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Democratização e financiamento da educação profissional: uma provocativa experiência

Democratización y financiamiento de la educación vocacional: una experiencia estimulante

Democratization and financing of vocational education: a stimulating experience

Resumos

Este trabalho é um estudo de caso sobre uma experiência de financiamento da educação profissional por empresas numa região onde a escassez de trabalhadores qualificados era um grande ponto de estrangulamento. Na primeira pesquisa (1990), a escola técnica se encontrava consolidada, embora enfrentasse dificuldades financeiras para investir e, simultaneamente, manter baixos custos para os estudantes efetivamente interessados em empregos de nível técnico e não no ingresso em cursos superiores. Na segunda pesquisa (2005), os dados revelaram que a organização havia superado uma grave crise, assim como, em conseqüência, havia adotado uma gestão mais rigorosa. Neste período de 15 anos o setor industrial adotou tecnologias de ainda maior intensidade de capital, resultando em empregar menos pessoas, porém mais qualificadas. Para responder a estas demandas e assegurar maior autonomia financeira, a organização criou uma escola de ensino fundamental e médio e uma de engenharia. Além da venda de serviços, estas unidades contribuem para financiar a escola técnica, por meio de uma espécie de efeito Robin Hood.

Educação profissional; Financiamento da educação; Custos educacionais; Democratização da educação


Este es un estudio de caso sobre una experiencia de financiamiento de la educación vocacional/técnica por empresas en una región pionera donde la escasez de mano de obra calificada era un serio embotellamiento. En el primer estudio (1990) la escuela técnica estaba consolidada, aunque enfrentaba dificultades financieras para investir y al mismo tiempo mantener bajos los costos para los estudiantes efectivamente interesados en empleos de nivel técnico, en lugar de aquellos que miraban los estudios superiores. En el segundo estudio (2005) los datos revelaron que la organización había superado una grave crisis, así como, en consecuencia, había adoptado una gestión más rigurosa. En este período el sector industrial pasó a utilizar tecnologías de capital intensivo, empleando menos personas, pero más calificadas. En respuesta a estas demandas, bien como para asegurar mayor autonomía financiera, la organización educativa creó una escuela secundaria y una de ingeniería. Además de la venta de servicios, estas unidades más recientes contribuyen para financiar la escuela técnica por medio de una suerte de efecto Robin Hood.

Educación vocacional y técnica; Financiamiento de la educación; Costos educativos; Democratización de la educación


This is a study case on an experience of vocational/technical education mostly financed by industrial employers in an area where misqualified personnel were a serious problem. In the first research (1990), technical schools were consolidated, although facing financial difficulty to make investments, and also to keep low tuitions for students interested in technical jobs instead of those interested in higher education. The second research (2005) results showed that the schools had overcome a serious crisis, and that they had also expanded and adopted more rigorous management. In 15 years, the industrial sector has adopted much more capital-intense technologies, having as a result, more qualified and less numerous employees. To answer this new demand and assuring more financial autonomy, the organization established a high school and a school of engineering. Besides sale services, the most recent units contribute to fund the technical schools by a kind of Robin Hood effect.

Vocational & technical education; Educational finance; Educational costs; Educational democratization


Democratização e financiamento da educação profissional: uma provocativa experiência* * Esta é a exploração de aspectos selecionados de pesquisa realizada para o UNEVOC-UNESCO. O autor agradece o apoio da UNESCO-Brasil e da Fundação Educacional de Montes Claros. As opiniões não representam necessariamente os pontos de vista das instituições envolvidas.

Democratization and financing of vocational education: a stimulating experience

Democratización y financiamiento de la educación vocacional: una experiencia estimulante

Candido Alberto da Costa Gomes

Doutor em Educação, Universidade da Califórnia; Professor da Universidade Católica de Brasília. E-mail: clgomes@terra.com.br

RESUMO

Este trabalho é um estudo de caso sobre uma experiência de financiamento da educação profissional por empresas numa região onde a escassez de trabalhadores qualificados era um grande ponto de estrangulamento. Na primeira pesquisa (1990), a escola técnica se encontrava consolidada, embora enfrentasse dificuldades financeiras para investir e, simultaneamente, manter baixos custos para os estudantes efetivamente interessados em empregos de nível técnico e não no ingresso em cursos superiores. Na segunda pesquisa (2005), os dados revelaram que a organização havia superado uma grave crise, assim como, em conseqüência, havia adotado uma gestão mais rigorosa. Neste período de 15 anos o setor industrial adotou tecnologias de ainda maior intensidade de capital, resultando em empregar menos pessoas, porém mais qualificadas. Para responder a estas demandas e assegurar maior autonomia financeira, a organização criou uma escola de ensino fundamental e médio e uma de engenharia. Além da venda de serviços, estas unidades contribuem para financiar a escola técnica, por meio de uma espécie de efeito Robin Hood.

Palavras-chave: Educação profissional. Financiamento da educação. Custos educacionais. Democratização da educação.

ABSTRACT

This is a study case on an experience of vocational/technical education mostly financed by industrial employers in an area where misqualified personnel were a serious problem. In the first research (1990), technical schools were consolidated, although facing financial difficulty to make investments, and also to keep low tuitions for students interested in technical jobs instead of those interested in higher education. The second research (2005) results showed that the schools had overcome a serious crisis, and that they had also expanded and adopted more rigorous management. In 15 years, the industrial sector has adopted much more capital-intense technologies, having as a result, more qualified and less numerous employees. To answer this new demand and assuring more financial autonomy, the organization established a high school and a school of engineering. Besides sale services, the most recent units contribute to fund the technical schools by a kind of Robin Hood effect.

Keywords: Vocational & technical education. Educational finance. Educational costs. Educational democratization.

RESUMEN

Este es un estudio de caso sobre una experiencia de financiamiento de la educación vocacional/técnica por empresas en una región pionera donde la escasez de mano de obra calificada era un serio embotellamiento. En el primer estudio (1990) la escuela técnica estaba consolidada, aunque enfrentaba dificultades financieras para investir y al mismo tiempo mantener bajos los costos para los estudiantes efectivamente interesados en empleos de nivel técnico, en lugar de aquellos que miraban los estudios superiores. En el segundo estudio (2005) los datos revelaron que la organización había superado una grave crisis, así como, en consecuencia, había adoptado una gestión más rigurosa. En este período el sector industrial pasó a utilizar tecnologías de capital intensivo, empleando menos personas, pero más calificadas. En respuesta a estas demandas, bien como para asegurar mayor autonomía financiera, la organización educativa creó una escuela secundaria y una de ingeniería. Además de la venta de servicios, estas unidades más recientes contribuyen para financiar la escuela técnica por medio de una suerte de efecto Robin Hood.

Palabras clave: Educación vocacional y técnica. Financiamiento de la educación. Costos educativos. Democratización de la educación.

O autor pesquisou em 1990, a pedido da Organização Internacional do Trabalho, uma interessante experiência de financiamento da educação profissional por empresas, quando falharam os processos formativos usuais (GOMES, 1991a, 1991b). Implantado um parque industrial em Montes Claros, Minas Gerais, nos anos 70, com os incentivos da Superintedência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), foi preciso importar pessoal qualificado do Brasil e do exterior para operar as novas atividades econômicas, numa área localizada entre os rios São Francisco e Jequitinhonha. O custo desse pessoal era relativamente muito alto, de modo que uma parte dos empresários se propôs um desafio: transformar vaqueiros e agricultores em trabalhadores industriais à altura das tecnologias, numa abrupta transformação do homem do campo em trabalhador urbano. Havia numerosa mão-de-obra local, de baixo custo, porém esta não se encontrava preparada para novas competências e padrões de comportamento. Foi assim que, em 1976, se estabeleceu a Fundação Educacional Montes Claros - FEMC, com uma escola técnica. O desafio não parava aí: para evitar uma síndrome de escolas técnicas federais, era preciso chamar os jovens e adultos que efetivamente se interessariam por ocupações industriais, em lugar da formação de uma elite que, utilizando a parte de educação geral dos currículos, se capacitaria para a educação superior, saindo da cidade, geralmente para a Capital, a fim de serem advogados, engenheiros, médicos etc., sem qualquer certeza de regresso.

Quinze anos depois, o Centro Internacional para Educação e Treinamento Técnico e Vocacional - UNEVOC - da UNESCO solicitou ao autor que revisitasse a experiência e verificasse se e como a instituição enfrentava os seus dilemas, do mesmo modo que, anteriormente, com base no estudo de caso, compreendendo a análise documental, a observação direta e as entrevistas semi-estruturadas. Tendo a FEMC sido obrigada anteriormente a lutar pela sua sobrevivência, por meio de fontes de financiamento mais estáveis, a surpresa do autor foi a de encontrá-la muito maior e mais segura, com uma gestão mais profissional, gerando, em grande parte, os próprios recursos, dependendo menos das indústrias locais e efetuando uma espécie de efeito Robin Hood para sustentar parte dos alunos de baixa renda na Escola Técnica. Este é um problema formidável, à medida que as tecnologias industriais se sofisticam e exigem, cada vez mais, uma base de educação geral e uma educação profissional cada vez mais caras, tudo isso num ambiente de favelamento e inchaço das periferias, como resultado das migrações rurais - urbanas e do crescimento vegetativo de populações de baixa renda. Então, como conciliar democratização e educação profissional de qualidade?

Os começos

A interiorização da indústria, por meio dos incentivos fiscais, foi bem sucedida pelo menos em Montes Claros, mas as empresas viram-se obrigadas por muitos fatores a usar tecnologias então de capital intensivo, numa região com abundante pessoal, porém de baixa produtividade. Esses trabalhadores muitas vezes necessitavam passar por uma espécie de ressocialização. Um exemplo foi o dos ex-vaqueiros que, não se adaptando às botas de proteção, cortavam partes delas para acomodar os calos. Espremidas entre os altos custos do pessoal importado e as deficiências dos trabalhadores locais, buscou-se uma solução clássica: solicitar ao Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial - SENAI, que abrisse uma unidade local. Embora usualmente responsivo, por uma série de razões, a iniciativa não teve sucesso. Os governos estadual e municipal também não tinham condições para atender às necessidades. Com as alternativas convencionais esgotadas, um grupo de empresários se reuniu para elaborar um plano. Já havia experimentos com treinamento em serviço que haviam demonstrado a capacidade de aprendizagem do pessoal local. Quando solicitados a doar o capital correspondente e o aporte mensal necessário, só 15 empresas permaneceram para criar a FEMC. As demais consideraram que o problema era "do governo", não delas. O presidente da Associação Comercial e Industrial respondeu que a questão era de investimento e não de favor ou benemerência. Com isso, se estabeleceu uma Escola Técnica, altamente procurada por potenciais alunos. Tanto o presidente como o diretor recrutado para a Escola eram lideranças carismáticas (WEBER, 2004). Usando salas alugadas e equipamentos industriais descartados, para "esquentar os motores" foram oferecidos numerosos cursos de pequena duração, mais urgentes, inclusive o de bombeiro hidráulico, que faltava à cidade. Em prosseguimento, a Escola obteve autorização para os cursos técnicos, que geravam o espanto de autoridades educacionais pela pletora de mudanças curriculares - bom sinal! - para acompanhar as novas tecnologias e processos de trabalho.

Em 1989, 13 anos depois, a matrícula era de 2.029 alunos, dos quais 47,1% do ensino fundamental (quinta à oitava série) e médio, em convênio com o Estado e o Município, nos turnos do dia, e, à noite, 33,6% de cursos técnicos e os restantes 19,3% divididos entre cursos profissionais oferecidos na sede e em outros locais, inclusive em municípios vizinhos. Os cursos haviam mudado para o prédio de uma escola municipal, numa área de 12 mil metros quadrados, doada pelo Município. Estes cursos de educação geral, oferecidos num ambiente de profissionalização, se tornaram algumas das principais fontes de alunos para os cursos técnicos.

É evidente que a FEMC, como qualquer outra organização formal, se situa numa teia de relações de poder. Segundo o clássico Downs (1967), as organizações, para viverem e crescerem, devem demonstrar continuamente a utilidade dos seus serviços a vários grupos que a apóiem, inclusive financeiramente. A expansão depende, por sua vez, de adotar novas funções e captar outras. No caso da Fundação, as novas funções surgiram num vácuo em que não havia competidores, todavia, ela soube demonstrar o seu êxito e ganhar reputação junto às indústrias mantenedoras ou não, à comunidade e aos poderes públicos. No entanto, a expansão estava limitada por demandas concorrentes de recursos, entre empresas locais, estudantes e órgãos públicos - e esse processo era vital para a sobrevivência. Por quê?

A expansão

No fim de 1989, os estudantes da FEMC eram majoritariamente de baixo status socioeconômico, inclusive para os modestos padrões do Município, cuja renda média não superava um salário-mínimo per capita. Consoante um levantamento feito pela Escola, com algumas limitações metodológicas, 80% do corpo discente tinha status socioeconômico baixo, haviam cursado escolas públicas e estavam interessados muito mais na preparação para o trabalho do que na continuidade imediata de estudos acadêmicos em nível superior. Se esse trabalho era manual ou de supervisão de trabalhadores manuais, isso não era para eles um obstáculo, o que permitiu uma mobilidade social relativamente elevada. Mostrando esses dados a um painel de educadores 16 anos depois, o autor foi informado de que a composição pouco mudara. Todavia, a observação diuturna dos estudantes no local fez parecer que as origens sociais se elevaram um pouco. As atividades econômicas da cidade se diversificaram e a renda pessoal visivelmente aumentou. As ocupações de nível técnico passaram a exigir tecnologias mais refinadas e a depender da informática, de modo que o técnico e a indústria de hoje se situam mais distantes das ocupações manuais. Não só a presença da mulher se ampliou consideravelmente em certos cursos (28% em média na Escola Técnica), em especial na informática, como também pelo menos uma parte das camadas médias passou a ser atraída pela complexidade dos currículos e laboratórios e pelas perspectivas profissionais nada desprezíveis, num país onde grassa o desemprego juvenil.

Há, portanto, um contínuo "cabo de guerra" entre a sofisticação tecnológica e a inclusão social, o que leva não raro à "escolha de Sofia"1 1 Lembrando o filme de Alan Pakula, Sophie's Choice (1982), entre as trágicas escolhas feitas pela personagem principal, a mais grave de todas, seu maior fantasma, foi a de indicar, no ingresso no campo de concentração de Auschwitz, qual dos dois filhos iria logo para o forno crematório. . Nesse sentido, dois importantes canais de acesso para jovens e adultos socialmente menos privilegiados são as bolsas concedidas por empresas ou pela FEMC, quase sempre parciais, e a monitoria. No caso das primeiras, uma das grandes empresas faz um concurso para ex-alunos das escolas públicas, ao passo que a Fundação inclui alunos selecionados por critérios combinados de mérito e necessidade financeira, para auxiliar em tarefas acadêmicas. Em 1989 a ampla maioria dos alunos do ensino técnico contava com bolsas de estudos. Teria ocorrido elevação da renda do Município como um todo e da sua capacidade aquisitiva ou o recrutamento passou a se realizar em faixas mais altas e mais escolarizadas? Lembrando Machado de Assis, mudou o Natal ou mudei eu? As exigências técnico-educacionais se elevaram ou a necessidade de autonomia financeira levou ao recrutamento de outros grupos? As evidências obtidas indicam que os dois processos ocorreram, mas continua bem viva e acesa a preocupação com a promoção social, inclusive em face de uma favela próxima.

Saídas para um beco

A necessidade de auto-sustentação da FEMC se acentuou nos anos 90, quando Montes Claros teve uma redução das atividades industriais, depois de extinta a SUDENE. A economia voltou-se em grande parte para o setor terciário, tornando-se, inclusive, importante centro regional de educação superior, embora também esteja incluída no planejamento estadual nos clusters de biotecnologia, fruticultura e pedras preciosas. No entanto, a luta pela competitividade industrial levou à utilização de tecnologias crescentemente complexas, que solicitavam menos as ocupações relacionadas aos cursos então oferecidos pela Escola Técnica (Eletrônica, Manutenção Elétrica, Manutenção Mecânica e Química), exceto Informática. Em outras palavras, a Escola se tornou menos útil e urgente para as empresas e mais útil para a comunidade. A saída encontrada foi a ampliação das suas atividades e estabelecimentos, de modo que algumas unidades pudessem financiar outras. Para isso, foi aproveitada a experiência da parceria com o governo na educação geral e se criou um colégio pago, com opção para os cursos técnicos. Para isso os alunos têm maior número de horas de atividades, aproximando-se do tempo integral. Como sinal dos novos tempos, da diversificação da estrutura ocupacional e da elevação do prestígio das ocupações técnicas e seus cursos, cerca de 85% dos alunos, segundo estimado, optam por participar desses cursos profissionalizantes. O Colégio, assim, é talhado para formar candidatos já envolvidos pelo Geist da cultura tecnológica tanto para a Escola Técnica como para a Escola de Engenharia, também criada pela FEMC.

A nova instituição de educação superior responde à complexificação das tecnologias e ocupações industriais, oferecendo os cursos de Engenharias Química, de Controle e Automação, de Telecomunicações e de Computação. Estes se beneficiam de laboratórios e bibliotecas comuns, das relações entre as empresas industriais e a Escola e da cultura tecnológica, construída ao longo dos anos. Esta é a maior jóia da coroa, ou seja, da FEMC, na medida em que o seu superavit cobre o financiamento da Escola Técnica, cuja demanda sofreu queda acentuada em relação a outros tempos. No entanto, esta unidade continua a ser um sonho para os jovens de baixa renda, cujos olhos brilham ao nela verem o elevador para a mobilidade ocupacional e social. Provavelmente as oportunidades para estes se reduziram, em face da sua dificuldade de pagamento.

De qualquer modo, o total da matrícula em cursos regulares (não computados cursos diversos de educação continuada, em Montes Claros e outros municípios) aumentou de 1.639, em 1989, para 2.037 em agosto de 2005. Se o incremento foi de 24,3%, a área construída da Escola Técnica, duplicando, passou a 8.123 metros quadrados, com maior número de laboratórios e equipamentos, acompanhando as novas exigências ocupacionais. Tal avanço deveu-se a uma dotação do Programa de Expansão da Educação Profissional - PROEP, do Ministério da Educação. Cada vez mais se tornava inviável trabalhar com equipamentos dispensados pelas indústrias e com improvisação. Proporcionalmente, cresceram os custos diretos de funcionamento.

Outra saída encontrada foi a mudança de foco da educação: em vez de ter em vista só o emprego, passou a voltar-se para o trabalho. As tecnologias poupadoras de pessoal, a terceirização, a expansão do setor de serviços e o encolhimento do setor formal do mercado de trabalho levaram a FEMC a incentivar o empreendedorismo e o preparo para um espectro mais amplo de oportunidades laborais. Para isso foi criada uma incubadora de empresas, com 15 estabelecimentos e projetos. Apesar do seu pequeno porte, prevê-se a sua integração numa iniciativa de vulto, o Parque Tecnológico do Município, com estimativa de 220 unidades empresariais.

Dando uma no cravo e outra na ferradura, se os custos crescem e o número de bolsas de estudo se reduz, desenvolvem-se projetos sociais. Os alunos dos cursos técnicos e superiores têm um estágio social, dedicado a ações diversificadas de cidadania, que podem variar da distribuição de alimentos ao oferecimento de cursos profissionalizantes, projetos de inclusão social e de apoio a escolas públicas, cujos alunos, no conhecido apartheid brasileiro, tendem a ser socialmente menos privilegiados que os das escolas particulares. Embora a venda de serviços continue uma das fontes de financiamento da FEMC, as contribuições à comunidade têm claro o seu lugar. Um exemplo foi o de um grupo de alunos de Informática que desenvolveu, em 2005, um software de administração de cemitérios, doando-o à Prefeitura e, assim, resolvendo velhos problemas.

Outra mudança apareceu na paisagem durante o trajeto de 15 anos entre as duas pesquisas: desenvolveu-se uma das favelas mais violentas da cidade na proximidade da Escola Técnica. A vizinhança e a convivência então geraram um projeto para 60 crianças, obrigatoriamente matriculadas em escolas públicas. O seu tempo escolar parcial é completado, pela manhã ou à tarde, pela orientação de estudos e atividades artísticas, culturais, de lazer e de cidadania, à semelhança da Escola Parque de Anísio Teixeira2 2 Cf. Éboli (1969). em pleno século XXI. Inclui-se também o trabalho com os pais, para engajamento na educação dos seus filhos, e atividades de promoção social, com vistas à melhoria das suas condições de vida. As crianças e adolescentes participantes têm assegurado o acesso gratuito à Escola Técnica, ao concluírem o ensino médio. Ainda assim, é desigual a luta contra o grande negócio do crime organizado. Um caso ilustrativo foi o de B., 14 anos, dividido entre a escola e o projeto da FEMC, por um lado, e o tráfico de drogas, hábil em recrutar os adolescentes mais vivazes. Apesar do trabalho desenvolvido e da atenção especial a ele dedicada, B., seguindo o caminho dos seus irmãos, se tornou uma "mula" (transportador de drogas) e podia então optar por uma "promoção" para "soldado do tráfico".

Escola e reputação

Qual é o valor da reputação de um estabelecimento educacional? Embora se possam fazer estimativas, sabe-se que a reputação leva muito tempo a construir-se e pode ser destruída rapidamente. Uma vez rachado, o cristal perde o valor. No caso da FEMC, a reputação tem sido bem usada, inclusive para estender-se à Escola de Engenharia e, assim, elevar a sua legitimidade por meio de cursos superiores. O clima das unidades continua a ser positivo e comprometido. A instituição e os seus alunos são ainda mais visíveis na comunidade e constituem alvo de contínua avaliação pelas empresas locais. Como resultado, os professores parecem desfrutar de considerável status e mantêm um considerável espírito de corpo, parecendo muito orgulhosos do que fazem. Quinze anos depois, continuam marcantes os professores que trabalham além dos horários, os projetos levados a efeitos por equipes e os esforços para que cada curso alcance a excelência.

O empresariado local está ativamente envolvido nas atividades. Mesmo cursos de curta duração vêm a ser oferecidos depois da análise das necessidades locais. São feitos contatos com supervisores dos estudantes e dos ex-alunos para acompanhamento da sua formação e desempenho. O Conselho Diretivo da FEMC desempenha um papel estratégico como ponte entre o setor produtivo e os estabelecimentos educacionais. Uma conseqüência dessa participação é a referida mudança contínua dos currículos, métodos, recursos, avaliação e da distribuição das matrículas conforme o fluxo das necessidades econômicas. São as vantagens e limitações de um modelo da gestão.

Além dos cursos presenciais, a FEMC passou também a abrir uma variedade de cursos parcialmente a distância ou semipresenciais. Eles são oferecidos a prefeituras em toda a região, sob contrato com empresas locais ou órgãos públicos, ou, ainda, são abertos a estudantes que possam pagá-los. A Divisão de Marketing é responsável por detectar e propor novas oportunidades e cuidar da imagem institucional. A mais interessante iniciativa nesse sentido é o show anual de ciência e tecnologia. O de 2005 teve lugar no Shopping da cidade, atraindo numerosos visitantes até o fechamento das instalações. O programa incluiu a apresentação de projetos de relevância pública por grupos de estudantes do Colégio, da Escola Técnica e da Escola de Engenharia. Em geral eles eram interdisciplinares, facilitando, pela concretização, a compreensão de noções teóricas difíceis. Ademais, houve uma sucessão de palestras de cientistas do Estado, com o financiamento do Ministério da Ciência e Tecnologia. A projeção da imagem da FEMC, a elevação do prestígio e a derrubada de mitos do ensino de matemática e ciências, além do trabalho de divulgação científica, têm sido da maior significância, embora o Shopping não seja um dos ambientes mais populares de Montes Claros, apesar da entrada franca.

Em geral empresários locais consideram favoravelmente os estudantes e egressos da FEMC. Afora isso, a necessidade de gerar as suas próprias receitas mantém a Fundação alerta para as mudanças das necessidades e as expectativas dos grupos a que atende, em contraste com escolas que, dispondo de fontes estáveis de receita, poucas vezes alteram os seus cursos. Contudo, é preciso que a incerteza financeira não alcance níveis excessivos, sob pena de matar a criatividade e a responsividade ao ambiente. Esta era uma dificuldade constatada em 1990 e, ao que parece, uma lição bem aprendida.

Andando na corda bamba

Em 1989-90, na primeira pesquisa, a gestão era mais carismática que burocrática, em face das lideranças atuantes. A receita provinha dos estudantes e suas famílias, de bolsas e outras contribuições asseguradas pelas empresas locais, além da venda de serviços, conforme a tabela 1. Apesar da intensa disputa pelas vagas da Escola Técnica, o calcanhar de Aquiles se situava na instabilidade dos meios. Ela andava na corda bamba em busca de financiamento e, com isso, estava submetida a altos e baixos que afetavam menos os custos de funcionamento que os custos de capital. Para garantir os seus bons resultados e reputação, era vital investir em instalações e equipamentos para acertar o passo com o avanço das tecnologias e a inserção na sociedade em rede3 3 Cf. Castells (2003). .

A filosofia da Fundação, mantida até hoje, estabelece que o aluno deve pagar pelo menos uma parte do custo da sua educação/treinamento. As mensalidades variavam de 30 a 70% do custo total. Em março de 1990 a anuidade máxima para o ensino noturno era de US$ 643, equivalente a 53% da escola média mais cara da cidade, cujo curso era acadêmico e não técnico, portanto, apresentando valor mais baixo. De qualquer modo, essas quantias eram significativas em face do salário-mínimo. Por isso, as anuidades pagas pelos estudantes da FEMC eram suplementadas por uma bolsa provida por uma empresa local, ainda que eles não fossem empregados da mesma.

A divisão de custos dos programas pagos pelos estudantes e pelas empresas variou ao longo do tempo. Em média os discentes cobriam 48,7% dos custos; o aporte empresarial, 23%, e a venda de serviços e outras fontes, o restante. Um dos pontos críticos ocorreu em 1989, quando os custos pagos pelos estudantes excederam o pico estabelecido, ao mesmo tempo em que os recursos empresariais caíram abaixo do mínimo. Uma alternativa seria aumentar as anuidades, o que mudaria a composição socioeconômica do corpo discente para pessoas um pouco mais privilegiadas socioeconomicamente, cujos objetivos se voltariam mais para a continuidade dos seus estudos em nível superior do que para a terminalidade do ensino técnico. Como tal alteração modificaria os objetivos da FEMC, o Conselho Diretor recomendou que as firmas não apenas aumentassem o valor das suas bolsas, como também se juntassem para reduzir o déficit operacional da Fundação. Como esta não poderia cobrir os seus custos com base somente nessas duas fontes de receita, ela tratou de oferecer serviços e cursos de curta duração. Eis porque manter os custos baixos era uma questão estratégica, ao mesmo tempo, para atender aos objetivos das indústrias e para alcançar elevado nível de democratização. Nesse sentido, a Escola Técnica tinha custos menores que outras instituições. As despesas médias por aluno/ano eram de US$ 1.666, ao passo que as escolas técnicas do SENAI alcançavam, em 1985, US$ 1.880 e as escolas técnicas federais industriais, US$ 1.516.

A luz, porém, projetava sombras: por um lado, os custos eram baixos, refletiam os esforços de boa gestão, permitiam alcançar os grupos sociais adequados e, ainda, democratizar o ensino técnico. Por outro lado, o baixo custo era sinônimo de dificuldades de investimentos, com o risco de a Escola se desatualizar e não servir às suas finalidades empresariais e sociais. Os talentos da FEMC eram empregados para minimizar essas dificuldades, por meio da aquisição de materiais por baixo custo e da inventividade nas oficinas, criando novos equipamentos a partir de outros, geralmente descartados. Um informante declarou que o primeiro microcomputador da Escola, conhecido como a moeda nº 1 do Tio Patinhas, foi obtido em troca de um curso de processamento de dados, seguido de outros e de novos microcomputadores.

Entretanto, esta organização criativa e em parte improvisada, com a animação de uma liderança carismática, esgotou as suas possibilidades pelo meio dos anos 90, enquanto mudava a paisagem socioeconômica de Montes Claros. As dificuldades financeiras se acentuaram, acumulando-se uma dívida com a previdência social, então renegociada e parcelada. A FEMC se aproximou da insolvência, ao mesmo tempo em que o corpo docente foi dividido por agudas disputas pedagógicas, em especial sobre a legitimidade da repetência ou da promoção continuada. Como casa dividida não reina, o Conselho Diretor decidiu reformular todo o sistema administrativo e financeiro. Segundo depoimentos, a FEMC passou da cultura predominantemente acadêmica para uma predominantemente empresarial, ainda que respeitosa dos objetivos educacionais e sociais. Aumentou também o seu grau de burocratização, no sentido weberiano, inclusive no que se refere à liderança. Foi implantada uma administração típica de empresa, ou seja, aplicaram-se os remédios que os empresários usavam com êxito no seu cotidiano. Foi contratado um diretor administrativo e financeiro, cujo treinamento foi completado em meio expediente em várias indústrias locais. Implantaram-se então contabilidades gerencial, de custos e orçamentária, além de um sistema de informações gerenciais para tomada de decisões. Cabe assinalar que o autor recebeu dados de custos em menos de 15 minutos, o que antes poderia levar dias. Ou seja, quando a fogueira ameaçava tomar conta da instituição, criaram-se rigorosos controles para os custos e novas alternativas para o financiamento, como o Colégio e a Escola de Engenharia.

Afora essas mudanças, a relativa improvisação das despesas de capital de outrora pôde ser superada graças à participação no PROEP, do Ministério da Educação, com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento, que valorizava a participação comunitária, do Terceiro Setor. Dessa forma, em 2001 a Fundação assinou um convênio com o Ministério da Educação no valor de US$ 985.0764 4 Todos os valores em dólar são nominais da época a que se referem. , dividido em 31,9% para infra-estrutura, 56,8% para equipamentos, 4,8% para capacitação e treinamento, 3,8% para materiais pedagógicos, 2,3% para consultoria e 0,4% para serviços. Assim, como já foi aludido, duplicou-se a área construída e mais que duplicou o número de laboratórios, com equipamentos atualizados. Esse programa federal, entretanto, sofreu descontinuidade e, desse modo, cabe indagar como se financiarão os investimentos a longo prazo, em face do fluxo de novas tecnologias. Outro desafio é a construção de nova sede, num amplo terreno adquirido perto do Distrito Industrial.

Reportando-se à tabela 1, fica claro que, em 2005, a Escola Técnica se tornou efetivamente menos dependente das empresas, o que situa novamente na tela das preocupações a seletividade socioeconômica do corpo discente. A Escola de Engenharia era então a unidade menos dependente das empresas e utilizava verbas governamentais e do próprio Estabelecimento, para financiar os estudos dos alunos, muitos também de modestas origens sociais.

Por sua vez, a tabela 2 lança mais luz sobre o tema. As despesas correntes por aluno variavam de 91,7% a 89,2%, enquanto as despesas de capital programadas para o ano oscilavam entre 4,9% e 10,8%. A proporção das despesas de pessoal era elevada, sobretudo para a Escola Técnica, que teve as suas instalações, inclusive laboratórios, expandidas e sensivelmente melhoradas. A Escola de Engenharia tinha uma participação mais alta e a Escola Técnica, a mais baixa no total das despesas correntes.

Do lado da receita, a anuidade era mais reduzida para a Escola Técnica, ainda assim representando metade do salário-mínimo, o que não era pouco em face da distribuição local de renda. Ainda assim, a sua despesa era 4,3% superior à receita até o mês de agosto de 2005. A anuidade do Colégio era cerca de 15% menor que a dos colégios mais renomados da cidade, porém, a mesma era deficitária, revelando capacidade ociosa em algumas turmas, embora a média de alunos por turma estivesse acima da média brasileira dos estabelecimentos privados. Por sua vez, a unidade superavitária por excelência era a Escola de Engenharia, cuja mensalidade era 200% maior que o salário-mínimo. Cabe considerar que, apesar de relativamente baixa para os níveis do País, ainda assim era difícil aos alunos suportar as anuidades, tendo um grupo recorrido ao financiamento governamental e a um fundo criado pela própria Escola. Para melhor compreensão do valor relativo das mensalidades, é interessante observar que a renda mediana mensal do total da população ocupada de 10 anos de idade ou mais era de US$ 137, valor 11,7% menor que o do Estado, conforme o censo demográfico de 2000 (IBGE, [2001?]). Os dados censitários indicaram, ainda, a concentração de renda, com 75,0% da população de 10 anos de idade ou mais percebendo até três salários-mínimos. Ainda como termo de comparação, o custo médio aluno/ano do ensino médio do Brasil, oferecendo currículos acadêmicos, em 2004, era de apenas US$ 305.

Prospectiva

Há 15 anos atrás o estudo de caso esperava que o reconhecimento aos méritos da escola, junto com a insuficiência crônica da receita em face das despesas, levasse a mudanças na FEMC. Em 1989 a crise só foi resolvida com o pedido do Conselho Diretor às empresas, para que aportassem maior contribuição. O que aconteceria se a resposta empresarial fosse negativa? A Escola Técnica teria elevado as mensalidades e, com isso, se reduziria o número de estudantes de baixa renda. Sem competidores na região, ela não teria dificuldades de atrair outros alunos e se tornaria possivelmente um estabelecimento como grande parte dos seus congêneres no Brasil àquele ano, isto é, uma transição para a educação superior (GOMES, 1991b). No entanto, fundamentada nas necessidades de pessoal das indústrias, a FEMC passou a utilizar outras estratégias para evitar um sério declínio da democratização. À medida que a situação econômico-financeira do Brasil impelia as empresas a cortar custos e a utilizar tecnologias poupadoras de pessoal, o suporte das mantenedoras declinou. Contudo, o efeito Robin Hood produzido pela Escola de Engenharia evitou a elitização da Escola Técnica. Cabe frisar que, se considerarmos a concentração de renda, Robin Hood tirava dos menos pobres para dar aos razoavelmente pobres. Entretanto, a FEMC internamente não reproduziu a situação média brasileira, em que os gastos da educação básica são muito menores que os da educação superior: a despesa média por aluno nesta última em 2004 foi de US$ 3.315. Desse modo, a despesa média aluno/ano da Escola de Engenharia pode ser considerada relativamente baixa. Quer dizer, eficiência, efetividade e custos baixos significam portas abertas para maior democratização. Ademais, o PROEP assegurou a modernização do prédio e equipamentos, como foi indicado. Dessa forma, a organização mudou os padrões de recrutamento como um todo, abrindo duas novas unidades, o Colégio e a Escola de Engenharia para preservar certo nível de democratização na Escola Técnica.

De fato, nos anos 90 e nos primeiros anos do novo século, a abertura do mercado brasileiro e a competitividade geram um grande desafio para a indústria. Com isso, a complexificação crescente das tecnologias e, de certo modo, do trabalho exige novas qualificações e base mais sólida e flexível de educação geral, acarretando o provável aumento dos custos da educação profissional. O Sistema S passou por grave crise durante a chamada década perdida da América Latina. Nos anos 80 o peso da dívida externa, a recessão e o desemprego tiveram efeitos diretos sobre a receita do Sistema, oriunda, em sua maior parte, da contribuição sobre a folha de pagamentos do pessoal. A saída encontrada pelo SENAI, em particular, foi a sofisticação dos seus cursos, a venda de serviços e a oferta de cursos pagos ou cujo pagamento possa ser repartido entre os alunos, as empresas e outros atores5 5 Cf. Amadeo, Camargo, Marques e Gomes (1994). . Certamente o novo caminho espelhava os avanços tecnológicos verificados no mundo e a expectativa de o protecionismo ser substituído pela abertura de mercado. Por seu lado, as instituições federais de ensino técnico foram bem sucedidas em aumentar a sua participação nos fundos públicos, inclusive competindo com outras instituições públicas e comunitárias. Em conseqüência, quase todas se tornaram instituições de educação superior que oferecem, além dos cursos técnicos de nível médio, cursos tecnológicos - cuja matrícula cresce rapidamente - e cursos de pós-graduação lato e stricto sensu.

Em face de tais mudanças, várias reações se fizeram sentir. No Sistema S, o SENAR, dedicado ao setor rural e criado em 1991, enveredou pela terceirização de serviços, pela observância dos mecanismos de mercado e pela descentralização, com todas as suas possibilidades e limitações (GOMES; CÂMARA, 2004). Com isso, ao contrário das instituições pioneiras, criou uma rede altamente flexível e de baixos custos fixos, porém tornou muito mais difícil acumular experiência e outros fatores de sucesso e internacionalização da primeira geração, isto é, SENAI e SENAC. Por outro lado, vários Estados, em especial São Paulo e Rio Grande do Sul, trataram de criar e/ou expandir as suas redes de educação profissional. No caso do primeiro, o Centro Paula Souza conseguiu incrementar o percentual de alunos trabalhadores de 33% para 48% entre 1995 e 2002. O grupo que tinha renda familiar de até cinco salários-mínimos aumentou de 32% para 57% entre aqueles anos, para isso contribuindo o aumento do alunado de jovens adultos (SÃO PAULO, 2002). Ao mesmo tempo, em face do desemprego e do subemprego, o Governo Federal, a partir de 1995, estabeleceu programas de curta duração para formar trabalhadores, sobretudo de baixa renda, estabelecendo um amplo leque de parcerias com sindicatos, organizações não governamentais e governos estaduais e municipais.

No caso de Montes Claros, a Escola Técnica conseguiu manter certo nível de democratização, porém as empresas tendem a ser cada vez mais sofisticadas, de tal modo que, além dos requisitos de educação geral, tendem a contratar pessoal mais qualificado para relativamente menos postos de trabalho. Até quando será possível manter o nível de eqüidade verificado em 2005? Uma das alternativas é a proposta da FEMC de fazer parceria com a rede municipal de ensino para que cerca de 500 alunos anualmente tenham acesso a cursos técnicos.

Embora a FEMC seja a maior organização regional de preparo de pessoal para a indústria, cabe informar que o SENAI há muito conseguiu superar as divergências com o governo do Município. Em 1988 ele se instalou num terreno doado por um industrial e ofereceu cursos profissionalizantes básicos além, à época da coleta de dados, do curso técnico de eletromecânica. Avalia-se que abrange cerca de 15% do mercado local de preparo profissional.

Assim, algumas lições podem ser extraídas ao revisitar a FEMC. Primeiro, graças à expansão, extensão e verticalização das suas atividades, foi possível aproveitar melhor a cultura tecnológica e enriquecê-la. Segundo, graças a isso, foi possível cobrir a redução da contribuição empresarial e manter, aparentemente, nível aproximado de eqüidade na Escola Técnica e, até certo ponto, na Escola de Engenharia. Terceiro, apesar de a experiência ser ilustrativa de princípios ortodoxos, como a desregulamentação e a menor participação do Estado, o salto da FEMC se estabeleceu a partir da reforma da gestão e, sobretudo, da parceria com o Governo Federal para os investimentos, que a sua receita própria não poderia cobrir satisfatoriamente. Criou-se, portanto, um exemplo bem sucedido de parceria, mas, ainda assim, envolvendo, ainda que em épocas diferentes, os três níveis governamentais. Logo, a participação do Estado continua significativa, o que não se deve estranhar pelo elevado volume de recursos por ele arrecadados.

As incertezas financeiras da FEMC favoreciam o seu dinamismo, enquanto a sua adaptação a novas circunstâncias requeria um dinamismo ainda maior. Entretanto, como escrevemos à época (GOMES, 1991a), andar sobre a corda bamba tem limites. Foram introduzidos fatores críticos que chegaram, efetivamente, a ameaçar a sobrevivência da organização e o nível de democratização educacional. Afora isso, as conquistas da FEMC poderiam ser repetidas em outros locais, dependendo do empenho de empresários. Mesmo depois do desafio inicial de substituir o pessoal de outras regiões pelo pessoal local, as indústrias mantiveram o seu apoio. Claro, havia vantagens na continuidade da sua participação, nem seria de esperar o contrário na lógica dos negócios: afora deduções fiscais, permanecia a capacidade de desenhar os programas conforme as suas próprias demandas, empregar os egressos e regular os salários. Além disso, a complexificação da estrutura da FEMC corresponde a novas etapas de aperfeiçoamento tecnológico, aumento da produtividade e da competitividade.

No entanto, alguns dos desafios que continuam de pé e ultrapassam os limites do Distrito Industrial se encontram, entre outros locais, ali mesmo, ao lado da Escola Técnica, na favela, onde o crime organizado recruta até crianças. Como na maior parte do Brasil e da América Latina, as empresas sofisticadas, com forte insumo das tecnologias, convivem com pessoas excluídas, inclusive da segunda e terceira gerações de migrantes rurais, em virtude da falta de oportunidades ocupacionais compatíveis (o adjetivo compatíveis deve ser frisado), da falta de educação, de qualificações para o trabalho e do próprio enfraquecimento da ética de valorização do trabalho e protagonismo social, em outras palavras, o trabalho pode ser inferiorizado em face do crime e da esmola. O setor informal, com todas as suas facetas, tem sido uma das válvulas de escape para a sobrevivência, em Montes Claros como no restante do Brasil, refletindo-se nas disparidades de renda. São diversas as missões e possibilidades da empresa, mesmo com responsabilidade social, e do Estado, se bem que haja contínuo entrelaçamento de ambas. Enquanto isso, aparentemente a situação da América Latina se parece com o cozinhar do galo, em fogo brando, para evitar que as contradições se aprofundem.

Os líderes empresariais devem reconhecer que a educação constitui investimento e aceitar que as empresas precisam pagar uma parte dos custos se faltar o apoio governamental e se os estudantes potenciais não tiverem capacidade de pagamento. Foi o reconhecimento destas realidades que tornou possível a experiência da FEMC, constatada pelas duas pesquisas.

Estas também evidenciam os diversos valores, interesses e padrões de comportamento que influenciaram o labirinto dos processos decisórios. Pesos se deslocam na balança, ao mesmo tempo em que os atores criam, avançam e recuam na arena. Esta, porém, seria outra pesquisa.

Recebido em: 02/03/2008

Aceito para publicação em: 08/04/2008

  • AMADEO, E.; CAMARGO, J. M.; MARQUES, E.; GOMES, C. A. Fiscal crisis and assymetries in educational system in Brazil. In: SAMOFF, J. (Org.). Coping with crisis: austerity, adjustment and human ressources. London: Cassel Education, 1994.
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  • FUNDAÇÃO EDUCACIONAL MONTES CLAROS. Montes Claros, [200-]. Disponível em: <http://www.facit.edu.br/>. Acesso em: 6 maio 2008.
    » link
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  • WEBER, M. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília, DF: Ed. Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004. v. 1.
  • *
    Esta é a exploração de aspectos selecionados de pesquisa realizada para o UNEVOC-UNESCO. O autor agradece o apoio da UNESCO-Brasil e da Fundação Educacional de Montes Claros. As opiniões não representam necessariamente os pontos de vista das instituições envolvidas.
  • 1
    Lembrando o filme de Alan Pakula,
    Sophie's Choice (1982), entre as trágicas escolhas feitas pela personagem principal, a mais grave de todas, seu maior fantasma, foi a de indicar, no ingresso no campo de concentração de Auschwitz, qual dos dois filhos iria logo para o forno crematório.
  • 2
    Cf. Éboli (1969).
  • 3
    Cf. Castells (2003).
  • 4
    Todos os valores em dólar são nominais da época a que se referem.
  • 5
    Cf. Amadeo, Camargo, Marques e Gomes (1994).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Jul 2008
    • Data do Fascículo
      Jun 2008

    Histórico

    • Aceito
      08 Abr 2008
    • Recebido
      02 Mar 2008
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