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Saúde pública como missão

Public health as a mission

Resumos

A entrevista trata da origem social e da opção pela carreira médica feita por Maria de Lourdes Souza Maia, focalizando em particular a sua trajetória profissional no âmbito da Secretaria de Saúde do Estado do Rio de Janeiro, onde foi coordenadora do Programa de Imunizações, bem como sua atuação no Programa Nacional de Imunização do Ministério da Saúde.

política de saúde; imunização; Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro; Ministério da Saúde; Programa Nacional de Imunização (PNI)


The interview explores Maria de Lourdes Souza Maia's social origins and her choice to follow a medical career. It takes a particularly close look both at her professional trajectory within the Rio de Janeiro State Department of Health, where she served as coordinator of its Immunization Program, and at her role within the federal Health Ministry's National Immunization Program.

health policy; immunization; Rio de Janeiro State Department of Health; Health Ministry; National Immunization Program


DEPOIMENTOS

Saúde pública como missão* * A íntegra desse depoimento encontra-se no Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz, e integra o acervo de depoimentos orais do projeto A História da Poliomielite e de sua Erradicação no Brasil.

Public health as a mission

Entrevista com Maria de Lourdes Souza Maia/Interview with Maria de Loudes Souza Maia

Coordenadora do Programa Nacional de Imunização (PNI) Setor de Autarquias Sul Quadra BL sala 510 70058-902 Brasília — DF Brasil clourdes@funasa.gov.br

RESUMO

A entrevista trata da origem social e da opção pela carreira médica feita por Maria de Lourdes Souza Maia, focalizando em particular a sua trajetória profissional no âmbito da Secretaria de Saúde do Estado do Rio de Janeiro, onde foi coordenadora do Programa de Imunizações, bem como sua atuação no Programa Nacional de Imunização do Ministério da Saúde.

Palavras-chave: política de saúde, imunização, Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro, Ministério da Saúde, Programa Nacional de Imunização (PNI).

ABSTRACT

The interview explores Maria de Lourdes Souza Maia's social origins and her choice to follow a medical career. It takes a particularly close look both at her professional trajectory within the Rio de Janeiro State Department of Health, where she served as coordinator of its Immunization Program, and at her role within the federal Health Ministry's National Immunization Program.

Keywords: health policy, immunization, Rio de Janeiro State Department of Health, Health Ministry, National Immunization Program.

Origem e formação

Dr. Maria de Lourdes, como foi sua formação e por que escolheu medicina? Alguma pessoa da família a estimulou?

Eu sou do Nordeste e filha de funcionário público. Chegar ao nível superior é um funil, muito mais que um funil se você pensa em medicina. Eu nunca tinha pensado em fazer medicina. O meu grande desejo era ser professora. Só que aos 13 anos eu perdi a mãe e quatro anos depois eu perdi o pai. Sete filhos ficaram sem pai nem mãe, no Nordeste. E um vizinho me disse que o meu pai tinha um grande desejo: que a filha dele fosse médica. E, quando eu ouvi aquilo, eu disse: "Eu vou ser médica, então." Porque era o que o meu pai queria. Foi difícil, porque eu estudei em colégio público e tinha que manter os meus irmãos. Então, eu trabalhava durante o dia e estudava à noite. Não dava nem para pagar o dinheiro do transporte. Eu ia a pé para o colégio. Mas eu aproveitava todos os momentos da vida para estudar. No terceiro ano científico, eu consegui ser aprovada por média em todas as matérias. Enquanto os colegas tinham aula, eu podia ainda estudar à noite para o vestibular. Foi o meu primeiro vestibular e eu fui aprovada para a área II. Foram três semestres e eu fiz no menor tempo possível. Eu continuei trabalhando e à noite eu ia assistir matérias com a área III, que não era uma área de medicina. Fui a 62ª aprovada em 140 vagas para medicina.

Que batalha e que conquista!

Uma conquista! Mas isso foi bom, porque ao escolher medicina e com a história de vida que eu tive, resolvi ter como missão mesmo. Me tornei monitora de doenças infecto-parasitárias do hospital universitário na Paraíba. E, em relação especificamente à pólio, quantas crianças eu vi morrer de paralisia. Interessante é que eu não via tantas crianças com seqüelas. Talvez porque eu estava dentro de um hospital de DIP, onde tinha muita criancinha e o que chegava era a forma mais grave da poliomielite. E morria mesmo. Era uma coisa muito dolorosa.

Durante a graduação tinha espaço para discutir saúde pública?

Foi a pior cadeira. Eu não vou dizer o nome do professor, mas os alunos detestavam. Mas sempre existia... a gente tem doenças que são ligadas ao social, não é, dadas as condições de vida das pessoas.

Eu também tive uma outra grande vantagem. Nessa época de minha vida, de minha trajetória, eu tive muito contato com a Igreja Católica e passei a fazer parte da equipe de promoção humana do arcebispo dom José Maria Pires, que a gente chamava de dom Pelé. Essa preocupação com o social, tenho certeza, ajudou a fazer a opção por continuar trabalhando na saúde pública.

Como você decidiu vir para o Rio de Janeiro?

Durante esse período, aos sábados, sempre, a gente pegava um carro da Igreja e ia para os locais onde existiam terras da Igreja para ensinar o pessoal a fazer fossa etc. Recolhia um real de cada um e comprava material para construir fossa. Naquela época não tinha ainda nenhum curso de saúde pública por lá. Mas já sabíamos que esse trabalho tinha que ter uma ligação com saúde pública. E aí um belo dia, ouvi falar da Escola Nacional de Saúde Pública, aliás, não foi da Escola, foi da Fiocruz. Eu pensava: Na Fiocruz, eu vou ter saúde pública. Foi um grande sonho para mim: Eu tenho que ir para a Fiocruz. Um dia um colega conversando comigo disse assim: "Olha, tem bolsa que a faculdade vai dar para fazer estágio no Rio de Janeiro." Eu disse: "Opa! Eu tenho que conseguir." Eu era uma boa aluna. "Eu vou falar com o diretor da medicina." E lá fui eu. Quando cheguei, não vou dizer o nome do diretor, pedi para falar com ele, que me disse assim: "A que família você pertence?" Aí eu disse: "Você não conhece a minha família. O meu pai é um José da Silva. Agora, você pode ver as minhas notas e ver que aluna eu sou." Eu consegui a bolsa e vim para o Rio de Janeiro. Vim para o Hospital do Andaraí. Quer dizer, o que era a bolsa? Eu ia fazer o 6º ano aqui e teria uma ajuda de custo para me manter. Mas eu não tinha como chegar até aqui. Como é que eu vinha? Andando? Aí fui atrás da Itapemirim e pedi uma passagem de graça. E vim num ônibus, semileito da Itapemirim, de graça... Foi assim que eu consegui chegar no Rio de Janeiro. Terminei o 6º ano no Andaraí e fui fazer doenças infecto-contagiosas no Hospital São Sebastião. No São Sebastião eu vi muita difteria, crupe mesmo, tendo que fazer traqueostomia; raiva — em um ano foram mais de trinta casos de raiva humana — meningite, demais. E eu via essas pessoas voltarem muitas vezes. Eu dizia: "Mas não é possível! Alguma coisa tem que ser feita. Por que é que essas pessoas voltam?" Foi um tal envolvimento que me chamavam de rato de enfermaria. O São Sebastião tinha muita deficiência de auxiliar de enfermagem, e tinha dias que eu fazia o trabalho do médico, de faxineiro, de nutricionista. Um dia uma pessoa — acho que o nome dela era Iara —, que era da saúde pública e trabalhava no município do Rio de Janeiro, passou por lá para recolher informações sobre se tinha ou não meningite etc. e tal. Aí ela me disse: "Por que é que você não vai fazer saúde pública?" Então, volta de novo a preocupação com o social. Aí eu procurei a Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), e fiz o curso básico de especialização em saúde pública. Daí a vida seguiu.

Você fez também uma especialização em medicina tropical na USP, não é?

É, com o professor Lacaz, que fazia o curso de especialização lá. Foram uns três meses. Passei também pelo Emílio Ribas para ver como é que estava funcionando o setor de doenças infecto-contagiosas.

Como foi a passagem do internato para a residência no São Sebastião?

Fui fazer a residência médica no São Sebastião e estava fazendo também o curso na ENSP. Quando terminei a especialização em planejamento de saúde, queria fazer o mestrado. Mas exatamente no dia em que eu terminei, meu marido foi me buscar e eu olhei para ele e vi que ele estava doente. E ele desenvolveu uma doença rara, pouco conhecida. E aí parou tudo... Até hoje eu não consegui voltar a fazer o que eu queria na época, o mestrado. Acumulei toda uma experiência de vida, pesada, boa, mas não consegui. Durante esse período eu fiz um curso de homeopatia no Instituto Hahnemanniano. Fazia também consultório. Entrei numa grande crise. Primeiro por fazer homeopatia e alopatia, depois fazer a curativa e saúde pública. Isso me levou a tomar uma decisão de vida que foi a de deixar de praticar a medicina curativa e a homeopatia, e me dedicar unicamente à saúde pública. Foi uma decisão. Mesmo assim eu ainda fiz um curso de administração de recursos humanos com a professora Elza Paim. Eu começava a pensar que o caminho era o desenvolvimento de recursos humanos, tinha que se investir no homem. Eu costumava dizer assim: "O homem é o tecido nobre." Até para ter as políticas de saúde, tenho que ter o homem bem preparado. Eu tenho que investir neste homem. E aí fui fazer o curso de desenvolvimento de recursos humanos (CDRHU). Depois vim a ser a coordenadora de Desenvolvimento de Recursos Humanos na Secretaria de Saúde do Estado do Rio de Janeiro.

A Secretaria de Saúde do Estado do Rio de Janeiro e o Programa de Imunizações

Como você foi trabalhar na Secretaria de Saúde?

Tive um convite do diretor do Departamento de Epidemiologia da Secretaria de Estado de Saúde. Fui trabalhar na área de Vigilância Epidemiológica com Maria Augusta Torres Machado. Logo a seguir passei a coordenar o Programa de Imunizações do Estado do Rio de Janeiro (PIERJ). Acho que foi em 1983.

Mas como foi a idéia das campanhas nacionais?

Pois é. Hoje em dia, às vezes, eu me pego pensando isso. Quando eu cheguei aqui no PNI fiz um documento revendo o processo de vacinação, pensando nessa época, 1980. O Ministério da Saúde dava as instruções corretas: tinha que ter um posto para quatrocentas crianças etc. e tal. Eu acho que era o Risi que estava aqui. Mandava até dizer o que tinha que ir para cada posto: quantos formulários, quantos lápis, a quantidade de vacina, em quanto tempo e como a vacina tinha que ser recolhida, cada posto tinha um supervisor, responsável por tantos locais etc. Era tudo perfeitamente normatizado. Era o primeiro ano da campanha. Foi em oitenta. Muito bonito, não é? Eu dizia: "Meu Deus! Mas que organização!" Tudo muito perfeito! Isso foi em 1980, primeiro ano da campanha contra a poliomielite. Foi uma experiência maravilhosa!

Você acreditava naquela época que seria possível vacinar o país todo?

Eu não tinha conhecimento do que era esse país. Não te esqueças que o meu mundo era o Nordeste, aquele meu umbigo, e depois o Rio de Janeiro. Agora, se eu conhecesse esse país na época como eu conheço hoje eu diria: "Ah, não! Não é possível"! Isso demonstra o quê? Que trabalho espetacular de planejamento foi feito para se conseguir isso? Mas foi exatamente isso, um trabalho minucioso, como eu estou contando. Quantas crianças deverão ser atendidas por cada posto? Quem é que vai para aquele posto? Tinha que ter o vacinador, o organizador de filas, o que faz a triagem e o que anota a informação. Como é que vai se organizar fila? Como é que se vai chegar para fazer a vacina, por onde entra, por onde sai? Qual é o material que cada um vai precisar? Quantos lápis, quantas borrachas? Vai precisar de sabão de coco. Tudo perfeitamente delimitado.

E a questão da localização dos postos? Como saber em que lugar colocar?

Pois é. Como se sabia quantas crianças atender em cada posto, se começou a se estabelecer onde ficariam localizados os postos.

A secretaria estadual determinava?

Sim.

Vocês trabalhavam com dados do IBGE?

Naquela época trabalhávamos com os dados disponíveis, que eram os do IBGE. Estou rememorando que naquela época, aqui no estado do Rio de Janeiro, a gente trabalhava muito com a comunidade. Era um avanço! Eu lembro que a gente tinha reuniões com a comunidade, que apontava os locais de melhor acesso. Não eram postos fixos de vacinação, mas escolas e igrejas. A comunidade estava envolvida. Aliás, nós não pagávamos em dinheiro para as pessoas trabalharem em dia de campanha. Era voluntariado mesmo! Elas ajudavam as campanhas utilizando seus próprios carros, e nós nem dávamos a gasolina. E mais, tínhamos a Noêmia Kligerman, uma educadora em saúde, que fazia a articulação entre todas as entidades que participavam no dia de campanha. Muito do que eu aprendi sobre trabalho com a comunidade, e que trouxe para cá, tem origem lá. Aliás no Dia D da Dengue, que me pediram para organizar no Rio de Janeiro, o Eduardo Costa disse: "É, você está utilizando o que aprendeu na Secretaria de Saúde do Estado." E é verdadeiro. Foi ali que começou uma grande escola. Noêmia organizava todo esse trabalho. Se você verificar o histórico sobre os convênios relativos aos recursos enviados aos estados para a execução da campanha contra a poliomielite, vai constatar que o estado que praticamente não recebeu nada foi o Rio de Janeiro. Não pedia, porque tinha uma história de participação do voluntariado nessas campanhas, que não estavam atreladas a financiamento.

Qual era a repercussão entre a população? As famílias iam aos postos?

Olha, é interessante. Eu lembro de uma campanha na década de 1970, em que eu ainda estava no Nordeste, que era contra a meningite, usando o Pedogect. Aquela dali dava medo. Era meningite! Essa campanha, não. Pelo menos na minha percepção, era uma campanha, diferente. Eu não sentia aquele medo que eu vivi na década de 1970 com a meningite. Era diferente.

Medo por parte dos vacinadores, dos voluntários, em trabalhar com uma doença infecto-contagiosa?

Não, não. Estou falando das pessoas da comunidade. Quer dizer, na época eu não era profissional de saúde. Eu fui para me vacinar. Mas não era o medo do furo do Pedogect, era da doença. Na campanha contra a pólio, apesar de matar, eu não senti isso.

Como você se tornou coordenadora do Programa Nacional de Imunizações?

Antes de chegar lá, eu tive a experiência de coordenar a campanha contra a pólio na região metropolitana do estado do Rio. Ah! Foi um grande desafio. Isso significou: Duque de Caxias, Nova Iguaçu, São João de Meriti, São Gonçalo, Petrópolis, Magé... um desafio que foi vencido com êxito, não é? Conhecer esses lugares, entrar em Kombi, porque não era outro carro, não. Era Kombi. Ir a Morro Agudo, Saracuruna, Jardim Catarina, lá em São Gonçalo, Santa Luzia. Ou seja, conhecer mesmo esses lugares. Para fazer qualquer planejamento, discutir com os profissionais e com a comunidade, tem que saber o que está falando, não é?

Mas como você chegou a essa coordenação?

Ah! Eu estava lá e disseram: "É você que vai coordenar" (risos). E o desafio foi aceito. Não me recordo mais, mas deve ter sido porque alguém ficou doente ou saiu por qualquer coisa. Eu estava lá. Era a bola da vez. Cheguei lá!

Qual era a relação que você tinha com o Ministério da Saúde?

Eu não tinha esse nível de poder.

A coordenação passava pela administração estadual?

Era a Maria Augusta Torres que tinha esse contato. Eu não tinha. Mas o que era coordenar a imunização? Distribuir vacina? Eu acho que era. Toda a norma vinha do Ministério da Saúde. Só que eu comecei a ver: "Pô! Mas vou distribuir vacina? Onde estão os dados?" Isso não ficava com a gente, mas em outro setor da secretaria, que não me passava os dados. E eu precisava para saber o que estava acontecendo. Foi toda uma luta para começar a ter acesso aos dados. Aí o Joaquim Valente, que já despontava naquela época, fazia um grande mapa, onde a gente, à mão, ia colocando quem havia mandado ou não as informações, e eu descia para cobrar. Era uma luta... E a rede de frio? Aliás, há um tempo eu encontrei uma pessoa da OPAS, que na época estava aqui, que disse assim: "Você não lembra de mim? Foi a época que eu fui lá, que eu vi as vacinas como ficavam guardadas." O primeiro conserto feito quando eu estava lá foi o da rede de frio.

Como era a estrutura de conservação?

Era muito ruim. Mas não era só a guarda. Tinha a também questão de despachar a vacina.

Tinha que planejar também a distribuição?

Claro! Município por município. Só que na época ainda não estava municipalizado, era por regionais. Eram cinco coordenadorias: a região metropolitana, que o Gazola coordenava; a região da baixada litorânea; a região serrana; a região do Médio Paraíba; a região do Norte, que era em Campos. Essas vacinas iam para lá e de lá é que elas saíam para os municípios. E aí comecei a ir nessas regionais para ver como é que era a guarda das vacinas. E ao mesmo tempo a levar cobras dentro dos carros para começar a discutir a distribuição de soros antipeçonhentos no estado. Sentia-se a necessidade de ter um pólo de atendimento para casos de mordedura por ofídio. Estruturar alguma norma de atendimento à mordedura, reunir os profissionais, os hospitais. Gente, tem muita coisa para conversar! Pelo amor de Deus! Vou encurtar, viu?

O Programa Nacional de Imunização

Como você foi convidada para coordenar o Programa Nacional de Imunização?

Pois é, essa é uma história interessante. Tem um triângulo amoroso, ou um quarteto, como quiser (risos). Tinha o José do Vale, que hoje é o chefe de Gabinete do Secretário de Estado; o Cláudio Amaral, que estava aqui no programa; o doutor Edmundo Juarez; e o Adib Jatene. O Cláudio tinha convivido comigo porque ele foi secretário estadual de saúde. Eles devem ter conversado e chegado ao meu nome, não é? Eu fui à Brasília e eles disseram o seguinte: "O PNI acabou. Nós queremos que você assuma o Programa Nacional de Imunizações." Isso foi em 1995.

Falaram desse maneira?

Não disseram nesses termos, mas quiseram dizer que o programa tinha problemas profundos, e que eu precisava assumir. Eu fiquei apavorada, estava afastada há muito tempo, não é? Era um desafio, porque a minha família estava no Rio. Três filhos — um com oito anos de idade —, marido, que eu não podia trazer para cargo em comissão. Mas eu tenho a vida sempre como uma missão, e eu não fujo. Faço as coisas bem-feitas, mas não tramo, não passo a perna. Vou ocupando espaço, porque acho que tem que ser feito. Quando me fizeram esse convite, voltei ao Rio e falei para a minha família, e eles disseram que eu devia vir. Eu caí no choro porque achei que era o marido que queria me trair, me mandar embora do Rio de Janeiro, os filhos que não me amavam, não é? Terminei vindo. Mas antes fui com Ângela Costa a Araraquara, que tem um serviço maravilhoso de imunizações e onde o doutor Edmundo Juarez vivia e trabalhava ligado à Escola Paulista de Medicina. Fui para conhecer imunizações, rever a coisa, porque eu estava esquecida. Depois de tantos anos eu tinha que me atualizar. No dia 6 de março de 1995 eu entrei aqui, mas não como coordenadora de imunizações, apesar do convite ter sido feito para isso. Cheguei e encontrei uma situação terrível, porque tinha um coordenador do Programa de Imunizações e eu fiquei como aquela pessoa que vem como gerente de projeto, com DAS-4, moradia e tudo. Fiquei no Gabinete do Presidente, entrando aqui, olhando ali, até que me deram a função de assessora do Programa de Imunizações. Em um ano mais ou menos haviam passado três gerentes pelo programa. Era óbvio que estava com problemas. Um dia a Fatinha, que hoje está secretariando o Paulo Duarte, me disse: "Doutora Maria de Lourdes, eu estou tão feliz de a senhora estar no PNI. Eu saí do PNI porque eu estava muito triste." Eu disse: "Por quê?" "O programa acabou, doutora. A gente não vê mais nada, ninguém liga para lá, os estados não comunicam mais nada. Acabou, esse programa acabou. Agora, eu estou vendo que as pessoas estão voltando a ligar, estão voltando a ouvir etc. e tal." Eu não sei quais foram os problemas do programa, mas três pessoas coordenaram em um ano. E mais: o orçamento era de sessenta milhões de reais. No ano seguinte começou a subir, no ano passado foi de 334 milhões e hoje é quase de quatrocentos milhões de reais. Muita coisa se fez ao longo desses anos. Há pontos importantes. Primeiro: tudo é dividido. As decisões são compartilhadas e divididas com os estados. Se acho que uma coisa tem de ser feita, eu tenho que ser competente para fazer com que eles também pensem assim. Quando eu entrei era como se São Paulo fosse um outro país, hoje não é. Ele está com a gente, discutimos e decidimos. Por exemplo, decidimos fazer um dia nacional de campanha do idoso, que foi no dia 3, um sábado, mas essa foi uma decisão que ganhou 17 votos contra dez. Depois de bem discutido... mas não é discutindo só não... É argumentando com técnicos de todos os estados juntos. Outra coisa é a atenção política a estes estados. É besteira dizer que é só técnico. Isso eu aprendi com o Arouca. Precisa trabalhar politicamente para que as coisas caminhem. Todos os meus coordenadores sabem disso, e se eles precisam de uma ajuda — o celular dorme ligado — eu digo: "Liga, que a gente vai aí ver o que tem que fazer." Tem que manter os coordenadores estaduais e municipais atualizados.

Têm coordenadores por município?

Sim. Todos os 5561 municípios têm um coordenador de imunizações. A orientação tem que ir até ele. Tem que ter um nível de organização.

Vocês fizerem um encontro maior do que o da Abrasco!

No último encontro, infelizmente, não convidamos todos, somente os coordenadores de imunizações das capitais. Seria impossível. Ainda agora chegou um documento de Rio Branco, avisando que o coordenador de imunizações de lá havia mudado. É esse o nível de envolvimento. Em 1998 nós começamos a chamar o Conselho dos Secretários Municipais de Saúde (COSEMS) de cada estado para discutir o Programa de Imunizações. Fizemos um documento que eles assumiram e que nós chamamos a cartilha do PNI, a bíblia do PNI, onde diz quais são as atribuições das prefeituras em relação ao Programa de Imunizações. À época não quiseram pagar para eles virem. Eu peguei dinheiro com a OPAS e trouxe o Neilton, que hoje está com o Cláudio Duarte, representando a região Norte; o Paulo Belchior, representando a região Centro-Oeste; Adeliana, representando a região Sul... E a gente começou a discutir uma coisa que era tabu: o recurso que a gente passava para os estados como convênio para execução da campanha e os municípios reclamavam que esse dinheiro não chegava. Foi o start para o processo de financiamento das ações que se deram logo após. Em 1999 iniciamos o processo de financiamento fundo a fundo. Isso está pronto? Não está. É impossível! Eu costumo dizer que a manutenção de uma conquista é muito mais trabalhosa do que a própria conquista, porque exige uma atenção redobrada de como é que anda, aonde é que está tendo estrangulamento, qual a estratégia que precisa estar sendo modificada. O Brasil acabou com a pólio. Imagina o esforço que a gente fez para continuar mantendo altas coberturas vacinais. No ano 2000 havia casos na África e podia vir para cá; em 2001 foi na República Dominicana. A cada ano a gente tem que estar estimulando para manter alta a mobilização.

Você falou da campanha de vacinação e me veio a questão campanha de rotina. Como você viveu isso quando estava na secretaria? Como era percebida a atuação em campanhas? Havia resistência a essa idéia? Como você vê hoje a relação rotina/campanha?

A campanha é tão forte! Tem a mídia e todo um trabalho em torno da campanha. Ainda hoje a gente tem muitas dificuldades de trabalhar a rotina. Na época em que eu estava no Rio de Janeiro era campanha, como já falei. Foi muito difícil fazer o trabalho do dia-a-dia. E a idiota aqui, quando chegou com aquela idéia de que a campanha tinha que acabar, porque — discurso de academia — não fortalece, enfraquece e acaba com a rotina. É a maior idiotice que um ser humano pode dizer! Se você conhecer os 8.547.403km2 desse país; se você souber que há coordenadas que precisam ser criadas para a própria aeronáutica descer em determinados locais; se você souber que tem população que só conhece aquele núcleo de dez pessoas — que vai viver e morrer ali, não conhecem outros —, você não fala isso. Campanha é uma estratégia necessária para atingir o seu objetivo. É cansativo. Este ano a gente já fez a campanha do idoso. Agora estamos com a campanha contra a rubéola, e a primeira e a segunda etapa de pólio. No ano passado colocamos a vacina de hepatite até 19 anos, mas não estamos conseguindo êxito.

Só conseguimos 22% da meta porque está na rotina. Tenho a rotina em cerca de 22 mil postos. Em época de campanha, eu chego a quase 150 mil postos, com um aumento do número de pessoas trabalhando. Esse país é muito grande. Qual é a saída? A saída é o município se fortalecer, ter condições de assumir a sua área. Mas isso não se dá do dia para a noite. Há municípios que não têm nem condições de ser município. Tem secretários municipais que precisam ser melhor capacitados. Nada tenho contra vendedor de roupa, vendedor de alumínio nas portas. Mas ele não está preparado para ser secretário municipal de saúde. Mas não tem outra pessoa, tem que ser ele mesmo. É ele quem tem maior contato com o povo. Qual é a culpa dele? Nenhuma! Enquanto você não tiver uma estrutura... a esperança é que se tenha um conselho nacional dos secretários municipais de Saúde que faça reuniões, que prepare os secretários municipais, que tenha o seu modelo... Ainda vai levar tempo. Você não pode desarticular um processo que está dando certo em prol de uma teoria que diz que isso é errado, que não tem que ser assim! E o povo, como é que fica? Eu tenho que manter isto funcionando e trabalhar para o outro processo ocorrer, que é o que o Programa de Imunizações está buscando. A gente faz as campanhas, mas visando chegar um momento em que a gente não precise mais ter campanhas. Até se for necessário, faremos, mas não em substituição à rotina, que é o que tem que vigorar. Por que digo isso? Porque hoje a campanha conseguiu resgatar muitas das vacinas de rotina! De 1986 em diante já não foi mais somente pólio, mas começou a se fazer a multivacinação para recuperar rotinas que você não consegue no dia-a-dia de sala de vacina.

Para não perder a oportunidade de acertar o calendário da criança e cuidar a tempo.

Exatamente.

É impressionante a capilaridade do programa por meio do coordenador municipal?

Você pode chamar responsável. Eu chamo coordenador, mas é uma pessoa de referência para a imunização. Tem um em cada município brasileiro. Eu estava com um problema em Vargem Grande, um município grande de Mato Grosso. O coordenador estadual me ligou: "Olhe, está ruim a campanha de vacinação lá. Pode me dar uma ajuda?" Eu disse: "Me dá o telefone de lá." Liguei: "Quem é o coordenador de imunizações aí?" "Ah, a enfermeira fulana." "Chama a enfermeira." "O que está acontecendo? O que é que está havendo?" A coordenadora estadual me ligou e eu disse: "Como é que está..." "Ah, nem te preocupa. Está tudo bem!" Você tem que estar atenta, e manter o coordenador estadual sabendo que ele conta com alguém aqui a qualquer hora.

"Você imagina o que é uma doença erradicada retornar ao país por não ter a cobertura adequada? A responsabilidade é muito maior agora!" Para fechar, qual é a relação do grupo do PNI com a vigilância das doenças, por exemplo o GT-Pólio? Tem parceria?

Olhe, por não existir mais a poliomielite no Brasil, estamos trabalhando muito na manutenção de altas e homogêneas coberturas em todo o país. Esse é nosso trabalho hoje. O GT-Pólio está fazendo uma vigilância muito boa para ver se existe alguma suspeita, se encontra uma paralisia flácida. Se tiver, o agente vai ao município e verifica como está a cobertura vacinal, faz um levantamento da área. Nesse sentido, a gente tem uma parceria. Nós somos o Centro Nacional de Epidemiologia da Fundação Nacional de Saúde (CENEPI), nós somos Fundação Nacional de Saúde (Funasa), não é? O PNI sente uma responsabilidade muito grande! Você imagina o que é uma doença erradicada retornar ao país por não ter a cobertura adequada? A responsabilidade é muito maior agora! O grande desafio, com a globalização que nós vivemos, é mantê-la erradicada.

Ficha técnica

Local da entrevista: Brasília

Data: 8 de maio de 2002

Entrevistadores: Anna Beatriz de Sá Almeida e Carlos Fidelis Ponte

Edição da entrevista: Nísia Lima, Nara Azevedo e Carlos Fidelis Ponte

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    A íntegra desse depoimento encontra-se no Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz, e integra o acervo de depoimentos orais do projeto A História da Poliomielite e de sua Erradicação no Brasil.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Mar 2004
    • Data do Fascículo
      2003
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