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Editorial

Editorial

Entre nós, a didática teve caminhos tortuosos e um histórico que se confunde com a solidificação da pesquisa em Educação no ambiente da pós-graduação. Na tentativa de se opor aos caracteres tecnicista e comportamentalista impressos em seus contornos, especialmente durante os anos 1970, as décadas seguintes viram uma paulatina minimização da presença dessa palavra na pesquisa em Educação. Houve tempo em que didática foi uma palavra quase proibida, pois sinônimo de método, do escandir de passos rigidamente pré-estabelecidos.

Na tentativa de escape da compreensão da didática como mero meio, como processo no qual a pedagogia seria tão somente uma questão de achar os procedimentos justos para um aprender necessário e garantido, a pesquisa em educação no Brasil, em grande parte, evitou chamar de didática qualquer aspecto que não fosse pejorativo. Boa parte da discussão sobre didática se concentrou, assim, nas disciplinas homônimas nos cursos de formação de professores.

Falar de didática na educação básica pareceria, em parte, um sacrilégio que levaria o enunciador a colar-se de maneira irremediável ao cabedal ideológico da ditadura; mau gosto intelectual que, obviamente, nenhum pesquisador de respeito pretenderia assumir.

Ao ser (quase) retirada do cenário da pesquisa ou ser substituída pelas discussões mais comuns, a partir dos anos 1990, como o currículo, as práticas pedagógicas ou a formação de professores, a didática, aparentemente, ficou em segundo plano. Graças a um grupo de poucos pesquisadores ela não foi totalmente soterrada e resistiu aos modismos da educação, chegando ao nosso tempo como uma discussão da qual emanam forças de criação para a pesquisa.

Por um momento na nossa história recente, esquecemo-nos de que a didática foi definida como "[...] arte de ensinar" (Comenius, 1959COMÉNIUS, Jean Amos. La Grande Didactique. Paris: Press Universitaire de France, 1959., p. 33) por seu instaurador, já no século XVII.

Ensinar tudo a todos (Comenius, 1959COMÉNIUS, Jean Amos. La Grande Didactique. Paris: Press Universitaire de France, 1959.), eis o imperativo comeniano que inaugura a didática moderna. Dele, pouco nos afastamos em quase quatrocentos anos de história. Entretanto, se a promessa pansófica de Comenius ecoa ainda em nosso tempo, seus pressupostos e contornos mudaram muito. A própria noção de todos e de tudo difere muito entre a Europa do século XVII e o Brasil do nosso tempo.

Não apenas isso, a noção de classe social a qual se refere Comenius na sua tentativa de mostrar a importância de uma pedagogia voltada não apenas à elite, não coincide com uma sociedade muito mais complexa e cheia de paradoxos na qual vivemos hoje.

Mesmo assim, a Didática Magna de Comenius (1959COMÉNIUS, Jean Amos. La Grande Didactique. Paris: Press Universitaire de France, 1959.) não deixa de ter seu caráter fundacional para a Pedagogia Moderna. Com efeito, se aquilo que ele tratava como didática não coincide ipsis litteris com o que circunscrevemos hoje como tal, não desfaz a necessidade de reconhecermos essa origem, esse pulular de força donde muitas ideias emanam.

Então, se no Brasil havíamos aparentemente, mesmo que por um momento, nos distanciado da didática, Comenius não nos deixa saída, retomemos a didática para verificar se ela ainda pode nos dizer algo ou se dela devemos em definitivo nos afastar.

Assim, o que pretendemos com esse número especial de Educação & Realidade é, de fato, aduzir a um conjunto de pesquisas - ora tomando a didática como naturalizada, ora como exercício de pensá-la em seus limites -, que plasma no seu interior o campo da didática como potência e como resistência para a investigação sobre a escola e a educação básica.

Nosso intuito não é o de renovar a didática na sua intenção de presentificar a pesquisa em educação, mas fazer vibrar a pesquisa a partir da problematização da didática em seus diversos contornos epistemológicos e embebida nos diferentes caldos analíticos que se produzem hoje na educação brasileira.

Como reconhecimento de seu pioneirismo, para abrir este dossiê temático, nada menos do que o artigo de uma das pesquisadoras de referência do campo da Didática no Brasil, Vera Maria Ferrão Candau que, juntamente com Adélia Maria Nehme Simão e Koff, procura refletir sobre os caminhos possíveis para reinventar a escola e a Didática no texto intitulado A Didática Hoje: reinventando caminhos. Nesse trabalho, as autoras relatam a reorganização de tempos, espaços, funções, currículos e práticas escolares num estudo sobre uma escola particular do Rio de Janeiro. Na perspectiva intercultural crítica, o texto problematiza essa reconfiguração como possibilidade de novos formatos para a escola.

A ele, segue-se um conjunto de artigos que, arbitrariamente, chamaremos de teóricos, pois problematizam de maneira central os limites, conceitos e as funções da Didática.

Com efeito, o artigo do professor alemão Hans Brügelmann, Didática da Sala de Aula: entre abertura e estruturação, no qual o autor procura propor o conceito de aula aberta para compreender a didática como, ao mesmo tempo, aberta e estruturada, trata da prática concreta do ensinar e aprender. Essa dupla função é discutida em contraposição às posições comportamentalistas próprias da década de 1960 na Alemanha. Ele insiste, assim, num tipo de abertura que considere as diferenças das crianças, as possibilidades de pensar e agir de cada criança e as maneiras de gerir a sala de aula de maneira participativa. O papel do professor e a estrutura da aula aberta são postos a prova pelo autor, para que, possamos compreender a proposta apresentada e tomar consciência de que o que o autor chama de aula aberta está muito distante de um simples laissez-faire.

O terceiro artigo aqui apresentado trata do papel nuclear da Didática, qual seja, oferecer conhecimentos que instrumentalizem o professor para sua tarefa de ensinar. Em Interação entre Didática e Teoria Histórico-Cultural, Marta Sueli de Faria Sforni defende a potência do encontro entre Didática e a Teoria Histórico-Cultural. Para uma formação do pensamento teórico, a autora descreve práticas de sucesso para delas extrair princípios que poderiam ter efeitos multiplicadores no campo da Didática.

O artigo de Patrícia Corsino é o quarto trabalho de nosso dossiê. Porquanto parta da ideia de ato responsivo de Mikhail Bakhtin, a autora mostra quais os princípios que permitem compreender a Didática nesse contexto teórico e sua articulação tanto com a formação de professores quanto com o contexto da educação escolarizada. O trabalho intitulado Entre Ciência, Arte e Vida: a didática como ato responsivo esforça-se em plasmar a Didática como dispositivo capaz de garantir uma escola democrática e como anelo por intermédio do qual se possam ampliar as referências culturais do sujeito, as aprendizagens significativas e o aguçamento da curiosidade.

Na perspectiva da Sociologia da Educação, Questionando a Neutralidade das Estratégias de Aprendizagem: uso dos saberes prévios por professores e alunos, nos conduz a uma transição para artigos um pouco mais aplicados, ainda que essa tipologia seja completamente arbitrária na nossa apresentação. O artigo de Cecilie Rønning Haugen examina como os saberes são interpretados na educação escolarizada e defende que a pesquisa sobre as estratégias de aprendizagem pode colaborar para a crítica à proposta de treinabilidade quitativa.

Entrementes, o sexto artigo deste número chama-se Novos Paradigmas da Didática e a Proposta Metodológica dos Episódios de Aprendizagem Situada, EAS, de Monica Fantin. O trabalho, assim como o anterior, aborda a questão do método. Ele toma abordagens como a neurodidática, o enativismo e a teoria da simplexidade para discutir a metodologia dos Episódios de Aprendizagem Situada, EAS. O texto descreve a proposta e a analisa no intuito de estabelecer possíveis diálogos entre essa metodologia e outras abordagens que envolvem didática, mídia e dispositivos móveis.

De cunho mais amplo, o sétimo artigo de nosso dossiê é assinado por Joel Westheimer. Ele faz um passeio pelas políticas atuais de reformas escolares e mostra as limitações de um currículo pensado a partir de testes padronizados que, embora prometam uma educação cidadã, não se articulam com o pensamento e a ação democrática. Esse é o mote por intermédio do qual o artigo Ensino para a Ação Democrática faz sua crítica ao ensino da boa cidadania.

Mylene Cristina Santiago e Mônica Pereira dos Santos nos presenteiam com Planejamento de Estratégias para o Processo de Inclusão: desafios em questão, artigo que se distancia dos trabalhos mais teóricos da primeira parte do dossiê e o conjunto que se segue, no qual podemos ler textos mais aplicados. Nesse sentido, o processo de formação de professores atuantes em um Atendimento Educacional Especializado, no Rio de Janeiro, ganha espaço para defender uma perspectiva omnilética, propondo uma avaliação das salas de recursos multifuncionais. O percurso do artigo liga tais abordagens à necessidade de redirecionamento do olhar sobre a deficiência para as potencialidades do alunado.

No texto Uma Reflexão sobre Didática na Educação Básica: o apostilamento no 4.º ano, o nono trabalho aqui apresentado, os autores, Marlon Dantas Trevisan e Pedro Angelo Pagni, mostram como o que chamam de lógica adultocêntrica pode comprometer o apostilamento. Ao analisar uma apostila do 4º ano do ensino fundamental, eles procuram desvendar o fato de que a experiência infantil é pouco considerada o que, segundo eles, explicaria em parte o desinteresse das crianças por esse tipo de material.

A cartografia esquizo-analítica de Deleuze e Guattari é o motif que dá suporte ao artigo de Paola Zordan, chamado Movimentos e Matérias da Iniciação à Docência. O ensaio, tramado a partir da experiência da autora no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID/CAPES), problematiza o conceito de matéria e, a partir disso, o encontro entre mestre e discípulos como configuração das ações pedagógicas.

Na sequência, Lidiane Schimitz Lopes, Gilson Leandro Pacheco Alves e André Luís Andrejew Ferreira, apresentam A Simetria nas Aulas de Matemática: uma proposta investigativa. Trata-se de um trabalho que apresenta um panorama da didática da matemática e da simetria. Esta última é analisada em padrões simétricos no contexto histórico da educação matemática. O trabalho defende, ainda, que a etnomatemática contempla a ligação entre o conhecimento matemático e o respectivo momento cultural, propondo as transformações geométricas a partir da utilização de materiais de baixo valor financeiro.

O décimo segundo trabalho deste dossiê é O Ensino da Leitura no Discurso Pedagógico Contemporâneo, de Raquel Goulart Barreto e Glaucia Campos Guimarães, no qual as autoras discutem a leitura e a produção textual na educação escolarizada, a partir de uma proposta de pesquisa participante. Elas se debruçam sobre o discurso pedagógico, os sentidos no ensino da leitura e as dimensões do trabalho docente, no contexto de uma pesquisa realizada em escola pública.

Também trabalhando com a didática num campo de aplicação, a História, o artigo O Papel da Mediação na Construção de Conceitos Históricos, de Lana Mara de Castro Siman e Araci Rodrigues Coelho, se sustenta ao elencar a teoria de Vygotsky como campo teórico. Nele, as autoras empreendem a tarefa de analisar interações discursivas produzidas numa turma de 1o ano do Segundo Ciclo, circunscritas por uma pesquisa-ação que oferece a noção de mediação do professor como elemento de ligação entre objeto a ser conhecido e sujeito cognoscente, na construção e apropriação do conhecimento.

Nosso dossiê fecha com dois artigos que problematizam a chamada Didática Desenvolvimental. O primeiro, intitulado Ensino Desenvolvimental: contribuições à superação do dilema da didática e, o segundo, Formação de Professores e Didática para Desenvolvimento Humano.

O primeiro deles é assinado por Raquel Aparecida Marra da Madeira Freitas e Sandra Valéria Limonta Rosa e problematiza a formação de professores, em especial a formação de pedagogos. O trabalho defende a ideia de que para a educação básica é indispensável à integração entre conhecimento disciplinar e conhecimento didático. Assim, a teoria do ensino desenvolvimental funciona como contribuição para a superação do dilema entre o disciplinar e o didático.

O segundo, que encerra nosso dossiê, é o artigo de outro importante nome da área, José Carlos Libâneo, e também procura mostrar as contribuições da didática desenvolvimental para o dilema do conhecimento pedagógico e o conhecimento disciplinar. Enleado na perspectiva histórico-cultural, o texto propõe o aprofundamento do conteúdo da didática, enfatizando a relações necessárias entre o plano epistemológico da ciência ensinada, o plano pedagógico-didático e o plano das práticas socioculturais. Esse emaranhado propositivo configura a possibilidade de repensar os formatos curriculares da formação de professores.

Posto isto, desejamos que os quinze textos aqui elencados sejam instrumentos de uma reflexão profícua, não apenas sobre os temas que eles levantam, mas, sobretudo, sobre o próprio campo da Didática que merece a atenção e a produção no interior de nossas pesquisas em Educação.

  • COMÉNIUS, Jean Amos. La Grande Didactique. Paris: Press Universitaire de France, 1959.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2015
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