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A hanseníase no laboratório

Hansen's disease in the laboratory

Resumos

Médica, doutora em patologia, Euzenir Sarno é estudiosa da imunopatologia da hanseníase, infecção crônica das mais antigas que constitui uma doença exclusivamente humana. Integrante de um dos ambulatórios de referência sobre a doença no Brasil, no qual são diagnosticados de 220 a 250 pacientes novos/ano, ressalta que uma das conseqüências da impossibilidade de se cultivar o Mycobacterium leprae é a permanência das mesmas questões seculares a respeito da transmissão e a suscetibilidade à doença. Há, também, muitas interrogações no terreno epidemiológico que permanecem sem resposta. Estima-se que entre as pessoas que mantêm contato com pacientes multibacilares, 90% são infectados mas apenas 8% mais ou menos ficam doentes. O índice elevado de infecção de quem convive com doentes multibacilares, sem que a doença se manifeste, indica que apenas um pequeno número de indivíduos não tem resistência ao Mycobacterium leprae. Essa é uma das questões que a imunologia não consegue responder: por que algumas pessoas têm resistência e outras não. A proporção é menor se o contato ocorrer com pacientes paucibacilares, uma forma de manifestação com poucos bacilos. A hanseníase é conhecida como uma doença dermatológica, mas a especialista destaca que a primeira lesão é anestésica: o nervo é atingido. Além dos nervos sensitivos da pele, há danos que determinam lesões motoras e deformidades irreversíveis, que levam à amputação de extremidades. O Mycobacterium leprae foi uma das primeiras bactérias patogênicas que tiveram o genoma completamente seqüenciado, em 2000. Agora é que se está começando a ter realmente condições para obter testes mais precisos. A doença não é hereditária e apenas em 1986 os serviços de saúde no Brasil passaram a se organizar para combatê-la, pois durante os vinte anos de ditadura militar o sistema foi desmantelado. Em 1991, o tratamento de um ano que inclui três drogas - Dapsona, Rifanpicina e Clofazimina - foi introduzido em nosso país. Apenas 30% dos casos são negativados. Segundo a entrevistada, enquanto a tuberculose é doença altamente bacilar e virulenta, o bacilo da lepra não é virulento, é ''preguiçoso''; é um germe que está no fim de seu processo evolutivo; 1/3 de seu genoma não funciona.

lepra; hanseníase; pesquisas laboratoriais; imunopatologia; Mycobacterium leprae; estatísticas


A physical doctor with a PhD in Pathology, Euzenir Nunes Sarno studies the immunology factors of Hansen's disease, one of the oldest chronic infections and that is an exclusively human disease. Staff member of an ambulatory that has become a reference on the disease in Brazil with 220 to 250 new patients per year, Euzenir emphasizes that the fact one cannot cultivate Mycobacterium leprae brings about some everlasting questions in relation to the transmission of and the sensitivity to the disease. There are also many epidemiology questions that remain unanswered. Estimates show that, among those who have contact with multi-bacilli patients, 90% are infected but only about 8% get sick. The high infection rate of those who live with multi-bacilli patients but never fall sick shows that just a small number of individuals are sensitive to Mycobacterium leprae. This is one of the questions immunology has not been able to answer. Why do some people resist to it and some don't? The figures are even lower when compared to those who are in contact with patients that are paucibacillus-infected, i.e. a manifestation of the disease with few bacilli. Hansen's disease is known as a skin malady. But, according to the specialist, its first damage is to the nerve, when the area becomes insensitive. Besides damaging the sensitive skin nerves, the disease can lead to motor disability and irreversible deformities, which sometimes lead to the amputation of limbs and protruded parts of the body. Mycobacterium leprae was one of the first pathogenic bacteria whose genome sequence has been entirely mapped. Only now we have the capacity to have more precise assessments. The disease is not inherited, and only in 1986 health services in Brazil began to take the responsibility for both the disease and its patients. During the twenty-year military dictatorship the country underwent, the health system was dismantled. In 1991, the one-year treatment with three drugs - Dapsone, Rifanpicine and Clofazimine - was introduced in our country. Just 30% of the cases get to negative results after the treatment. According to the interviewee, whereas tuberculosis is a highly virulent multi-bacilli disease, leprosy bacillus is not virulent, is a 'lazy' germ at the end of its evolutional process. One third of its genome does not work.

leprosy; Hansen's disease; lab research; immuno-pathology; Mycobacterium leprae; statistics


INTERVIEWS

Hansen's disease in the laboratory

A hanseníase no laboratório

An interview with Euzenir Nunes Sarno

Fundação Oswaldo Cruz Research Department vice-president, Av. Brasil, 4365 Castelo Mourisco, 21045-900 Rio de Janeiro — RJ Brasil, euzenir@fiocruz.br

ABSTRACT

A physical doctor with a PhD in Pathology, Euzenir Nunes Sarno studies the immunology factors of Hansen's disease, one of the oldest chronic infections and that is an exclusively human disease. Staff member of an ambulatory that has become a reference on the disease in Brazil with 220 to 250 new patients per year, Euzenir emphasizes that the fact one cannot cultivate Mycobacterium leprae brings about some everlasting questions in relation to the transmission of and the sensitivity to the disease. There are also many epidemiology questions that remain unanswered. Estimates show that, among those who have contact with multi-bacilli patients, 90% are infected but only about 8% get sick. The high infection rate of those who live with multi-bacilli patients but never fall sick shows that just a small number of individuals are sensitive to Mycobacterium leprae. This is one of the questions immunology has not been able to answer. Why do some people resist to it and some don't? The figures are even lower when compared to those who are in contact with patients that are paucibacillus-infected, i.e. a manifestation of the disease with few bacilli. Hansen's disease is known as a skin malady. But, according to the specialist, its first damage is to the nerve, when the area becomes insensitive. Besides damaging the sensitive skin nerves, the disease can lead to motor disability and irreversible deformities, which sometimes lead to the amputation of limbs and protruded parts of the body. Mycobacterium leprae was one of the first pathogenic bacteria whose genome sequence has been entirely mapped. Only now we have the capacity to have more precise assessments. The disease is not inherited, and only in 1986 health services in Brazil began to take the responsibility for both the disease and its patients. During the twenty-year military dictatorship the country underwent, the health system was dismantled. In 1991, the one-year treatment with three drugs – Dapsone, Rifanpicine and Clofazimine – was introduced in our country. Just 30% of the cases get to negative results after the treatment. According to the interviewee, whereas tuberculosis is a highly virulent multi-bacilli disease, leprosy bacillus is not virulent, is a 'lazy' germ at the end of its evolutional process. One third of its genome does not work.

Keywords: leprosy, Hansen's disease, lab research, immuno-pathology, Mycobacterium leprae, statistics.

RESUMO

Médica, doutora em patologia, Euzenir Sarno é estudiosa da imunopatologia da hanseníase, infecção crônica das mais antigas que constitui uma doença exclusivamente humana. Integrante de um dos ambulatórios de referência sobre a doença no Brasil, no qual são diagnosticados de 220 a 250 pacientes novos/ano, ressalta que uma das conseqüências da impossibilidade de se cultivar o Mycobacterium leprae é a permanência das mesmas questões seculares a respeito da transmissão e a suscetibilidade à doença. Há, também, muitas interrogações no terreno epidemiológico que permanecem sem resposta. Estima-se que entre as pessoas que mantêm contato com pacientes multibacilares, 90% são infectados mas apenas 8% mais ou menos ficam doentes. O índice elevado de infecção de quem convive com doentes multibacilares, sem que a doença se manifeste, indica que apenas um pequeno número de indivíduos não tem resistência ao Mycobacterium leprae. Essa é uma das questões que a imunologia não consegue responder: por que algumas pessoas têm resistência e outras não. A proporção é menor se o contato ocorrer com pacientes paucibacilares, uma forma de manifestação com poucos bacilos. A hanseníase é conhecida como uma doença dermatológica, mas a especialista destaca que a primeira lesão é anestésica: o nervo é atingido. Além dos nervos sensitivos da pele, há danos que determinam lesões motoras e deformidades irreversíveis, que levam à amputação de extremidades. O Mycobacterium leprae foi uma das primeiras bactérias patogênicas que tiveram o genoma completamente seqüenciado, em 2000. Agora é que se está começando a ter realmente condições para obter testes mais precisos. A doença não é hereditária e apenas em 1986 os serviços de saúde no Brasil passaram a se organizar para combatê-la, pois durante os vinte anos de ditadura militar o sistema foi desmantelado. Em 1991, o tratamento de um ano que inclui três drogas – Dapsona, Rifanpicina e Clofazimina – foi introduzido em nosso país. Apenas 30% dos casos são negativados. Segundo a entrevistada, enquanto a tuberculose é doença altamente bacilar e virulenta, o bacilo da lepra não é virulento, é ''preguiçoso''; é um germe que está no fim de seu processo evolutivo; 1/3 de seu genoma não funciona.

Palavras-chave: lepra, hanseníase, pesquisas laboratoriais, imunopatologia, Mycobacterium leprae, estatísticas.

Por onde caminham hoje as pesquisas laboratoriais, as pesquisas relacionadas à doença, quais são as fronteiras, as grandes questões que vocês investigam?

Euzenir – Deixa eu pensar como eu diria isso... Na verdade, embora seja uma doença muito antiga, dificuldades básicas de entendê-la permanecem, praticamente as mesmas, tais como a transmissão, a suscetibilidade, a destruição dos nervos, entre outras. Tais dificuldades decorrem da impossibilidade de se cultivar o Mycobacterium leprae e da inexistência de modelos experimentais sólidos. Isso tem implicações para fenômenos não só epidemiológicos como moleculares, celulares... São limitadas as oportunidades para se estudar a relação do Mycobacterium leprae com o homem. Camundongos geneticamente 'engenheirados' de maneira a não apresentar resposta imune aos microorganismos que se deseja estudar proporcionam à lepra um modelo experimental, mas de alcance limitado. Existe um centro de pesquisa, em Carville, nos Estados Unidos, que tem tradição de trabalhar com esse tipo de modelo, e que vem obtendo resultados importantes na pesquisa sobre a doença.

Por sinal, acaba de sair um artigo muito interessante de um grupo de lá, que estuda exatamente a interação da micobactéria como uma célula nervosa chamada célula de Schwann. O Mycobacterium leprae é a única bactéria que infecta essa célula no ser humano. Nenhuma outra faz isso. Essa é uma das razões pelas quais a lepra é uma doença exclusivamente humana. Nenhum outro animal desenvolve a doença, mesmo quando hospeda o Mycobacterium leprae.

O tatu é um modelo experimental. Supõem-se que alguns tatus americanos sejam infectados naturalmente, fato este descoberto por pesquisadores de Carville. O tatu é um reservatório de micobactérias. Você inocula o Mycobacterium leprae, ele prolifera, mas proliferam também as micobactérias presentes normalmente nos animais. Como é um animal de terra, qualquer tatu tem micobactérias, várias delas não-patogênicas. Clinicamente, os animais fazem nódulos cutâneos, e há infiltração do fígado, mas o tatu não desenvolve a doença com as lesões características que se observam no homem. O animal funciona apenas como reservatório.

A lepra hoje é uma doença que se espera eliminar, quer dizer, reduzir para uma prevalência de menos de um caso para dez mil. Mas a gente ainda não sabe responder questões fundamentais para a própria epidemiologia, porque não se pode estudar a sua transmissão, como se estuda a da tuberculose. Você não tem teste cutâneo que identifique o infectado. Há várias interrogações no terreno epidemiológico que permanecem sem resposta.

A identificação do infectado é feita pelos sintomas?

Euzenir – Não pois nem todos os infectados ficam doentes. Na verdade, sabe-se que entre as pessoas que mantêm contato com um paciente multibacilar, 8% mais ou menos ficam doentes. Quando o paciente é paucibacilar, essa proporção é menor.

A manifestação das formas clínicas é diferente?

Euzenir – É diferente. A forma paucibacilar é quase sempre localizada: uma lesão ou poucas lesões na pele e no nervo. Sempre há comprometimento de nervo. A gente chama de doença de pele, mas, na verdade, ela é primariamente uma doença de nervo. Tanto que a lesão primária da lepra é uma lesão anestésica: primeiro ela lesa o nervo. Além dos nervos sensitivos da pele, há lesão de troncos nervosos que determinam as lesões motoras graves e as deformidades. As formas clínicas que a gente chama de multibacilares são sempre disseminadas; múltiplos nervos e regiões da pele são acometidos.

Formas multibacilares são as que envolvem alta concentração de bacilos?

Euzenir – São as pessoas que eliminam grandes quantidades de bacilos. Estes são os casos responsáveis pela disseminação da doença. Embora provavelmente 90% fiquem infectados, somente cerca de 8% adoecem.

Qual o nível de contato necessário para que essa contaminação ocorra? Diz-se que é um contato íntimo e prolongado, mas isso é muito vago.

Euzenir – É, é muito vago porque, na verdade, não tem como você saber isso a não ser após alguém ficar doente. Você sabe como é difícil trabalhar só com a informação, sem o experimento. É preciso demonstrar que aquele agente leva àquela doença, cumprindo todos os princípios recomendados por Koch, mas é complicado fazer isso na lepra. Não há como provar isso, então se prova através de observações epidemiológicas, informações que se coletam.

Por exemplo, eu estou dizendo a você que 8% dos que têm contato com multibacilares ficam doentes, mas se você fizer testes in vitro para mostrar se teve contato com a micobactéria, verificará que 90% ou mais se infectaram, ou seja, tiveram contato com o bacilo.

Como é o teste in vitro?

Euzenir – Você tira o sangue, separa as células mononucleares, que são linfócitos e monócitos, e põe estas células em cultura. Chama-se linfoproliferação. Depois você estimula as células com micobactérias. Se a pessoa já teve contato com o microorganismo, os linfócitos proliferam e obtém-se uma resposta padronizada, verificável em cinco dias, a partir do número de linfócitos periféricos. Aí você sabe que aqueles linfócitos já tiveram contato com a micobactéria antes. Ou então você tira da cultura o sobrenadante e dosa pelo método de Elisa as citocinas; dependendo dos níveis desta substância, sabe-se que houve contato com o micobactericida. O teste de Elisa é um método para saber se tem determinado componente no soro, em qualquer líquido corpóreo. A citocina é uma proteína liberada pelos linfócitos e monócitos que estão proliferando. Eles não só proliferam, não só aumenta o número de células, como liberam substâncias que são proteínas.

Esse índice elevado de infecção dos que convivem com multibacilares, sem que a doença se desenvolva, indica que um pequeno número de indivíduos apenas não têm resistência ao Mycobacterium leprae.

Essa é uma das questões que a imunologia não consegue responder: por que algumas pessoas têm resistência, outras não. Alguns respondem muito bem a antígenos de outras micobactérias, mas não respondem ao Mycobacterium leprae. Um dos objetivos da pesquisa atual, moderna, é determinar que componente genético nos indivíduos faz com que não respondam. Esta é uma questões que estamos estudando. Por que um indivíduo responde e outro, não? O que ocorre na interação das células com a bactéria? A gente sabe quão complexa é esta interação. Sabe-se que o HLA é um antígeno presente em todas as células que determina ou influencia grandemente a resposta imune a cada patógeno. Os geneticistas poderão identificar os HLA's das pessoas agora que o genoma humano está seqüenciado, e poderá relacionar esta informação com as doenças que as pessoas vão ter. Estudou-se muito o HLA, mas não se provou ainda o seu papel na lepra. Nosso laboratório estuda alguns polimorfismos, ou seja, genes que sofrem mutações e cujos perfis variam de uma pessoa para outra. Tem várias pessoas estudando isso no mundo, inclusive um grupo do Canadá que acaba, identificar uma mutação que parece importante.

Quais são os lugares, os centros de excelência em pesquisa em lepra?

Euzenir – No Brasil, o grupo mais forte de pesquisa está aqui mesmo, na Fiocruz. Tem um grupo em Manaus que faz pesquisa operacional. Na Universidade de Ribeirão Preto há pessoas muito interessadas, como a dra. Norma Fosse. Bauru sediou um leprosário grande, o Lauro de Souza Lima, uma das maiores unidades de lepra. Eles mantêm lá pesquisas relacionadas principalmente à reabilitação. Aquele grande leprosário hoje é um hospital geral, mas conservam um grande interesse em cirurgias reconstrutoras de deformidades ocasionadas pela lepra. Eles mantêm um ambulatório onde só cuidam da reabilitação deste tipo de doente. É um centro de pesquisa que possui excelente biblioteca sobre lepra. Toda a história da doença no Brasil está em Bauru. O Instituto de São Paulo, que tinha uma biblioteca enorme, com livros, todas as publicações do Ministério da Saúde, publicações oficiais, enfim, uma biblioteca imensa que foi doada para Bauru. Eles investiram muito na área de informação. Editam, inclusive, a Revista Hansenologia Internacionalis, a única revista brasileira da área. A questão da reabilitação é complexa, porque as lesões são irreversíveis. Depois que há lesão motora, não retrocede mais. Aí começam as deformações, começa a haver absorção óssea e isso leva às amputações de extremidades.

No exterior, além do pessoal de Carville, há um grupo muito bom na Universidade da Califórnia, comandado pelo Robert Modlin, e outro no Colorado, ao qual pertence o dr. Brennan. Ele virá à Fundação Oswaldo Cruz no segundo semestre para dar um curso, como parte de uma colaboração que temos com ele há mais de 15 anos. Vários pesquisadores foram para lá para fazer. O dr. Brennan talvez seja uma das pessoas mais famosas na área, devido à descoberta, vinte anos atrás, de um antígeno que é específico ao Mycobaterium leprae. Ele é bioquímico, professor de microbiologia, tem um excelente laboratório. No decurso de uma pesquisa básica, quando estudavam componentes da micobactéria, identificaram um glicolipídio presente exclusivamente no Mycobacterium leprae, o PGL-1. E durante esses vinte anos, foram desenvolvendo testes-diagnósticos capazes de identificar pessoas que já tivessem contato com o microorganismo. O teste identifica 99% dos multibacilares, mas somente 50% dos paucibacilares. ''Pauci'', de ''pouco'', porque estas pessoas têm poucos bacilos. Tivemos uma esperança enorme quando aquele antígeno foi descoberto.

Outro teste também desenvolvido na última década foi o PCR (Polymerase Chain Reaction) que se baseia na identificação de um fragmento de DNA. Várias teses de mestrado e doutorado demonstraram o valor do PCR no diagnóstico. Infelizmente, é sensível demais. A técnica do PCR identifica quantidades exageradamente pequenas daquele gene, então torna-se pouco específico. Poderia ser a grande esperança para todas as doenças, mas tem essa limitação metodológica que não se conseguiu resolver ainda. Porque num país endêmico, o número de pessoas que carregam a micobactéria é imenso, mas não estão doentes. O Mycobacterium leprae foi uma das primeiras bactérias patogênicas que tiveram o genoma completamente seqüenciado, em 2000. Agora é que se está começando a ter realmente condições para estudar o genoma, para buscar proteínas específicas e assim obter testes mais precisos. Esse, aliás, é o grande avanço na pesquisa atual sobre lepra. Nós estamos testando antígenos específicos e parece que estão dando resultados excelentes. Imagino que a pesquisa sobre lepra vá ter um avanço muito grande daqui há alguns anos. As coisas em pesquisa realmente demoram...

Que outros fatores influenciam a distribuição da doença? No Brasil, por exemplo, onde estão os casos, e que fatores estariam influenciando essa distribuição, além da predisposição genética?

Euzenir – O sistema de saúde. Os estados que tiveram um sistema de saúde mais eficaz, como o Rio Grande do Sul, tinham muita lepra há uns vinte anos, mas a doença foi controlada. O tratamento que se fazia não era nem muito eficaz. Levavam anos tratando o doente, mas mesmo assim eles controlaram. O Rio Grande do Sul tem prevalência menor que 1/10.000. Há forte correlação entre a endemia e o desenvolvimento. Na Europa, na Idade Média, até 1800, tinha lepra na região nórdica. O desenvolvimento caminhou, as pessoas passaram a ter melhores condições de vida e a infecção foi controlada. Hoje, no Brasil, os bolsões de lepra estão em alguns estados do Norte, Nordeste e Centro-Oeste: Maranhão, Piauí, Pernambuco, Pará, Amazonas, Rondônia e Mato Grosso. Há um aspecto interessante na distribuição da lepra: ela é focal mesmo nos estados endêmicos.

No município do Rio de Janeiro, ela está concentrada em alguns locais: Bangu, região portuária, zona Oeste... Na região da Barra da Tijuca, por exemplo, o número de casos é pequeno. Em Jacarepaguá há concentração de casos por causa do Hospital de Curupaiti, ao redor do qual moram diversas famílias originárias de antigos pacientes. Onde tem um caso multibacilar, há doentes.

Essa característica do multibacilar de alguma maneira dá razão aos que acreditavam, no passado, que a doença fosse hereditária?

Euzenir – Sim, porque como a doença tem um período longo de incubação, é difícil correlacionar o contágio. Ela não é hereditária, pois não é uma doença que passa de uma geração para outra através de material genético.

Mas aquela vulnerabilidade genética específica não é hereditária?

Euzenir - É o que a gente chama de suscetibilidade. Numa família de nove filhos, você pode ter dois que ficam multibacilares, um, paucibacilar, e os outros, sadios. Trata-se de uma suscetibilidade, a gente não sabe como é.

Muita gente ainda chega aos centros de saúde com lesões graves?

Euzenir – Infelizmente, sim. Eu diria que era de se esperar, não é? Podemos dizer que desde 1986 o sistema de saúde no Brasil, em relação à lepra, é organizado. Tem uma coordenação, distribuição por regiões, coordenações estaduais específicas... Hoje há uma tendência a se fazer a integração com o sistema de saúde, com os sistemas gerais de ambulatórios, mas ainda tem uma pessoa encarregada da lepra em cada unidade. O dermatologista que atende à lepra em geral não cuida de outras doenças. Há uma intenção do Ministério de integrar, pelo Programa de Saúde da Família, mas o sistema ainda mantém esse jeito antigo. Foi um sistema em que se investiu muito, no treinamento, acho, de mais de duzentas mil pessoas, com capacidade para diagnosticar. Esse movimento começou em 1986, porque, durante os vinte anos de ditadura militar, o sistema havia sido completamente desmantelado. Os militares achavam que a lepra tinha acabado no Brasil e desmantelaram o programa. Não se tinha mais registros, desapareceram os serviços, os médicos que sabiam diagnosticar aposentaram-se, os outros não sabiam reconhecer a doença. Em 1985, eu acho, começou aquele movimento dos sanitaristas. Fizeram alguns estudos de avaliação do programa, com consultorias da Organização Pan-Americana de Saúde (OPS) e da Organização Mundial de Saúde (OMS). Estavam preocupados por que não tinham dados do Brasil. Descobriram uma endemia em ascensão. Quem fez este trabalho foi Manoel Zuniga, um chileno de uma inteligência extraordinária. Ele analisou a tendência dos casos e fez um belo estudo de epidemiologia, projetando a tendência ao crescimento da doença. Isso que está acontecendo no Brasil, ele assinalou vinte anos atrás. Não me lembro quem era o ministro, mas foi na época que a Fabíola Pereira Nunes, esposa do Carlos Sant'Anna, que foi ministro, foi para a Secretaria do Ministério da Saúde e chamou técnicos de fora para ver a situação da lepra no Brasil. Ela então começou a organizar o sistema e, juntamente com a OMS, montou treinamento em vários estados. Foi quando eu ingressei na Fiocruz, e também quando Maria Leide de Oliveira foi para Brasília. Ela foi responsável pela organização dos serviços em todos os estados.

Nesse mesmo período modificaram o tratamento quimioterápico. Já em 1981, a OMS recomendava a poliquimioterapia (PQT) — em inglês, diz-se Multidrug Therapy (MDT). De 1972 a 1987, a OMS investiu maciçamente no desenvolvimento de um tratamento contra a lepra, em vários laboratórios do mundo. Descobriram um tratamento muito eficaz juntando três drogas: Dapsona, Rifanpicina e Clofazimina, que começaram a ser usadas na Índia e logo em vários países. O Brasil só adotou o esquema em 1991.

A Rifanpicina é um bactericida fortíssimo, que apresenta resultados excelentes na tuberculose. A Dapsona é uma sulfona tradicional que já era usada no tratamento da lepra. Tem um efeito bacteriostático bom, só que as pessoas se tornam resistentes porque têm de usar durante muitos anos. A Clofazimina é também um bactericida e um bacteriostático. Somadas, essas três drogas têm um efeito muito bom de inibir as micobactérias.

Quer dizer que a estratégia de tratamento anterior não estava funcionando bem?

Euzenir – Não estava. Desde mil novecentos e quarenta e poucos, os doentes eram tratados com sulfona aqui no Brasil. Era um tratamento longo. O multibacilar tomava o medicamento a vida inteira. Então, era comum os pacientes abandonarem o tratamento. Levavam um tempo sem tomar e voltavam a ser infectantes.

Por que levava a vida inteira? Não se conseguia debelar a infecção?

Euzenir – Não, não se conseguia. E ninguém tinha coragem de suspender o tratamento porque não se tinha instrumento para dizer que o paciente estava curado.

Devo dizer que mudou uma coisa importante aí. Até a época da sulfona, o conceito que se tinha era o da tuberculose: você teria que negativar a baciloscopia para considerar o cara curado. Na tuberculose, aliás, nem se faz mais isso. Hoje se suspende o tratamento com seis meses, independente da baciloscopia. Mas é uma coisa tradicional da infecção: você trata até se tornar negativo. Então, os pacientes não negativavam a baciloscopia. Quando veio a PQT, a idéia se modificou e a OMS passou a recomendar que os pacientes fossem tratados só durante dois anos. Atualmente, o tratamento dura um ano. Mas isso demorou a chegar ao Brasil. Somente em 1991 a PQT foi adotada oficialmente aqui.

Por que essa resistência?

Euzenir – Por causa da tradição. As pessoas não acreditavam que o tratamento fosse eficaz, tinham medo, não tinham experiência, o mundo ainda estava acumulando experiência, então houve uma resistência muito grande. Aqui na Fiocruz começamos a praticar a poliquimioterapia em 1986; em Manaus, Brasília e em Curupaiti também começaram um pouco antes. No início, esperava-se que a baciloscopia ficasse negativa; depois a gente começou a ver que se desse alta com a baciloscopia ainda positiva, não influenciava a taxa de recidiva que é menos de 1%. A Fiocruz foi uma das primeiras a fazer isso: suspender com dois anos, independente da baciloscopia.

E isso tinha fundamentos?

Euzenir – Bom, a gente tem quase certeza de que a maioria dos bacilos identificados na baciloscopia, nesse estágio do tratamento, não são viáveis. Fazia-se um teste de viabilidade, uma coisa meio grosseira, mas suficiente para se verificar que eles não eram viáveis. A gente inoculava camundongos, tínhamos aqui uns seis mil camundongos inoculados, e estes experimentos também ajudavam.

No final desse um ano, qual o índice de negativação?

Euzenir – Baixíssimo! Negativação, só uns 30%.

Parece que alguns casos que pareciam curados, de repente, por alguma razão, adoecem de novo...

Euzenir – Aí já é outro problema, também peculiar à doença. A lepra é cheia de peculiaridades. Você começa a tratar o doente e — geralmente no multibacilar —, três, quatro, cinco meses depois aparecem lesões pelo corpo inteiro que nós chamamos de reações. É terrível! O paciente fica apavorado. Ele começou a tratar e aí aparecem novas lesões. Isso atrapalha a confiabilidade do tratamento.

São irreversíveis também?

Euzenir – Não, são reversíveis. Hoje são tratadas com corticóides. São lesões disseminadas, às vezes necróticas. Alguns pacientes ficam tão mal que têm que ser internados. Os corticóides começaram a ser usados há 15, 16 anos atrás. Antes suspendia-se o tratamento. Hoje, quando começa a reação, você já entra com corticóide. Aí o quadro é controlado, regride, com uma, duas semanas, o paciente está voltando ao normal.

Jaime – É uma reação alérgica ao coquetel?

Euzenir – Não, não, porque essa reação ocorre mesmo quando ele não está tomando o remédio. É uma reação imunológica. A interpretação que a gente dá é a seguinte: como ele está com uma carga bacilar ''x'', você trata, desestabiliza um estado de equilíbrio que existia entre o sistema imune e aqueles microorganismos que estavam ali. Ou, então, pacientes que começaram a ter uma repressão da resposta imune, quando você começa o tratamento, desestabiliza o sistema, a resposta imune tenta destruir os bacilos. É uma situação complicada. Às vezes você dá alta ao paciente, mesmo aqueles que chegam a baciloscopia ''zero'', dois, três meses depois, até um ano depois, eles voltam com reação, demonstrando que seu sistema imune ainda está reagindo.

Aí ele tem que voltar a fazer o tratamento?

Euzenir – Não, não, a gente não faz. Isso a gente aprendeu, quer dizer, antigamente voltava a tratar, agora não, agora a gente não trata. Às vezes é muito difícil controlar as reações em adolescentes por causa dos problemas hormonais e psicológicos. Os casos mais graves nossos são em adolescentes de 14, 15, até 18 anos.

As comparações com o bacilo da tuberculose ainda iluminam aspectos da lepra? Por que os respectivos microorganismos são muito parecidos, não é?

Euzenir – É, eu acho que a gente aprende muita coisa com a tuberculose. Ela só é tratada por seis meses; é uma doença altamente bacilar, altamente virulenta. O bacilo da lepra não é virulento, é um bacilo preguiçoso; divide-se a cada vinte e tantos dias. A maior parte de seu genoma é totalmente não-codificador; é um germe que está no fim de seu processo evolutivo; 1/3 de seu genoma não funciona. Já o bacilo da tuberculose, não. Mas com relação ao tratamento e a alguns outros aspectos, inclusive o aspecto histológico das lesões, as semelhanças são muito grandes. A resposta imune também é muito parecida.

É verdade que o BCG, em alguma medida, protege da lepra?

Euzenir – É verdade. A gente tem feito vários estudos a esse respeito. Tanto que é recomendado vacinar com o BCG os contatos dos pacientes. Em nosso ambulatório, vacinamos todos os contatos, qualquer que seja a idade.

Do ponto de vista da imunologia da doença, quais são os principais marcos históricos?

Euzenir – Na imunologia, a gente já sabe tanta coisa da lepra e, ao mesmo tempo, é tanta coisa que a gente não sabe ainda... Em 1986, existiam artigos que já trabalhavam com a parte de imunologia. Primeiro, identificar o tipo de resposta imune que o paciente tem, das citocinas envolvidas neste processo, caracterizar a resposta positiva, mostrar a não resposta, mostrar como os contatos se comportam face à resposta imune dos que supostamente estão infectados, aqueles que vão ficar doentes. Mais recentemente se descobriu qual a participação das células do sistema imune que estão envolvidas. A gente já sabe que é o CD4, o CD8, o papel das citoninas, o Interferongama, TNF alfa, entre outras.

Robert Modlin, da Califórnia, vem identificando o componente da imunidade inata que seria um determinante desta resposta, através dos chamados Toll receptors. Estamos estudando isso, e temos, inclusive, uma doutoranda que está defendendo tese sobre o assunto.

Uma coisa é a resposta com que você já nasce. São várias coisas do sistema imune que fazem com que você, quando entra em contato com uma bactéria, comece imediatamente a agir. Tem aquela outra resposta imune que chamamos de adquirida, que envolve sistema de linfócitos específicos, resposta imune específica. O sistema imune inato não tem especificidade de memória. Essas são as mais recentes informações que possuímos, de 2003, mostrando que a resposta imune inata, através do receptor Toll, influencia a resposta imune e é diferente entre os paucibacilares e multibacilares. Uma área de pesquisa de que também participamos é a que trata de nervo, ou seja, como se dá a lesão do nervo? Por que a micobactéria provoca destruição do nervo, destruição irreversível. São esses processos que procuramos entender: por que a microobactéria entra? O que tem de específico? Quais os receptores existentes nas células e nas bactérias que fazem com que se unam, que elas penetrem? Depois que penetram, o que acontece? O que muda na célula? Há vários grupos no mundo estudando isso. Temos um aqui, muito bom, publicando trabalhos sobre o que acontece na inflamação dentro do nervo, o papel das citocinas, dos mediadores inflamatórios que lesam o nervo, com o objetivo de buscar, quem sabe, tratamentos mais eficazes. A lepra foi incluída pela OMS entre as doenças prestes a serem eliminadas. A área de pesquisa que o TDR (Special Programme for Research and Training in Tropical Disease) considera prioritária e financia é justamente a que trata de nervo e dos mecanismos de reação. A lesão do nervo é intensamente ativada durante o estágio reacionário. É quando o paciente perde a movimentação nas mãos etc. Tem muita gente estudando isso. Agora mesmo, em junho de 2003, saiu um artigo muito interessante a respeito de um modelo experimental para estudar a interação nervo-micobactéria.

Você tinha comentado que o grupo da Fiocruz é grande. Quantas pessoas são?

Euzenir – Funcionários, temos trinta e poucos; se incluírmos estudantes e estagiários, sobe para cerca de cem pessoas. Temos um ambulatório que diagnostica de 220 a 250 pacientes novos por ano, dos quais 120 continuam a ser tratados aqui. A gente ainda faz vacinação de contato, atende e educa a família, faz referência para a rede.

Em geral, a chegada da doença na família é um trauma, não é?

Euzenir – É sempre terrível! Não existe possibilidade de não ser. Há aqueles que escondem até da própria família. Uma assistente social funciona como psicóloga para lidar com estas situações. A enfermeira também ajuda.

Qual é sua opinião, como pesquisadora, sobre a mudança do nome de lepra para hanseníase?

Euzenir – Em minha opinião pessoal, atrapalhou muito, porque as pessoas não sabem o que é hanseníase, então acham que a lepra não existe. Quando eu estudava na faculdade, lepra não existia. Nunca ouvi falar dela durante os seis anos que estive lá. Não vi um caso! Foram anos em que não se pronunciava a palavra lepra.

Tenho o maior respeito por quem defende a mudança de nome, mas eu acho que atrapalhou intensamente. As pessoas não sabem, ninguém conhece essa doença, um nome que não existe, nome inventado. Nem médico pronuncia direito! Imagina o povo!? Você tem hanseníase. Que doença é essa? Você diz 'mancha branca', alguma coisa assim para poder se fazer entender. Eu acho que a mudança de nome, que não existe em outros países, foi terrível em vários níveis: no profissional, na implantação do programa de combate, para o diagnóstico e a assimilação social. Mas tem gente que não aceita de jeito nenhum, sente-se ofendida se você fala lepra.

No Brasil mudaram a lei. As coisas aqui são muito engraçadas. Então existe uma lei dizendo que nos documentos oficiais não pode constar lepra e nenhuma palavra que tenha a ver com este nome. Tem uma doença, por exemplo, chamada eritema nodoso hansênico. Botaram eritema nodoso hansenesiano. Ninguém sabe o que é. Você publica no mundo inteiro e ninguém vai saber o que é. Já tive discussões homéricas em defesas de tese cujos autores escrevem lepra e o examinador o repreende. No início da campanha falavam: hanseníase é a lepra... Imagine como uma pessoa ia absorver isso? Era a lepra... mudou? Ficou diferente? É uma explicação desnecessária, porque o estigma é o mesmo!

Isso foi uma iniciativa brasileira?

Euzenir – Exclusivamente brasileira. Surgiu mais ou menos nos anos 1960 por iniciativa de professores de leprologia que não podiam fazer nada para acabar com a lepra e tinham a maior pena dos doentes. Queriam de alguma maneira dar-lhes apoio psicológico numa época em que não existia tratamento.

Nos Estados Unidos não tem uma situação similar?

Euzenir – Não. Lá chamam lepra mesmo. Algumas vezes, em Carville, por exemplo, chamam doença de Hansen. É muito comum na patologia humana você chamar as doenças pelo nome do descobridor. Doença de Hodkins, por exemplo. Eu acho lógico chamar doença de Hansen. Agora, inventar hanseníase... E o pior é que inventaram tudo, inclusive os adjetivos. É uma coisa complicada. Na verdade, quando você lida com o paciente, você acaba tendo que dizer que ele tem lepra.

Qual é a tática que vocês adotam?

Euzenir – Aqui no ambulatório a gente diz que ele tem hanseníase e explica que era a antiga lepra. O engraçado é que às vezes o doente não sabe o que é hanseníase e fica lá na sala de espera. Aí sempre tem um que sabe e diz: ''isso é lepra!''. O paciente fica traumatizado, entra em pânico.

A pessoa que vai ao seu ambulatório já tem alguma suspeita?

Euzenir – É... Chega o doutor e diz que ela tem hanseníase. Ela sai feliz achando que não é lepra, é hanseníase. Ninguém sabe... A família fica sem saber. Já vi cenas patéticas. Um dia me chamaram no ambulatório: tinha uma mulher quebrando tudo lá. Era uma senhora, uma mãe enlouquecida porque a filha, pequenina, de quatro anos, fora diagnosticada como portadora de lepra. Ela perguntou como aquilo passava. Provavelmente foi o marido, disseram. ''Meu marido tem essa doença?! Ele nunca me falou! Vou quebrar ele todo!'' O marido estava se tratando, já tinha tido até alta, mas nunca falou para a mulher que estava com lepra.

Ele deve ter se sentido péssimo, não é?

Euzenir – Ave Maria! Aí a mulher largou o marido, ficou desesperada: ''se tivesse sabido, teria afastado minha filha'', não sei o quê. Fui explicar para ela que talvez não teria adiantado. Há situações terríveis: pessoas que querem se suicidar... E quando a classe é alta, mais desesperada fica. Para a pessoa de classe muito baixa, todas as doenças têm o mesmo nome, porque não tem nome: é tudo somente 'doente'. Quando diz que tem cura, não chega a se preocupar com o corpo, com coisas assim. Qualquer doença é igual. Agora, as pessoas de nível social mais alto têm crises horrorosas.

Na época em que a política era de confinamento, filho de paciente era levado para os preventórios. Hoje, não funcionam mais. Eles se tratam em ambulatórios, as mães alimentam os filhos normalmente. Não existe nenhuma recomendação para a mãe que está se tratando. Você faz a investigação da família e fica observando a criança. Quando aparece a doença... Infelizmente, não se pode fazer profilaxia porque não tem nenhum sistema que lhe permita identificar quem está doente, antes de ficar doente. Aliás, a OMS acaba de incluir no rol de suas prioridades os testes para diagnóstico de infecção. O objetivo é identificar as pessoas que não estão doentes ainda, mas apresentam carga bacilar e correm o risco de ficar doentes.

Por que isso é recente? Porque não incluíram antes?

Euzenir – Não existia essa possibilidade não havia esse teste-diagnóstico. Hoje com os estudos sobre o genoma, a identificação de novas moléculas, genes etc., ele é possível. Um pesquisador na França, St Want Cole, que está estudando esse tema, acha que existe a possibilidade de ter testes específicos.

E a hipótese de transmissão da lepra por sugadores de sangue, é completamente descartável?

Euzenir – É completamente descartável. Não há possibilidade.

Mas têm pesquisas que excluam isso?

Euzenir – Há, sim. Bom, não há como pegar todos os hematófagos e analisar a presença de micobactérias. Isso ninguém fez. A epidemiologia da doença fala contra esse tipo de transmissão. Contato humano prolongado dá essa calamidade, imagine se houvesse um vetor. Estaríamos fritos! Nas regiões de endemia você teria de controlar o vetor.

Os noruegueses ainda são fortes nessa área de pesquisa. Na Holanda tem um grupo grande de pesquisa com o qual temos colaboração. Tem, também, em Londres. Quando os governos ainda não se interessavam pela lepra, surgiram as organizações não-governamentais. As primeiras ongs criadas no mundo tinham em mira a lepra. Têm quase cem anos. Foram criadas a partir de doações, então são organizações fortíssimas. Hoje são umas sessenta e tantas, que fazem parte de uma federação chamada Internacional Leprosy Association. Quase todos os países da Europa estão representados aí: Itália, Espanha, França, Inglaterra, Holanda, Alemanha. O grupo de pesquisa da Holanda é mantido por uma dessas organizações. O da Inglaterra também. Na França estão cumprindo papel importantíssimo em relação ao tratamento com MDT, Multi Drug Terapy. Foram elas que pressionaram a OMS, que fizeram todo o lobby para que se adotasse o MDT. Puseram dinheiro firme. O tratamento da lepra é gratuito no mundo inteiro. Quem paga são as organizações não-governamentais, atualmente através da Novartis e da Fundação Sasakawa.

Quando foi criado o TDR, em 1971, foi chamado para dirigi-lo um norueguês, Tore Godol, um pesquisador que há muitos anos se dedicava ao estudo da lepra. Então a TDR começou com esta doença, colocou dinheiro na obtenção de um tratamento e conseguiu. A isso se deve o fato de hoje a lepra ter cura. O investimento concentrado na comunidade científica, das organizações sociais e da OMS resultou num tratamento, na descoberta e implantação da cura da lepra. É o caso mais bem-sucedido que o TDR tem. O diretor atual é Carlos Medicis Morel, que foi presidente da Fiocruz. Sua indicação está ligada a outra prioridade recente da OMS, a doença de Chagas. Torcemos para que os resultados sejam igualmente bem-sucedidos.

Ficha técnica

Data: 27 de junho de 2003

Local: Vice-presidência de pesquisa, Fundação Oswaldo Cruz Av. Brasil, 4365, Rio de Janeiro.

Tempo de duração: 1h10m

Entrevistadores: Jaime L. Benchimol, Ruth B. Martins, Luisa Massarani

Transcrição: Sônia Vieira

Conferência de fidelidade: Euzenir Nunes Sarno

Edição: Jaime L. Benchimol e Ruth B. Martins

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Mar 2004
  • Data do Fascículo
    2003
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