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Repensar a cidade e seu futuro

RESENHAS

Repensar a cidade e seu futuro

Volker Lühr

O LIVRO é fruto de um esmerado trabalho intelectual de mais de dez anos. Em torno de 1995, a autora começou a realizar, no Brasil e em vários países europeus, projetos de pesquisa e ensino sobre a cidade. Um dos projetos, o mais recente, dedicado a "Itinerâncias urbanas: capitais migrantes, poderes peregrinos e representações nômades", foi aprovado pelo CNPq, com duração de seis anos (2000-2006). O impulso para escrever o livro, no entanto, teve origem em um curso de pós-graduação que a autora ministrou como professora visitante em Salvador, Bahia (2005).

O texto oferece uma leitura enriquecedora para aqueles curiosos que não se cansam de admirar uma de nossas mais assombrosas invenções: a cidade. De onde vem? Para onde vai? Quais foram e quais são as reflexões científicas e literárias que acompanham a invenção? Quais as metamorfoses que sofreu desde seu início até nossos dias – e para além?

A cidade é um gigantesco cronotopos. Aglomera durante pouco ou muito tempo pessoas de origens diversas e as faz trabalhar em projetos individuais e coletivos. A maioria dos projetos nunca teria sido concebida fora da cidade, ou seja, por caçadores nômades ou camponeses sedentários. Pensemos na fábrica, no trem e no arranha-céu, nas ciências e nas belas-artes. A cidade desencadeia forças criadoras inauditas que somente nela chegam a brotar.

As obras materiais e ideais que representam a cidade são muito peculiares. Um de seus traços sobressalentes é o convite ao esquecimento de que somos parte da natureza. A cidade parece transcender os limites com que deparamos como seres inermes e solitários. Ela finge alcançar o inalcançável, a realização de um sonho proibido. Ao non plus ultra com que, durante a Idade Média, a Igreja tratava de manter intocável a criação de Deus, segue-se o engineering audaz e persistente dos inventores e construtores modernos.

A pergunta é: Onde o aparentemente ilimitado encontrará seus limites? O que restará das cidades quando já não houver seres humanos? O vento acaso? A propósito, não se cumpriu o prognóstico de Marx e outros que vislumbravam a aurora de uma nova sociedade – o regresso à vida campestre incluído – que ia emergir dos escombros da podridão burguesa. O que, sim, se deu foi um vertiginoso crescimento urbano por quase todo o planeta, que ameaça tornar as cidades inabitáveis. Ainda que soe paradoxal: o progresso, simbolizado e materializado pela invenção da cidade, afoga a si mesmo.

O fio condutor do livro não é exatamente o que acabo de esboçar. Os seis capítulos, cujo enfoque é epistemológico, resumem o pensamento entusiasta, cético e crítico que acompanha o destino da cidade, tanto na Europa como na América. A seqüência dos capítulos, porém, propicia uma leitura que acaba se surpreendendo com o presente e o futuro da grande cidade, da megacity ou megalópole, com seus sintomas visíveis e palpáveis de desintegração social, anomia, violência. A autora, no entanto, não se afunda na resignação; conclui seu texto defendendo o trabalho interdisciplinar em prol de uma solução para o problema urbano contemporâneo.

Os quatro primeiros capítulos partem do que Barbara Freitag chama "escolas" do pensamento sobre a cidade, tanto no passado como no presente. Por "escola" entende grupos de autores que têm em comum determinada óptica ao olhar o fenômeno da cidade; digamos: a culturalista, a futurista, a pragmática. Não surpreende que as diversas ópticas ou teorias destaquem, ao mesmo tempo, as diferenças nacionais: as mentes e as vistas trazem consigo sutis impregnações da pátria de cada autor.

Nesse sentido, o material que os quatro capítulos oferecem se refere à escola alemã, à francesa, à anglo-saxã do Reino Unido e à anglo-saxã americana. Não vou resumi-las nesta breve resenha. Basta dizer que o representante mais velho deste panorama é Thomas Morus, que em seu famoso romance criticava a sociedade inglesa de seu tempo, mostrando-lhe como reverso o aparente paraíso da ilha fictícia de Utopia. O representante mais jovem é uma mulher, Saskia Sassen, que a partir de sua perspectiva norte-americana estuda as relações entre economia mundial e os diferentes tipos de crescimento urbano no presente. Ela leva em consideração, sobretudo, as conseqüências da reorientação dos fluxos de capital em direção ao eixo leste-oeste do planeta e a importância cada vez maior dos serviços, em detrimento dos bens industriais. Há os que ganham e os que perdem – aspectos relevantes, pois, do que se costuma chamar globalização.

O quinto capítulo é dedicado à recepção das diferentes teorias no Brasil. Tem a grande virtude de combinar, com ênfase ainda maior, o descritivo e o analítico, especialmente ao tratar da adaptação das teorias às condições históricas, sociais e espaciais desse grande país. O capítulo marca também uma ruptura que fica na memória do leitor: o abandono da horizontalidade urbana, insinuada pela perspectiva européia, sobretudo a francesa com seu forte impacto na primeira metade do século XX, e a inclinação à verticalidade que o Brasil encontrou no exemplo norte-americano. A mudança materializou-se nos arranha-céus como elemento de um novo urbanismo.

Finalmente, no sexto capítulo, a autora aborda a megalópole latino-americana a partir de quatro exemplos: Cidade do México, São Paulo, Buenos Aires e Rio de Janeiro. Antes de apresentar os detalhes empíricos, ela nos familiariza com uma tipologia que ajuda a evitar generalizações errôneas ao falar da megalópole. A tipologia retoma outra que foi desenvolvida por Saskia Sassen e distingue três manifestações da grande cidade: a metrópole, a cidade global e a megalópole.

Por metrópole se entende uma grande cidade "com tradição histórica freqüentemente centenária (Berlim) ou milenar (Lisboa, Roma)", com uma população em torno de cinco milhões. O conceito da cidade global, por sua vez, se refere a uma aglomeração "como sede do capital financeiro", e com meios de comunicação e de gestão que operam em todos os continentes; os exemplos são Londres, Nova York, Tóquio. A megalópole, finalmente, com uma população que excede os dez milhões, caracteriza-se por ter deixado de ser política e socialmente administrável; é uma aglomeração fora de controle. Nos quatro casos selecionados pela autora, trata-se, além disso, de cidades "cujas reminiscências metropolitanas foram sendo apagadas pelas sucessivas ondas de migrantes, que quantitativa e qualitativamente destruíram a cidade legal preexistente...".

A autora diz explicitamente que a diferenciação aqui exposta segue o método heurístico do tipo ideal – não real – de Max Weber. Daí o caráter obsoleto da possível objeção de que Londres, por exemplo, seja cidade global e metrópole a um só tempo. O mesmo vale para aquelas megalópoles que, por sua crescente importância, poderiam alcançar algum dia o patamar de cidade global.

Há, porém, algumas objeções, embora de menor envergadura, que eu gostaria de mencionar. Limito-me a duas.

A primeira refere-se ao critério mais importante para definir a megalópole como fenômeno – seu tamanho, medido pelo número de habitantes: dez milhões ou mais. A deterioração urbana, no entanto, pelo menos tal como a autora a descreve, observa-se também em cidades de tamanho menor, como nas capitais centro-americanas. Menciono como exemplos San José, na Costa Rica; Tegucigalpa, em Honduras; e Cidade da Guatemala. Essas cidades se deterioraram, perdendo cada vez mais sua coesão social e o encanto provinciano ou colonial que antes as caracterizava. Entretanto, nem todas as aglomerações com mais de dez milhões de habitantes estão fora de controle no sentido de serem megalópoles. Menciono como exemplo o que os pilotos que sobrevoam o trecho entre Boston e Washington à noite – luzes sem fim – batizaram como Boswash. Ali também haverá regiões fora de controle, porém mais exatamente como exceção.

Para captar a megalópole como fenômeno e problema, tal como a autora os entende, não se pode prescindir de seu entorno social, com o qual ela mantém – em sentido figurado – uma osmose. No caso das megalópoles latino-americanas, a osmose tem traços peculiares. Em minhas viagens por alguns países do subcontinente, sempre me chamou a atenção o baixo grau de urbanização das zonas rurais, não poucas vezes na cercania imediata das grandes urbes. Refiro-me, sobretudo, à infra-estrutura física, com conseqüências para as ofertas em saúde, educação, transporte e postos de trabalho com perfis de qualificação moderna; há rádio e televisão, isso sim.

Se minha impressão é acertada, a população da megalópole, sobretudo a classe alta que sempre morou ali, percebe a população rural como algo alheio, culturalmente distante. A distância se iguala a uma "perda de controle", não somente sobre as expectativas e intenções dos migrantes que invadem as grandes urbes, mas também sobre aqueles que ainda estão no campo. Escrevi "perda de controle" entre aspas por ser uma metáfora. Na realidade, trata-se de uma percepção desfigurada como conseqüência de uma comunicação mútua insuficiente.

A segunda objeção é quanto à imagem negativa e pessimista da megalópole. A própria autora insiste nessa variante. Menciona nosso colega Ronald Daus e seus muitos e múltiplos estudos sobre as Cidades extra-européias na África, Ásia e América Latina, nas quais, afirma Daus, se podem observar, sobretudo entre a população pobre, as mais variadas técnicas de vivência e sobrevivência, festas incluídas, apesar da escassez de recursos. Eu mesmo, ao refletir sobre esse argumento, pensei em um livro de Larissa A. de Lomnitz, de 1975, com o título Cómo sobreviven los marginados, o qual é uma etnografia dos laços infinitamente ramificados entre os marginalizados e os não-marginalizados da Cidade do México. Poder-se-iam acrescentar, como exemplos mais recente, os trabalhos de Carlos Monsiváis, que nos contam, a partir de uma postura da velha esquerda, sobre a solidariedade e as lutas coletivas dos humildes, também na Cidade do México: "Somos inglobalizables" é o título de um de seus artigos.

Teorias da cidade – o título está no plural não sem razão. Sendo a autora socióloga, ela sabe, pela sua grande experiência como pesquisadora e docente, que o fenômeno e os problemas da cidade contemporânea e futura só são captados a partir de diferentes ângulos e com a cooperação de diversas disciplinas. O resultado será inevitavelmente multifacetado, mas nos ajudará a orientarmo-nos em nosso esforço de compreender e eventualmente corrigir o rumo que as cidades do globo estão tomando.

O livro inspira. Isso é o melhor que se pode dizer de um esmerado trabalho intelectual.

Volker Lühr é professor na Freie Universität Berlin, Lateinamerika-Institut. @ – luehr@zedat.fu-berlin.de

Tradução de Gênese Andrade. O original em espanhol encontra-se à diposição do leitor no IEA-USP para eventual consulta.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Nov 2007
  • Data do Fascículo
    Ago 2007
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