Acessibilidade / Reportar erro

Diálogos Interdisciplinares em Saúde e Educação: a arte do cuidar

Interdisciplinary Dialogues in Health and Education: the art of caring

RESUMO

O artigo descreve o cuidado em suas dimensões histórica, filosófica e educacional, sendo a última focada em dois movimentos práticos: cuidar de si e cuidar do outro, sob o prisma metodológico interdisciplinar que reconhece a urgência da integração entre o fazer e o ser, mesclando as histórias de vidas. Ao considerar a escola como um local de ação terapêutica, no qual há movimentos cuidadosos atrelados ao currículo, à formação docente e ao relacionamento interpessoal, redesenharemos uma didática para a educação que transcende os bancos escolares, onde a questão vital capaz de curar as pessoas é reconhecida nas inquietações dos alunos e professores rumo à valorização da cura nata em cada um de nós, porém não compreendida por muitos de nós.

Palavras-chave
Interdisciplinaridade; Saúde; Cura; Escola; Formação de professores

ABSTRACT

The article describes careful in their historical, philosophical and educational dimensions, being the last focused on two practical movements: take care of themselves and take care of each other, under the interdisciplinary methodologic design that recognizes the urgency of the integration between the do and be, merging the stories of lives. When considering school as place of therapeutic action where there is careful movements coupled to curriculum, teacher training and to interpersonal relationship, writing again a curriculum for education that transcends school banks, where the vital question able to heal people is recognized in the concerns of students and teachers towards enhancement of healing cream in each one of us but not understood by many of us.

Keywords
Interdisciplinary; Health; Cure; Education; Teacher’s Education

Introdução

Diversas discussões partem do princípio de que a escola e seus habitantes se encontram em estado de alerta diante da falta de segurança ou do crescente conflito interpessoal que surge no cotidiano das unidades educacionais. Em um movimento contrário, este artigo partirá de uma diferente ótica no intuito de valorizar os casos de paz (e não são poucos) vivenciados em sala de aula e que são calados diante da excessiva propaganda midiática que resulta em procedimentos de controle ou métodos punitivos para manter uma suposta ordem escolar, culminando em mudanças de infraestrutura e procedimentos, por exemplo, muros mais altos, salas e laboratórios trancados com cadeados ou a presença de vigias que rodeiam as grades da escola.

Abordaremos os aspectos do cuidado pelos vieses histórico, filosófico e educacional focado em práticas chamadas interdisciplinares, onde encontramos no viés histórico uma compreensão de que o cuidado passou por transformações acompanhadas de mudanças socioeconômicas, e também vemos os aspectos filosóficos que apontam o cuidado na relação homem e mundo quando dialogamos com Michel Foucault e Hannah Arendt. E, no aspecto educacional, desbravaremos uma pedagogia para o cuidado em que a interdisciplinaridade será utilizada como metodologia de ação, e concluímos com algumas inquietações na formação docente com foco no cuidado de si e do outro.

Há intencionalidade ao discutirmos o cuidado atrelado à Educação para a Paz, principalmente no conceito estudado por Xésus Jares, onde:

Educar para la paz supone educar desde y para unos determinados valores, tales como el respeto, la justicia, la cooperación, la solidaridad, el compromiso, la autonomía personal y colectiva, etc., al mismo tiempo que se cuestionan aquellos que son antitéticos a la cultura de la paz, como son la discriminación, la intolerancia, el etnocentrismo, la obediencia ciega, la indiferencia e insolidaridad, el conformismo, etc. (Jares, 2003JARES, Xésus R. Congresso Internacional Co-Educação de Gerações. São Paulo, 2003. Disponível em: Disponível em: <http://comitepaz.org.br> . Acesso em: 20 nov. 2011.
<http://comitepaz.org.br>...
, s. p.).

Também é possível conceituar a paz como um estado de calma ou serenidade, uma ausência de perturbações ou agitação. Derivada do latim pax = absentia belli, pode referir-se à ausência de violência e que, no plano individual, a paz é um estado de espírito isento de ira, ou desconfiança, enfim, de todos os sentimentos negativos.

A Assembleia Geral das Nações Unidas decidiu que o ano 2000 fosse dedicado a promover uma Cultura para a Paz e que também se consagrasse a essa tarefa a próxima década. A UNESCO, agência especializada das Nações Unidas, iniciou um movimento para promover no mundo a ideia de uma cultura para a paz, criando um programa mundial cujo ponto de partida foi pedir a um grupo de personalidades, que já tinham recebido o prêmio Nobel da Paz, que escrevessem um texto sobre esse assunto. Esse texto foi divulgado como o Manifesto 2000.

As realidades com o aumento da violência e do extermínio ao longo do século XX levaram as Nações Unidas a propor, em 1997, que o ano 2000 fosse dedicado às práticas de Uma cultura para a Paz e a não-violência, e solicitou a UNESCO que elaborasse um documento que contemplasse as diretrizes fundamentais para a cultura da paz, são elas: Respeitar todas as vidas; Rejeitar a violência; Partilhar a generosidade; Ouvir para compreender; Preservar o Planeta; Reinventar a solidariedade. Então, proclamaram a década de 2001 a 2010 como a Década Internacional da Cultura para a Paz e da Não-Violência, refletindo em ações em todo o mundo que impactaram as Políticas Públicas e a escola.

Os Significados da Palavra Cura e sua Aproximação com a Educação

E assim aproximamos a educação para a paz com a religação dos campos do conhecimento: a saúde e a educação, observando a gênese da palavra cura, que em hebraico é grafada TERAF, da mesma origem da palavra terapeuta, que significa soltar nós, abrir-se, desbloquear o outro a alçar voos para sua paz. Em latim significa o sentido primitivo de cuidado na atenção, na diligência e no zelo, assim como o verbo curo ou curare que é o cuidar de, olhar por, dar atenção a, tratar.

Diante dessas explicações conceituais é que nos empenhamos num movimento de entender o sentido de ser professor na construção do estar-no-mundo na atualidade, pela mediação de cenários de paz, como nos diz Jung (2009, relato verbal)

Quando se tem medo, quando não se vê nada adiante, somente passado, então a pessoa se petrifica, se põe num estado rígido e morre antes do tempo. Mas quando segue vivendo, esperando pela grande aventura que está por vir, então se vive plenamente. E isso é que a tua consciência está tentando fazer. É assim, simplesmente.

Com essa interpretação de que uma educação para a paz acontece no dia a dia da escola, é que presenciamos uma nova habilidade docente em mediar às inconstâncias em si e no grupo de alunos, centrando sua força no ato de curar e dialogar sobre os valores que transitam entre o individual e o coletivo.

Ao aproximar o campo da educação com o campo da saúde, é preciso considerar que a história da saúde no Brasil esteve associada à cultura indígena, difundida nos ancestrais da natureza e suas divindades (até o século XIII e meados do século XIV), e depois na influência da medicina jesuítica, paralelamente à presença da habilidade de tratamento das doenças dos curandeiros. Mais tarde, por volta dos séculos XVI, XVII e XVIII, as influências dos boticários e dos farmacêuticos criaram uma nova maneira de tratar e cuidar das doenças:

No início da colonização, a caixa de botica constituía de medicamentos; era uma arca de madeira que abrigava algumas drogas. Foi trazida pelos cirurgiões-barbeiros e pelo aprendiz de boticário que aqui chegaram com os primeiros colonizadores e também pelos jesuítas (Helito; Kauffman, 2006HELITO, Alfredo S.; KAUFFMAN, Alfredo S. Saúde: entendendo as doenças, a enciclopédia médica da família. São Paulo; Nobel, 2006. , p. 25).

Ao tratarmos do conceito de cura e saúde para além do território brasileiro, adentramos num recorte do mito grego de Asclépio que mostrava sua presença na dualidade herói-deus quando foi enviado ao monte Pélion para ser educado por Quíron. A figura do centauro Quíron remonta ao deus que trabalhava e agia com as mãos porque era cirurgião e grande médico. Ele possuía a imortalidade num corpo metade cavalo e vivia entre os homens, mas, após ser atingido por uma flecha envenenada, passou a sentir fortes dores, já que, como deus, não se curava nem morreria por esse ferimento.

Daí passou a conviver com a dor e compreendeu que para melhorá-la era preciso saber qual o ponto de maior sensibilidade em seu corpo. Apontando para a gênese da doença, o que nos provoca a pensar qual o ponto mais sensível no ato de educar? Há dores onde podemos mexer? O que é cicatrizar os medos de nossos jovens alunos?

A partir desse mito é que entendemos a necessidade de reaproximarmos do campo da saúde, onde curar é cuidar do paciente como um ser integral que se apresenta diante do médico ou, analogicamente, diante do professor, numa tentativa de mostrar novos significados de conhecimentos e reconhecimentos entre paciente&doutor ou aluno&professor, bem como nos explica Dahlke:

O estar doente é, em última análise, uma queda em relação ao centro (da mandala da vida), constituindo dessa forma um desequilíbrio relativamente à busca do corpo, para compensar esse desequilíbrio. A cura deve aspirar ao meio, e esse por definição reside entre os polos, razão pela qual as terapias, trabalhando sempre sobre esse eixo, esforçam-se por restabelecer o meio (Dahlke, 1996DAHLKE, Rudiger. A Doença como Símbolo: pequena enciclopédia de psicossomática. São Paulo: Cultrix, 1996., p. 21).

O Cuidado Historicamente Comentado: quem cuida de quem?

Historicamente falando, não basta descrever o cuidado em suas origens hindus, egípcias ou chinesas, ou mesmo observarmos o Campus Hipocraticum, onde Hipócrates inaugura uma nova forma de pensar o corpo, a natureza e mesmo a relação entre homens e deuses. Em o Tratado da natureza do homem encontramos:

(O homem) tem saúde precisamente quando estes humores são harmônicos em proporção, em propriedade e em quantidade, sobretudo quando são misturados. O homem adoece quando há falta ou excesso de um desses humores, ou quando ele se separa no corpo e não se une aos demais (Cairus; Ribeiro Jr., 2005CAIRUS, Henrique F.; RIBEIRO JR., Wilson A. Textos Hipocráticos: o doente, o médico e a doença. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2005., p. 341 1 Trecho extraído do dos Textos Hipocráticos que estabelecia que os quatro humores - sangue, fleuma, bile amarela e negra - em combinação com o calor, o frio, o seco e o úmido causa a gênese da saúde para os seguidores de Hipócrates. ).

O objetivo apresentado neste artigo é que há um chamamento, de maneira facultativa, para novos desbravadores curriculares, onde se elimina o rótulo que polariza todos os processos educacionais, por exemplo, o bom e o mau ou o competente e o incompetente, mas ele (o artigo) percorre outro caminho, o da formação de professores e da didática de ensino na compreensão de que a escola é um habitat natural e potencial dos processos cuidadosos.

Observa-se que o cuidado foi mudando de agentes, já que na idade média (entre o ano 1.000 até 1.500 d.C.) encontrávamos a família e a própria comunidade como cuidadores das pessoas ditas loucas ou doentes. Inclusive os hospitais não tinham como prioridade a cura de enfermidades, mas eram pontos de referência para andarilhos e pedintes que necessitavam de abrigo e alimentação gratuita, bem como as paróquias católicas dos vilarejos que também os recebiam sob as diretrizes de uma suposta misericórdia divina na Terra.

No século XIX, viu-se o crescimento de estabelecimentos que cuidavam dos doentes com tratamentos médicos, os hospitais alteram sua razão primeira e iniciou o ciclo de institucionalização do cuidado, somado a entrada de profissionais para esse atendimento: médicos, enfermeiras, psicólogos e, por fim, assistentes sociais. Tudo para receber o necessitado que precisava de curas e encaminhamentos.

Segundo o historiador inglês, Peter Burke2 2 Peter Burke participou do Programa Café Filosófico em 2011, patrocinado pela CPFL de São Paulo. Disponível em <http://www.cpflcultura.com.br/site/category/palestrante/peter-burke/>. Acessado em 21 nov. 2011. , as três tendências para a evolução do cuidado desde a idade média até os dias de hoje são a institucionalização, quando a família deixa de cuidar dos seus entes enfermos ou dos pedintes para entregá-los a outrem, mais habilitada para este acompanhamento; a secularização, momento em que a igreja católica vive uma crise com a entrada das correntes calvinistas e a explosão demográfica, em que o tema da saúde é transferido para o Estado, e não mais ligado exclusivamente às ordens religiosas; e a mercantilização ou marketização (nas palavras do historiador), onde as entidades e os hospitais se profissionalizam ao ponto de transformar o cuidado em artigo de compra e venda.

Vemos que o cuidado de estranhos passa para terceirizados técnicos das áreas de enfermagem, psicologia e assistência social, num movimento de intensas transformações político sociais. Imaginemos, portanto, que ao recebermos os alunos, em cada turma nova ou início de ano letivo, é necessário refletirmos sobre nossa didática no cuidado de estranhos, ou, como ouvimos com frequência, como posso cuidar dos filhos dos outros?

O Cuidado como Arte

Utilizamos o cuidado como uma arte quando vivenciamos processos de cuidar de si e cuidar do outro para aprimoramento da nossa prática docente sob o chamado de Rousseau: “Homens, sede humanos, este é vosso primeiro dever; sede humanos para todas as condições, para todas as idades, para tudo o que não é alheio ao homem. Para vós, que sabedoria há fora da humanidade?” (Rousseau, 2004ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio, ou, Da educação. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004., p. 72 e 73), e, assim, valorizar o princípio da cura como cuidado na valoração de uma educação para a paz que envolva o campo da saúde.

Se cuidar pode ser traduzido como um ato saudável (cremos nós), então que o façamos na integração das dimensões advindas da inteireza dos nossos desejos como docentes que experimentam diferentes demandas dos alunos, da própria escola ou dos pares que compõem o corpo de professores.

Não há uma intenção de calar a voz desses agentes que transformam vidas e que podem se encontrar desestimulados diante das agruras da sala de aula ou dos descontentamentos estabelecidos por currículos escolares envoltos de rígidas grades, mas acentuar a capacidade nata do docente numa adesão que se apresenta necessária e urgente no desenvolvimento de aulas repletas de conceitos e afetos, os CONFETOS (Gauthier, 1999GAUTHIER, Jacques. Sociopoética. Encontro entre arte, ciência e democracia na pesquisa em ciências humanas e sociais, enfermagem e educação. Rio de Janeiro: Ed. Escola Anna Nery/UFRJ, 1999.), num rompimento com as disciplinas estanques que não se comunicam entre si. Uma possibilidade é rumar para a interdisciplinaridade que seja capaz de transformar conceitos, pesquisas e pessoas.

O Cuidado Filosoficamente Contado: a relação homem x mundo

O pharmakon filosófico é o discurso terapêutico que busca a autarquia da alma e do corpo, o domínio da cor do corpo e da alma pela filosofia numa aproximação de Epicuro quando afirma que nunca se adie o filosofar quando se é jovem, nem (se) canse de fazê-lo quando se é velho, pois que ninguém é jamais pouco maduro nem demasiado maduro para conquistar a saúde da alma... A noção de felicidade, por mais indeterminada que seja, é objeto da filosofia e da medicina. Para os gregos, a ciência era a busca da justa vida e do bem-viver (Matos, 1997MATOS, Olgária. Filosofia: a polifonia da razão. São Paulo: Scipione, 1997., p. 8).

Ao buscar significados diante dos diversos questionamentos no processo do cuidado na escola, é que nos sustentamos em aportes filosóficos que expliquem os movimentos numa sutileza que aproxima as teorias, as práticas e o desenvolvimento humano durante o processo de ensino-aprendizagem, para além do currículo escolar.

Quando a felicidade se aproxima do ato de educar, sentimo-nos sob o olhar de acolhimento de uma mãe que acalenta seu filho, mas que também permite o florescimento de sua identidade e seu posicionamento como vivente no exercício de humildade, não de subserviência, pois não é possível contabilizarmos os ganhos que obtemos quando vivenciamos as ações de uma educação para a paz, como é anunciado por Cardoso:

Nem o educador e nem o educando são, isoladamente, o centro energético que impulsiona o processo de aprendizagem. Este centro está no encontro entre eles, como numa dança em que os passos marcados acabam por fluírem livremente, tornando quase imperceptível quem conduz e quem é conduzido. Não se trata de tirar o papel imprescindível do mestre, adotando uma postura não-diretiva. Para que isso se torne possível, a relação educador-educando não pode se dar apenas no plano intelectual, mas também no plano da sensibilidade, sentimentos e emoções. O equilíbrio entre o intelectual e o afetivo é fundamental na prática de um ensino (Cardoso, 1995CARDOSO, Clodoaldo Meneguelli. A Canção da Inteireza: uma visão holística da educação. São Paulo; Summus Editorial, 1995., p. 51).

Quando adentramos na dinâmica do cuidar de si, apresentamos aos habitantes da escola uma possibilidade de redescobertas, em um movimento de dentro para fora, o que em Arendt vemos que, “A essência da educação é a natalidade” (Arendt, 2007ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva, 2007., p. 223)

E que, em Almeida, continua

Constantemente o mundo recebe novos seres humanos que, ao nascer, aparecem nele como uma novidade. Os recém-chegados precisam ser acolhidos e familiarizados com este espaço comum e seu legado, que futuramente estarão sob sua responsabilidade. A tarefa da educação, portanto, é introduzir as crianças num mundo que lhes antecede e que continuará depois delas. A existência dos seres humanos se estende entre nascimento e morte. Nesse lapso de tempo se desenrola a história de cada um, que, comparada à natureza ou ao mundo humano, é curta e fugaz (Almeida, 2011ALMEIDA, Vanessa Sievers. Educação em Hannah Arendt: entre o mundo deserto e o amor ao mundo. São Paulo: Cortez Editora, 2011., p. 21)

Então seremos convidados a estabelecer diálogos num percurso introspectivo que revela os símbolos adormecidos em cada um de nós no anseio pela vida que nos lança ao questionamento: Somos capazes de criar vínculos de cuidados na disciplina que lecionamos, na compreensão de quem eu sou e de quem são meus alunos?

A vivência de cuidar de si traz uma capacidade na recuperação dos fragmentos dos saberes e fazeres educacionais que permanecem estanques no desenvolvimento de nós mesmos, onde poderemos explorar que, “Todo espaço realmente habitado traz a essência da noção da casa” (Bachelard, 2005BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005., p. 25).

Num movimento complementar, ao vivenciarmos o cuidar dos outros, é observado um intenso esforço que movimenta o lado de fora, o entorno de nós mesmos, aquilo que se encontra orbitando sob nossos valores e conjecturas de mundo. Somos deslocados e provocados pelo exterior, o que nos é estranho e, assim, abrimo-nos às atitudes de desapego e encorajamento que se apresentam num sentido de encontro com o mundo do outro e assim difundir-se nele, florescendo o processo de cuidado interpessoal e intrapessoal. A chave que é movida nesta ação é a humildade diante do conhecimento e história de vida do outro.

Surge, então, um dinamismo mais amplo do conhecimento do que somos e para onde estamos caminhando, o que

No fundo da prática científica existe um discurso que diz: nem tudo é verdadeiro; mas em todo lugar e em todo momento existe uma verdade a ser dita e a ser vista, uma verdade talvez adormecida, mas que no entanto está somente à espera de nosso olhar para aparecer, à espera de nossa mão para ser desvelada. A nós cabe achar a boa perspectiva, o ângulo correto, os instrumentos necessários, pois de qualquer maneira ela está presente aqui e em todo lugar (Foucault, 2011FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro : Edições Graal, 2011., p. 113).

Somente compreendemos a força primordial que movimenta as ações de cuidados quando habitarmos as duas dimensões como habitamos nossas casas - cuidar de si e cuidar do outro - e, com isso, somos estimulados a questionar as histórias interrompidas; as leituras de mundo que permaneceram às margens de nossa própria ignorância ou quando desenvolvermos a autoria em nós e no outro.

O Cuidado Educacionalmente Praticado: o saber ouvir

O cuidado ao saber ouvir é um exercício que nos aproxima de um estado de zelo que se faz urgente e nos induz ao ato heroico de compartilhamento e ousadia, como foi relatado num trecho do encontro de um professor com a monja zen budista3 3 Entrevista completa concedida no ano 2009 durante pesquisa de Doutorado em Educação: Currículo. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Disponível em <www.sp.senac.br/bibliotecas>. no que tange à educação cuidadora após a pergunta: O conhecimento cura as pessoas?

A monja responde:

Sim, pois o erro ou o acerto são necessários para o discernimento e decisão, assim como a doença e a cura: um não vive sem o outro. Como nos manter na corda bamba para que o equilíbrio esteja presente o tempo todo (trovão). Há uma sutileza e perfeição em permanecer no equilíbrio entre a doença e a cura do meu estado mais adequado para cada circunstância, não projetar apenas uma realidade. Buda diz: veja o que é como é. Significa que podemos usar óculos coloridos e significa também que para cada momento, uma cor diferente será necessária, pois a mente que se cristaliza está meio adoentada. Dito isso, precisamos quebrar os gelos dessas mentes. Minha superiora dizia que uma sociedade e um relacionamento vão se congelando porque cada um representa um papel e ninguém quer sair da sua zona de segurança, e quando derretemos os gelos viramos uma coisa morna, esta coisa vai chegando ao elo do outro num processo de derretimento coletivo.

O professor pergunta: Isso poderia ser um tema essencial na formação de professores?

Realmente muitos professores perderam a noção de valores porque é necessário cumprir os conteúdos fixos da escola. Buda utilizava uma metodologia diferenciada com seus discípulos porque ele não chegava jogando informação, ele utilizava a arte das palavras para preparar os grupos para receber os ensinamentos, principalmente a atenção, principalmente quando se quebrar o gelo dos alunos e de seus próprios colegas.

E continua:

[...] um exemplo estaria na orientação dos alunos para trabalhar de forma criativa com os computadores, sem banalizá-lo, é uma maneira de trazer o mundo para a sala de aula numa dimensão integrativa. Então, o professor não poderia temer o computador ou a tecnologia, porque ele precisa explicar para seus jovens como discernir entre o que é importante ou não para eles, a fim de incorporar o conteúdo da aula.

Há um movimento importante que nos passa despercebido na relação entre medicina e educação e que nos desloca para outras dimensões do conhecimento que mesclam mente & corpo; ciência & arte num exercício de ampliação da consciência humana de que a escola somos nós, o que foi demonstrado em outro depoimento de nosso aluno num determinado curso4 4 Caso real vindo pela caixa de sugestões de uma Instituição Educacional de São Paulo. Aluno bolsista de Programas Sociais em 2010. :

Aluno: Eu era um desempregado anônimo, baixa estima, rejeitado por todos, amigos e descriminado na sociedade por não fazer parte da economia de consumo, mas, tinha que parar com essa vida de desempregado andando por aí distribuindo currículos, fazendo bicos, enfim. Pedi a Deus, eis que veio uma carta me aceitando num curso de vocês e aí vi uma luz no túnel, uma forma de tratamento, já não suportava mais ser um desempregado anônimo. Chegando à Escola, a clínica para essa deficiência tão terrível, fui recebido por todos os profissionais e lá deixei de ser um desempregado anônimo para ser um desempregado conhecido onde conheci várias pessoas na minha situação. Foi quando os professores doutores começaram a aplicar doses homeopáticas de autoestima, conhecimento e também na sala de reabilitação, descobrindo, recuperando e trazendo para fora nossas habilidades. Hoje faz dois dias que não estou mais desempregado estou caminhando sozinho. Hoje, pegando o meu certificado, percebo que estou curado. Muito obrigado a todos os professores e profissionais que ficaram envolvidos nesta minha reabilitação, do segurança da portaria, do pessoal da limpeza, da recepção, da biblioteca, do pessoal do suporte e lanche dos professores que sempre receberam a mim e a todos com um sorriso compreendendo e aceitando sem preconceito nossas adversidades e que acreditou que eu poderia ainda ter uma chance de ser curado.

Se cuidar é zelar por alguém ou por algo, então quando pensamos na composição da nossa aula, observamos o perfil da turma e assim levamos diversos materiais: slides, histórias, imagens, textos, entre tantos recursos no intuito de apresentar os cenários possíveis diante daquele conceito ou técnica daquela aula. Este posicionamento é composto por nosso ciclo de acreditação, onde sabemos que são os alunos que filtram as informações mais pertinentes e as transformam em aprendizado ao longo de suas vidas, com significados, sem que possamos avaliá-los, ao longo da vida.

Existem algumas mensagens proferidas ao time de alunos e que só serão conectadas no tempo de significados deles, e que talvez um ano letivo não baste para nos demonstrar quantitativamente o que ele assimilou: a habilidade docente da espera vigiada.

A carta do aluno é uma amostra de que a Escola tem semelhanças com os templos asclepianos da cura, e o que se move neste habitat é o reconhecimento do talento do outro, num misto de formação & autoformação, conhecimento & autoconhecimento, cuidar de si & cuidar do outro, e isso nos faz repensar os currículos da escola, quebrando as gaiolas epistemológicas denunciadas por Ubiratan D’Ambrósio5 5 Ubiratan D’Ambrósio pesquisa a complexidade e a transdisciplinaridade relacionando a vida e suas relações. Disponível em <http://www.ufpa.br/npadc/gemaz/ubiratan.htm#>. Acessado em: 21 nov. 2011 , em um processo de transgressão necessária para que o processo criativo apareça e invada nossas salas de aulas e nossas concepções de Escola.

O relato do aluno exemplifica o que pretendemos com a valorização de uma educação para a paz frente à excessiva propaganda dos conflitos em sala de aula e a utilização do conceito de cuidado que podem compor um diferente currículo da Escola influenciando os desenhos das disciplinas, das competências, dos layouts de mobiliário etc., tudo para estimular um espaço mais saudável.

Assim descreveremos uma educação que cuida em suas etapas transitórias entre uma escola de caráter tradicional e uma escola de aparência cuidadora. A primeira trata da escola tradicional que estabelece um status quo muitas vezes impenetrável; na segunda temos algumas palavras-chave do aluno que condizem com a escola que pensa na integralidade de seus habitantes, e, finalmente, uma possibilidade de escola com as práticas que valoram a paz e o diálogo interdisciplinar, como Rousseau:

O homem não começa facilmente a pensar; mas, assim que começa, não pára mais. Quem já pensou pensará sempre, e, uma vez exercitado na reflexão, o entendimento já não poderá permanecer em repouso. Poder-se-ia, pois, acreditar que faço com ele demais ou demasiado pouco, que o espírito humano não é por natureza, pronto a se abrir e que, depois de lhe ter dado facilidades que ele não tem, mantenho-o por um tempo longo demais inscrito num círculo de ideias que ele deve ter ultrapassado (Rousseau, 2004ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio, ou, Da educação. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004., p. 355 e 356).

ESCOLA DE APARÊNCIA TRADICIONAL (uma hipótese) RELATO DO ALUNO ESCOLA DE APARÊNCIA CUIDADORA (uma possibilidade) Desenha grades curriculares com foco no saber-fazer e ensaios no saber-ser Uma luz no fim do túnel, uma forma de tratamento... Complementa o currículo com valoração no saber-ser e saber conviver Alunos vistos como dados estatísticos. Avaliações quantitativas são imprescindíveis Chegando à Escola, a Clínica para essa deficiência... Desenvolve metodologias que resgatam o aspecto do desenvolvimento humano; as identidades dos sujeitos e a história de vida Professores especialistas com foco em conteúdos e realizam tentativas multidisciplinares, onde o foco está na disciplina Professores doutores começaram a aplicar... Professores estimulam a pesquisa e as conexões com o mundo e a vida Geralmente as aulas têm duração de 1h sem conexões com os temas entre as diversas disciplinas Doses homeopáticas de autoestima... Conteúdos mesclados com o tempo de aprendizado ao longo de toda a vida, aproximando-se do conceito da UNESCO de educação ao longo da vida Sala de aula em formato cadeira atrás de cadeira criando um ambiente de distanciamento Na sala de reabilitação... Espaços flexíveis e móveis multiusos para facilitar o diálogo e as atividades teóricas e práticas Alunos buscam diplomas e Escolas os vendem, o drive-thru de certificações Ter uma chance de ser curado... Professores entendem que o aprendizado acontece diferentemente em cada indivíduo e que a Escola é apenas uma ponte entre seu sonho e sua realidade.

As três colunas são complementares e não há avaliações ou pontuações entre a melhor ou a pior, o que prevalecerá é a possibilidade de discutir situações de aprendizado que podem ter outros sentidos e aguçar outros conhecimentos para além das disciplinas.

É possível que surja um diferente modelo de escola que agregue as questões levantadas no encontro dos dois campos para que o ato de cuidar se torne princípio no ato de curar e no ato de educar, não se restringindo aos espaços hospitalares onde existam (hipoteticamente) médicos que curam, enfermeiros que cuidam e onde os pacientes são colocados numa situação de pacientes. O mesmo pode acontecer com educadores que só ensinam e alunos pacientes, num ato de prendê-los em caixas desconectadas das realidades dos alunos.

Cuidar como Ação Interdisciplinar

O novo ciclo de paz pode renascer se utilizarmos uma nova capacidade de integrar a saúde e a educação no sentido do cuidar da nossa condição humana de evolução e adaptação, sem deixarmos de observar a atitude que promova uma educação para a paz, onde habitar a diversidade intelectual, a prática e o ser professor, nasça de um toque, e assim

Basta um toque para que a ciência prossiga E não se enclausure em feudos para que a escola flutue E não se aprisione seus sons Para que olhar se amplie E não se desvie da missão Para que os gestos aproximem Almas, povos e nação (Souza, 2009SOUZA, Fernando César. Jornadas Interdisciplinares: do mito de quíron à construção da metáfora da cura na escola. 2009. 134 f. Tese (Doutorado em Educação) - Programa Educação e Currículo, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009., p. 118).

Numa analogia aos conceitos de Hipócrates, teríamos uma educação onde todos são responsáveis na condição de aprendizes e na permissão de que o processo de paz e cuidados necessita de leveza. Num movimento de REDIRE AD COR (em latim = retorna ao teu coração) reunindo nossa capacidade nata de cura que nasce em cada um de nós, mas que se efetiva na coletividade.

E não se trata de temermos o desconhecido mundo do saber, mas de observar a força que há nas experiências vividas, pois

A pesquisa que denominamos interdisciplinar na educação nasce de uma vontade construída na escola. Seu nascimento não é rápido, exige uma gestação prolongada, uma gestação na qual o pesquisador se aninha no útero de uma nova forma de conhecimento - a do conhecimento vivenciado, não apenas refletido; a de um conhecimento percebido, sentido, não apenas pensado (Fazenda, 2006FAZENDA, Ivani Catarina Arantes (Org.). A Pesquisa em Educação e as Transformações do Conhecimento. 8. ed. São Paulo : Papirus, 2006. , p. 14-15).

A experiência docente não se restringe ao tempo de sala de aula, mas ao desejo de decidir permanecer na caótica relação homem-conhecimento, e nas atitudes interdisciplinares de respeito, desapego ou ousadia que são estimuladas pelo diálogo fraterno e o respeito mútuo em reverência a sabedoria do outro. Assim é possível adaptar nossa linguagem, nossa abordagem e didática com o público discente, redesenhando layout da sala de aula ou uma revisão ao currículo da escola, um pouco do que Larrossa nos convida

[...] a experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (Larrossa, 2002LARROSSA, Jorge. Notas sobre a Experiência e o Saber de Experiência. I SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE EDUCAÇÃO DE CAMPINAS, 2001, Campinas. Anais... Disponível em: Disponível em: <http://www.anped.org.br/rbe/rbedigital/RBDE19/RBDE19_04_JORGE_LARROSA_BONDIA.pdf> . Acesso em: 21 nov. 2011.
<http://www.anped.org.br/rbe/rbedigital/...
, p. 20-28).

Em busca de uma ampliação da consciência no ato de curar, utilizamos uma proposta metodológica a fim de revisitar a formação docente diante dos paradigmas que permanecem imutáveis por falta de reflexão ou tempo de maturação sobre determinadas ações. Um novo olhar científico diante da fragmentação do saber precisa ser promovido pela ciência moderna que é capaz de descrever aspectos de abordagem universal, trata-se da relação singular-universal, que possibilite aos professores um acolhimento ao paradoxo doença & saúde.

Ao optarmos pelo desbravamento em alguns territórios que antes não compreendíamos, suspendendo o automatismo da ação, segundo Larrossa, deixaremos de habitar o excesso das especializações profissionais que nos aprisiona em masmorras de conhecimentos estanques e lineares, não permitindo que outros sons e linguagens cheguem à nossa capacidade infinitamente criativa. Dizemos, então, que a volta ao coração - o REDIRE AD COR - é um primeiro passo e o mais corajoso para estabelecermos uma educação para a paz que envolva o tempo kairótico6 6 Na mitologia grega, Kairós refere-se ao tempo com qualidade e eficácia, não se expressa por uma imagem uniforme, estática, mas por uma ideia de movimento. Refere-se a uma experiência temporal na qual percebemos o momento oportuno em relação a determinado contexto ou processo. Kairós é o tempo do não ser, é passado e futuro - o tempo que deixou de ser (a memória) e o tempo que ainda não é (o devir, o vir a ser). que resgata a humanidade no ato de cuidar.

É uma possibilidade diante de tantas outras que está na mestiçagem das diversas descobertas realizadas em direção às mestiçagens de saberes e fazeres na prática interdisciplinar, pois, ao habitar uma nova forma de pensar esses espaços, denominados estranhos, proporcionaremos a exploração das áreas ainda desconhecidas por nossas próprias fixações arcaicas e petrificadas pela tumultuada ação do mundo moderno.

Pela prática de uma educação para a paz e com o entendimento de que a escola pode ser um espaço que admite e reconhece os cuidados, é possível desconstruir o forte símbolo de massificação e padronização emoldurada pela ciência moderna. No cotidiano da escola é que identificamos que os professores podem ouvir as múltiplas possibilidades de ação educativa interdisciplinar, adequando linguagens e dando chances à imaginação e ao conhecimento das experiências acumuladas em si e nos alunos. Notamos que a escola pode se apresentar como um ente doente no esquecimento existencial, imersa de cegueira do saber de uma educação bancária, denunciada por Paulo Freire.

Resta-nos uma questão: Como criaremos espaços de cuidados para que todos compreendam o sentido da escola no século XXI?

O Corpo Docente como Equipe Terapêutica: uma atitude possível

Além de dar aulas, também vou curar as pessoas?7 7 Pergunta de um professor do Ensino Médio, durante a palestra sobre as dimensões do cuidado na Escola, 2007. Durante duas horas houve um debate sobre o papel social do professor, aquele que ultrapassa o conteúdo e o tempo de 60 minutos de aula.

Uma Escola que se preocupa com a leitura de mundo, é aquela que acolherá o maior número de pessoas, orientando seus professores a pensar os significados de aprender com o outro, diferentemente do que é percebido pelo mercado de trabalho que adora a deusa eficiência, alimentada pela excessiva produtividade e com fortes tendências ao individualismo. Talvez uma saída? Repensar a Escola como fonte terapêutica.

E quando entendermos que a Escola pode ser um espaço terapêutico, obrigatoriamente nos é dado de presente um novo traje que desmascara a terapia que é veiculada nos meios de comunicação atuais, com receitas prontas para o restabelecimento da saúde ou a corrida pela beleza física com a armadilha estética sem compromisso com a saúde emocional, que confundem nossa percepção do belo e do estético.

O design de didática que apostamos nasce dos princípios terapêuticos de Fílon e os terapeutas de Alexandria (Jean-Yves Leloup), século I antes de Cristo, numa atitude considerada interdisciplinar e que assume riscos e coragens até então desconhecidas, mas presentes em nossa prática, intuitivamente ou não.

Na compreensão de que o terapeuta é aquele que sabe rezar pela saúde do outro e, ao conduzirmos esta atitude para a prática docente, entendemos que o professor, ao preparar sua aula e repensar sua didática, estaria em um alinhamento próximo ao dos grupos da oração, pois orar é religar-se ao sagrado em nós, a algo que nos dirige para a sensação de pertencimento e de missão cumprida.

Esses terapeutas e intelectuais percorriam territórios desconhecidos para levar técnicas e habilidades curativas, que analogicamente traduzimos para a condição docente do momento histórico que vivemos. Quantos de nós, educadores, não nos sentimos como os peregrinos que levam, além dos livros, um arcabouço de desejos, intencionalidades e possibilidades de bem servir?

É a partir deste ponto que discorremos sobre o cuidado num conceito aparentemente estrangeiro e desconectado da realidade da sala de aula, mas carregado de sentido e de presença. Ligar novamente a saúde e a salvação sem adentrarmos em territórios religiosos, como nos ensina Fílon:

Os cuidados do corpo não excluem os cuidados da alma, os cuidados da alma (psyché) não dispensam que se leve em consideração a dimensão ontológica e espiritual do homem. Não existe saúde que não seja ao mesmo tempo salvação. Além do mais, em grego é a mesma palavra: soteri (Leloup, 2005LELOUP, Jean-Yves. Cuidar do Ser: Fílon e os terapeutas de Alexandria. Petrópolis: Vozes, 2005., p. 34).

Portanto, vivenciar a cura como cuidado é praticar interdisciplinarmente o processo terapêutico na medida em que ampliamos o espaço da sala de aula para a vida, num crescimento que mescla os micros e macros territórios onde habitamos como seres em evolução constante.

Conclusão

Se cuidar é zelar por alguém ou por algo, então quando pensamos na composição da nossa aula, observamos o perfil da turma e assim levamos diversos materiais: slides, histórias, imagens, textos, entre tantos recursos no intuito de apresentar os cenários possíveis diante daquele conceito ou técnica. Este posicionamento é composto por nosso ciclo de acreditação, onde sabemos que são os alunos que filtram as informações mais pertinentes e as transformam em aprendizado ao longo de suas vidas, com significados, sem que possamos avaliá-los, ao longo da vida: Temos que ser generosos e manter a esperança no caos, dentro da Escola8 8 Frase discutida com os alunos, durante as aulas na pós-graduação em Gestão Escolar, 2011, no Centro Universitário Ítalo Brasileiro. .

O exercício da humildade é uma etapa importante para entrarmos nos ciclos de acreditação, já que o aluno deixou de ser um indivíduo sem luz (em grego = a-lux) para ser um sujeito sociopolítico que transforma sua vida e a sociedade. Ao abandonarmos os rótulos que invadem as Escolas, e entendermos que entre a excelência e a suposta ausência dela há o caminho do meio, significando o ato humilde e respeitoso diante da identidade do grupo de alunos, exclusiva e única, e que merece abordagem de exclusividade e unicidade. E isso moverá o currículo e a formação docente!

Esse professor que cuida não é aquele que obrigará seu aluno a se curar, mas ele (o professor) mostra alguns caminhos onde há possibilidade de vislumbrar outros cenários de cuidados, antes desconhecidos, mas que garantirão aos alunos uma clareza de que a ampliação do conhecimento é capaz de apaziguar nossas frustrações ou cicatrizar nossas feridas da ignorância face ao nosso potencial criativo.

O professor não cura, ele manifesta seus desejos e suas práticas cuidadosas. É pelas mãos deste professor que as travessias são iniciadas, e o que resta é a pergunta: quem conduz a quem? Ou quem cura quem? E com serenidade descobriremos que neste processo, que chamamos de terapêutico, não há condutores ou conduzidos, mas peregrinos numa jornada para o descobrimento de nós mesmos.

O recomeço não é o abandono do que já construímos historicamente e culturalmente, mas um momento de nos aquietarmos no turbilhão de atos e desejos que desembocam na sala de aula, num ciclo virtuoso de vida e cuidados que fará emergir uma educação-próxima-de-nós.

Referências

  • ALMEIDA, Vanessa Sievers. Educação em Hannah Arendt: entre o mundo deserto e o amor ao mundo. São Paulo: Cortez Editora, 2011.
  • ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva, 2007.
  • ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
  • BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
  • BARBIER, René. A Pesquisa-ação. Brasília: Líber Livro, 2004.
  • BYINGTON, Carlos Amadeo Botelho. A Construção Amorosa do Saber: o fundamento e a finalidade da pedagogia simbólica Junguiana. São Paulo: Religare, 2003.
  • CAIRUS, Henrique F.; RIBEIRO JR., Wilson A. Textos Hipocráticos: o doente, o médico e a doença. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2005.
  • CAMPOS, José Maria. Jornadas pelo Mundo da Cura. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1996.
  • CARDOSO, Clodoaldo Meneguelli. A Canção da Inteireza: uma visão holística da educação. São Paulo; Summus Editorial, 1995.
  • CASSORLA, Roosevelt M. S. O Mito de Asclépios e o Médico Lidando com a Morte. Temas de bioética. Cadernos do IFAN, Universidade São Francisco, n. 10, p. 51-62, 1995.
  • CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 7. ed. São Paulo: Ática, 1996.
  • DAHLKE, Rudiger. A Doença como Símbolo: pequena enciclopédia de psicossomática. São Paulo: Cultrix, 1996.
  • DAHLKE, Rudiger. As Crises da Vida como Oportunidade de Desenvolvimento: fases de transformação e seus sintomas de doenças. Tradução de Zilda Hutchinson S. Silva. Colaboradores Margit Dahlke e Robert Hossl. São Paulo: Cultrix , 2005.
  • EPSTEIN, Donald M.; ALTMAN, Nathaniel. Os 12 Estágios da Cura: novas maneiras de curar a mente e o corpo. São Paulo: Pensamento, 1994.
  • FAZENDA, Ivani Catarina Arantes (Org.). Dicionário em Construção: interdisciplinaridade. São Paulo: Cortez, 2002.
  • FAZENDA, Ivani Catarina Arantes (Org.). Práticas Interdisciplinares na Escola. 2. ed. São Paulo: Cortez , 1993.
  • FAZENDA, Ivani Catarina Arantes. Didática e Interdisciplinaridade. Campinas: Papirus, 1998.
  • FAZENDA, Ivani Catarina Arantes. Interdisciplinaridade: história, teoria e pesquisa. Campinas: Papirus , 1994.
  • FAZENDA, Ivani Catarina Arantes (Org.). A Pesquisa em Educação e as Transformações do Conhecimento. 8. ed. São Paulo : Papirus, 2006.
  • FAZENDA, Ivani Catarina Arantes. Interdisciplinaridade: qual o sentido? São Paulo: Paulus, 2003.
  • FREINET, Célestin. Pedagogia do Bom Senso. São Paulo: Matins Fontes, 1996.
  • FREINET, Célestin. Ensaio da Psicologia Sensível. São Paulo: Martins Fontes , 1998.
  • FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2010.
  • FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro : Edições Graal, 2011.
  • FURLANETTO, Ecleide Cunico. Como Nasce um Professor? Uma reflexão sobre o processo de individuação e formação. 2. ed. São Paulo: Paulus , 2004.
  • GAUTHIER, Jacques. Sociopoética. Encontro entre arte, ciência e democracia na pesquisa em ciências humanas e sociais, enfermagem e educação. Rio de Janeiro: Ed. Escola Anna Nery/UFRJ, 1999.
  • HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o Humanismo. São Paulo: Centauro, 2005.
  • HEIDEGGER, Martin. Que é isto, a Filosofia?: Identidade e diferença. Petrópolis: Vozes, 2006.
  • HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. São Paulo: Vozes, 2005.
  • HELITO, Alfredo S.; KAUFFMAN, Alfredo S. Saúde: entendendo as doenças, a enciclopédia médica da família. São Paulo; Nobel, 2006.
  • JARES, Xésus R. Congresso Internacional Co-Educação de Gerações. São Paulo, 2003. Disponível em: Disponível em: <http://comitepaz.org.br> Acesso em: 20 nov. 2011.
    » <http://comitepaz.org.br>
  • JUNG, Carl. Documentários BBC London, 1960. Face to Face. Produzido por John Freeman. Disponível em: Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=fcwDcfomjVI&feature=related Acesso em 20 nov. 2011.
    » http://www.youtube.com/watch?v=fcwDcfomjVI&feature=related
  • LARROSSA, Jorge. Notas sobre a Experiência e o Saber de Experiência. I SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE EDUCAÇÃO DE CAMPINAS, 2001, Campinas. Anais... Disponível em: Disponível em: <http://www.anped.org.br/rbe/rbedigital/RBDE19/RBDE19_04_JORGE_LARROSA_BONDIA.pdf> Acesso em: 21 nov. 2011.
    » <http://www.anped.org.br/rbe/rbedigital/RBDE19/RBDE19_04_JORGE_LARROSA_BONDIA.pdf>
  • LELOUP, Jean-Yves; BOFF, Leonardo. Terapeutas do Deserto: De Fílon de Alexandria e Francisco de Assis a Graf Durckheim. São Paulo: Vozes , 2002.
  • LELOUP, Jean-Yves. Cuidar do Ser: Fílon e os terapeutas de Alexandria. Petrópolis: Vozes, 2005.
  • LEVY, Teresa; GUIMARÃES, Henrique; POMBO, Olga. Interdisciplinaridade Antologia. Editora Campo das Letras, 2006. Porto, Portugal, 2006.
  • MATOS, Olgária. Filosofia: a polifonia da razão. São Paulo: Scipione, 1997.
  • MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes , 1999.
  • ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio, ou, Da educação. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
  • SANTOS, Boaventura Souza. Um Discurso sobre as Ciências. São Paulo: Cortez , 2004.
  • SOUZA, Fernando César. Jornadas Interdisciplinares: do mito de quíron à construção da metáfora da cura na escola. 2009. 134 f. Tese (Doutorado em Educação) - Programa Educação e Currículo, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009.

Notas

  • 1
    Trecho extraído do dos Textos Hipocráticos que estabelecia que os quatro humores - sangue, fleuma, bile amarela e negra - em combinação com o calor, o frio, o seco e o úmido causa a gênese da saúde para os seguidores de Hipócrates.
  • 2
    Peter Burke participou do Programa Café Filosófico em 2011, patrocinado pela CPFL de São Paulo. Disponível em <http://www.cpflcultura.com.br/site/category/palestrante/peter-burke/>. Acessado em 21 nov. 2011.
  • 3
    Entrevista completa concedida no ano 2009 durante pesquisa de Doutorado em Educação: Currículo. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Disponível em <www.sp.senac.br/bibliotecas>.
  • 4
    Caso real vindo pela caixa de sugestões de uma Instituição Educacional de São Paulo. Aluno bolsista de Programas Sociais em 2010.
  • 5
    Ubiratan D’Ambrósio pesquisa a complexidade e a transdisciplinaridade relacionando a vida e suas relações. Disponível em <http://www.ufpa.br/npadc/gemaz/ubiratan.htm#>. Acessado em: 21 nov. 2011
  • 6
    Na mitologia grega, Kairós refere-se ao tempo com qualidade e eficácia, não se expressa por uma imagem uniforme, estática, mas por uma ideia de movimento. Refere-se a uma experiência temporal na qual percebemos o momento oportuno em relação a determinado contexto ou processo. Kairós é o tempo do não ser, é passado e futuro - o tempo que deixou de ser (a memória) e o tempo que ainda não é (o devir, o vir a ser).
  • 7
    Pergunta de um professor do Ensino Médio, durante a palestra sobre as dimensões do cuidado na Escola, 2007. Durante duas horas houve um debate sobre o papel social do professor, aquele que ultrapassa o conteúdo e o tempo de 60 minutos de aula.
  • 8
    Frase discutida com os alunos, durante as aulas na pós-graduação em Gestão Escolar, 2011, no Centro Universitário Ítalo Brasileiro.

Notas

  • *
    Ivani Catarina Arantes Fazenda é livre docente em Didática pela UNESP e doutora em Antropologia pela USP. Professora titular da PUC-SP, Professora Associada do CRIE (Centre de Recherche et intervention educative) da Universidade de Sherbrooke-Canadá, Fundadora do Instituto Luso Brasileiro de Ciências da Educação-Universidade de Évora - Portugal. Coordena o GEPI - Grupo de Estudos e Pesquisas em Interdisciplinaridade, filiado ao CNPQ e outras instituições internacionais. Trabalha com Educação nos temas: Ensino-Aprendizagem; interdisciplinaridade, pesquisa, currículo e formação.
  • **
    Fernando César de Souza é doutor em Educação (PUC-SP), Pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Interdisciplinaridade - GEPI, filiado ao CNPQ. Professor de pós-graduação lato-sensu no Centro Universitário Ítalo Brasileiro, São Paulo. Técnico de Desenvolvimento Profissional no SENAC, Membro do Comitê de Pós-Graduação do Centro Universitário SENAC-SP. Pesquisador e palestrante em: Interdisciplinaridade, Saúde & Cura na Educação, Formação de Professores, Políticas Públicas dos Direitos da Criança e do Adolescente.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2012

Histórico

  • Recebido
    01 Jul 2011
  • Aceito
    01 Nov 2011
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Faculdade de Educação Avenida Paulo Gama, s/n, Faculdade de Educação - Prédio 12201 - Sala 914, 90046-900 Porto Alegre/RS – Brasil, Tel.: (55 51) 3308-3268, Fax: (55 51) 3308-3985 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: educreal@ufrgs.br