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A Educação de jovens e adultos na perspectiva das agendas internacionais e no Brasil

The Education of young people and adults in the view of the international agendas views and in Brazil

La Educación de jóvenes y de adultos en la perspectiva de las agendas internacionales y en Brasil

Resumo

Este artigo busca discutir as principais orientações presentes nas agendas internacionais das últimas três décadas e o que priorizaram para a Educação de jovens e adultos. Buscou-se, por meio de pesquisa documental, comparar e analisar as metas e estratégias definidas nas agendas Educação para Todos – EPT, nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável – ODS da Agenda 2030. Os resultados mostram que houve continuidade das orientações macros, no entanto a EPT enfatizou a alfabetização e aprendizagem e os ODS priorizou ações de fomento a formação técnica e profissional. Ao final, apresentam-se alguns indicativos de aproximação da agenda nacional brasileira para a EJA com a agenda internacional.

Educação de Jovens e Adultos; Agendas Internacionais; Educação para Todos; Objetivos de Desenvolvimento do Milênio; Objetivos do Desenvolvimento Sustentável

Abstract

This paper aims to discuss the main guidelines of the international agendas of the last three decades and what they prioritized for the Education of young people and adults (EJA, in Portuguese). Using the documental research, this paper sought to compare and analyze the goals and strategies defined in the agendas of Education for All (EPT, in Portuguese), in the Millennium Development Goals, and in the Sustainable Development Goals (SDG) of the 2030 Agenda. The results showed that there was a continuation of the macro guidelines. However, the EPT emphasized alphabetization and learning whereas the SDG prioritized actions to encourage technical and professional education. At the end, we present some indicatives of approximation of the Brazilian national agenda for youth and adult education (EJA) with the international agenda.

Young and Adult Education; International Agendas; Education for All; Millennium Development Goals; Sustainable Development Goals

Resumen

Este artículo busca discutir las principales orientaciones presentes en las agendas internacionales de las últimas tres décadas y lo que priorizaron para la Educación de jóvenes y adultos. Se buscó, por medio de investigación documental, comparar y analizar las metas y estrategias definidas en las agendas Educación para Todos – EPT, en los Objetivos de Desarrollo del Milenio y en los Objetivos del Desarrollo Sostenible – ODS de la Agenda 2030. Los resultados muestran que hubo continuidad de las orientaciones macros, sin embargo la EPT enfatizó la alfabetización y aprendizaje y los ODS priorizó acciones de fomento a la formación técnica y profesional. Al final, se presentan algunos indicativos de aproximación de la agenda nacional brasileña para EJA con la agenda internacional.

Educación de Jóvenes y Adultos; Agendas Internacionales; Educación para Todos; Objetivos de Desarrollo del Milenio; Objetivos de Desarrollo Sostenible

1 Introdução

A Educação de adultos no Brasil possui uma longa história de omissão na atuação do Estado na promoção de políticas públicas. Somente a partir de 1940, houve de forma mais sistemática – ainda que fragmentadas e descontínuas –, ações voltadas para a alfabetização de pessoas com pouca ou nenhuma escolaridade. Nas décadas posteriores, ganhou destaque a preocupação com a conclusão e certificação do Ensino Básico das pessoas com 18 anos em diante, pois nesse período, só poderia acessar a Educação de adultos a partir dessa idade (Di Pierro; Joia; Ribeiro, 2001).

Na década de 1990, convencionou-se adotar o termo aprovado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação vigente, a qual criou a modalidade de Ensino “Educação de Jovens e Adultos – EJA”, voltada para a escolarização de pessoas com idade a partir de 15 anos que não tiveram acesso no período considerada regular, com vistas a concluir o Ensino Básico (Brasil, 1996BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 dez. 1996.).

Ao redor do mundo, no entanto, é comum encontrar na literatura o termo Educação de adultos, cujo desenvolvimento se consolidou após a Segunda Guerra Mundial, dada a necessidade de expandi-la numa dimensão planetária, ocasionada pela necessidade de reconstrução da Europa devastada e espalhando-se para os países do Terceiro Mundo, expansão orientada pelos organismos internacionais (Canário, 2013CANÁRIO, R. Educação de adultos : um campo e uma problemática. Lisboa: Educa, 2013.).

No entanto, há diferenças em outros aspectos para além do termo utilizado. Cavaco (2002)CAVACO, C. Aprender fora da escola: percursos de formação experiencial. Lisboa: Educa, 2002. destaca que alguns países se preocupam mais com a alfabetização e conclusão da formação básica (especialmente nos países do Sul como o Brasil, sem, necessariamente, ignorar as tendências recentes impostas pelas transformações políticas, econômicas e sociais vigentes) e outros que centram suas ações na formação/capacitação profissional (países do Norte, por exemplo).

Quanto à função do processo formativo, a EJA (adotar-se-á neste texto o termo cunhado no contexto brasileiro) possui sentidos diferenciados e, ao redor do mundo, assume características e desafios específicos para cada país. Para Cavaco (2002)CAVACO, C. Aprender fora da escola: percursos de formação experiencial. Lisboa: Educa, 2002., a Educação de adultos, em um sentido amplo, está relacionada com a totalidade dos processos educativos que ocorre ao longo da vida. Neles, incluem a alfabetização, o Ensino recorrente, a formação profissional, a Educação extraescolar. Logo, para essa autora, o processo formativo em sentido amplo perpassa todas as modalidades educativas – formais, não formais e informais.

No sentido mais restrito, EJA está associada à alfabetização e escolarização, e requer atenção frente à problemática social do analfabetismo, que ainda hoje afeta parcela significativa da população dos países do Sul e certa parcela da população dos países do Norte (idosos, imigrantes e minorias étnicas), pois, desde o século XX, estes últimos consideram que não possuem taxas de analfabetismo devido à expansão da rede escolar e a obrigatoriedade da escolaridade (Cavaco, 2002CAVACO, C. Aprender fora da escola: percursos de formação experiencial. Lisboa: Educa, 2002.).

Seja em sentido amplo ou restrito, fato é que o campo da EJA é marcado por heterogeneidades, as quais se adaptam conforme os processos de transformações produtivas se transformam e exigem cada vez mais novos atributos laborais, habilidades e competências formativas. No âmbito da EJA, esse movimento tem como orientadores os organismos internacionais, com destaque para Organização das Nações Unidas (ONU) e Organização das Nações Unidades para Educação, Ciência e Cultura (Unesco).

Um conjunto de acordos e compromissos tem sido assumido nas últimas décadas com intuito de compatibilizar uma agenda única voltada para o desenvolvimento social em âmbito mundial e local, tendo três agendas principais materializado tais interesses e orientações: Educação para Todos (EPT) criadas em 1990 e renovadas em 2000, os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) em 2000 e, a Agenda 2030, aprovada em 2015 (Di Pierro; Haddad, 2015DI PIERRO, M. C; HADDAD, S. Transformações nas políticas de educação de jovens e adultos no Brasil no início do terceiro milênio: uma análise das agendas nacional e internacional. Cadernos Cedes , Campinas, v. 35, n. 96, p. 197-217, maio-ago., 2015. https://doi.org/10.1590/CC0101-32622015723758
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). As agendas internacionais não possuem caráter impositivo, mas exercem fortes influências explicita ou implicitamente. Di Pierro e Haddad (2015DI PIERRO, M. C; HADDAD, S. Transformações nas políticas de educação de jovens e adultos no Brasil no início do terceiro milênio: uma análise das agendas nacional e internacional. Cadernos Cedes , Campinas, v. 35, n. 96, p. 197-217, maio-ago., 2015. https://doi.org/10.1590/CC0101-32622015723758
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, p. 200) destacam que:

Mesmo não tendo caráter impositivo, acordos internacionais assinados pelos governos nacionais podem se constituir em instrumentos para que a sociedade civil – em cada país ou nas redes globais – exerça pressão para a garantia de direitos, mudança de leis e comportamentos, acesso a informações ou reivindicação de políticas públicas. As metas internacionais associadas a esses acordos direcionam a cooperação internacional bilateral e multilateral, estimulando governos nacionais a perseguir os compromissos para acessar tais recursos, responder às pressões ou evitar sanções externas. (...), a comparação com outros países pode fornecer argumentos para a advocacia por direitos e o exercício da pressão política.

Nessa perspectiva, uma agenda, mesmo não sendo impositiva, oferece uma contribuição e implica a formulação de metas e ações que serão desenvolvidas por um estado-membro. Diante disso, este artigo tem por finalidade discorrer sobre as orientações políticas-econômicas e educativas que têm sido priorizadas nas agendas internacionais voltadas para a EJA. Para tanto, por meio de uma abordagem dialética de natureza teórica e exploratória, realizou-se pesquisa documental nos documentos orientadores das agendas internacionais para a Educação (EPT, ODM e Objetivos do Desenvolvimento Sustentável – ODS) e objetivou-se comparar e analisar as metas e estratégias estabelecidas neles.

A discussão se organizou em duas seções, onde se discorre sobre uma breve contextualização das agendas internacionais e o papel que assumem para as políticas educativas dos países. Em seguida, apresentam-se – e sobre elas se reflete – as perspectivas e orientações implícitas ou explicitas nessas agendas, por meio das metas e estratégias definidas. Por fim, nas considerações finais, apresentam-se algumas reflexões acerca das aproximações que a atual agenda vem provocando nas políticas educativas da EJA no Brasil.

2 A Educação na pauta globalizada das agendas internacionais

As políticas nacionais cada vez mais são impactadas pelo fenômeno da globalização, o que tem afetado a organização político-econômica mundial, e se estende para o âmbito cultural e da Educação, dada a inclusão virtual de vários estados-nação que possibilita o êxito que essa inclusão tem experimentado (Dale, 2004DALE, R. Globalização e educação: demonstrando a existência de uma “Cultura Educacional Mundial Comum” ou localizando uma “Agenda Globalmente Estruturada para a Educação”? Educação e Sociedade, Campinas, v. 25, n. 87, p. 423-460, maio/ago. 2004. https://doi.org/10.1590/S0101-73302004000200007
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). De acordo com Akkari (2017)AKKARI, A. A agenda internacional para educação 2030: consenso “frágil” ou instrumento de mobilização dos atores da educação no século XXI? Revista Dialogo Educacional, Curitiba, v. 17, n. 53, P. 937-958, 2017. https://doi.org/10.7213/1981-416X.17.053.AO11
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, por um longo tempo as responsabilidades eram exclusivas dos Estados nações, entretanto, nos últimos 30 anos, a Educação tem sido objeto das influências internacionais.

Ainda que a globalização seja espraiada para outros campos, a finalidade central é potencializar o modo de produção capitalista; logo, ela busca o triunfo do sistema em si e não de uma nação específica (Dale, 2004DALE, R. Globalização e educação: demonstrando a existência de uma “Cultura Educacional Mundial Comum” ou localizando uma “Agenda Globalmente Estruturada para a Educação”? Educação e Sociedade, Campinas, v. 25, n. 87, p. 423-460, maio/ago. 2004. https://doi.org/10.1590/S0101-73302004000200007
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). Esse processo não ocorre de modo uniforme e igual para todas as nações, mas sofre resistências se o Estado nacional for forte nas suas responsabilidades, ainda que não seja absoluto, pois a “maioria, senão todas as decisões sobre o formato e a direção dos sistemas educacionais nacionais continuam sendo tomadas pelos próprios estados” (Dale, 2004DALE, R. Globalização e educação: demonstrando a existência de uma “Cultura Educacional Mundial Comum” ou localizando uma “Agenda Globalmente Estruturada para a Educação”? Educação e Sociedade, Campinas, v. 25, n. 87, p. 423-460, maio/ago. 2004. https://doi.org/10.1590/S0101-73302004000200007
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, p. 130). Entretanto, as forças econômicas seguem operando “supra e transnacionalmente para romper, ou ultrapassar, as fronteiras nacionais, ao mesmo tempo que reconstroem as relações entre as nações” (Dale, 2004DALE, R. Globalização e educação: demonstrando a existência de uma “Cultura Educacional Mundial Comum” ou localizando uma “Agenda Globalmente Estruturada para a Educação”? Educação e Sociedade, Campinas, v. 25, n. 87, p. 423-460, maio/ago. 2004. https://doi.org/10.1590/S0101-73302004000200007
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, p. 423).

Para Ball, cada Estado-nação se posiciona “de forma diferente em relação às estruturas e efeitos da globalização”, por isso a globalização ocorre de formas diferenciadas para cada um. Apesar disso, as políticas nacionais sob esse contexto se constituem em “fragmentos e partes de ideias de outros contextos, de uso e melhoria das abordagens locais já experimentadas de adoção de tendências e modas em tudo aquilo que possa vir a funcionar” (Ball, 2001, p. 102).

Nessa perspectiva, os organismos internacionais assumem, entre outras que variaram nos tempos históricos, a função de definir as formas de governação supranacionais, ainda que, por vezes, não sejam articulados entre si e possuam interesses imediatos contraditórios, há a prevalência na definição do corpus da agenda que estabeleça uma diretriz geral, que entre outros objetivos busca processos de padronização da Educação.

Mesmo considerando essa busca por uma agenda única, não se pode ignorar o fato de que outros aspectos contribuem/influenciam para os caminhos a serem seguidos pela política educacional de um Estado-nação, especialmente por meio das pressões exercidas pela sociedade civil, ou por uma parcela dela (como os movimentos sociais/associações), quando as necessidades e disputas de interesses exigem um redirecionamento ou a desconsideração de tais influências supranacionais, ou mesmo quando as pautas da agenda internacional não contemplam as necessidades locais.

Diferentes interesses estão em disputas na formulação de uma agenda única, e ações prioritárias devem prevalecer, mesmo que a finalidade precípua esteja articulada à manutenção da sociabilidade capitalista. Cabe destacar que as agendas internacionais estiveram centradas em atender interesses específicos para o período histórico em que estavam inseridas, sendo inicialmente definidas ações para os países do Sul (EPT e ODM). A Agenda 2030 pela primeira vez congregou prioridades para países do Norte e do Sul (Akkari, 2017AKKARI, A. A agenda internacional para educação 2030: consenso “frágil” ou instrumento de mobilização dos atores da educação no século XXI? Revista Dialogo Educacional, Curitiba, v. 17, n. 53, P. 937-958, 2017. https://doi.org/10.7213/1981-416X.17.053.AO11
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)

Os organismos internacionais, por meio dos seus pacotes de influências/condicionalidades, envolvem diferentes campos e, junto com as agendas internacionais, apresentam as prioridades formuladas para estes. No entanto, especialmente no que se refere à Educação, o organismo internacional que vem exercendo ampla participação nesse debate é a Unesco, a qual é agência da ONU. Ambas estiveram organizando as três agendas analisadas aqui e cuja missão é “construir a paz, erradicar a pobreza e impulsionar o desenvolvimento sustentável” e suas prioridades são: o direito à Educação, Educação e igualdade de gêneros; a alfabetização e os professores (Unesco, [s. d.]).

A Unesco foi criada em 1945, frente ao cenário deixado pela Segunda Guerra Mundial. Sua influência há décadas ocorre por meio de seus institutos e centros espalhados por vários países, conferências mundiais, elaboração e publicação de documentos de diferentes ordens, além de parcerias com outros organismos. No Brasil, a Unesco inicia sua representação em 1964, e seu escritório em Brasília funciona desde 1972. Apesar de ser uma organização internacional especializada em Educação, ela não exerce tanta influência nas reformas educacionais, entretanto, mantém prestígio histórico nos países do Sul (Akkari, 2017AKKARI, A. A agenda internacional para educação 2030: consenso “frágil” ou instrumento de mobilização dos atores da educação no século XXI? Revista Dialogo Educacional, Curitiba, v. 17, n. 53, P. 937-958, 2017. https://doi.org/10.7213/1981-416X.17.053.AO11
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).

Nas últimas décadas, a Unesco tem disseminado em seus documentos conceitos e elementos orientadores que influenciam os países. Dois deles merecem destaque: a Declaração Mundial de Educação para Todos (que posteriormente culminou nos objetivos da EPT) e o Relatório Educação, que são um tesouro a descobrir. Eles trazem semelhanças quanto aos conceitos defendidos, às concepções de Educação, de homem, de mundo e às orientações acerca do papel que a Educação deve assumir e o tipo de formação deve ser desenvolvido.

No que se refere à discussão acerca de jovens e adultos, o conceito de Educação ao longo de toda a vida tem sido recorrente nos discursos dos organismos internacionais e presente em seus documentos. Aqueles menos próximos do debate podem, na imediaticidade, pensar que há proximidades com a bandeira de luta dos movimentos sociais. Afinal, “Educação ao longo da vida” é uma pauta importante e se constituiu em um dos princípios orientadores da EJA. No entanto, esse conceito não é novo; apareceu pela primeira vez em 1919 na Inglaterra, como discutiu Gadotti (2016)GADOTTI, M. Educação popular e educação ao longo da vida. Memorial Virtual Paulo Freire, 2016. Disponível em: http://www.acervo.paulofreire.org/handle/7891/10020. Acesso em: 10 mar 2022.
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– inclusive diferenciou de aprendizagem ao longo da vida – , mas sua utilização assume conotações e concepções de ser humano, de Educação, de escola e de relações com a formação humana divergentes, que variam nos discursos que estão empregados. Podem-se citar essencialmente duas principais matrizes orientadoras: uma que enfatiza a racionalidade capitalista e uma perspectiva contra-hegemônica, que, no caso brasileiro, teve como principal expoente Paulo Freire e sua proposta de Educação popular libertadora.

A utilização da perspectiva de Educação ao longo da vida nos documentos da Unesco tem sido adotada como a necessidade de atualização constante de saberes, para que os sujeitos estejam preparados para atender as demandas do mercado de trabalho. Logo, está voltada à formação de pessoas que possam se adaptar às mudanças, e, para isso, precisam ter competências para acompanhar as rápidas transformações. Assim, é difundida uma visão com sentido restrito, instrumental e minimalista do conceito, características estas que predominam nas ações das políticas educativas voltadas para a EJA, fenômeno que não se restringe apenas ao caso brasileiro. Nessa direção, cabe citarmos Gadotti (2016)GADOTTI, M. Educação popular e educação ao longo da vida. Memorial Virtual Paulo Freire, 2016. Disponível em: http://www.acervo.paulofreire.org/handle/7891/10020. Acesso em: 10 mar 2022.
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A Educação ao longo da vida perdeu sua característica de ser uma educação voltada para a participação e para a cidadania como, de alguma forma, encontrava-se no Relatório Edgar Faure. Aos poucos, a referência deixou de ser a cidadania para se focar nas exigências do mercado. Com amparo na teoria do capital humano, a aprendizagem passa a ser uma responsabilidade individual e a educação, um serviço, e não um direito. Esse “ethos” mercantil deslocou a educação para a formação e para aprendizagem. A visão humanista, inicial, foi substituída, nas políticas sociais e educativas, por uma visão instrumental, mercantilista, apesar de declarações em contrário.

De modo geral, a preocupação da Unesco está centrada em formar para o trabalho, precisando estar a serviço do desenvolvimento econômico e da defesa dos elementos do neoliberalismo, já que, nessa direção, a Educação precisa estar afinada com os interesses e as necessidades do mercado. Para Delors (influente político europeu ligado aos assuntos econômicos e financeiros e principal idealizador do relatório que recebeu seu nome), fica clara a necessidade da formação profissional e sua relação com o crescimento pessoal. Para ele, essa formação está voltada para “(...) a preparação para empregos existentes atualmente e uma capacidade de adaptação a empregos que ainda nem se quer podemos imaginar” (Delors, et al 1998, p. 136).

A ênfase na formação profissional tem sido, desde os anos 2000, uma das principais tendências da atualidade para as políticas educativas direcionadas para a EJA, e que já não está voltada apenas para os países do Sul, mas se configura como uma tendência globalizada, pois, como veremos a seguir, ela está materializada na EPT e principalmente nos ODS da Agenda 2030.

3 A EJA nas agendas internacionais

Foi mencionado que a EJA, ao redor do mundo, tem especificidades que marcam sua heterogeneidade, ainda que não se possam ignorar as tendências impostas pelo tempo histórico e as aproximações/semelhanças entre os blocos de países. Ou seja, as adaptações impostas pela dinâmica societária somada às diferenças quanto ao papel assumido pela Educação em países (sejam eles Sul ou do Norte) demarcam suas especificidades.

As orientações multilaterais que conduziram/conduzem as políticas para a EJA, demonstram mudanças quanto à concepção paradigmática/formativa e o enfoque das metas/estratégias nas três agendas aqui analisadas. Dada a profundidade analítica da primeira e a necessária objetividade da escrita que este texto requer, centra-se aqui sobre o enfoque das metas/estratégias, ainda que algumas inferências sobre concepções paradigmáticas e formativas sejam necessárias de fazer.

Inicia-se com os objetivos da EPT firmados em 2000 – Dakar/Senegal, os quais foram resultantes das discussões iniciadas com o Congresso Mundial de Educação para Todos, ocorrido em Jomtien/1990 e que culminou com a Declaração Mundial sobre Educação para Todos, que se desdobrava em seus 10 artigos que visaram reafirmar o direito fundamental e universal de todos (homens e mulheres de todas as idades no mundo inteiro) à Educação (Di Pierro; Haddad, 2015DI PIERRO, M. C; HADDAD, S. Transformações nas políticas de educação de jovens e adultos no Brasil no início do terceiro milênio: uma análise das agendas nacional e internacional. Cadernos Cedes , Campinas, v. 35, n. 96, p. 197-217, maio-ago., 2015. https://doi.org/10.1590/CC0101-32622015723758
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).

O marco de ação que orientou os objetivos da EPT, conforme é apontado no seu documento, se pautou em resultados positivos e temas pendentes. Quanto aos resultados, o documento indicou: a) aumento da assistência à Educação na primeira infância; b) ampliação da oferta educativa na Educação primária; c) ampliação do tempo de escolaridade obrigatória; d) diminuição do analfabetismo; e) centralidade dada à qualidade como sendo um objetivo da política educacional; f) crescente preocupação com a equidade e atenção à diversidade; g) inclusão de temas de Educação voltados para a vida; h) abertura para participação de diferentes atores (governamentais, não governamentais e sociedade civil); i) consenso sobre a prioridade que a Educação assume nacional e regionalmente (Unesco, 2001UNESCO. Educação para todos: o compromisso de Dakar. Brasília, DF, 2001., p. 30).

Apesar dos avanços, alguns desafios ainda se constituíram como temas pendentes que o documento apontou para: a) insuficiente atenção dada às crianças com menos de 4 anos; b) elevadas taxas de repetência e abandono escolar; c) baixa prioridade dada à EJA nas políticas nacionais; d) baixos níveis de aprendizagem; e) baixa valorização e profissionalização dos professores; f) persistência da ineficiência e baixa qualidade na distribuição dos serviços educacionais; g) falta de articulação entre os diferentes atores envolvidos; h) pequeno aumento e uso ineficiente dos recursos para a Educação; i) insuficiente utilização de tecnologias de informação e comunicação (Unesco, 2001UNESCO. Educação para todos: o compromisso de Dakar. Brasília, DF, 2001., p. 30).

A EPT trouxe como desafio a ser enfrentado dar prioridade à alfabetização e à EJA como parte dos sistemas educativos nacionais, buscando melhorar os programas existentes e criar alternativas de acolhidas a essas pessoas, principalmente aos que se encontram em situação de vulnerabilidade (Unesco, 2001UNESCO. Educação para todos: o compromisso de Dakar. Brasília, DF, 2001.). Tal desafio subsidiou a formulação de uma meta e três estratégias diretamente vinculadas à EJA, que, de modo geral, traz uma perspectiva assentada na garantia de aprendizagens voltadas à capacitação para a vida. Apesar de outras metas estarem voltadas para a Educação de forma ampla, o documento definiu como meta e estratégias diretas: (Unesco, 2001UNESCO. Educação para todos: o compromisso de Dakar. Brasília, DF, 2001.).

O panorama das estratégias indicadas no Quadro 1 demonstra a preocupação com o processo educativo, em um sentido restrito, à alfabetização, à escolarização e à aquisição de habilidades e competências básicas das pessoas jovens e adultas. Por estar voltadas para os países do Sul, as metas e estratégias estiveram ligadas ao contexto desses países, o que justifica a centralidade na garantia de temáticas como escolarização, alfabetização e aprendizagem de qualidade.

Quadro 1
Meta e estratégias da Educação Para Todos para a EJA

Outro aspecto que cabe mencionar sobre o quadro acima é a perspectiva minimalista/compensatória/assistencial de Educação implícita no discurso desse documento, perceptíveis sob dois pontos fundamentais: 1) o reforço à responsabilização do Estado na promoção de políticas educativas de cunho fundamental; 2) o caráter imediato e mínimo da Educação voltada essencialmente à alfabetização e à aquisição de habilidades e competências básicas.

A inclusão da EJA na agenda das políticas educativas nacional e regionais e a ampliação do alcance formativo para jovens, adultos e idosos no Brasil tem sido bandeira de luta há décadas, uma vez que a ela sempre foi conferida currículo mínimo, ausência de proposta educativa voltada, precípua e exclusivamente, para as necessidades de seu público-alvo, metodologias de Ensino condizentes, entre tantas problemáticas que a envolvem (Di Pierro; Joia; Ribeiro, 2001). Cabe notar que há apenas uma menção acerca da formação/qualificação para o trabalho indicando a necessidade de diversificar programas que associem a EJA à vida produtiva e ao trabalho, uma vez que o foco para a EJA na EPT estava na promoção da formação generalista básica, o que nos permite inferir que essa era a tendência desse momento histórico.

Paralelamente à EPT, foram acordados também em 2000, os oito ODM, a fim de definir uma agenda única de compromissos voltados ao desenvolvimento social dos países membros da ONU. Os objetivos foram resultantes de várias rodadas de conferências promovidas por esse organismo internacional, com destaque para a Resolução nº 55 da Assembleia Geral da ONU, intitulada Declaração do Milênio das Nações Unidas – Cúpula do Milênio das Nações Unidas, realizada em setembro de 2000, em Nova York/Estados Unidos (Roma, 2019ROMA, J. C. Os objetivos de desenvolvimento do milênio e a transição para os objetivos de desenvolvimento sustentável. Ciência e Cultura, São Paulo, v. 71, n. 1, p. 33, jan./mar. 2019. https://doi.org/10.21800/2317-66602019000100011
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).

Os objetivos estiveram voltados essencialmente para temáticas que abrangiam a erradicação da fome e da extrema pobreza, universalização da Educação primária; a promoção de igualdade de gêneros e capacitação das mulheres; a redução da mortalidade infantil; a melhoria da saúde materna; o combate à Aids, à malária e a outras doenças; a sustentabilidade ambiental e o desenvolvimento de uma parceria global para o desenvolvimento (UNITED NATIONS, 2014UNITED NATIONS. The millennium development goals report. 2014. New York: United Nations, 2014. Disponível em: https://www.un.org/millenniumgoals/2014%20MDG%20report/MDG%202014%20English%20web.pdf. Acesso em: 2 mar 2022.
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).

A agenda dos ODM também priorizou os países do Sul, sob o argumento de que as metas foram pouco desafiadoras para os países desenvolvidos. De acordo com Di Pierro e Haddad (2015)DI PIERRO, M. C; HADDAD, S. Transformações nas políticas de educação de jovens e adultos no Brasil no início do terceiro milênio: uma análise das agendas nacional e internacional. Cadernos Cedes , Campinas, v. 35, n. 96, p. 197-217, maio-ago., 2015. https://doi.org/10.1590/CC0101-32622015723758
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, “Praticamente não houve metas para os países desenvolvidos, nem definição sobre suas responsabilidades” (p. 201), e coube aos países mais pobres assumir a responsabilidade de atingir os objetivos definidos.

Especificamente para a EJA, não houve metas específicas, mas, para a Educação de modo geral, definiu-se o objetivo voltado à universalização da Educação. No caso do Brasil, foi criado o Grupo Técnico para o Acompanhamento das Metas e Objetivos do Desenvolvimento do Milênio, com a finalidade de adaptá-los à realidade brasileira, o que resultou em 5 Relatórios Nacionais de Acompanhamento em parceria com instituições do governo federal e agências que integram a ONU (Roma, 2019ROMA, J. C. Os objetivos de desenvolvimento do milênio e a transição para os objetivos de desenvolvimento sustentável. Ciência e Cultura, São Paulo, v. 71, n. 1, p. 33, jan./mar. 2019. https://doi.org/10.21800/2317-66602019000100011
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).

O relatório publicado em 2014 destacava que a taxa de alfabetismo entre os jovens de 15 a 24 anos aumentou globalmente e a taxa de alfabetismo entre as pessoas de 15 anos ou mais aumentou de 76% para 84% . Entretanto, ainda havia 781 milhões de adultos e 126 milhões de jovens ao redor do mundo sem habilidades básicas de escrita e leitura em 2012, e as mulheres somavam a maioria de ambas as populações jovem e adulta. Já o relatório da ONU (2015), que visou analisar os resultados alcançados sobre os ODM, destacou que, em 2000, havia 100 milhões de crianças não escolarizadas no mundo, e, em 2015, diminuiu para 57 milhões, sendo que a taxa de alfabetização entre jovens de 15 a 24 anos passou de 83% em 1990 para 91%, em 2015 , ou seja, os relatórios trazem informações discordantes. Fato é que a EJA, em seu sentido restrito, ou seja, aquele voltado à formação básica de alfabetização e escolarização, houve uma pequena melhora. Tal fragilidade dos resultados dos ODM e da EPT subsidiaram a formulação da mais recente agenda internacional para a Educação.

A Agenda 2030, que resultou do Fórum Mundial de Educação ocorrido em 2015 em Incheon/Coreia do Sul, definiu os 17 ODS, reafirmou a Educação enquanto bem público e direito humano fundamental, orientação existente nas demais agendas já mencionadas até aqui. Entretanto, Akkari (2017)AKKARI, A. A agenda internacional para educação 2030: consenso “frágil” ou instrumento de mobilização dos atores da educação no século XXI? Revista Dialogo Educacional, Curitiba, v. 17, n. 53, P. 937-958, 2017. https://doi.org/10.7213/1981-416X.17.053.AO11
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, ao analisar as orientações existentes nela, destacou seis principais direções: a necessidade de uma Educação inclusiva e justa; a extensão da duração da escolaridade; a Educação de qualidade; a Educação para o desenvolvimento sustentável; a aprendizagem ao longo da vida e a Educação nas zonas de conflito. Essas orientações direcionaram as setes metas que compõe o ODS-4.

Para a EJA, as metas 4.4 e 4.6 estão mais diretamente relacionadas, que se desdobram em 6 estratégias indicativas para cada meta, resultando, portanto, em 12 estratégias ao todo. A agenda ainda indica três metas de complementação, que estão relacionadas com estrutura física, expansão de bolsas e qualificação de professores, implicando, portanto, indiretamente no debate aqui proposto (Unesco, 2015UNESCO. Educação 2030: Declaração de Incheon e Marco de Ação para implementação do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 4. 2015. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000245656_por Acesso em: 22 set 2021.
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).

De modo geral, as duas metas definidas estão voltadas, na aparência dos fatos, para um sentido amplo de processo educativo, envolvendo mais dimensões formativas que apenas a aprendizagem e alfabetização como se viu na EPT. Na Agenda 2030, uma meta está relacionada à alfabetização substancial de jovens e adultos, especialmente por meio de programas para tal fim, e outra direcionada para o estímulo às habilidades e competências técnicas e profissionais, conforme exposto no Quadro 2 .

Quadro 2
Meta e estratégias dos ODS para a EJA

Um primeiro ponto que chama atenção sobre as proposições dos ODS para a EJA é a continuidade da perspectiva mínima de formação, presente no texto das metas e nos desdobramentos das estratégias, onde se observa a utilização de termos como “habilidades relevantes”, “conhecimento básico”, “capacitação”, “treinamento”. Tais termos estão ligados à lógica capitalista, desenvolvimentista e mercadológica que o neoliberalismo vem impondo há décadas e que imprime uma visão instrumental de EJA e que também estão presentes no relatório de Jaques Delors.

Sobre o conteúdo da formação implícito no documento (os leitores radicais concordarão que de fato são bem explícitos), há um distanciamento da perspectiva de universalização do direito à Educação, pois é perceptível a mudança no discurso nas duas agendas – EPT e Agenda 2030. Enquanto a primeira buscou “assegurar” a satisfação das necessidades, esta última preferiu não se comprometer com esse ponto, que, desde a Declaração Mundial de Educação para Todos, já deveria ser pauta superada – a garantia do direito à Educação – e optou por garantir que “substancial proporção dos adultos” esteja alfabetizada.

Fica claro que as duas metas definidas nos ODS reforçam duas principais orientações: a ênfase na alfabetização e a formação para o mercado de trabalho. Apesar de haver continuidade dessas orientações em relação à EPT, as metas e suas respectivas estratégias trazem aberturas significativas, que impõem mais gravidade aos fatos até aqui expostos.

No tocante à meta 4.4, o cenário das seis estratégias indicadas ratifica a priorização da formação técnica e profissional e acrescenta termos comumente defendidos pelos organismos internacionais. Observa-se a utilização de termos como “emprego”, “empreendedorismo”, “reconhecimento transnacional”, os quais estão bem afinados com o contexto da globalização, ponto este que une todos os países do globo terrestre e que congrega a agenda única para Educação.

A meta 4.6 e suas estratégias, por sua vez, se distanciam da responsabilização do Estado na promoção de políticas para EJA. Há reforço em adotar estratégias de cooperação e aproximação com o setor privado, parceiros bi e multilaterais, assim como parcerias com a sociedade civil, demonstrando uma perspectiva de flexibilidade seja na oferta da EJA, seja na elaboração de planos e políticas de alfabetização, implicando uma abertura para a lógica privatista.

Além disso, cabe destacar que a agenda parte de uma premissa limitada de alfabetização, focando sobretudo a aquisição de proficiência, habilidades básicas de matemática e habilidades para o trabalho. Apesar de não romper com a orientação da EPT, que também tem uma perspectiva limitada, os objetivos para a EJA enfatizam a relação da qualificação profissional e do empreendedorismo, tendências recentes deste momento histórico.

Frente a esse cenário, cabe reiterar que há perspectivas outras de alfabetização, com viés contra-hegemônico. Em sentido amplo, cabe não esquecer que há outras possibilidades, que “(..) a alfabetização não é um jogo de palavras, é a consciência reflexiva da cultura, a reconstrução crítica do mundo humano, a abertura de novos caminhos, o projeto histórico de um mundo comum, a bravura de dizer a sua palavra” (FREIRE, 2013FREIRE, P. A pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 2013., p. 17). Nessa direção, é preciso entendermos que a leitura de mundo é, e deve ser, antecedida da leitura e escrita da palavra (Freire, 1989FREIRE, P. A importância do ato de ler. 23. ed. São Paulo: Cortez, 1989.).

Di Pierro e Haddad (2015)DI PIERRO, M. C; HADDAD, S. Transformações nas políticas de educação de jovens e adultos no Brasil no início do terceiro milênio: uma análise das agendas nacional e internacional. Cadernos Cedes , Campinas, v. 35, n. 96, p. 197-217, maio-ago., 2015. https://doi.org/10.1590/CC0101-32622015723758
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, ao analisarem as transformações que a EJA vivenciou nas últimas décadas, e sem desconsiderarem que há avanços nesse campo principalmente quanto ao alargamento dos direitos à Educação e à compreensão da Educação ao longo da vida, pontuam que um traço converge as agendas internacional e nacional, que, segundo eles,

(...) é o predomínio de uma leitura instrumental do que seja a aprendizagem continuada ao longo da vida que, visando à competitividade econômica, busca atender (inclusive mediante estratégias privatistas) exigências de qualificação para o mercado de trabalho, em detrimento da formação integral dos sujeitos, e sem compromisso com a universalidade do direito à aprendizagem (p. 214).

São, de fato, esses aspectos que se percebe implícita e explicitamente presentes nas metas e estratégias dos ODS para a EJA e que influenciam/influenciarão as políticas educativas tanto em âmbito da agenda globalmente estruturada, quanto em âmbito dos Estados-nação. A forma como se materializarão dependerá da dinâmica dos fatores internos de cada país.

De forma sintética e objetiva, e sem a intenção de esgotar essa discussão aqui, mas buscando estimular a reflexão e provocar o debate, apresentam-se no Quadro 3 os principais pontos divergentes e convergentes entre as metas e as estratégias da EPT e dos ODS para a EJA.

Quadro 3
Pontos convergentes e divergentes entre EPT e ODS para a EJA

De modo geral, a análise das convergências e divergências entre as agendas não demarca um rompimento brusco de orientação político-ideológica acerca de Educação e de proposta de formação. As diferenças entre elas demonstram as estratégias e adequações necessárias para esse tempo imediato. Considerando-se que a Agenda 2030 é quem está vigente, cabe citar Akkari (2017)AKKARI, A. A agenda internacional para educação 2030: consenso “frágil” ou instrumento de mobilização dos atores da educação no século XXI? Revista Dialogo Educacional, Curitiba, v. 17, n. 53, P. 937-958, 2017. https://doi.org/10.7213/1981-416X.17.053.AO11
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, quando analisou as orientações presentes no documento e identificou seis orientações que demarcam um consenso “suave” e que se articulam a paradigmas contraditórios, as quais se enumeram a segir: 1) Educação inclusiva e equitativa; 2) Extensão da duração da escolarização; 3) Educação de qualidade; 4) Educação para o Desenvolvimento Sustentável e Educação para a Cidadania Mundial; 5) Aprendizagem ao longo da vida e 6) Educação nas zonas de conflitos. De acordo com o autor, as orientações 1, 2 e 6 estão vinculadas ao paradigma humanista de Educação e voltado para os direitos humanos, ao passo que a orientação 3 está diretamente ligada com a concepção neoliberal. No entanto, as orientações 4 e 5 são aquelas que podem ser reivindicadas tanto pelo paradigma humanista quanto neoliberal.

Essas diferentes orientações existentes numa mesma agenda, conforme Akkari (2017)AKKARI, A. A agenda internacional para educação 2030: consenso “frágil” ou instrumento de mobilização dos atores da educação no século XXI? Revista Dialogo Educacional, Curitiba, v. 17, n. 53, P. 937-958, 2017. https://doi.org/10.7213/1981-416X.17.053.AO11
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demarcam um consenso frágil ou a maior possibilidade de alcançar um denominador comum entre os países, os quais se adequarão conforme as relações de poder existentes em seu contexto local. Ao considerarmos as análises empreendidas até aqui, podemos inferir que o futuro para a EJA está muito mais alinhado à perspectiva neoliberal.

4 À guisa de conclusão: balanços e perspectivas para a política de EJA no Brasil

Das discussões empreendidas até aqui, fica clara a tendência de continuidade das ações e das concepções de Educação existentes nas agendas internacionais, especialmente no que tange à EPT e aos ODS, ainda que cada uma tenha especificidades quanto aos aspectos priorizados, uma vez que estão articulados com as necessidades político-econômicas, sociais e educacionais do tempo histórico que elas representam.

No âmbito do Brasil, a EJA já ocupou diferentes lugares, desde ser vista como “marginal, secundária ou sem interesse” pelas políticas educacionais (Di Pierro; Joia; Ribeiro, 2001, p. 58), até a instituição dela enquanto modalidade de Ensino e maior abertura para debate nas políticas educativas a partir dos anos 1990. O lugar ocupado pela EJA atualmente reflete uma disputa histórica, que precipuamente deveria centralizar-se nos sujeitos com direitos historicamente negligenciados pelo poder público.

Atualmente ainda existe um desafio histórico, pois o Brasil tem mais de 11 milhões de pessoas analfabetas, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio realizada em 2019. Desse quantitativo de analfabetos, a taxa de analfabetismo é de 11,1% em pessoas de 40 anos ou mais e de 18% em pessoas de 60 anos ou mais, sendo essas faixas etárias as que apresentam o maior percentual da taxa de analfabetismo no país, sem falar no crescente aumento de analfabetos funcionais. Aliado a isso, contraditoriamente também se tem evidenciado o aumento do número de escolas e de turmas da EJA fechadas, por diferentes argumentos justificadores (Castelli Junior; Di Pierro; Giroto, 2019; Guimarães, 2022GUIMARÃES, C. A educação de jovens e adultos é uma porta de reingresso no sistema educacional . Entrevistado: Maria Clara Di Pierro. Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio. 14 jan. 2022. Disponível em: https://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/entrevista/a-educacao-de-jovens-e-adultos-e-uma-porta-de-reingresso-no-sistema-educacional . Acesso em: 6 abr 2022.
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), o que, obviamente, implica a diminuição de matrículas. Paralelamente a isso, as políticas educativas para EJA têm priorizado duas tendências, que vêm ganhando força:

1) a flexibilidade na oferta , que, com a aprovação da Resolução nº 01/2021, permite que a EJA seja ofertada de diferentes formas: presencial; à distância; combinada (forma semipresencial, a qual prevê que 30% da carga horária seja presencial e sempre com o professor, 70% de carga horária indireta, para a execução de atividades pedagógicas complementares); direcionada (destinada ao estudante trabalhador matriculado em qualquer segmento da EJA, devendo ser desenvolvida por atividades previamente planejadas pelos professores, ou podendo ser ofertada em ambientes empresariais); multietapas; vinculada (a qual pode ser ofertada por uma unidade acolhedora, desde que esteja vinculada a uma unidade escolar);

2) a formação básica articulada à Educação técnica e profissional , que, desde 2006, já ocorria por meio do Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade EJA, direcionado para o Ensino médio, mas que, com a Resolução nº 01/2021 (Brasil, 2021), pode ser tanto integrada (por meio de um currículo pedagógico que integra os componentes curriculares da formação geral com a profissional em uma proposta pedagógica única) ou concomitante (a formação profissional é desenvolvida paralelamente à formação geral, podendo ocorrer, ou não, na mesma unidade escolar ou simultaneamente em instituições educacionais distintas, desde que haja convênio ou acordo entre as instituições).

Essas tendências não são meras coincidências ou frutos da dinâmica nacional unilateral. Estão diretamente ligadas às pautas das agendas internacionais e bem acomodadas nos desdobramentos da política educacional brasileira. Tais aproximações podem ser observadas desde as metas e estratégias definidas nos dois últimos planos nacionais de Educação.

Para Gadotti (2016)GADOTTI, M. Educação popular e educação ao longo da vida. Memorial Virtual Paulo Freire, 2016. Disponível em: http://www.acervo.paulofreire.org/handle/7891/10020. Acesso em: 10 mar 2022.
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, os organismos internacionais caminham para uma direção oposta do mundo justo e sustentável, já que a “aposta desses organismos é a uniformização e não a conectividade na diferença, o individualismo e não a solidariedade”, de fato são direções antagônicas. Como ser justo sem ser solidário, numa sociedade individualista e padronizada? Como ser sustentável, equitativo e inclusivo quando se semeia a competitividade e a lucratividade?

Ainda são impostos muitos desafios em um país com desigualdades educativas estruturais como é o caso do Brasil. Alguns concordarão que não são apenas 11 milhões de pessoas analfabetas que estampam uma das faces dessas desigualdades, mas milhões de histórias de vidas que podem não conhecer o universo de possibilidades que a formação humana, libertadora e emancipadora pode mediar, especialmente os idosos.

Referências

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  • Dados: Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.
  • Financiamento: A autora Valéria Silva de Moraes Novais recebeu bolsa de pós-doutorado da Universidade do Estado do Amapá, por meio do Programa Institucional de Pós-Doutorado, durante o processo de elaboração do artigo.

Disponibilidade de dados

Dados: Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    Jan 2024

Histórico

  • Recebido
    19 Maio 2022
  • Aceito
    04 Out 2023
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