ª ed. 1975), este inventário serve, ao menos, para dar uma idéia da magnitude da contribuição italiana à vida brasileira. Um balanço mais sistemático teria que partir das explorações marítimas de Américo Vespucci e não poderia deixar de fora o sangue italiano dos fidalgos Cavalcanti, família que é legião no Nordeste ou, no mesmo Nordeste, o aporte dos soldados napolitanos de Bagnuoli na luta contra os holandeses. Não omitindo também, no capítulo do inconformismo social e do amor à liberdade, o sacrifício de Libero Badaró, em São Paulo, a participação de Garibaldi nas revoluções do Sul, a utopia dos anarquistas da Colônia Cecília.

Mais, porém, que dos feitos notáveis dos homens célebres, a história da imigração foi tecida com a trama silenciosa e obscura de milhões de vidas só conhecidas dos próximos.

Nem tudo foram flores nesta história, na qual não faltaram humilhações, explorações impiedosas do trabalho humano, desprezo ao carcamano, perseguições ao inimigo da Segunda Guerra Mundial, como a proibição do uso público da língua, a exigência xenófoba de abandono dos nomes em que figurasse a Itália. Muita gente, não haja ilusões, traz até hoje as cicatrizes dessa época.

Mas, para além de toda dor, ficou o muito que os italianos deram à terra de adoção. Assim como aconteceu com o impacto da África, a marca da Itália na alma brasileira não deve tanto ser procurada em fenômenos tópicos externos, de fácil identificação: cozinha, música, objetos de arte. O que conta, realmente, é o que ficou impregnado na própria essência do ser brasileiro, na fala do paulistano, no domínio do gesto, na energia criadora, na alegria diante do belo, no inconformismo ante a iniqüidade social, em tudo que é intangível, impossível de quantificar e medir, no patrimônio existencial do povo brasileiro.

Já não se pode mais definir a experiência humana deste povo sem levar em conta a componente italiana, ao lado da africana, da indígena, da portuguesa, da alemã, da dos demais povos que mesclaram o sangue com o nosso.

É pena que nenhum dos ítalo-brasileiros mais próximos da fase heróica da imigração tenha dado, através da linguagem da arte, rosto e voz aos anônimos milhões de italianos, como acaba de fazer para os japoneses a nisei Tizuka Yamasaki no filme Gaijin, que dizem belo e pungente.

Esses contos, é evidente, respondem emocionalmente a uma inspiração diversa. Mas, em que pesem os limites e diferenças, tiveram o mérito de valorizar o popular, o homem qualquer, o pequeno e o pobre, que do pouco fizeram muito, da penúria extraíram riqueza humana, da diversidade que representavam e da que encontraram no Brasil, souberam ajudar a moldar a unidade básica do povo brasileiro.

Cada um traz dentro de si a sua história da imigração. Como este não é um ensaio crítico, mas um depoimento pessoal, que me seja permitido contar a minha.

Para mim, a imigração italiana não é o pitoresco de Alcântara Machado, que, confesso, me provoca reação ambivalente, misto talvez de ternura com uma ponta de agastamento, a mesma reação que causa em Alfredo Bosi e, suspeito, em qualquer outro ítalo-brasileiro. Menos ainda é a riqueza dos magnatas de ontem e de hoje, o êxito cultural dos artistas.

É, antes de tudo, a herança de um homem que nunca conheci, napolitano de velha cepa, Pietro Jovine, cujos olhos azuis há muito extintos, me fitam às vezes, do fundo de um retrato amarelecido. Soldado dez anos na Sicília, cujo dialeto gostava de falar, da profissão evangélica de carpinteiro, seu sonho de fazer a América foi cedo destroçado por um acidente de trabalho, o qual, jovem ainda, deixou-o cego e paralítico, num tempo em que não havia aposentadoria ou seguro profissional.

Teve de resignar-se, nos anos que lhe restaram, a ser sustentado pela mulher, Cristina, leve e diáfana, de cabelos prematuramente embranquecidos, atormentada pela asma na umidade dos invernos paulistas, nobreza e dignidade e recato inigualáveis, apesar do trabalho duro como pespontadeira de sapatos, tarefa artesanal que se podia fazer em casa.

Em meio a tudo isso e com o sacrifício da filha mais velha, criaram cinco filhos, as mulheres portando os nomes dos atributos da Virgem, Concètta, Annunciata, Assumta, os homens Francisco e Ignacio, educados na retidão, na devoção ao trabalho, no amor à cultura e à justiça. Esse homem que, medido por padrões humanos, não conheceu senão fracasso, pobreza e obscuridade, era meu avô materno. Quando penso na imigração, vejo-o como me descreveram minha avó e minha mãe, no instante em que, de encontro ao seu destino, partiu de Nápoles, que tanto amava e nunca mais havia de rever. Ao afastar-se lentamente o navio do cais, meu avô Pietro assobiava do convés e seu único irmão lhe respondia de terra. Anoitecia e aqueles sons agudos eram fios tênues, frágeis, que se buscavam, se queriam amarrar à terra, até que a distância e o ruído das vagas os fizeram silenciar. É essa a imagem que trago dentro de mim e não se apaga. Terá valido a pena? Só a Deus cabe responder.

Rubens Ricupero, diplomata, é embaixador do Brasil em Wasthington (EUA) e integrante da Área de Assuntos Internacionais do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP.

Prefácio para a tradução italiana de " Brás, Bexiga e Barra Funda", a ser publicada sob os auspícios da Embaixada do Brasil em Roma.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2005
  • Data do Fascículo
    Ago 1993
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