Open-access Ungaretti em São Paulo

PERFIS DE MESTRES

Ungaretti em São Paulo

Antonio Candido

Giuseppe Ungaretti regeu a cadeira de Língua e Literatura Italiana na Universidade de São Paulo de 1937 a 1942, mas a sua ação foi grande também fora de aula — em conversas, reuniões, passeios. Quando voltou à Itália foi como se tivessem arrancado alguma coisa da cidade, que ele marcou profundamente em muitos setores, embora sem rumor. Salvo um ou dois casos, os seus maiores amigos e os que mais sofreram a sua influência não foram seus alunos regulares, no sentido escolar; mas todos foram seus discípulos e continuam fiéis à sua lembrança. Há mesmo uma espécie de maçonaria entre eles, alimentada por alusões a experiências comuns, evocações de fatos pitorescos ou comoventes que nós presenciamos e cujo relato nos chega, ás vezes, de torna-viagem depois de um percurso mais ou menos longo que os lançou, como um ciclo de Ungaretti, na mitologia artística e intelectual da cidade.

Pertencem a esse ciclo o conselho drástico dado a um jovem pintor, que insistia pela sua opinião, e a quem sugeriu, vendo os seus quadros leves e azuis, que matasse o pai e fosse fare l' amore antes de pintar. Ou as expressões abafadas diante de um quadro de Picasso na casa de Oswald de Andrade: io non so come si fa per arrivare a questa purezza!

Ou um alegre quiproquó, lá mesmo, por causa de uma gaffe do anfitrião, que dizia ao poeta admirar muito um dos seus poemas, quando na verdade tratava-se de paródia. É ainda o caso do juízo arrasante sobre Bernanos, que vivia aqui e era endeusado pelos admiradores, a um dos quais ele bradou como resumo de apreciação: C' est un farceur! Ou a conclusão inesperada sobre o Cardeal Mercier, depois de explicar longamente a sua tremenda erudição: En somme, un sombre cretin! Ou, durante a visita a um leprosário, o entusiasmo por uma mulher de Sorocaba que, sem se contaminar, já tinha vivido sucessivamente com sete doentes, que preferia porque tiravam mais esmola. Ne fare una novella, cruda, boccacciesca — exclamava entusiasmado Ungaretti, com a sua gargalhada aguda e convulsiva. Famosa ficou a sua definição dos requisitos hormonais generosos do literato, em comparação com a insignificância dos que atribuía ao sociólogo.

Tudo isso mantém aqui a sua presença viva e afetuosa, um culto familiar que bem revela a ação desse grande poeta que nos ensinou tanta coisa e é dos poucos estrangeiros de alto porte que amam e sentem o Brasil em profundidade. Quem não lembra a sua mágoa em sair daqui sem ter visto as obras do Aleijadinho — ele que revelou a muitos a importância e o significado do barroco literário, evocado desde o papagaio auriverde do rei Dom Dinis como constante portuguesa (1). As traduções de Mário de Andrade, que publicou na revista L' Approdo e leu em São Paulo por ocasião de uma estada rápida em 1954, revelam penetração poucas vezes alcançada na intimidade de nossa poesia. No seu poema Semantica (de Un grido e paesaggi) serpeia um filão amazônico e, como diria Oswald de Andrade, antropofágico, revelando a identificação compreensiva. Todos nós somos gratos a Ungaretti por essa atenção seletiva e concentrada a respeito do Brasil, que permite manter o melhor diálogo por sobre o mar.

De outro lado, é notória a ligação quase mística com a nossa terra, onde está sepultado o seu filho Antonio — Antonietto —, cuja morte dá vida a tantos versos de Dolare.

Ele nos trouxe muito da cultura européia, ele que é italiano do Egito de formação francesa, através da maneira densa e dramática com que não apenas cria e interpreta, mas transmite. E a experiência da sua poesia calorosa e descarnada foi um impacto tornado mais forte pela sua presença. Daí termos procurado vivê-la com intensidade. Daí mais de um entre nós ter copiado integralmente os textos de Allegria e sentimento del tempo, para sentir nessa espécie de rito simpático, os pontos de ossificação da sua poesia misteriosa e humana. E quando a máquina de escrever lançava no espaço branco os versos parcimoniosos e sibilinos, era como se o trabalho do nosso grande amigo ficasse mais inteligível, com as palavras renascendo sob os dedos atentos que, na sua inexperiência, procuravam decifrá-las.

Não foi menos decisivo o que ensinou como atitude de leitura, mostrando que o essencial é a concentração no texto, e não no que está antes ou depois. E era assim que construía as suas aulas cheias de idas, vindas e descobertas. Elas faziam entender melhor que o seu próprio produto poético, depurado até dificultar o fôlego da compreensão, tinha como substrato uma erudição caudalosa, e decorria do ataque dos problemas por todos os lados, para poder sondar verticalmente as profundidades. Sentíamos então que o poema despojado e essencial tinha as experiências mais fortes como lastro e era realmente o afloramento mais puro da poesia.

Nas aulas Ungaretti revelou o que significa o diálogo do pensamento e da sensibilidade com o texto. Mostrou como, ao toque do leitor capaz, surgem mundos que parecem brotar das entrelinhas, minar do vão das letras, deslizar das maiúsculas para as minúsculas como se uma fermentação incessante e contida esperasse o leitor escolhido. Quantas vezes, em aulas sucessivas, voltava atrás para corrigir a leitura precedente de algum trecho ou poema. E assim duas, três vezes, cada uma das quais apagava a anterior e se oferecia como a mais límpida, a mais insuperável para no entanto, na aula seguinte, ceder por sua vez o lugar a outra ainda mais lídima e completa.

Nas aulas havia uma fase tranqüila de aproximação metódica; ha via depois uma fase de arroubo, onde a imaginação o atirava sobre o quadro negro de giz em riste, com as costas voltadas para os ouvintes perseguindo em altos brado o curso fugidio da intuição; e havia as fase de volta ao momento, com a voz de novo calma, quando as conclusões emergiam do tumulto e se ordenavam na mais nítida coerência; havia ainda os momentos de luta com a pasta de livros de couro preto, duas alças compridas e uma curiosa vareta de metal que servia para prendê-la e que o poeta manipulava em todos os sentidos, fazendo e refazendo o arranjo, para logo abandoná-lo e, em novo rompante, voltar ao combate contra a noite impassível da lousa.

Teria ele consciência dessas manobras (pensávamos), ou estaria com a mente fora de tudo, de nós, da sala, da pasta — deslizando para o mundo da poesia através de espiral inquieta que o giz traçava no ar? Leopardi e o senso do fragmentário; a atuação do Cristianismo na literatura; as glórias do Renascimento; o sonho austero e humano de Manzoni — tomavam corpo nessas sessões de invocação crítica, mostrando mais uma vez os fortes alicerces do mundo de emoção e idéia pressuposto na página branca, riscada brevemente pelas palavras, que a nossa máquina copiava. E do professor, do poeta, do amigo, compunha-se a cada instante o traçado completo e perfeito do homem exemplar.

Quando trovo

in questo mio silenzio

una parola

scavata è nella mia vita

come un abisso.

Nota

Antonio Candido é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

Texto extraído de Brigada ligeira e outros escritos (Editora da Unesp, 1992, p. 219-222).

  • 1
    Ungaretti só pôde visitar as cidades históricas de Minas em 1966, na companhia de Sérgio Frederico (Nota de 1992).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Nov 2005
    • Data do Fascículo
      Dez 1994
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