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Educação, conflito e convivência democrática

Education, conflict and democratic conviviality

Educación, conflicto y convivencia democrática

Resumos

Após uma caracterização sucinta da actual condição pós-moderna, serão desenvolvidas algumas questões que, pela sua relevância actual no campo da educação, merecem ser revisitadas de modo crítico, nomeadamente, e num primeiro momento, a escola, o conflito e a convivência. Num segundo momento, apontar-se-ão algumas características da escola que fazem dela uma organização com alguma perversidade, hipocrisia e irracionalidade. O último aspecto a ser tratado irá compreender a escola como organização comunicacional ou organização convivencial, onde os conceitos de disciplina, violência, conflito e convivência assumem um sentido mais profundamente democrático.

Educação; Conflito; Convivência


After a succinct characterization of the current postmodern condition, some questions might be developed, because of its current relevance in the education field, they must to be reviewed in a critical way, namely, and firstly, the school, the conflict and the conviviality. Secondly, this article underlines some school's characteristics that turns it into an organization with a little perversity, hypocrisy and irrationality. The last aspect to be treated is the understanding of the school as a communicative or convivial organization, in which the concepts of discipline, violence, conflict and conviviality assume a more democratic orientation.

Education; Conflict; Conviviality


Enseguida a una caracterización sucinta de la actual condición pos-moderna, serán desarrolladas algunas cuestiones que, por su relevancia actual en el campo de la educación, merecen ser visitadas de modo crítico, nombradamente, y en primero momento, la escuela, el conflicto y la convivencia. En segundo momento, se apuntarán algunas características de la escuela que la hacen una organización con alguna perversidad, hipocresía e irracionalidad. El último aspecto a ser tratado irá comprender la escuela como organización de comunicación u organización de convivencia, donde los conceptos de disciplina, violencia, conflicto e convivencia asumen un sentido más profundamente democrático.

Educación; Conflicto; Convivencia


Educação, conflito e convivência democrática

Education, conflict and democratic conviviality

Educación, conflicto y convivencia democrática

Carlos Vilar Estêvão

Doutor em Educação; Professor Catedrático e Director do Departamento de Sociologia da Educação e Administração Educacional, Universidade do Minho, Portugal. E-mail: cestevao@iep.uminho.pt

RESUMO

Após uma caracterização sucinta da actual condição pós-moderna, serão desenvolvidas algumas questões que, pela sua relevância actual no campo da educação, merecem ser revisitadas de modo crítico, nomeadamente, e num primeiro momento, a escola, o conflito e a convivência. Num segundo momento, apontar-se-ão algumas características da escola que fazem dela uma organização com alguma perversidade, hipocrisia e irracionalidade. O último aspecto a ser tratado irá compreender a escola como organização comunicacional ou organização convivencial, onde os conceitos de disciplina, violência, conflito e convivência assumem um sentido mais profundamente democrático.

Palavras-chave: Educação. Conflito. Convivência.

ABSTRACT

After a succinct characterization of the current postmodern condition, some questions might be developed, because of its current relevance in the education field, they must to be reviewed in a critical way, namely, and firstly, the school, the conflict and the conviviality. Secondly, this article underlines some school's characteristics that turns it into an organization with a little perversity, hypocrisy and irrationality. The last aspect to be treated is the understanding of the school as a communicative or convivial organization, in which the concepts of discipline, violence, conflict and conviviality assume a more democratic orientation.

Keywords: Education. Conflict. Conviviality.

RESUMEN

Enseguida a una caracterización sucinta de la actual condición pos-moderna, serán desarrolladas algunas cuestiones que, por su relevancia actual en el campo de la educación, merecen ser visitadas de modo crítico, nombradamente, y en primero momento, la escuela, el conflicto y la convivencia. En segundo momento, se apuntarán algunas características de la escuela que la hacen una organización con alguna perversidad, hipocresía e irracionalidad. El último aspecto a ser tratado irá comprender la escuela como organización de comunicación u organización de convivencia, donde los conceptos de disciplina, violencia, conflicto e convivencia asumen un sentido más profundamente democrático.

Palabras clave: Educación. Conflicto. Convivencia.

Convivencialidade na (pós)modernidade

Alain Touraine (1994, p. 113), no seu livro Crítica da Modernidade, introduz-nos bem no espírito dos tempos actuais, quando, em contraste com o que ocorria numa época histórica anterior, afirma:

Vivíamos no silêncio, agora vivemos no ruído; estávamos isolados, agora estamos perdidos na multidão; recebíamos poucas mensagens, agora somos bombardeados por elas.

Com efeito, vivemos actualmente numa "sociedade de risco" ou, como prefiro dizer, de mudança e de informação, que nos permite, por um lado, exercitar a criatividade e marcar a nossa individualidade e, por outro, apropriarmo-nos do dom quase divino da omnisciência, ou seja, da possibilidade de estarmos, num momento preciso, a par de tudo o que se passa nos quatro cantos da Mundo, devido fundamentalmente à revolução tecnológica.

E tanto é assim que, na verdade, o espaço e o tempo dão a sensação de estar a comprimir-se cada vez mais, possibilitando-nos a graça da ubiquidade, permitindo-nos, por isso mesmo, estar simultaneamente em vários lugares e em vários tempos. Daí que um dos desafios com que hoje nos deparamos seja precisamente o da gestão desta "intensificação das relações sociais à escala mundial" de que falava Giddens (1995, p. 52).

Depois, e do ponto de vista cultural, a actual fase da pós-modernidade - e independentemente das polémicas teóricas que este conceito suscita e que tem levado alguns autores a preferirem, por exemplo, a expressão "modernidade tardia", uma vez que os problemas e as promessas da modernidade estariam por cumprir - tem vindo a ser assumida como detendo um conjunto de características que a singularizam relativamente a outras épocas e cuja origem pode encontrar-se nas grandes mudanças que se verificaram, segundo Aronowitz e Giroux (1997, p. 64), ao nível da redistribuição global do poder e da legitimação cultural, das novas formas de criticismo cultural, da desterritorialização e descentração do poder no Ocidente, das transformações ocorridas na natureza das forças de produção.

No sentido de compreender melhor esta época e as mudanças que estão a ocorrer, que não podem deixar de interferir no modo como compreendemos a educação e as relações de convivência e/ou conflito que nela ocorrem, Harvey (2001, p. 304) realça as seguintes tendências do que ele denomina de "condição pós-moderna": a flexibilidade e heterogeneidade em oposição à modernidade padronizada fordista; a importância da estética face à ética e aos seus deveres infinitos; o poder financeiro rivalizando com o poder do Estado; o individualismo e contratos locais em alternativa ao colectivismo e aos contratos colectivos; a indeterminação contraposta ao determinismo e à previsibilidade; a esquizofrenia e descentração e não já a paranóia; a reprodução, o pastiche e o ecletismo priorizados face à originalidade; a descentralização e a desconstrução em oposição à centralização e à autoridade; a gestão estratégica em desfavor da gestão operacional; o andrógino em vez do fálico; os jogos de linguagem em detrimento da metateoria; a superfície em lugar da profundidade; a desindustrialização, o trabalho flexível em contraste com a produção em massa, a industrialização ou o trabalho especializado; os movimentos sociais à frente das políticas de classe; as heterotopias e o espectáculo opostos à utopia e à arte redentora; a ficção e auto-referência tornadas prioritárias relativamente à função e à representação; a desregulação e o efémero e não a regulação e o permanente; enfim, o Espírito Santo/imaterialidade e não Deus Pai/materialidade (ESTÊVÂO, 2006b).

Este conjunto de características, que questiona velhas ortodoxias, dá bem a ideia de estarmos a caminhar para a mudança de um certo paradigma, que deixa cair a concepção de um mundo e de uma sociedade previsíveis e regulados e passa a valorizar o incessante fluxo das mudanças ao ritmo da evolução do próprio mercado. Por outro lado, realça a contraditória posição do sujeito, pois ora se vê entregue completamente a si mesmo, à sua solidão, arcando com as responsabilidades da sua condição humana (em eventual conflito ou competição com os outros), ora se vê integrado em redes de interdependências, cada vez mais complexas, que lhe abrem outras possibilidades de realização e de enriquecimento da sua socialidade e da sua sociabilidade, num contexto de globalização cada vez mais sufocante.

Então, que impactos nos padrões de convivência estarão a ter todas estas transformações ao lado de outras não menos importantes como a emergência de novos meios e formas de comunicação, a intensificação dos cruzamentos de culturas, a expansão de novos espaços de participação da comunidade e da sociedade civil, a alteração dos papéis masculinos e femininos, a criação e intensificação de redes sociais?

Não obstante todas estas transformações, os tempos actuais são também de apreensão face ao rumo que muitas delas têm vindo a tomar. Por outras palavras, este vórtice de alterações está a conduzir-nos para a monumentalização dessa instituição chamada mercado, introduzindo-nos numa espécie de religiosidade que professa a fé no progresso e na racionalidade instrumental, que tende a banir, no regime da sua "verdade", as contradições, os dissensos, fazendo crescer a convicção de que os conflitos são algo marginal ou a evacuar rapidamente, uma vez que apenas atrapalham os objectivos da competitividade, da rendibilidade, da eficiência e da eficácia, que as sociedades em geral e as organizações em particular devem almejar. O clima propício a estas mudanças é o que resulta do consenso construído em redor da fé utilitarista e que se perpetua na defesa da liberdade sem responsabilidade social e, frequentemente na admissibilidade ilimitada de comportamentos que não devem renunciar a nada. A ordem dita "natural" do mercado e a manipulação da sua "mão invisível" é que demarcam as fronteiras do possível até no campo da ética e da justiça.

Neste turbilhão (pós)moderno e na hegemonização do mercado, a própria atitude dos Estados se altera, lançando-se nos "rápidos deste rio desconhecido", tentando a todo o custo "instaurar, na cultura e na sociedade, um novo espírito mais consentâneo com a economia de mercado, com o poder das empresas e com a nostalgia do Ser" (TOURAINE, 1994, p. 308).

Para tal, os Estados têm de se reestruturar também, assumindo agora uma nova postura, mais "modesta" (mas mais ventríloqua, ou seja, falando com outras vozes mas com a mesma ressonância mercantilizada) relativamente ao modo como devem intervir nos diversos campos sociais sem deixarem, contudo, de ser igualmente eficientes sobretudo no que concerne ao seu contributo para o funcionamento do mercado.

Então, os Estados devem empresarializar-se, ao mesmo tempo que devem perder o seu antigo poder imperial e desmonumentalizar-se (ESTÊVÃO, 1998, 2004) passando, digamos, a quase-Estados. Por outras palavras, os Estados devem, do ponto de vista social e dos direitos dos cidadãos, prosseguir na senda da sua insignificância tornando-se Estados-mínimos, mas devendo, simultaneamente, permanecer fortes como Estados empreendedores ou empresarialistas, dinamizadores de políticas de rendibilidade, de políticas financeiras e produtivas tornadas agora prioritárias face a outras de pendor mais social. Simultaneamente, devem situar-se como reguladores sociais eficientes dos possíveis conflitos ou de reivindicações não realistas que possam emergir na sociedade, nomeadamente provindas dos sindicatos, potenciais perturbadores do bom funcionamento do mercado e da competitividade.

Acompanhando este movimento de reestruturação mais profunda (e que certos autores apelidam de inevitável) com impactos na concepção e alcance do que é social, outros conceitos e redefinições emergem, designadamente no campo das organizações, apontando para a necessidade de se tornarem mais ágeis e flexíveis, desde logo ao nível da gestão dos seus recursos humanos, tornando os trabalhadores mais leais, mais fiéis, mais cidadãos da organização, o que, entre outros méritos (para a organização), permitirá criar um bom clima integrador, reduzir a conflitualidade e aumentar a comunhão dos trabalhadores (agora chamados de "colaboradores") com os objectivos estratégicos da organização.

Na verdade, nestes tempos de "incerteza", de "paradoxo", de "irracionalidade" (HANDY, 1992), exige-se às organizações que se reestruturem, ou que se desestruturem, que queimem a gordura através de uma "lipoaspiração" adequada, que passa: pela diminuição de linhas hierárquicas; pelo estabelecimento de padrões de coordenação menos formais; por identidades menos defensivas e paralisantes; pela estruturação interna em torno do processo, não da tarefa; pela maior participação e autonomia dos trabalhadores; por uma gestão em equipa. Ora, o que não deixa de ser curioso é constatar que estas receitas, em nome da salvação da organização (e dos empregos que restam) no mundo extremamente competitivo como é o actual, se apresentam invocando tecnologias e ideologias humanistas, com ênfase particular no colectivo, no grupo, nas redes, nos valores da participação, da autonomia e do consenso.

Em suma, a (pós)modernidade, embora parecendo potenciar espaços de microssolidariedades e de redes assim como valores humanistas tradicionais, tende a resvalar para a acentuação do individualismo privatizado e da capacidade empreendedora do sujeito, pouco interessando aspectos colectivos e de solidariedade, de certo modo conotados com a fase anterior (ainda que ao nível das promessas). Neste contexto, pode parecer estranho falar em convivencialidade pois estamos perante um mundo em que a competitividade, a produtividade, os valores técnicos, os valores de plástico, o consumismo, a cultura da empresa [...] têm vindo a substituir as preocupações com a ética da solidariedade. Com efeito, é estranho falar na convivência, em sensibilidade solidária num mundo em que ser justo e verdadeiro equivale fundamentalmente a ser eficaz e em que grassa o "síndrome do analfabetismo afectivo". É que no espaço público (não obstante algumas características referidas da condição pós-moderna irem noutro sentido) parece só haver lugar para o triunfo da razão e do pragmatismo. Refira-se a este propósito, e a título de nota, que também no plano da educação tal acontece: só o jovem enquanto razão em formação ou um ente pragmático, interessa, relegando-se as preocupações resultantes da afectividade e manifestas em conflitos ou confrontações, para os serviços especializados de apoio psicopedagógico da escola (GIMENO SACRISTÁN, 2003, p. 144).

Podemos então concluir este aspecto afirmando que face aos desafios actuais decorrentes do "novo espírito do capitalismo" (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 1999) e da nova ortodoxia económica contemporânea; da maior irrelevância e até da apregoada incompetência do Estado em intervir em determinados domínios (como o da educação); do esvaziamento da política e do sentido mais substantivo da democracia; da deterioração das relações sociais e do ressurgimento em força do individualismo [...] torna-se mais difícil, por um lado, posicionar o indivíduo no colectivo ou considerar o conflito como fenómeno natural das sociedades e, por outro, recolocar o bem comum, a solidariedade e a justiça social no centro das preocupações políticas e sociais dos Estados (ESTÊVÃO, 2004).

Perante estes desafios, interessa analisar, agora, em que medida eles têm vindo a excitar a escola como organização educativa, obrigando-a converter-se a outros sentidos, ora mais "pervertidas" ora mais convivenciais.

Escola e conflito

Na sociologia das organizações em geral e na sociologia das organizações educativas em particular, a abordagem política é deveras importante, com realce para várias dimensões que normalmente não emergem, como é o caso dos poderes e do conflito, da diversidade de interesses, de estratégias, de resistências, da necessidade de negociação.

Neste sentido, a escola é compreendida sobretudo como uma "arena política", onde a pluralidade de metas, de objectivos, de interesses, de racionalidades e lógicas de acção se intersectam, onde jogos de poder, coligações, confrontos, alianças, pactos se mobilizam de várias formas, onde estratégias, tácticas, cálculos se concretizam, ou seja, onde a micropolítica impera face até à distribuição de recursos escassos. Mas o que não deixa de ser verdadeiramente crucial neste modo de compreender a escola é a questão do poder, ou melhor, dos poderes, dada a plurivocidade deste conceito que remete para várias fontes, uma das quais, na linha de Weber (1964), é a autoridade, e graus diferenciados da sua distribuição, assim como para condutas tácticas e estratégicas várias que propicia, com um espectro amplo de respostas que podem ir do mero acatamento ao da resistência activa.

Esta visão política da organização educativa, pese embora as suas limitações por eventual maquiavelização e sobre-enfatização do poder, reforça a ideia de podermos situar o conflito de uma forma natural, como um fenómeno normal das organizações educativas que concita a mobilização de esforços e a participação no sentido da sua resolução.

Consequentemente, a escola pode, nesta perspectiva, ser encarada de muitos modos, desde logo, por exemplo (e numa visão extremada) como uma "organização perversa" (SANTOS GUERRA, 2002), que pode contaminar os alunos no sentido que o mesmo autor refere quando diz que da mesma forma que alguns doentes se infectam nos lugares onde se vão curar, "a escola pode também deseducar-nos".

Então, de onde vem esta potencial "perversidade institucional" da escola, relacionada com processos que estão instalados no modelo de ordem formalmente instituído e que são também, vistos do interior, racionais e coerentes? Onde se encontram os vectores perversos e "hipócritas" característicos da escola, que se sobrepõem à aprendizagem e à convivência, mas que se encontram enraizados no contexto escolar enquanto componentes das relações sociais?

Seguindo ainda o pensamento de Santos Guerra (2002), podemos dizer que essa perversidade pode advir de várias fontes, desde logo: do imobilismo que a escola por vezes propicia; da mudança que favorece os já favorecidos, que aumenta o pode de quem já é poderoso; do autoritarismo e controlo, que diminuem os direitos dos aluno; da falta de transparência e impunidade; da discriminação e dos privilégios dos "herdeiros"; da impermeabilidade à crítica; da rotina dos discursos, atitudes e práticas; da discrepância entre os discursos e a acção; da sensualidade do poder que obriga a uma atitude submissa; da atenção dispensada apenas aos alunos mais brilhantes; do processo de avaliação como processo hierarquizador, de rotulagem dos alunos; da domesticação e formação bancária; da ocorrência de trabalho inútil e sem esperança...

Como se depreende facilmente, a vinculação da perversidade, enquanto característica normal do comportamento da organização escolar pode situar-se a vários níveis e em factores muito distintos no interior da escola. Por outro lado, dada a amplitude e a natureza deste fenómeno, é possível situar a questão da violência neste tipo de escola de um modo teoricamente mais congruente. Ou seja, numa escola perversa, a violência pode tornar-se "normal", justificando estratégias severas e meios coercivos, e até violentos, para a combater. É que a violência dos alunos, por exemplo, pode ser um modo "natural" de recusar, por exemplo, a imagem negativa que os "inimigos" (a escola e os professores) fazem de si. Neste sentido, a violência pode permitir salvar a dignidade do aluno, engrandecendo-o perante o grupo de iguais, restituindo-lhe de certo modo a sua dignidade e elevação.

Então, o recurso a diferentes formas de indisciplina, como a perturbação do bom funcionamento da aula, os conflitos entre pares ou os conflitos entre professores e alunos tornam-se formas vulgares de exercer o poder. No primeiro caso, ou seja, de perturbação do bom funcionamento da aula, a indisciplina pode decorrer do facto de o ensino assentar na passividade do aluno; de o aluno ter de dedicar-se a actividades triviais, aborrecidas; de não te descoberto o interesse e o encanto dos conteúdos ministrados; de se aperceber das falhas do professor enquanto líder das actividades. No caso dos conflitos entre pares, os factores de indisciplina e violência podem estar: na falta de alguma homogeneidade do grupo-turma; na sobrelotação das escolas; ou na inexistência de condições de convívio acolhedoras e atractivas. No caso de os conflitos se estabelecerem entre os professores e os alunos, as causas podem estar: nas expectativas negativas; na menor interacção dos professores; no uso de maior severidade na acção disciplinar e avaliativa; no facto de os professores se imiscuírem na esfera privada do aluno; na ironia...

Concluindo este ponto, a compreensão da natureza da escola como organização pode contribuir para um melhor diagnóstico de situações propícias ao despoletar de conflitos e de indisciplina, facto que nem sempre é satisfatoriamente desenvolvido nas análises do fenómeno da violência e indisciplina escolares.

Escola como organização comunicativa e convivencial

A escola, como organização, não existe no vácuo social. Ela sofre mas também influencia vectores importantes da sociedade, quer no sentido do desenvolvimento e adaptação quer da imobilidade e inércia. Então, se já não é possível, nem desejável, isolar a acção educativa num espaço imune a todo e qualquer tipo de influências advindas dos vários sectores sociais, do mesmo modo a escola não pode ficar indiferente aos desafios, aos problemas, às oportunidades mas também aos riscos, como por exemplo o da violência, que afectam essa mesma sociedade.

Perante estes cenários, a escola deverá dar uma resposta: ou fechar-se no seu casulo, procurando deste modo escapar às vicissitudes do seu meio mantendo-se imaculada; ou então transformar-se internamente num espaço público exposto, numa organização educativa essencialmente comunicativa e convivencial, assumindo a responsabilidade social de contribuir para a resolução dos problemas da colectividade ao mesmo tempo que procura internamente construir consensos de uma forma argumentada, mas sem desprezar o conflito ou o dissenso.

E quais seriam então as características deste último tipo de organização?

Tendo em conta o que já escrevemos (ESTÊVÃO, 2004; 2006a) mas também os contributos de Gimeno Sacristán (2003), Jares (2005) e Santos Guerra (2002), entre outros, podemos sintetizar algumas dimensões de uma escola comunicativa e convivencial. Assim, esta escola deve estruturar-se de modo a levar os seus actores: a reaprenderem a depender do outro, sem se transformarem em escravos, mas com partilha do poder; a não substituírem a alegria de viver pelo prazer de aplicar uma medida ou de cumprir normas; a saberem acompanhar os educandos, evitando apassivá-los; a aprenderem a cooperar, a partilhar, a respeitar diferenças, a ser solidários, a ser tolerantes; a desenvolverem as pessoas, não enfocando o trabalho educativo somente no rendimento académico; a promoverem a confiança (não criando barreiras, por exemplo, entre os que sabem e os que não sabem); a praticarem uma pedagogia diferenciada no desenvolvimento do currículo comum; a fomentarem a reciprocidade e a justiça do reconhecimento; a dinamizarem a participação; a educarem para a autonomia que não anule a rebeldia.

Uma escola assim compreendida apresentar-se-ia verdadeiramente como organização comunicativa, atenta à rede da dialogicidade interna que mobiliza diferentes vozes e argumentações assim como à dialecticidade que a confronta com a universalidade da justiça, da igualdade e dos direitos face ao paradigma da diferença e da pluralidade.

Retratada deste modo, pensamos que a escola e os seus actores encarariam a disciplina escolar dentro de outros parâmetros, diferentes, obviamente, dos de uma escola perversa. Assim, a construção da disciplina surgiria articulada com a autoridade "consentida" e no quadro de normas discutidas e negociadas, facilitadoras da vida em conjunto; implicaria, além disso, o reconhecimento de que ela tem muito a ver com a gestão das relações interpessoais, que ocorrem no seio de processos de comunicação.

Assim sendo, o conflito na escola ganha um novo sentido: ele é encarado de modo positivo e até como necessário ao crescimento dinâmico do ser humano, dependendo sobretudo do modo como forem tratados e solucionados, dentro de um ambiente afectivamente quente e construtivo.

No sentido de caracterizarmos melhor a nossa proposta de uma escola comunicativa e convivencial assim como os seus potenciais contributos para o tema que estamos aqui a desenvolver, importa realçar algumas das suas virtualidades facilitadoras da convivência. Deste modo, e tendo novamente em consideração alguma bibliografia disponível (ESTÊVÃO, 2004; JARES, 2005; SANTOS GUERRA, 2005), poderemos apontar então algumas dessas virtualidades:

- o respeito e tolerância;

- prioridade aos mais fracos;

- a capacidade e predisposição para se colocar no lugar do outro;

- o diálogo como enriquecimento mútuo e como solução para os conflitos:

- o exercitar o poder com e não o poder contra;

- o fomento da auto-estima e do auto-conceito;

- o compromisso com o bem comum de carácter global;

- a aceitação do pluralismo, da diversidade;

- a mobilização de uma pedagogia participativa e motivadora; a abertura de canais de participação;

- a consideração da divergência e da criatividade como factores positivos;

- a prática do direito à ternura e o tratamento dos alunos com afabilidade e generosidade

- a conciliação da autonomia e da rebeldia;

- o incentivo à disciplina democrática.

Estamos claramente perante um conjunto de características que, do nosso ponto de vista, transformaria o cenário das nossas escolas actuais, contribuindo para o reforço de uma verdadeira ética da crítica, mas também de uma ética da justiça e de uma ética do cuidado, que levaria a um outro enquadramento do sentido das relações sociais no interior da escola e particularmente a uma concepção de disciplina diferente, mais positiva, mais debatida, mais sentida, mais democrática.

Na verdade, a disciplina, para além de ser inerente a todo o processo educativo, ela deverá tornar-se, repetimos, numa "disciplina democrática", assente nos valores do respeito mútuo e na negociação das normas de convivência. Esta disciplina democrática será, também, aquela que melhor se coadunará com o ideal de uma escola compreendida como organização comunicativa e convivencial. De uma forma esquemática, e servindo-nos da proposta de Jares (2005, p. 104), poderíamos resumir esta disciplina democrática, de acordo com o que "deve procurar" e com o que "deve evitar" (ver quadro 1):


Para finalizar este ponto, e tendo presente a importância que atribuímos à convivencialidade neste trabalho, terminaremos com um pendor claramente normativo, defendendo a ideia de que as escolas, embora entendidas como contextos organizacionais complexos, como "lugares de vários mundos" (onde se jogam racionalidades diferentes: cívicas, domésticas, industriais, mercantis, mundiais, entre outras), não poderão deixar de investir na aprendizagem e prática da civilidade, da convivência democrática. Para tal, há que capacitar os estudantes e os outros actores educativos em áreas que claramente tendam a incrementar a sua experienciação, tais como, a interculturalidade, os direitos humanos, a paz, as dimensões cívicas, éticas, a solidariedade. Mas também aqui terá de haver ponderação crítica, evitando propostas imbuídas de doutrinamentos, dogmatismos ou fundamentalismos imbecilizantes, ainda que pretensamente em nome de uma causa nobre ou de uma pedagogia da convivência.

Conclusão

Gostaria de completar este pequeno artigo, não com conclusões propriamente ditas mas com preocupações, relacionadas com o tipo de escola potenciadora da convivencialidade democrática.

Assim, uma escola preocupada com esta finalidade deveria estar virada para a sabedoria e não, como acontece frequentemente, para que alunos alimentem um certo ódio à aprendizagem e vivenciem os momentos passados na escola como momentos intermitentes da sua verdadeira vida. Seria uma escola que ficaria inquieta com o estado de hibernação que muitos alunos experimentam ao iniciarem um novo ano lectivo, congelando a sua alegria e esperanças num estado de quase letargia cívica, como semi-cidadãos da escola, à espera do tempo de sociabilidades mais quentes e entusiasmantes fora do tempo e espaço escolares.

Do mesmo modo, a nova escola que aqui se defende deveria estimular, não a ver o outro como um rival a abater, mas como um ser humano com quem se deve colaborar, que nos ajuda a crescer e que nos dá a alegria de o ajudarmos. Tratar-se-ia de uma escola ao serviço da sensibilidade em relação ao outro, investindo na solidariedade e na celebração da amizade, na fidelidade ao outro.

Por outro lado, seria uma escola democrática e participativa que exercitaria também, e nas palavras de P. Freire, a "rigorosidade ética", para além de se preocupar por incutir nos alunos um sentido de rebelião contra a fatalidade e a passividade e contra os lugares marcados do Outro.

Tratar-se-ia, enfim, de uma escola criativa, exigente e rigorosa, que não aceitaria nem a impunidade nem uma qualidade educativa "corrompida", mas que, pelo contrário, teria em conta a consecução de todas as finalidades que a educação deve almejar, interessando-se ao mesmo tempo por todos os alunos, mesmo por aqueles que não se interessam por ela, pois em democracia, uma educação justa mede-se, como nos diz Dubet (2004), "pela sorte reservada aos mais fracos", enfim, aos vencidos e excluídos do sistema e não aos eternos "herdeiros" dos seus benefícios. Então, uma escola orientada para a convivência democrática terá de se apresentar como uma organização regulada e emancipada pela dignidade dos direitos humanos.

Recebido em: 29/09/2008

Aceito para publicação em: 11/11/2008

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Fev 2009
  • Data do Fascículo
    Dez 2008

Histórico

  • Recebido
    29 Set 2008
  • Aceito
    11 Nov 2008
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