Open-access Povos e comunidades tradicionais e práticas educativo-formativas de integração de saberes na Amazônia frente à ruptura do sociometabolismo seres humanos-natureza

Traditional peoples and communities and educational-training practices of knowledge integration in the Amazon in the face of rupture of human-nature sociometabolism

Pueblos y comunidades tradicionales y prácticas educativo-formativas de integración de saberes en la Amazonía frente a la ruptura del sociometabolismo ser humano-naturaleza

Resumo

Considerando o longo processo de ruptura do sociometabolismo seres humanos-natureza, chamamos atenção para modos não capitalistas de produção da existência humana e, em particular, para o dos povos e comunidades tradicionais, o qual não se funda no trabalho-mercadoria, cerne da atual crise climática. Tendo em conta as relações entre universalidade, particularidade e singularidade no atual contexto histórico do Baixo Tocantins, no Pará, indicamos a importância de políticas públicas que promovam práticas educativo-formativas integradoras que contribuam para enfrentar a ruptura produzida pelo modo de produção capitalista. Além de autores clássicos do materialismo histórico-dialético, nosso estudo tem como referência teórica e empírica a atualidade das relações seres humanos-natureza e da Educação na perspectiva do trabalho e do capital.

Relação Seres Humanos–Natureza; Povos e Comunidades Tradicionais; Integração de Saberes do Trabalho

Abstract

Considering the historical process of the rupture of human-nature sociometabolism, we draw attention to non-capitalist modes of production of human existence and, in particular, to those of traditional peoples and communities, which are not based on labor-commodity, the core of the current climate crisis. Considering the relationships between universality, particularity, and singularity in the current historical context of the Baixo Tocantins region in Pará, we highlight the importance of public policies that promote integrative educational-training practices that contribute to addressing the rupture caused by the capitalist mode of production. In addition to classical authors of dialectical historical materialism, our study is theoretically and empirically grounded in the current relevance of human-nature relations and Education from the perspective of labor and capital.

Human-Nature Relationship; Traditional Peoples and Communities; Integration of Knowledge of Labor

Resumen

Considerando el proceso histórico de ruptura del sociometabolismo seres humanos-naturaleza, llamamos la atención sobre modos no capitalistas de producción de la existencia humana, particularmente el modo de los pueblos y comunidades tradicionales, el cual no se basa en el trabajo-mercancía, núcleo de la actual crisis climática. Teniendo en cuenta las relaciones entre universalidad, particularidad y singularidad en el actual contexto histórico de la región del Baixo Tocantins, en Pará, señalamos la importancia de políticas públicas que promuevan prácticas educativo-formativas integradoras para enfrentar la ruptura producida por el modo de producción capitalista. Además de los autores clásicos del materialismo histórico dialéctico, nuestro estudio tiene como referente teórico y empírico la actualidad de las relaciones seres humanos-naturaleza y de la Educación en la perspectiva del trabajo y del capital.

Relación Ser Humano-Naturaleza; Pueblos y Comunidades Tradicionales; Integración de Saberes del Trabajo

1 Apresentação

O que exige explicação não é a unidade de seres humanos vivos e ativos com as condições naturais e inorgânicas de seu metabolismo com a natureza [...]. O que tem que ser explicado é a separação entre essas condições inorgânicas da existência humana e a existência ativa, uma separação apenas completada, plenamente, na relação entre o trabalho assalariado e o capital (Marx, 1986, p. 32).

Aprendemos na escola e em outros processos educativos/formativos que o mundo está dividido em três reinos. Diferente dos reinos animal e vegetal, o reino mineral é formado por tudo aquilo que não possui vida, como, por exemplo, a água, o solo, os gases, as rochas e os minérios. Ao invés de conceber ser humano-natureza como unidade dialética, o pensamento cartesiano, e com ele o capitalismo, promoveu a separação entre seres humanos e não humanos (reino animal), entre plantas e florestas (reino vegetal), entre a pedra e o mar (reino mineral). Sobre o desgarramento ser humano-natureza e as consequências do trabalho assalariado, indicado em manuscrito elaborado em 1857–1858, Marx (1986) diria que, nos tempos atuais, o antropocentrismo nos fez interiorizar o sentimento de que somos o centro do universo; como seres superiores que se situam no topo da cadeia alimentar, estão a nosso dispor a flora, a fauna, a bauxita, o cobre, o ouro, o alumínio, o mercúrio... No Brasil, os povos originários têm sido ameaçados desde o século XVI, quando os patriarcas europeus e brancos desembarcaram e invadiram terras, rios, mares e florestas do lugar até então conhecido como Pindorama e que os portugueses passaram a denominar de Novo Mundo (América).

Ao longo dos processos de produção destrutiva do capital (Mészáros, 2009), o acúmulo de CO2 (dióxido de carbono), metano (CH4) e outros gases produzidos pela queima de combustíveis fósseis, como derivados de petróleo, carvão mineral e gás natural nos levou ao efeito estufa na atmosfera, intensificando o aquecimento global e a vulnerabilidade do ecossistema em nosso planeta. No contexto do antropoceno, entendido como época geológica historicamente determinada que se caracteriza pelos impactos das ações humanas no planeta Terra, vivemos variações repentinas de temperatura que não correspondem às estações do ano, suportamos ondas de calor que repercutem no descongelamento das geleiras e, com isso, no aumento do nível dos oceanos. Sem falar na proliferação de mosquitos (dengue e malária) que afetam populações mais vulneráveis como os trabalhadores e as trabalhadoras do campo e, em particular, os povos e comunidades tradicionais, que queremos destacar neste artigo1.

A degradação das forças da natureza é parte constitutiva da história do capitalismo. Entre as forças da natureza está a força de trabalho de homens e mulheres que se tornaram um valor-de-uso fundamental para a geração de mais-valor para os processos de reprodução ampliada do capital. Nesse sentido, a partir da revisão de literatura de autores clássicos do materialismo histórico-dialético, bem como de referências teóricas e empíricas de atuais pesquisadores do campo trabalho-educação e de demais campos de pesquisa, queremos sinalizar que, com a profunda crise socioambiental, de ruptura do sociometabolismo ser humano/natureza, o que está em crise é, em última instância, o trabalho na forma de mercadoria, que transforma em mercadoria o conjunto das relações sociais. Essas são algumas premissas básicas que atravessam as reflexões deste texto e que nos encaminham a formulações sobre integração de saberes do trabalho na Amazônia.

Afirmar que a crise das relações entre seres humanos e natureza radica na própria crise do trabalho-mercadoria requer a evidência de outros modos de produção da existência humana que se substanciam em relações de reciprocidade e no valor-comunidade (Linera, 2010). Requer também o anúncio de práticas educativo-formativas voltadas para essa perspectiva. Nesse sentido, estruturamos o texto em três partes. 1. Em “Seres humanos-natureza, história e contradições entre trabalho, capital e vida”, retrocedemos no tempo para apreender a acumulação primitiva e permanente do capital, indicando outras possibilidades de espaços-tempos de produção da existência. 2. Depois, em “Dia da pesca e do pescador: o princípio educativo do trabalho”, resgatamos nos fundamentos do materialismo histórico a unidade dialética das relações entre trabalho-educação, destacando, a título de ilustração, as particularidades da pesca artesanal e da pesca industrial nos processos de produção da vida social. 3. Na terceira parte, denominada “Produção da existência em povos e comunidades tradicionais: racionalidades educativo-formativas em disputa”, seguimos a trilha do princípio educativo do trabalho e da integração de saberes, adentrando na Amazônia paraense do Baixo Tocantins. À guisa de conclusão, apresentamos interpretações do termo “crise”, indicando a necessidade da universalização de sociabilidades pautadas na unidade ser humano-natureza, considerando a integração de saberes como processo educativo-formativo para se pensar políticas públicas educacionais nessa perspectiva, o que requer a destruição do modo de produção capitalista assentado no trabalho-mercadoria.

2 Seres humanos-natureza, história e contradições entre trabalho, capital e vida

Totalidade, contradição, mediação, universalidade e particularidade são categorias de análise do método da economia política que nos permitem compreender a realidade humano-social como síntese das relações históricas que os seres humanos, mediado pelo trabalho, estabelecem entre si e com outros elementos da natureza. De acordo com os fundamentos do materialismo histórico-dialético, a compreensão da unidade do real como síntese de múltiplas determinações requer de pesquisadores e pesquisadoras a análise do presente como resultado de um longo processo histórico. Nesse sentido, os procedimentos teórico-metodológicos de nossos estudos e pesquisas sobre o Baixo Tocantins se dão em torno de dois grandes movimentos que articulam dialeticamente: a) a universalidade do modo de produção capitalista (revisão de literatura) e b) suas particularidades e singularidades nos territórios dos povos e comunidades tradicionais, os quais buscam reafirmar seus modos de vida (dados empíricos obtidos por fontes primárias e secundárias).

No processo de ir e vir na teoria e na realidade concreta, alguns autores clássicos do materialismo histórico-dialético nos ajudam a compreender as contradições entre trabalho, capital e vida que acompanham o modo de produção capitalista. Em “A luta contra a economia natural”, capítulo XXVII do livro “A acumulação de capital”, escrito em 1912, Luxemburgo (1970, p. 317) afirma que “O capitalismo aparece e se desenvolve historicamente em um meio social não-capitalista”. O capitalismo necessita, para sua própria existência, estar cercado por formas de produção não capitalistas. Esclarece que não se trata de qualquer forma, pois o que ele necessita é “de camadas sociais não capitalistas, como mercado para colocar sua mais-valia como fonte de meios de produção e como reservatório de mão de obra para o seu sistema assalariado” (Luxemburgo, 1970, p. 317). Devido às suas rígidas barreiras, em todos os sentidos, e às necessidades do capital, a luta contra uma economia natural e, simultaneamente, contra uma economia rural requer, se necessário for, o militarismo como estratégia e campo de acumulação do capital. Não por acaso, é crescente a violência contra os povos do campo.

Essa luta tem como objetivos econômicos:

  1. Apropriação direta de importantes fontes de forças produtivas, como a terra, a caça nas selvas virgens, os minerais, as pedras preciosas, os produtos de plantações exóticas, como a borracha, etc.

  2. Libertar operários e obrigá-los a trabalhar para o capital

  3. Introduzir a economia de mercado.

  4. Separar agricultura do artesanato (Luxemburgo, 1970, p. 318).

Assim como Thompson (1987), em “A formação da classe trabalhadora na Inglaterra”, Friedrich Engels, em “A situação da classe na Inglaterra”, escrito em 1845, buscava compreender os trabalhadores e as trabalhadoras não apenas como resultado da introdução da maquinaria, mas do conjunto das relações sociais, ou seja, suas “condições de existência” ou “condições de vida” (Engels, 2010). Como vivem? Como trabalham? Como são as casas em que habitam e se apinham nos centros urbanos? Quais são as condições sanitárias? O que comem? O que leem? Na pesquisa de campo, que durou 21 meses na cidade industrial de Manchester, Engels (2010, p. 69) destaca que se os camponeses expropriados “têm sorte de encontrar trabalho, isto é, se a burguesia lhe faz o favor de enriquecer à sua custa, espera-o um salário apenas para manter vivo; se não encontrar trabalho e não temer a polícia, pode roubar; pode ainda morrer de fome”. Ainda sobre homens e mulheres entregues à própria sorte, o autor fala em “assassinato”. Isso porque, quando a classe dominante

priva milhares de indivíduos do necessário à existência, pondo-os numa situação que lhes é impossível subsistir; quando ela [a classe dominante] está farta de saber que os indivíduos hão de sucumbir nesta situação e, apesar disto a mantém [a exploração e expropriação], então o que ela comete [a classe dominante] é um assassinato, assassinato social (Engels, 2010, p. 135-136).

Na perspectiva da “história vista de baixo” (Thompson, 1998), um dos desafios é apreender os modos de vida que comumente se denominam tradicionais. Para isso é preciso ter em conta as determinações dos “processos históricos estruturados” (Thompson, 2021), entre elas, as determinações da agência humana, criadora e recriadora de culturas do trabalho, consideradas na sua diversidade de classe, gênero, raça/etnia e geração. No que diz respeito aos povos e comunidades tradicionais, podemos dizer que, embora atravessadas por mediações de segunda ordem do capital, as práticas econômico-culturais e educativas que homens e mulheres estabelecem no trabalho e nas relações de convivência no âmbito da comunidade nos indicam culturas do trabalho pautadas na emancipação humana (Tiriba, 2024), no desenvolvimento de cada homem e de cada mulher, na sua coletividade. Como assinalou Marx, “apenas na coletividade [de uns e outros] é que cada indivíduo encontra os meios de desenvolver suas capacidades em todos os sentidos; somente na coletividade, portanto, torna-se possível a liberdade pessoal” (Marx; Engels, 1987, p. 117).

Nas palavras do historiador Braudel (1992, p. 49), os tempos históricos de longa duração carregam consigo certas estruturas que “[...] tornam-se elementos estáveis de uma infinidade de gerações”. Assim é preciso “não pensar apenas no tempo curto [do evento], não crer que somente os atores que fazem barulho sejam os mais autênticos; há outros e silenciosos” (Braudel, 1992, p. 57). Na perspectiva dos tempos múltiplos e contraditórios, que contêm a substância do passado e a matéria da vida social atual, é importante analisar fenômenos de longa duração que estão submersos e constituem a totalidade social enquanto história do presente. Na perspectiva da dialética passado/presente/futuro, que indica a tridimensionalidade do tempo, os espaços-tempos da produção não capitalista não são algo do passado, mas sim do presente, embora fortemente atravessados por mediações do capital. Os modos de produção da vida dos povos e comunidades tradicionais e dos demais trabalhadores e trabalhadoras do campo e da cidade nos reafirmam a importância de repensarmos o vínculo ser humano-natureza, mediado pelo trabalho não mercadoria.

3 Dia da pesca e do pescador: o princípio educativo do trabalho

Por uma questão metodológica, focalizamos aspectos da universalidade do modo de produção capitalista, bem como de particularidades e singularidades da atividade da pesca de camarões na Amazônia do Baixo Tocantins2, o que nos permite refletir sobre as relações históricas entre trabalho-educação e formação humana. Os instrumentos de captura de camarões, por exemplo, podem ser feitos pelas mãos de ribeirinhos e ribeirinhas, como a produção de Matapis com tramas de Jupati (palmeira nativa da Amazônia, com a qual também se produzem outros artesanatos). Em um mesmo espaço-tempo histórico, andando pelo mercado público de Cametá3 e em outros mercados à beira do rio Tocantins, no estado do Pará, é possível observar que, com o “avanço tecnológico”, além de talas de Jupati, a armadilha também pode ser feita de garrafa PET (artesanalmente) ou de PVC, que, segundo o site do Instituto Brasileiro de PVC, é um “plástico com características únicas” que traz “contribuições fundamentais para a qualidade de vida e o desenvolvimento sustentável”. Ele “contém, em peso, 57% de cloro, obtido através da eletrólise do sal marinho (um recurso natural inesgotável) e 43% de eteno, derivado do petróleo”. O site explica ainda que “a eletrólise é a reação química resultante da passagem de uma corrente elétrica por água salgada (salmoura)” (Instituto Brasileiro do PVC, [s. d.]).

A atividade da pesca é determinada pelo tipo de embarcação, movida por remos ou por motores, e por outros aparatos que possibilitam aos extrativistas adentrar em águas cada vez mais profundas, ou navegar perto de rochas e barrancos, limitando-se a capturar peixes miúdos. Em se tratando de pesca artesanal, podem servir como isca farinha de babaçu, buriti, inajá, farinha de peixe e outros atrativos. Para a atividade, saberes ancestrais são mobilizados e articulados a outros saberes, inclusive a saberes escolares, entendidos como científicos. O extrativismo é de ordem “tradicional”, ocorrendo entre jovens e adultos trabalhadores e trabalhadoras que habitam as comunidades ribeirinhas, mas nem sempre se identificam como ribeirinhos ou, nem mesmo, como povos e comunidades tradicionais4.

Ao contrário da pesca tradicional, na industrial, a atividade é realizada por empresas de médio e, principalmente, de grande porte5 e é mediada por alta tecnologia, que favorece o aumento crescente da produtividade. Os atrativos para robalo, tucunaré, corvina, dourado e outros peixes podem ser iscas artificiais produzidas com plástico, madeira, ou metal imitando o formato de peixe, ou de outro animal aquático. Para a organização MordonIntelligence, em 2024, no Brasil, o tamanho do mercado da aquicultura chegará a US$ 149,01 bilhões, atingindo US$ 176,97 bilhões, em 2029. Desse setor, 80% da produção se dá em água doce6.

As indústrias capitalistas de pescado, ou de muitas outras mercadorias, dependem sobremaneira dos recursos naturais e dos saberes do trabalho de homens e mulheres das comunidades tradicionais. Para os “homens-de-negócio”, que muitas vezes instalam seus laboratórios no meio da floresta amazônica, trata-se de valorizar esses saberes, para, assim, valorizar o capital. Nas ações de responsabilidade social empresarial (ou responsabilidade ambiental), as práticas econômicas e culturais e com elas a ancestralidade dos saberes do trabalho dos povos e comunidades tradicionais vão sendo fisgadas pelo chamado “mercado da pesca”, hegemonizado pelas grandes indústrias de pescados. A título de ilustração, é importante observar que a tecnologia de produção de Matapis feitos de garrafa PET ou PVC deve ser disseminada nas comunidades ribeirinhas, uma vez que protege a biodiversidade e, em particular, a palmeira Jupati, nativa da Amazônia. Além de serem matérias-primas altamente “sustentáveis”, propaga-se a ideia de que a armadilha de PET ou de PVC impede que os filhotinhos de camarão sejam aprisionados antes do tempo certo. Ao mesmo tempo, as comunidades ribeirinhas se perguntam por que os camarões estão desaparecendo dos rios. Os frutos do mar que têm conseguido sobreviver aos impactos da construção de barragens, hidrelétricas, desvios e transposições, contaminações por mercúrio ou por agrotóxicos utilizados no agronegócio etc. estão sendo fartamente vendidos em supermercados.

Como veremos adiante, a construção de empreendimentos na Amazônia, como a hidrovia Araguaia–Tocantins com uma extensão navegável de 3.000 Km, tem causado danos irreparáveis ao ambiente. O objetivo da hidrovia é criar um “corredor centro-norte” até Marabá (Pará), de maneira a permitir o escoamento de milho, soja, minérios e de outras riquezas para exportação.

No caso da pesca industrial, não é difícil inferir que a atividade se materializa sob o “olhar ansioso do capitalista”, como afirma Marx. Nesse processo de trabalho atua uma outra força da natureza: a força de trabalho que se configura como trabalho-mercadoria. Na verdade, no capitalismo, todos os elementos da natureza vão se tornando mercadoria, assim como o trabalho, cultura, Educação, alimentação, saúde e moradia. Sob a subsunção real do trabalho ao sistema do capital, o objetivo do modo de produção capitalista é extrair, ao máximo, as forças da natureza: os rios, os mares, o sol, o céu, a lua e tudo mais que possa vir a ser lucrativo para os “homens-de-negócio”. Entretanto, a extração sobremaneira da natureza só se materializa se mediada pela força de trabalho humano, que também pode estar contida em instrumentos, máquinas, equipamentos e demais aparatos tecnológicos, sejam eles considerados avançados ou rudimentares. Para os ribeirinhos e as ribeirinhas do rio Tocantins, a atividade da pesca é um meio de vida e, ao mesmo tempo, elemento constituinte e constituidor de sua humanidade, ou melhor, dos processos históricos de fazer-humano, mediados pelo trabalho7.

Da mesma maneira que “o sabor do pão não revela quem plantou o trigo”, como ensinou Marx, tampouco o cheiro do peixe revela em que relações sociais de produção se deu o trabalho da pesca. Se considerarmos que o modo de produção capitalista tem hegemonia sob outros modos de produzir a existência humana, não é difícil perceber que, atravessados com maior ou menor intensidade pelas mediações de primeira e de segunda ordem do capital (Mészáros, 2009), os diferentes modos inauguram também culturas do trabalho de “natureza” distintas. Para os ribeirinhos, trata-se de um modo de produção da existência que se funda na reprodução ampliada da vida, a qual se entrecruza com o modo de produção capitalista. Quando as práticas econômico-culturais e político-educativas da colônia de pescadores vão ao encontro dos interesses da classe trabalhadora, não é difícil perceber que o “atravessador” é um dos sintomas da criação de relações sociais de cunho capitalista.

Determinados pela forma de propriedade dos meios de produção, os nexos trabalho-educação vão se tecendo face às bases materiais e simbólicas que dão sustentação ao patrimônio de saberes técnico-produtivos e ético-políticos, entendidos na sua dialeticidade. Por ser o trabalho o princípio educativo (Gramsci, 1991), são saberes produzidos a partir de parâmetros econômico-filosóficos, políticos, sociais e culturais que, ao longo da história do trabalho, substanciam os nexos entre seres humanos e natureza. Assim como Thompson (1998), Araújo (2023, p. 10) nos indica que para os povos e comunidades tradicionais,

há uma “unicidade” entre as técnicas de produção e o campo simbólico, ou seja, entre trabalho e cultura. Pescadores, por exemplo, se apoiam nos saberes sobre o tempo, as marés, as fases da lua e a ação da chuva. Integra-se tempo social e tempo individual, bem como vida econômica e social do grupo.

Em síntese, as dimensões histórico-ontológicas do trabalho e das relações trabalho-educação enquanto unidades dialéticas nos permitem compreender diferentes modos de produção da existência humana. Permitem-nos acessar “estruturas de sentimentos” (Williams, 2011a) que vão se constituindo tendo como base material e simbólica outros modos de existir, ou seja, outros modos de fazer, sentir e pensar a vida, modos esses que já desapareceram, ou que ainda hoje persistem, mesmo que de forma subordinada ao modo de produção capitalista. Assim, no atual contexto de crise das relações seres humanos/natureza mediadas pelo trabalho-mercadoria, é importante trazer à superfície práticas econômicas e culturais de homens e mulheres do campo, trabalhadores e trabalhadoras, cujas relações com a natureza não são de dominação, mas de complementaridade e interdependência. Não se trata de trabalho-mercadoria, mas de trabalho associado e de outros trabalhos coletivos fundados no valor-comunidade. São homens e mulheres que, desde o final do século XV até os dias atuais, resistem ao avanço do capitalismo sobre seus territórios, lutam em defesa de seus modos de vida e pelo direito de usufruir de tudo o que deveria ser comum: a terra, os rios, o mar, o céu, as florestas. São práticas econômico-culturais que se substanciam na lógica do autogoverno e da autodeterminação em busca da reprodução ampliada da vida. Em suas dimensões político-educativas, essas práticas se constituem no contexto de espaços-tempos não capitalistas de produção da existência humana (Tiriba, 2024).

4 Produção da existência em povos e comunidades tradicionais: racionalidades educativo-formativas em disputa

No Baixo Tocantins, a construção da Hidrelétrica de Tucuruí, iniciada nos anos 1970 sob as mais intensas profecias de desenvolvimento regional, favoreceu a inundação de territórios de municípios à jusante e à montante do rio Tocantins. Retirou dos ribeirinhos/as, extrativistas, comunidades quilombolas, por exemplo, as condições para a manutenção da vida em amplas dimensões (sociais, econômicas, culturais, produtivas), bem como de populações citadinas. Em Cametá, nas décadas de 1980 e 1990, houve, por efeito desse projeto do capital, intensa migração das populações das ilhas, das vilas e dos povoados para o núcleo urbano do município (Rodrigues, 2012). Isso se deu devido à diminuição do pescado, a partir do qual as relações econômico-culturais eram estabelecidas por meio da pesca artesanal, bem como em decorrência de problemas de saúde que recaíram sobre as populações, intensificando a pobreza e a exclusão social a que estavam submetidos. Não menos grave foi a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, em Altamira, município do sudoeste paraense. A obra afetou as condições de existência de seres humanos e da natureza presentes no entorno do rio Xingu. Como é possível inferir da investigação de Freire, Lima e Silva (2018), houve mortalidade de peixes e inundação de áreas de florestas, além da negação das experiências de trabalho de povos indígenas, extrativistas e ribeirinhos, que viram seus territórios de economia, cultura, sociabilidade e trabalho serem inundados para a satisfação dos interesses do modo de produção capitalista.

Nos territórios do Baixo Tocantins foram constituídas essas racionalidades desenvolvimentistas que mercantilizam as forças da natureza, negando a homens e mulheres as condições materiais para a manutenção de um modo de produzir que distinto do capitalismo. Trata-se de um modo fundado no trabalho coletivo, colaborativo, solidário, como observado por Rodrigues (2012) a partir de estudos sobre saberes sociais e lutas de classe, a partir da entidade Colônia Z-16, representativa de pescadores e pescadoras artesanais no Baixo Tocantins. Nesse contexto, a reprodução ampliada do capital se evidencia nos projetos de empreendedorismo como a criação de peixes em cativeiros, materializando relações moldadas por valores de troca em detrimento dos valores de uso.

Para Marañón (2012), estamos diante de uma perspectiva de desenvolvimento que empreende uma crescente ofensiva de mercantilização da vida material e subjetiva, ameaçando destruir as bases materiais da reprodução da humanidade em seu conjunto, dentre as quais, as que permitem a pescadores e pescadoras artesanais produzirem tecnologias de pesca e relações sociais baseadas na solidariedade no interior desse trabalho produtivo. Sob essa racionalidade desenvolvimentista, um conjunto de atividades econômico-produtivas de interesse do capital é estabelecido e a partir dele se consolida o consenso de que problemas regionais como a falta de saneamento básico, de hospitais, de escolas, de renda serão solucionados, sendo necessário, para tanto, uma investida sobre os territórios, com consequências terríveis para a vida de seus povos e comunidades tradicionais.

Em nome dessa racionalidade, vão se forjando subjetividades de “progresso” que desconsideram os modos de produzir a vida na Amazônia, com seus espaços-tempos de unidade metabólica com a natureza. Contudo, há processos educativo-formativos que promovem subjetividades que se opõem às racionalidades do modo de produção capitalista e que podem nos ensinar sobre a urgente necessidade de se restabelecer a unidade sociometabólica seres humanos-natureza em prol da vida (Saito, 2021), considerando um processo educativo que tome a integração de saberes decorrentes das práticas produtivas mediadas pelo trabalho não-mercadoria.

Ainda podem ocorrer, por exemplo, atividades integradoras de Educação pautadas na problematização da categoria território, evidenciando, em contraposição à constituição de territórios sob a lógica empresarial, como povos e comunidades tradicionais constroem suas existências, a exemplo de grupos negros do rio Trombetas e da região Bragantina, no Pará (Castro, 1999). Lá, são estabelecidas práticas de trabalho que extrapolam a padronização dos tempos da vida aos interesses do mercado – prototípica do mundo empresarial – sendo articuladas a diversas esferas da vida social, em que se observa “[...] uma integração entre a vida econômica e social do grupo, em que o mundo do trabalho faz parte da cadeia de sociabilidade e a ela é indissociavelmente ligado [...]”, facilitando “[...] encontros interfamiliares, realização de festas, perpetuação de rituais e outras modalidades de trocas não econômicas”, nas quais o “[...] esforço do trabalho é organizado em função da acessibilidade de terra e de recursos” (Castro, 1999, p. 37). Essa integração, dialeticamente problematizada, poderia ser parte integrante de uma pedagogia da produção associada (Tiriba, 2024) pautada na unidade sociometabólica de humanos e outros elementos da natureza, porque fundada na história de homens e mulheres que, milenarmente, organizam a vida de forma distinta do modo de produção capitalista. Afirmando outras formas de metabolismo, eis o novo conhecimento, integrado a partir da lógica da hegemonia do capital sobre o trabalho.

Nessa concepção educativa-formativa, há necessidade, entretanto, de considerarmos as diferentes formas de trabalho que se efetivam na Amazônia, dentre as quais destacamos o trabalho tradicional, pautado na produção coletiva, prevalecendo uma racionalidade de uso em prol das necessidades de manutenção das vidas do coletivo, em detrimento da privatização de territórios e de suas mercantilizações, havendo “[...] uma ‘unicidade’ entre as técnicas de produção e o campo simbólico, ou seja, entre trabalho e cultura” (Araujo, 2023, p. 12). Portanto, o trabalho tradicional na Amazônia, embora com atravessamentos de mediações de segunda ordem do capital, constitui-se como forma anticapitalista de organização da vida, de relação sociometabólica com outros elementos da natureza, com “[...] processos de trabalho fundados na propriedade coletiva dos meios de produção, [...] integrador de técnica e cultura [...]”, tendo “[...] nos saberes tradicionais, na ação cooperativa e nos territórios dimensões centrais e decisivas para a sua realização e existência” (Araujo, 2023, p. 12-13).

Em termos pedagógico-formativos, essas racionalidades de vida na Amazônia podem contribuir com germes de outro mundo, no qual valores de uso se sobreponham a valores de troca. Para isso, são importantes processos formativos integradores como potencializadores de processos de organização, pertencimento e resistências anticapitalistas. Nessa perspectiva, estamos a considerar processos educativo-formativos integradores como promotores de uma subjetividade contra-hegemônica, contrária à ruptura do sociometabolismo seres humanos-natureza, plasmados em saberes de experiências de trabalho de povos e comunidades tradicionais que materializam outra relação humanos-natureza, fundada no trabalho coletivo, na ajuda mútua e no uso da terra como valor de uso, constituindo-se como mediação para a superação do modo capitalista de produção da vida.

Em termos formativos, isso significa estabelecer uma lógica pedagógica que integre os saberes da experiência do trabalho aos processos formativos escolares, problematizando a realidade sociometabólica, debatendo as contradições da exploração da natureza pautada nos valores de troca. Concordamos com Araujo (2024, p. 14) para quem:

As políticas educacionais e a formação dos trabalhadores, na perspectiva da integração, representam uma possível alternativa aos povos dessa região, tanto das áreas rurais como urbanas, que demandam a valorização do trabalho e o fortalecimento de um projeto de nação democrática, soberana e multicultural.

Nessa perspectiva, de acordo com Fischer e Rodrigues (2022), entender os territórios de povos e comunidades tradicionais é condição importante para as discussões sobre saberes sociais, como os saberes do trabalho. Com base em Fischer, Cordeiro e Tiriba (2022, p. 203), apreender a manifestação desses saberes “[...] requer apreender mediações, contradições, particularidades e singularidades dos espaços/tempos onde eles se constroem [...]”, permitindo-nos “[...] interrogar como os saberes do trabalho são construídos, materializados, decorrentes dos territórios de vida e das experiências de trabalho”. Do exame dos territórios de povos e comunidades tradicionais como realidades singulares podemos apreender saberes do trabalho como manifestações de particularidades universais neles plasmadas, quer econômicas, culturais, sociais, políticas, afetivas, identitárias e classistas (Fischer; Rodrigues, 2022), considerando as mediações de primeira ordem e os atravessamentos das dimensões de segunda ordem do capital (Mészáros, 2009). No dizer de Araujo (2023, p. 14):

A integração entre saberes científicos e saberes dos povos tradicionais dessas regiões parece ser uma estratégia possível para a construção de práticas educacionais, escolares ou não, capazes de promover uma formação ampla, o desenvolvimento sustentável dessas regiões e de articular o crescimento socioeconômico com a preservação das culturas tradicionais e dos saberes historicamente construídos por esses povos.

Na relação universalidade, particularidade e singularidade compreendemos que

[...] em determinadas situações concretas o universal se especifica, em uma determinada relação ele se torna particular, mas pode também ocorrer que o universal se dilate e anule a particularidade, ou que um anterior particular se desenvolva até a universalidade ou vice-versa (Lukács, 2018, p. 94-95).

Essa dinâmica evidencia o quão fecunda é a integração para os processos formativos que objetivam formar sujeitos aptos a intervir na realidade. Os processos educativo-formativos se constituem, assim, em mediação necessária para se (re)estabelecer uma velha-nova relação entre humanos e outros elementos da natureza. Uma relação em prol da garantia da própria vida, a respeito da qual muito têm a nos dizer os povos e comunidades tradicionais da Amazônia, como ribeirinhos, extrativistas, quilombolas e, indígenas, por exemplo.

5 À guisa de conclusão: para adiar o fim do mundo8 e construir outro possível

Autores clássicos do materialismo histórico-dialético, assim como atuais pesquisadores e pesquisadoras do campo trabalho-educação e de outros campos de pesquisa nos ajudam a compreender que, na atualidade, entre tantas crises, uma que vem se intensificando é a das relações seres humanos-natureza mediada pelo trabalho-mercadoria, pela mercantilização da Educação, da saúde e de todas as esferas da vida. A crise generalizada em todo o globo terrestre de forma extrema resulta de um projeto de civilização e de humanidade, de fato, desumana. Nesse sentido, “A teoria da reificação é de grande importância pois explica como o capital, indo além do processo de produção, transforma os desejos humanos e mesmo toda a natureza em prol de sua valorização máxima” (Saito, 2021, p. 130).

Para enfrentar a crise e, preferencialmente, sair dela, a primeira questão é responder a pergunta: o que entendemos por crise? Para o Dicionário Aurélio significa:

Estado de dúvidas e incertezas; fase difícil, grave na evolução das coisas, dos fatos, das ideias; momento perigoso ou decisivo [...]. Situação grave em que os acontecimentos da vida social, rompendo padrões tradicionais, perturbam a organização de alguns ou de todos os grupos integrados na sociedade (Ferreira, 2005, p. 402).

No “Dicionário do Pensamento Marxista”, editado por Tom Bottomore, encontramos o verbete “crise da sociedade capitalista”, onde se lê:

Os marxistas têm, tradicionalmente, concebido crise como colapso dos princípios básicos de funcionamento da sociedade. Na sociedade capitalista, acredita-se que tal colapso seja gerado pelo processo de acumulação, determinado pela tendência decrescente da taxa de lucro. No entanto, é necessário distinguir, de um lado, as crises ou colapsos parciais e, de outro, crises que conduzem à transformação de uma sociedade ou formação social (Bottomore, 1983, p. 70).

As crises parciais “referem-se a fenômenos com os ciclos econômicos que envolvem surtos de prosperidade aparentemente intermináveis, seguidos de graves declínios da atividade econômica e são uma face crônica do capitalismo” (Bottomore, 1983, p. 71). Já as crises gerais envolvem o colapso generalizado das relações econômicas e políticas, dado ao enfraquecimento do princípio organizador da sociedade capitalista: o trabalho assalariado.

O “Dicionário do pensamento social do século XX” acrescenta que “falamos de ‘crise’ em relação a sujeitos, a uma vida ou uma forma de vida, a um sistema ou uma ‘esfera’ de ação” (Outhwaite; Bottomore, 1996, p. 155). Por se tratarem sempre de uma totalidade histórica, “as crises decidem se uma coisa perdura ou não. O caso paradigmático de crise é a crise de vida, na qual, se levada ao extremo, está se tratando de uma questão de vida ou morte” (Outhwaite; Bottomore, 1996, p. 156, grifo nosso).

Considerando as definições anteriores, ainda que a lógica da crise climática não seja suficiente para deixar o caminho do crescimento econômico e a acumulação capitalista instáveis no sentido de provocar alguma coisa, fundamentalmente, diferente, não resta dúvida de que as contradições seres humanos-natureza se acirraram nos últimos 100 anos. Trata-se de uma questão de vida ou morte, pois coloca em xeque os rios, as florestas, os mares, promovendo a ruptura do sociometabolismo ser humano-natureza. No atual contexto em que ganham força material as ideias de negacionismo climático, terraplanismo, movimento antivacina e, com elas, as necropolíticas cabe perguntar “quais as consequências disso para as formas da luta social?” (Bottomore, 1983, p. 83).

Tem sido comum escutar que é mais fácil o mundo acabar do que acabar o capitalismo. Para Outhwaite e Bottomore (1996, p. 157), o pior é que, embora possamos tornar uma pessoa consciente da crise de uma forma de vida social específica, a crítica por si só “se preocupa com a validade dos argumentos ‘verdadeiros ou falsos’, precisos ou imprecisos”. Na verdade, os filósofos se limitaram a interpretar o mundo, no entanto, trata-se de transformá-lo, pois é na prática que homens e mulheres devem demonstrar a verdade, isto é, “a realidade e o poder, o caráter terreno de seu pensamento” (Marx; Engels, 1987, p. 12). Nessa perspectiva, o enfrentamento da crise requer a vontade coletiva de homens e mulheres da classe trabalhadora se tornarem sujeitos criadores de história e controlarem aqueles que, transitoriamente, a dirigem (Gramsci, 1991). Um dos desafios dos movimentos sociais populares e também das políticas públicas de Educação que visam à formação humana integral é criar bases materiais e simbólicas para a autodeterminação e o autogoverno da classe trabalhadora.

A idade do planeta Terra, estimada em 4,54 bilhões de anos, não coincide com a idade do capitalismo, que pode ser entendido como tempo de longa duração (Braudel, 1992). Tampouco a história do meio ambiente teve seu início quando os seres humanos entraram em cena no universo. Assim, precisamos criar estratégias que abranjam muitas dimensões da vida, tecendo práticas políticas, econômico-culturais e educativas que contribuam para a refundação das relações entre seres humanos e natureza sob outros paradigmas. Evidentemente, a realização dessa utopia não pode ter como referência os “homens-de-negócio”; não pode ter como referência uma sociedade de classes, muito menos sociedades marcadas pelo fascismo ou protofascismo. A realização da utopia de um mundo sem amos não está na sociedade produtora de mercadorias, mas em uma sociedade dos produtores livres associados (Marx, Engels, 1987) construído cotidianamente nos processos de luta contra a hegemonia do capital sobre o trabalho e que se generalize em âmbito planetário.

Além de denunciar a produção destrutiva do capital e seu caráter desumano, acreditamos ser preciso anunciar que outro mundo é possível. Dizer que o modo de produção capitalista é hegemônico significa dizer que é hegemônico a outros modos de produção da existência humana, entre eles o dos povos e comunidades tradicionais e o de outros povos do campo. Em nosso entender, é preciso políticas públicas educativas que defendam os modos não capitalistas de produção da vida sobre os quais, historicamente, avança o capital em seus processos de acumulação. Nas palavras de Williams (2011b, p. 59), é preciso considerar o que está “fora” do lado dominante, pois:

Nenhum modo de produção e, portanto, nenhuma sociedade dominante ou ordem da sociedade e, destarte, nenhuma cultura dominante pode esgotar toda gama de prática humana e da intenção humana (essa gama não é o inventário de alguma “natureza humana” original, mas ao contrário, é aquela gama extraordinária de variações práticas e imaginadas pelas quais seres humanos se veem como capazes).

Sobre as relações históricas entre trabalho e educação, reafirmamos que todo projeto educativo carrega consigo um projeto societário e vice-versa. Assim, no horizonte de superação do capitalismo, os processos educativo-formativos da classe trabalhadora têm como objetivo a criação de relações de novo tipo entre trabalho e educação, o que pressupõe a (re)integração de saberes a partir de um novo equilíbrio entre atividade intelectual e esforço muscular-nervoso. Ao mesmo tempo, requerem que “o próprio esforço muscular-nervoso, enquanto elemento de uma atividade prática geral, que inova continuamente o mundo físico e social, torne-se o fundamento de uma nova e integral concepção de mundo” (Gramsci, 1991, p. 08). Na perspectiva da reprodução ampliada da vida, políticas públicas que promovam a formação integral e omnilateral de trabalhadores/as (inclusive dos trabalhadores educadores) é parte integrante do processo maior de ir e vir na teoria e na prática, da dinâmica de fazer/pensar/refazer a realidade humano-social considerando os processos históricos, que, como adverte Thompson (2021), são processos históricos estruturados.

Texto concluído em meio às catástrofes ocorridas no Rio Grande do Sul, em maio de 2024.

Referências

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  • WILLIAMS, R. Cultura e materialismo. São Paulo: Editora Unesp, 2011a.
  • WILLIAMS, R. O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2011b.
  • 1
    O presente trabalho resulta de estudos e pesquisas realizadas no Minka – Coletivo de Pesquisa em Trabalho-educação, Cultura e Produção de Saberes, uma rede nacional de pesquisadores (as) de quatro universidades públicas brasileiras (Universidade Federal Fluminense – UFF/Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS/Universidade Federal do Pará – UFPA/Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB) que aborda temáticas sobre modos de produção da existência que se circunscrevem entre a reprodução ampliada da vida e a reprodução ampliada do capital.
  • 2
    O Baixo Tocantins é uma das regiões de colonização mais antigas do estado do Pará, Amazônia, sendo constituído por sete municípios – Abaetetuba, Igarapé-Miri, Limoeiro do Ajuru, Cametá, Mocajuba, Baião e Oeiras do Pará.
  • 3
    Conforme IBGE (2022), Cametá é um município onde vivem comunidades quilombolas, extrativistas, povos das águas e da floresta, populações urbanas, rurais, camponesas e ribeirinhas. Tem mais de 380 anos e conta com uma população de 134.184 habitantes. A maior parte de seus habitantes vive na zona rural e em comunidades ribeirinhas.
  • 4
    Sobre a categoria povos e comunidades tradicionais, ver Cruz (2012).
  • 5
    Para mais detalhes ver a página web da MordonIntelligence. Disponível em: https://www.mordorintelligence.com/pt/industry-reports/analysis-of-fisheries-and-aquaculture-sector-in-brazil. Acesso em: 18 jul. 2024.
  • 6
    Além do agronegócio, precisamos estar atentos ao hidronegócio, tendo em conta, entre outros, que o uso crescente de inseticidas, herbicidas e outros agrotóxicos contribui para poluir as águas e extinguir espécies nativas da fauna e da flora dos rios.
  • 7
    Como disse um trabalhador, cuja comunidade pesqueira, no Espírito Santo, foi atingida por um crime ambiental da Vale que destruiu a Bacia do Rio Doce impedindo, em grande medida, a atividade da pesca, “não existe pescador sem pesca”, o que nos permite reafirmar a centralidade do trabalho na formação humana (Aquino, 2023).
  • 8
    A ideia do adiar o fim do mundo é de Krenak (2019).
  • Dados:
    Os dados que suportam as análises feitas no artigo podem ser encontrados diretamente nas fontes citadas.
  • Financiamento:
    O segundo autor é bolsista CNPq – PQ2.

Disponibilidade de dados

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Out 2024
  • Data do Fascículo
    Out 2024

Histórico

  • Recebido
    22 Ago 2024
  • Aceito
    24 Set 2024
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