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Era uma vez... um estudo de caso sobre histórias e estórias adotivas

Once upon a time... A case study on adoption history and stories

Resumo

Trata-se de pesquisa-intervenção, ancorada por estudo de caso instrumental, que objetivou verificar os efeitos da narrativa de histórias na elaboração de angústias da adoção de criança maior, bem como mediar a inserção na família adotiva. Participaram do estudo a mãe e o pai adotivos e um garoto de seis anos. Para a coleta de dados foram utilizadas entrevistas semiestruturadas com os adotantes, enquanto com a criança se submeteu o Procedimento Desenho--Estória e sessões de narração de histórias infantis com a temática adotiva. Os resultados revelaram a importância dos contos para viabilizar reflexões e elaborações sobre o processo de adoção, assim como para auxiliar o contato com angústias primitivas e facilitar a inserção na nova família. A despeito do amparo proporcionado à criança através da narração das histórias, identificou-se a necessidade de fornecer suporte psicológico ao grupo familiar, a fim de solidificar a construção dos vínculos afetivos.

Palavras-chave:
Adoção; Criança; Narração de estórias; Psicanálise

Abstract

An intervention research based on an instrumental case study aimed at verifying the effects of storytelling on the anxiety resulting from the adoption of an older child and at assessing the child integration into the foster family. The adoptive mother and father of a six-year-old boy participated in this study. Data were collected through semi-structured interviews conducted with the adoptive parents. The story-drawing procedure and children's storytelling sessions sharing stories about adoption were used with the child. The results revealed the importance of stories to promote reflections and elaborations on the adoption process, help the contact with primitive anxieties, and facilitate the integration into the new family. Although the use of storytelling provides support to the child, we identified the need to provide psychological support to the family in order to foster the establishment of affective ties.

Keywords:
Adoption; Child; Storytelling; Psychoanalysis

A partir da promulgação da Lei nº 12.010, também conhecida como a "Nova Lei da Adoção", observam-se no cenário brasileiro importantes alterações na concepção e construção do processo de filiação adotiva, o que permite uma inovadora visão sobre o tema. Em vigor desde agosto de 2009, destaca-se como questão central a prioridade dada à criança, principalmente quando se trata do tempo despendido pelo Judiciário na decisão acerca da reinserção na família de origem ou extensa e, em último caso, da disponibilização para adoção. Segundo essa lei, a destituição do convívio familiar e a inserção em programas de adoção devem ser decididas pelo Judiciário dentro de no máximo dois anos (Brasil, 2009Brasil. (2009). Presidência da República. Lei nº 12.010, de 3 de agosto de 2009. Nova lei nacional da adoção. Recuperado em agosto 6, 2013, de Recuperado em agosto 6, 2013, de http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L12010.htm
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), o que diminui consideravel-mente a permanência da criança na instituição, favorecendo o crescimento afetivo no seio de uma nova família.

A possibilidade de reconstrução da con-cepção de família proporcionada pela nova lei promoveu o desenvolvimento de uma cultura da adoção. Se antes era vista de maneira precon-ceituosa, encoberta por medos, silêncios e mitos do senso comum (Vargas, 1998Vargas, M. M. (1998). Adoção tardia: da família sonhada à família possível São Paulo: Casa do Psicólogo .), atualmente a mídia aponta que a população está superando os pre-conceitos. Os brasileiros estão aceitando adotar crianças maiores de dois anos ou de diferentes raças, além daquelas com necessidades especiais, as quais antes estavam fadadas a crescer em situação de acolhimento. Em decorrência das alterações nas configurações familiares e da possibilidade de pen-sar sobre uma nova cultura instituída, o processo adotivo hoje se dá por múltiplas formas e contextos, ou seja, mesmo se observando que a maior deman-da parte de jovens casais com problemas de inferti-lidade, o desejo pela adoção é manifestado também por casais com filhos biológicos, casais na meia ida-de, casais homoafetivos e pessoas solteiras. Dessa forma, a adoção não tem sido mais vista como a última opção de casais que não podem gerar seus filhos biológicos, mas sim como outra possibilidade de constituição familiar, podendo resultar em vivên-cias satisfatórias tanto para os pais quanto para as crianças (Schettini, Amazonas, & Dias, 2006Schettini, S. S. M., Amazonas, M. C. L. A., & Dias, C. M. S. B. (2006). Famílias adotivas: identidade e diferença. Psicologia em Estudo, 11(2), 285-293. Recuperado em fevereiro 12, 2013 de Recuperado em fevereiro 12, 2013 de http://www.scielo.br/pdf/pe/v11n2/v11n2a06.pdf
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).

Em geral os processos de filiação por adoção não apresentam distinções entre si, mas existem alguns que requerem atenção especializada e cuida-do por parte daqueles que se propõem a acom-panhá-los. Tais processos apresentam uma menor demanda, como a adoção de irmãos e de portadores de doenças físicas e mentais, assim como a adoção inter-racial e a de crianças acima de dois anos de idade, hoje preferencialmente nomeada de adoção de crianças maiores (Ferreira & Carvalho, 2000Ferreira, M. P., & Carvalho, S. R. (2000). 1º Guia de adoção de crianças e adolescentes do Brasil. Novos caminhos, dificuldades e possíveis soluções. São Paulo: Winners.; Peiter, 2011Peiter, C. (2011). Adoção: vínculos e rupturas: do abrigo à família adotiva. São Paulo: Zagodoni.).

Tendo em perspectiva o sofrimento da crian-ça mais velha que foi institucionalizada após perder o convívio familiar, é importante ressaltar que, ao se desvincular de quem lhe prestava os cuidados, mesmo que insuficientes ou inadequados, e sob o cuidado de diferentes pessoas e instituições, há uma descontinuidade na linha da vida, que pode levar ao prejuízo do desenvolvimento adequado da perso-nalidade (Hueb, 2002Hueb, M. F. D. (2002). Privação materna e adoção tardia: ferida na alma ou travessia compartilhada (Dissertação de mestrado não-publicada). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.). Sabendo que as primeiras vivências da criança são de extrema importância para a formação de seu psiquismo, pode-se inferir que a privação de cuidados e afetos adequados tende a acarretar sérias dificuldades afetivas, inclusive instabilidade emocional. Nesse sentido, Peiter (2011Peiter, C. (2011). Adoção: vínculos e rupturas: do abrigo à família adotiva. São Paulo: Zagodoni.) faz uma interessante associação entre os encontros e despedidas na adoção de crianças maiores.

Diferentes braços acolheram, ou não acolhe-ram a criança, que pode ter experimentado sucessivas vezes a árdua tarefa de ligar-se e desligar-se de pessoas a sua volta. Falamos então de um percurso de vínculos e rompi-mentos, que podem ter ocorrido sem um necessário processo elaborativo trazendo consequências na formação de novos vín-culos (p.51).

Portanto, ressalta-se que o prolongamento estabelecido entre as vivências de separação da mãe biológica e o amparo pela família adotiva pode acarretar marcas no desenvolvimento da persona-lidade e dificultar o estabelecimento das relações objetais, desencadeando o sentimento de desam-paro na criança (Levinzon, 2008Levinzon, G. K. (2008). A criança adotiva na clínica psi-canalítica (2ª ed.). São Paulo: Escuta.). Essas separações abruptas, em geral, são vivenciadas por intensos desconfortos, os quais Winnicott (1963/1983)Winnicott, D. W. (1983). Da dependência à indepen-dência no desenvolvimento do indivíduo. In D. W. Winnicott (Org.), O ambiente e os processos de ma-turação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional Porto Alegre: Artes Médicas. (Original-mente publicado em 1963). deno-minou de angústias imagináveis ou de angústias de aniquilamento.

Levizon (2008)Levinzon, G. K. (2008). A criança adotiva na clínica psi-canalítica (2ª ed.). São Paulo: Escuta. afirma que a angústia de separação e a sensação de aniquilamento repre-sentam a questão central do psiquismo do adotado, e que a complexidade dessa angústia, associada à díade vinculação e abandono, pode se sobressair em tais crianças. Isso se deve ao fato de a dependên-cia do objeto de amor ser sentida como ameaça-dora, uma vez que o medo de um novo abandono faz com que elas continuamente entrem em contato com vivências anteriores de aniquilamento, para a citada autora. Entretanto, o desenvolvimento de um bom contato com o adotante pode ajudar a criança maior a se sentir compreendida e contida, podendo suprir, "pelo menos em parte, as rupturas no desen-volvimento e as condições adversas que dificultam a formação de um ego bem estruturado" (Levinzon, 2008Levinzon, G. K. (2008). A criança adotiva na clínica psi-canalítica (2ª ed.). São Paulo: Escuta., p.44).

Partindo da premissa de que todo encontro é também despedida, deduz-se que toda despedida pode vir a ser um novo encontro (Peiter, 2011Peiter, C. (2011). Adoção: vínculos e rupturas: do abrigo à família adotiva. São Paulo: Zagodoni.), a depender do investimento afetivo dos envolvidos. Nesse sentido, para que se processe um vínculo gratificante entre adotante e adotado é importante que a criança reviva suas separações para poder dirigir-lhes novos significados. Logo, o objetivo deste trabalho vai ao encontro da necessidade de ressignificação da nova filiação, propondo verificar os efeitos da narrativa de histórias infantis na elabo-ração das angústias da criança maior e ser me-diadora da inserção na família adotiva.

Método

Participaram deste estudo uma criança de seis anos, Nicolas, e seus pais adotivos, Carlos e Joana. Trata-se de um recorte de uma pesquisa-interventiva mais ampla, desenvolvida com seis crianças, adotadas após os dois anos de idade. Optou-se pelo estudo de caso instrumental (Stake, 2000Stake, R. E. (2000). Case studies. In N. K. Denzin & Y. S. Lincoln (Orgs.), Handbook of qualitative research (pp.435-454). London: Sage.), de uma criança dentre as seis pesquisadas, por se tratar do único caso de guarda provisória concretizado um mês antes do início da coleta de dados, fato que possibilitou acompanhar mais proxi-mamente o desenvolver da inserção familiar, dife-rentemente das outras cinco crianças, que haviam sido adotadas há mais de quatro anos. Os pais adoti-vos foram informados dos procedimentos que se-riam realizados e assinaram o Termo de Consenti-mento Livre e Esclarecido (TCLE), assim como auto-rizaram a participação da criança. Esta também foi informada sobre os encontros e o assunto a ser abor-dado, e consentiu verbalmente em participar. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pes-quisa da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, por meio do Parecer nº 2251/2012.

Instrumentos

Para a coleta de dados foram utilizados três instrumentos norteadores, a saber: Entrevistas se-miestruturadas com o casal adotante; Procedimento Desenho-Estória Com Tema (DE-T); e Narração de histórias infantis com a criança.

Procedimentos

O estudo foi dividido em três fases. Na pri-meira delas entrevistaram-se os pais com o propó-sito de investigar sobre a história de vida do filho e de como estavam vivenciando o processo adotivo. Nessa mesma fase realizou-se o primeiro DE-T com a criança, tendo como tema "Desenhe a sua famí-lia" e conforme orientado por Trinca (1997Trinca, A. M. T. (1997). Avaliação e expansão. In W. Trinca (Org.), Formas de investigações clínica em psicologia: procedimento de desenhos-estória (pp.35-66). São Paulo: Vetor.), so-licitou-se que contasse uma estória a respeito do que havia desenhado e que lhe desse um título.

Na segunda fase, durante cinco semanas, tendo como suporte cinco livros infantis com a te-mática adotiva, narraram-se histórias para o par-ticipante. Após a leitura dos livros "A estrelinha distraída" (Souza, 2010Souza, H. P. (2010). A estrelinha distraída: adoção para crianças. Curitiba: Juruá.), "Adotar uma estrela" (Mostacchi, 1995Mostacchi, M. (1995). Adotar uma estrela. São Paulo: Paulus.), "Uma dose de amor" (Souto, 1997Souto, M. A. G. (1997). Uma dose de amor. São Paulo: Edicon.), "O dia em que eu fiquei sabendo" (Bel, 2004Bel, L. (2004). O dia em que eu fiquei sabendo. São Paulo: Salamandra.) e "O filho por adoção" (Weber, 2004Weber, L. N. D. (2004). O filho por adoção: um manual para crianças. Paraná: Juruá.), o garoto era estimulado a conversar livremente sobre os conteúdos apresentados e relacioná-los com suas vivências atuais, finalizando com a produção de tra-balhos artísticos, como desenhos e colagens que recontavam ou ilustravam cada história.

Na terceira e última fase, os adotantes foram novamente entrevistados a fim de verificar se houve percepção de mudanças significativas no relaciona-mento paterno-filial. Com a criança, realizou-se o segundo DE-T com a mesma temática do primeiro, "Desenhe a sua família". Manteve-se a mesma ins-trução, com a finalidade de compará-lo com o pri-meiro DE-T e verificar se houve alterações após as intervenções com a narração das histórias citadas.

As entrevistas semiestruturadas e os comen-tários pós narração de histórias foram analisados segundo o Processo Compreensivo, que consiste em dar um sentido e reconhecer o que é relevante e significativo para o participante (Trinca, 1984Trinca, W. (1984). Processo diagnóstico de tipo com-preensivo. In W. Trinca (Org.), Diagnóstico psicológico: a prática clínica (pp.14-24). São Paulo: EPU.), en-quanto o DE-T foi analisado segundo o referencial de Tardivo (2011Tardivo, L. S. L. P. C. (2011). O procedimento de Desenhos-Estórias (D-E) e seus derivados: fundamentação teórica, aplicações em clínica e pesquisa. In A. E. Villemor-Amaral & B. S. G. Werlang (Orgs.), Atualizações em métodos projetivos para avaliação psicológica (pp.435-454). São Paulo: Casa do Psicólogo .).

Breve história sobre Nicolas

Ao iniciar a pesquisa, Nicolas, então com seis anos de idade, e seu irmão, que acabara de com-pletar dois anos, se encontravam em processo de guarda provisória. As crianças haviam sido acolhidas pelo casal Carlos e Joana, com idade média de 55 anos, no mês anterior ao início da coleta de dados do estudo. Destaca-se que o garoto mais novo não participou da pesquisa por não se inserir no critério de adoção de criança maior. Antes de Nicolas vir a conviver com o casal adotante, havia residido por quatro anos de forma intermitente em uma Insti-tuição de Acolhimento em uma cidade do interior de Minas Gerais. Nessa época foram realizadas algumas tentativas de reintegração em sua família biológica e família extensa, sem êxito. Em suas idas e vindas durante a institucionalização, o menino presenciou vários conflitos entre seus pais bioló-gicos. Durante o período que permaneceu na Instituição, Nicolas vivenciou algumas tentativas frustradas de adoção, sendo devolvido em uma delas; porém seu processo de filiação só se iniciou com a família atual. A criança chegou ao Centro de Estudo e Pesquisa em Psicologia Aplicada (CEPPA) por intermédio dos pais adotivos, com a queixa de que ele apresentava dificuldade em adaptar-se à nova casa e à nova cidade, apresentan-do sintomas de enurese e terror noturno.

Resultados e Discussão

Segundo o casal adotivo, o local onde Ni-colas estava institucionalizado era uma cidade próxi-ma ao município da residência familiar e, dessa forma, eles se hospedaram em um hotel por uma semana para conhecer as crianças e conviver com elas, assim como para organizar a documentação necessária à adoção. Ao se encontrarem pela pri-meira vez, dentro da Instituição, os meninos de-monstraram estar ansiosos, porém foram receptivos e logo ficaram à vontade com os visitantes. Após o primeiro contato, mantiveram encontros diários dentro e fora da instituição de acolhida, para que pudessem estabelecer o início de um bom vínculo durante a fase de convivência e transição que os preparasse para a mudança de cidade e moradia e para a constituição de uma nova família.

Ao final da semana o casal retornou com os novos filhos para a cidade de origem, optando por viajar ao entardecer. Nicolas adormeceu durante o percurso e só despertou ao chegar à nova casa, por volta das 21 horas. Ao acordar a noite sem reconhe-cer o local onde estava, o menino, muito assustado, entrou em pânico e começou a chorar, o que denota que as mudanças de cidade, de cuidadores e de moradia fizeram desencadear o reviver de vários abandonos e rompimentos afetivos ao longo da curta, mas sofrida história de vida. Segundo Silva (2009Silva, J. A. (2009). Adoção de crianças maiores: per-cepções e vivências dos adotados (Dissertação de mestrado não-publicada). Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Recuperado em fevereiro 12, 2013, de Recuperado em fevereiro 12, 2013, de http://www1.pucminas.br/documentos/dissertacao_jaqueline_araujo.pdf
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), é importante a elaboração de um segundo luto ao se desvincular dos laços afetivos esta-belecidos na Instituição. Nesse sentido, o contato com o novo desencadeou em Nicolas defesas ligadas ao medo de um possível abandono em relação à nova família (Levinzon, 2009Levinzon, G. K. (2009). Adoção. Clínica psicanalítica (3ª ed.). São Paulo: Casa do Psicólogo .), uma vez que outros tantos se registravam em sua memória.

Após a mudança, os pais relataram difi-culdade da criança em dormir, pesadelos frequentes e enurese noturna, a qual não se dava na instituição de acolhimento. Demonstraram muita preocupação e dúvidas sobre como lidar com a reação do menino, o que não difere da literatura. Ferreira (2003Ferreira, R. P. (2003). Adoção tardia e adaptação à vida em família na perspectiva dos pais (Dissertação de mestrado não-publicada). Universidade Católica de Pernambuco., p.50), focando as relações entre adotantes e adotado, afir-ma que "todos os envolvidos direta ou indireta-mente nessa chegada da criança passam a viver um processo de adaptação, de ajustamento a uma novíssima situação". Diante da preocupação dos novos pais, destaca-se a importância de compreen-der a adoção como um processo, no qual as relações vão se estreitando aos poucos, conforme a convi-vência, pois "necessita de tempo, compreensão e amor para que possa existir" (Silva, 2009Silva, J. A. (2009). Adoção de crianças maiores: per-cepções e vivências dos adotados (Dissertação de mestrado não-publicada). Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Recuperado em fevereiro 12, 2013, de Recuperado em fevereiro 12, 2013, de http://www1.pucminas.br/documentos/dissertacao_jaqueline_araujo.pdf
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, p.58).

Os sentimentos angustiantes vivenciados por Nicolas e relatados pelo casal adotivo podem ser mais bem compreendidos a partir do primeiro DE-T realizado pela criança, que conseguiu expressar sua dificuldade em conciliar os diferentes acontecimen-tos de sua vida (Figura 1).

A produção contém várias informações e ambiguidades, as quais demonstram seus senti-mentos derivados do conflito "abandono versus novo vínculo". A partir da representação simultânea do sol e da lua, do arco-íris e da chuva, aqui com-preendidos como símbolos da claridade e da escuri-dão, a criança reforçou o que havia contado no iní-cio do desenho: "eu não sei desenhar coisas difí-ceis". Quando questionado sobre o que seria um desenho difícil, informou: "desenhar coisa que eu não dou conta", ou seja, não conseguia expressar as mazelas da vida, o que é de difícil compreensão para uma criança tão jovem e com uma história de muito sofrimento.

Nicolas relatou, através de palavras e da produção do DE-T, sua dificuldade em compreender seu histórico de abandono, mostrando claramente os sentimentos que o invadiam: o de angústias im-pensáveis, para as quais não têm definição. Segundo Silva (2009Silva, J. A. (2009). Adoção de crianças maiores: per-cepções e vivências dos adotados (Dissertação de mestrado não-publicada). Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Recuperado em fevereiro 12, 2013, de Recuperado em fevereiro 12, 2013, de http://www1.pucminas.br/documentos/dissertacao_jaqueline_araujo.pdf
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), o reviver das perdas dos laços afetivos de uma criança adotada mais velha, demanda cuida-dos especiais para que esta consiga elaborar vivên-cias anteriores, de forma a não acarretar reflexos negativos na constituição dos novos vínculos. Ao dizer que não dá conta de desenhar coisas difíceis, Nicolas anuncia sua necessidade de cuidado em relação às mudanças que ocorreram ao ingressar na nova família.

Devido às sensações de difícil definição e à descontinuidade dos vínculos primários em suas vivências, ao desenhar o primeiro DE-T, apesar da solicitação "Desenhe sua família", a criança não a representou. Desenhou apenas a si próprio, bem pequeno e com uma casa ao lado, como pode ser observado na Figura 1. Em relação a si, demonstrou necessidade e preocupação em ser aceito, pedindo por vezes à investigadora que guardasse segredo sobre os acontecimentos de sua vida, o que foi com-preendido como forma de evitar que todo passado de sofrimento, assim como sentimentos ambiva-lentes em relação aos pais, não os incomodassem, o que supostamente poderia causar outro aban-dono. De forma semelhante ao relatado por Briani (2008Briani, A. C. T. (2008). A subjetividade na adoção: um pequeno ensaio. Contemporânea: Psicanálise e Trans-disciplinaridade, 6, 36-54. Recuperado em janeiro 18, 2014, de Recuperado em janeiro 18, 2014, de http://www.revistacontemporanea.org.br/site/wp-content/artigos/artigo187.pdf
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), ao desenhar sua imagem, Nicolas buscava a construção de si como sujeito diferenciado, mas trazendo consigo os reflexos das falhas básicas que o acompanhavam, como demonstrado por sua figu-ra sozinha, segurando um fio de pipa cortado, sem vínculo.

Figura 1
Primeiro Desenho-Estória com Tema.

Segundo Briani (2008Briani, A. C. T. (2008). A subjetividade na adoção: um pequeno ensaio. Contemporânea: Psicanálise e Trans-disciplinaridade, 6, 36-54. Recuperado em janeiro 18, 2014, de Recuperado em janeiro 18, 2014, de http://www.revistacontemporanea.org.br/site/wp-content/artigos/artigo187.pdf
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, p.52), é possível captar "na transferência que há sentimentos e fan-tasias pré-verbais tão primitivas que escapam à expressão da linguagem, precisando ser revividas, reconstruídas e colocadas em palavras, com a ajuda do terapeuta". Ao possibilitar que Nicolas recor-dasse as diferentes vivências pelas quais passou, a pesquisadora-terapeuta o ajudou a reconstruir e experienciar sensações inquietantes para que assim, posteriormente, iniciasse o processo de elaboração dos acontecimentos.

Recordar o anteriormente vivenciado e vis-lumbrar a possibilidade de um futuro diferente oca-sionaram sensações que transbordaram, deixando--o permanecer no escuro, assim como contou sobre o primeiro DE-T, em que a lua era "rudiada" por São Jorge. A confusão de pensamentos, que se apresentavam em grandes proporções, fez a criança dizer que o desenho não tinha estória, que a parte escura era indefinida. Infere-se que tais mani-festações de angústia engendradas ao seu redor são despertadas por reavivarem os sentimentos relativos às separações. Por vezes a criança sente que não pode conter dentro de si sentimentos que vêm acompanhados pela fantasia de perda (Briani, 2008Briani, A. C. T. (2008). A subjetividade na adoção: um pequeno ensaio. Contemporânea: Psicanálise e Trans-disciplinaridade, 6, 36-54. Recuperado em janeiro 18, 2014, de Recuperado em janeiro 18, 2014, de http://www.revistacontemporanea.org.br/site/wp-content/artigos/artigo187.pdf
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).

(Re) construindo a história...

"Obrigada estrelinha distraída, graças às suas confusões somos papai, mamãe e filhinha" (Souza, 2010Souza, H. P. (2010). A estrelinha distraída: adoção para crianças. Curitiba: Juruá., p.5), repetiu Nicolas ao iniciarmos a primeira das cinco histórias infantis sobre a adoção. Ao entrar em contato com os livros infantis, demonstrou bas-tante atenção em relação aos acontecimentos e vivências dos personagens de cada história, apre-sentando diferentes reações no decorrer da nar-ração. Durante as cinco semanas que se seguiram, nas demais leituras, expressou aos poucos sua fami-liaridade com o assunto, podendo compartilhar estórias e histórias sobre o tema.

O apropriar-se das vivências dos personagens narrados nos encontros proporcionou-lhe o contato com suas próprias angústias inquietantes. Segundo Bettelheim (1980Bettelheim, B. (1980). A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra.), os contos possibilitam, de ma-neira suave, que as crianças tenham certo controle sobre seus dramas internos e busquem soluções para seus dilemas. Seguindo a mesma linha de pensamento, Rosa (2008Rosa, D. B. (2008). A narratividade da experiência adotiva: fantasias que envolvem a adoção. Psicologia Clínica, 20(1), 97-110. Recuperado em fevereiro 12, 2013, de Recuperado em fevereiro 12, 2013, de http://www.scielo.br/pdf/pc/v20n1/07.pdf
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) acrescenta que os bene-fícios não se restringem aos contos de fadas; inclu-sive afirma que toda e qualquer história utilizada para o reconhecimento de fantasias é útil por permi-tir a colocação das angústias em palavras. Aponta ainda que "as histórias infantis sempre tiveram o poder de auxiliar as crianças a nomear e suportar seus conflitos básicos" (p.99).

Nesse sentido, pode-se associar a impor-tância dos contos infantis ao pensamento lacaniano. "O fato de que o sujeito revive e rememora os eventos formadores da sua existência no sentido intuitivo da palavra, não é em si mesmo, tão impor-tante. O que conta é o que ele disso reconstrói", diz Lacan (1953/1986, p.22). Dessa forma de-preende-se que Nicolas pôde então reconstruir e reviver experiências em relação à adoção, a partir do contato com as narrações.

Ao reviver sua história, reorganizou-se ao expressar angústias, das quais a mais evidente pare-ce ter sido a da sua estada na Instituição de Acolhi-mento, associada a outras tentativas frustradas de adoção. Conversando sobre a estória da estrelinha distraída, aquela que entregou uma criança por engano para outro casal (Souza, 2010Souza, H. P. (2010). A estrelinha distraída: adoção para crianças. Curitiba: Juruá.), expôs que não se pode entregar um filho para outra pessoa: "Porque se não... se não... o filho que deu pra outra pessoa vai para a Casa Lar. Vai para a adoção. Aí depois vai pra outra família, aí depois vai para a Casa Lar e aí depois vai para outras famílias". Tantas vezes assim? Perguntou a pesquisadora. "Anham. Já fez isso comigo, me adotou toda hora, todo, todo, todo dia que eu tava na Casa Lar".

Essa expressão deixa claro como todo o pro-cesso de institucionalização foi angustiante e incom-preensível para ele, com as idas e vindas durante o período de acolhimento: tentativa sem êxito de recolocá-lo em sua família biológica e, posterior-mente, tentativas frustrantes de adoção.

Segundo Peiter (2011Peiter, C. (2011). Adoção: vínculos e rupturas: do abrigo à família adotiva. São Paulo: Zagodoni., p.50), "reviver cir-cunstâncias de dependência absoluta ou de de-samparo nos assusta, levando-nos a angústias e medos conhecidos e desconhecidos, mesmo que não lembrados conscientemente". Nesse sentido, os encontros e despedidas presenciados expuseram a criança a novas descontinuidades de vínculos, fazendo-a reviver medos primitivos e a angústia de separação.

Esse sentimento angustiante se fez presente também em seu relato sobre os dias em que per-maneceu na Instituição à espera de uma família, os quais puderam ser colocados em palavras quando Nicolas relatou sua experiência de adoção:

Quando você é adotado, nois vai pra..., nois fica sessenta dias, sessenta mil, sessenta dias, nossa... . Duzentos dias sem sê adotado. Ai em sessenta, no final de sessenta já de noite, já de noite que nois tem que ir embora, de dia não dá.

Para a criança, os quatro anos instituciona-lizados foram visceralmente sentidos e experien-ciados como intermináveis sessenta mil dias à espera de uma família que o acolhesse como filho. E quan-do finalmente os dias se passaram e a viagem para sua nova casa ocorreu à noite, viu-se imerso em sentimentos ambivalentes, dentre eles o medo do novo. Seria um bom lugar, uma boa família, ou seria novamente devolvido?

Apesar das angústias do novo contidas nas expressões do menino, é possível perceber em outro recorte de sua fala a vontade de se afastar do que ele até então conhecia como família: "Eu ficava triste, não gosto que ninguém briga, por isso que eu não quero essa família mais, porque eles briga muito. A minha família biológica".

Ao final das cinco semanas de narrações, Nicolas, ainda demonstrando a confusão de senti-mentos, conseguiu expressar simbolicamente o pro-cesso pelo qual estava passando. Ao término do último livro (Weber, 2004Weber, L. N. D. (2004). O filho por adoção: um manual para crianças. Paraná: Juruá.), criou espontaneamente o que nomeou de "uma novela" à qual intitulou Guerra de Amor. Em voz alta, pôs-se a dizer:

Já faz amor. Em um dia, no coração, quando não se é adotado o coração é todo preto, mas quando vem uma família..., no primeiro dia que a família chega prá adotá... . Ainda nois não somo adotado, quando nois ainda tá no abrigo [fala bem baixinho]. Quando, eu fui adotado no abrigo, aí quando as pessoa da família chegou meu coração ficou vermelhinho e branco. E essa parte aqui, desses peito aqui, uma parte ficou um pouco preta. Então... aí ficou de outro jeito, ficou com cor de ouro.

Com a voz trêmula, baixa e fala aparente-mente confusa, e sem muita estruturação lógica de começo, meio e fim, conseguiu poeticamente expressar a inquietude de sua vida em uma novela - novela nomeada como sendo uma guerra: brigas físicas entre os pais biológicos e brigas internas da própria criança, mas que permanece com esperança pelo amor. É através do simbolismo do coração antes preto, depois vermelhinho e em seguida cor de ouro, que ele revive sua história: pulsante com a chegada dos novos pais, marcado pelos acontecimentos e vínculos desfeitos, porém, esperançoso para se tornar cor de ouro, precioso para alguém.

O resgate da história afetiva e social de Nico-las através das intervenções pareceu-nos ter-lhe dado novos contornos psíquicos às vivências emo-cionais dissociadas. Esse fato é também compar-tilhado por Góis (2005Góis, C. A. (2005). O estranho e o fantástico: uma inter-venção terapêutica em um caso de adoção. Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento Humano, 15(2), 111-118.), que assegura que o bene-fício da construção narrativa da adoção, por inter-médio do terapeuta, possibilita a reconstrução de histórias e identidades dos adotados a partir da com-preensão de sua origem. Dentro da mesma linha, Gutfreind (2003Gutfreind, C. (2003). O terapeuta e o lobo: a utilização do conto na psicoterapia da criança. São Paulo: Casa do Psicólogo., p.111) afirma que "narrar pode ser, enfim, melhorar".

A possibilidade de uma nova família

Após cinco semanas reconstruindo e revi-vendo as histórias de Nicolas, realizou-se um segun-do DE-T de modo a avaliar os efeitos da narração de histórias no relacionamento entre adotado e adotantes. Como no primeiro, pediu-se: "Desenhe a sua família" (Figura 2).

Figura 2
Segundo Desenho-Estória com Tema.

Ao iniciar sua produção, a criança disse que não desenharia "todas as suas famílias", optando por representar apenas a atual. Demonstrou que tem recordações antigas, mas que sua escolha está direcionada à família que o acolheu na adoção. Após expressar sua vontade, o menino anunciou seus sentimentos em relação à nova família. Ficou evidente que o vínculo entre eles estava sendo construído aos poucos, com a convivência, o amor e o cuidado. Ao desenhar o que lhe era solicitado, ia comentando que inicialmente da terra revolvida brotaria o capim, e depois as árvores e as flores.

Nesse sentido, Ferreira (2003Ferreira, R. P. (2003). Adoção tardia e adaptação à vida em família na perspectiva dos pais (Dissertação de mestrado não-publicada). Universidade Católica de Pernambuco., p.13) acres-centa que "a disponibilidade, o amor, a lucidez e o empreendimento dos pais no cuidar da criança adotada tardiamente potencializam o convívio". Simbolicamente, a criança expressou através do segundo DE-T o cuidado parental, expressando a existência de um solo fértil, o qual permitiu iniciar o estabelecimento de vínculos com a nova família (o germinar de árvores e flores). A imagem repre-sentada de sua família nesta última produção con-tém três pessoas, diferentemente da primeira em que somente retratava a si. Identificou os perso-nagens como sendo a mãe, ele e o pai, todos com os braços bem abertos. Ao terminar as três figuras, ele afirmou ser dessa maneira que conseguia de-senhar os pais, de braços bem abertos, demons-trando estar acolhido e amparado pelo carinho dos dois.

Entretanto, observou-se que a construção do vínculo em sua nova família era permeada por vivências anteriores bastante angustiantes, devido à ambivalência de sentimentos em relação aos membros que a compõem, fato que ainda desenca-deava nele sentimentos persecutórios. Ao contar, com a expressão feliz, que seu pai adotivo iria com-prar uma pipa, relembrou que aprendeu a con-feccioná-la na sua cidade natal com o pai biológico, porém logo pediu segredo, demonstrando receio de que a informação pudesse magoar o pai adotivo. Tanto os acontecimentos alegres quanto os sofridos na antiga família deveriam ser mantidos em se-gredo, segundo a vontade de Nicolas.

Sua necessidade em relembrar tornou-se muito presente ao final da pesquisa-intervenção. Por diversas vezes retomou as brigas e situações de violência que presenciou ao lado dos pais biológicos. Repetia compulsivamente os fatos, como que ten-tando elaborar as cenas que o marcaram, deixando transparecer seu medo de vincular-se com a nova família e sofrer outro abandono. Ao vivenciar e verbalizar medos terroríficos, reafirmava a neces-sidade de cuidado. Na estória do segundo DE-T, a casa desenhada era na verdade um hospital, no qual, segundo ele, deveria permanecer internado porque se encontrava doente. Simbolicamente, o hospital desenhado parece representar o cuidado que os novos pais estavam proporcionando, cuidado esse necessário para cicatrizar feridas originárias de vivências angustiantes de antigos vínculos desfeitos.

Esse cuidado necessário para cicatrização das feridas de Nicolas pôde ser presenciado no discurso de seus pais adotivos, na segunda entrevista sobre o processo interventivo. Os pais enfatizaram o dia em que a família compartilhou a experiência de conversar sobre a adoção, a partir da iniciativa de Nicolas, ao levar para casa um dos livros infantis trabalhados (Souza, 2010Souza, H. P. (2010). A estrelinha distraída: adoção para crianças. Curitiba: Juruá.) no segundo encontro. Ilustra-se com o relato de Carlos, o qual foi seguido de expressão de concordância de Joana, balançando afirmativamente a cabeça enquanto o esposo des-crevia:

Naquele momento do livrinho, da questão da adoção, ele tava tendo muito atrito na escola com a professora. Desrespeitando a professora, agredindo, agredindo os cole-gas, jogando o sapato e tava "barra mesmo" com a questão da professora. Aí um belo dia ele me traz a questão do livrinho e eu aproveitei a deixa e falei pra ele: olha a questão da adoção, Nicolas, não é eu, o papai e a mamãe que vamos te adotar, mas você também está nos adotando. E você, além de estar nos adotando, você precisa adotar a professora, você precisa adotar a escola, adotar a cidade, olha, a cidade tam-bém está te adotando, então você também tem que adotar a cidade.

Através do desejo da criança e da abertura dos pais para conversar sobre o processo adotivo, viabilizaram reviver experiências angustiantes, pos-sibilitando que a criança sentisse pertencer à família e ao ambiente que o cerca. Conforme Menegotto (2006Menegotto, L. M. O. (2006). Da filiação à inclusão: uma articulação entre psicanálise e educação. In E. P. G. Moura (Org.), Educação, cultura e trabalhoNovo Hamburgo: Feevale.), a filiação é resultante de uma inscrição sim-bólica, que pode ser compreendida pelo sentimento de reconhecimento e pertencimento da criança no seu contexto familiar e social. Ao proporcionarem a oportunidade de Nicolas expressar seus senti-mentos, os pais adotivos possibilitaram o início da inscrição da criança em sua família.

Assim como a criança pôde expressar duran-te a pesquisa-intervenção, os pais adotivos também enfatizaram a natureza progressiva do vínculo de filiação. Carlos, em especial, relatou que:

É um tempo emocional. Eu também fico assim, pensando. A gente precisa de um tempo, mas é um tempo, é um tempo pra nós quatro, pra nós quatro aprendermos, é um tempo de estabilizar, de estabelecer. Hoje já existe um diálogo entre nós, um acordo melhor, até minha relação com a Joana está melhor, mas é um tempo emo-cional que vai depender, é uma média entre os quatro.

O vínculo é estabelecido gradativamente, necessitando tempo, compreensão e amor para se constituir. O afeto necessita de proximidade tanto física quanto emocional, devendo ser conquistado na convivência (Badinter, 1985Badinter, E. (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. ). Nesse sentido, ressalta-se a necessidade de os pais adotivos atarem os laços do passado com o presente, para que a criança seja introduzida em sua rede familiar, tor-nando-a agente de sua própria história (D'Andrea, 2002D'Andrea, A. (2002). O casal adotante. In M. Andolfi (Org.), A crise do casal: uma perspectiva sistêmico-relacional (pp233-247). Porto Alegre: Artmed.), possibilitando que os vínculos se deem de maneira gradual, através de um aprendizado, como todas as relações (Penteado, 2012Penteado, P. A. (2012). Construção social da maternidade. Revista Brasileira de Terapia Familiar, 4(1), 23-34. Recuperado em fevereiro 28, 2014, de Recuperado em fevereiro 28, 2014, de http://www. abratef.org.br/2014/Revista-vol4/RevistaAbratef-V4-pag-23-34.pdf
http://www. abratef.org.br/2014/Revista-...
). É através do estabelecimento do que os pais nomearam de tempo emocional que há possibilidade de reconhe-cimento e intimidade construídos no dia a dia, cultivados por um solo fértil que poderá germinar e dar frutos.

Considerações Finais

Compreendendo, com fundamento em Góis (2005Góis, C. A. (2005). O estranho e o fantástico: uma inter-venção terapêutica em um caso de adoção. Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento Humano, 15(2), 111-118.), que "é a vida que passa a ser orquestrada a partir de novas, diferentes e estranhas sinfonias, as quais irão se harmonizar segundo a criação de outros significados e registros de ação no e para o mundo" (p.117), depreende-se que a nova e dife-rente sinfonia que estava em processo na história de Nicolas ocasionou sentimentos ambivalentes, retomando vivências mais primitivas, como a angús-tia de aniquilamento. No entanto, observa-se que a narração de histórias com personagens adotados propiciaram o início da compreensão do significado da adoção e da inserção na nova família.

Recriando outros significados de sua história de vida através das histórias infantis, o garoto pôde refletir e iniciar o processo de elaboração de vivên-cias que marcaram seus primeiros vínculos. Con-tudo, angústias arcaicas relacionadas ao medo do abandono e a ambiguidade de sentimentos frente à nova constituição familiar, ainda se fazem pre-sentes no imaginário da criança, mesmo que tenha sido iniciado o processo de inserção familiar.

Apesar dos benefícios proporcionados pelas histórias, observa-se que tanto a criança quanto os pais adotantes desta pesquisa-intervenção neces-sitam de acompanhamento psicológico ao longo da constituição do vínculo familiar. Foi oferecida a continuidade de atendimento psicológico aos fami-liares, o qual foi prontamente aceito; tanto o casal quanto as crianças seguem em psicoterapia no CEPPA.

Destaca-se que o estudo não esgota o tema, e nem pode ser generalizado, pois tratou da inter-venção de um único caso, mas parece ter sido sufi-ciente para sugerir que equipes psicossociais que trabalham com crianças institucionalizadas e ado-ções poderiam se aliar a outros dispositivos de saúde mental, de forma a serem facilitadores da transição desse processo entre os envolvidos. No contexto da nova cultura da adoção, instituído na última década, destaca-se a atuação dos Grupos de Apoio a Adoções que, além de prestar informações jurí-dicas, têm a importante função de indiretamente dar suporte emocional, ao promover entre seus membros o compartilhamento de experiências, pos-sibilitando estreitar mais e mais os laços dessa impor-tante filiação.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2017

Histórico

  • Recebido
    27 Jan 2014
  • Revisado
    24 Mar 2015
  • Aceito
    30 Jun 2015
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