Resumos
Apresenta a trajetória do médico brasileiro Henrique da Rocha Lima, um dos primeiros a compor o grupo de jovens pesquisadores do Instituto Soroterápico de Manguinhos (Instituto Oswaldo Cruz). Examina sua primeira viagem à Alemanha, onde se especializou em microbiologia e anatomia patológica, configurando sua identidade profissional. As tensões e dilemas enfrentados por Rocha Lima permitem melhor compreender o que significava a dedicação à carreira científica no Brasil do início do século XX. Ademais, lançam luz sobre a importância das relações com o mundo germânico para a medicina experimental que se instituía sob a liderança de Oswaldo Cruz.
Henrique da Rocha Lima (1879-1956); trajetórias científicas; Instituto Oswaldo Cruz; relações científicas transnacionais; relações Brasil e Alemanha
This article follows the career of the Brazilian physician Henrique da Rocha Lima, one of the first to join the group of young researchers working at the Instituto Soroterápico de Manguinhos (Instituto Oswaldo Cruz). It describes his first voyage to Germany where he specialized in microbiology and pathological anatomy, training that shaped his subsequent professional identity. The tensions and dilemmas experienced by Rocha Lima provide an insight into what it meant to dedicate oneself to a scientific career in Brazil at the start of the twentieth century. They also reveal the importance of the relations with the German-speaking world for the experimental medicine that became established under the leadership of Oswaldo Cruz.
Henrique da Rocha Lima (1879-1956); scientific careers; Instituto Oswaldo Cruz; transnational scientific relations; relations between Brazil and Germany
DOSSIÊ BRASIL-ALEMANHA: RELAÇÕES MÉDICO-CIENTÍFICAS
Um brasileiro no Reich de Guilherme II: Henrique da Rocha Lima, as relações Brasil-Alemanha e o Instituto Oswaldo Cruz, 1901-1909* * Este artigo é resultado parcial da tese desenvolvida no Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde da COC/Fiocruz, sob orientação de Jaime Benchimol e co-orientação de Magali Romero Sá, defendida em outubro de 2011 e intitulada "A trajetória científica de Henrique da Rocha Lima e as relações Brasil-Alemanha (1901-1956)".
André Felipe Cândido da Silva
Pós-doutorando no Departamento de História/Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/Universidade de São Paulo. Av. Prof. Luciano Gualberto, 315. Cidade Universitária. 05508-900 - São Paulo - SP - Brasil. andrefelipe@usp.br
RESUMO
Apresenta a trajetória do médico brasileiro Henrique da Rocha Lima, um dos primeiros a compor o grupo de jovens pesquisadores do Instituto Soroterápico de Manguinhos (Instituto Oswaldo Cruz). Examina sua primeira viagem à Alemanha, onde se especializou em microbiologia e anatomia patológica, configurando sua identidade profissional. As tensões e dilemas enfrentados por Rocha Lima permitem melhor compreender o que significava a dedicação à carreira científica no Brasil do início do século XX. Ademais, lançam luz sobre a importância das relações com o mundo germânico para a medicina experimental que se instituía sob a liderança de Oswaldo Cruz.
Palavras-chave: Henrique da Rocha Lima (1879-1956); trajetórias científicas; Instituto Oswaldo Cruz; relações científicas transnacionais; relações Brasil e Alemanha.
ABSTRACT
This article follows the career of the Brazilian physician Henrique da Rocha Lima, one of the first to join the group of young researchers working at the Instituto Soroterápico de Manguinhos (Instituto Oswaldo Cruz). It describes his first voyage to Germany where he specialized in microbiology and pathological anatomy, training that shaped his subsequent professional identity. The tensions and dilemmas experienced by Rocha Lima provide an insight into what it meant to dedicate oneself to a scientific career in Brazil at the start of the twentieth century. They also reveal the importance of the relations with the German-speaking world for the experimental medicine that became established under the leadership of Oswaldo Cruz.
Keywords: Henrique da Rocha Lima (1879-1956); scientific careers; Instituto Oswaldo Cruz; transnational scientific relations; relations between Brazil and Germany.
Conforme foi possível demonstrar em trabalho recente (Silva, 2011), Henrique da Rocha Lima foi o mais destacado promotor das relações médico-científicas entre o Brasil e a Alemanha na primeira metade do século XX. A identificação com o país protagonista dos dois conflitos mundiais que marcaram o século passado, se lhe conferiu reconhecimento e prestígio internacionais, simultaneamente projetou uma sombra sobre sua trajetória profissional. O prêmio recebido dos nazistas em 1938 e a simpatia que nutriu pela pátria de Goethe e Wagner mesmo depois da Segunda Guerra Mundial alimentaram suposições sobre sua postura política. Rocha Lima aliou-se à medicina germânica num momento em que muitos de seus representantes abraçaram o projeto político-ideológico que levaria aos horrores do genocídio. Este trabalho acompanha os primeiros momentos da trajetória de Rocha Lima, desde sua formatura pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1901, quando rumou para Berlim, até 1909, quando decidiu fixar-se definitivamente em Hamburgo, onde se projetou como pesquisador do célebre Instituto de Doenças Marítimas e Tropicais (Institut für Schiffs- und Tropenkrankheiten). Apresenta o conflituoso processo através do qual ele fez as escolhas que determinariam sua identidade científica: a opção pela medicina experimental e a identificação com a ciência e a cultura germânicas. Não se trata aqui de projetar na fase inicial da trajetória do cientista as origens de seu itinerário, como se esse seguisse necessariamente via retilínea, traçada de antemão, ou como se os desdobramen-tos de suas ações estivessem previstos ou delas fossem consequências inelutáveis. Trata-se antes de apontar como os atores históricos operam escolhas dentro de um campo de possibilidades historicamente determinado, impondo-se ao historiador a necessidade de "reconstituir um espaço dos possíveis" (Revel, 1998, p.26). Nesse sentido, cumpre apegar-se à definição de trajetória formulada por Bourdieu (1996, p.198), "uma série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo), num espaço que é ele próprio um devir, estando sujeito a incessantes transformações". Veremos que os dilemas de Rocha Lima foram os de grande parte de uma geração de cientistas que lutou para firmar a ciência como atividade profissional, num momento em que ela não era reconhecida como prática autorreferida (Sá, 2006). As tensões de suas escolhas refletem impasses compartilhados por seus contemporâneos e lançam luz sobre processos sociais mais amplos e sobre o entorno no qual a medicina experimental deitou raízes. A singularidade desse personagem, que se projetou numa das principais vanguardas do ensino e pesquisa médicos, expõe, de forma contundente, os limites e as potencialidades da ciência produzida em realidade geográfica amplamente considerada marginal no plano da ciência internacional.
Seguindo os passos do jovem Rocha Lima no problemático momento do começo de sua vida profissional, deparamo-nos com o processo de constituição de instituição médico-científica que se tornaria um marco na institucionalização das ciências no Brasil. As opções feitas no início de sua trajetória e o reconhecimento de nosso personagem estão em grande medida relacionados à proximidade de Oswaldo Cruz e à criação do Instituto de Patologia Experimental, em Manguinhos1 1 Originalmente denominado Instituto Soroterápico e criado em 1900 pelo governo municipal do Rio de Janeiro para produzir soro e vacina contra a peste bubônica, que ameaçava invadir a então Capital Federal, era referido como Instituto de Manguinhos pelo fato de se localizar na Fazenda de Manguinhos, assim nomeada por localizar-se em região pantanosa. Refletindo a pauta de atividades de pesquisa que desde o início era ali realizada, em 1907, a instituição foi rebatizada como Instituto de Patologia Experimental, e, em 1908, pelo governo Afonso Pena, como Instituto Oswaldo Cruz, em reconhecimento à premiação obtida pelo Brasil em Berlim, abordada no decorrer deste trabalho. Sobre Manguinhos ver Fonseca Filho (1974), Stepan (1976) e Benchimol (1990). - motivo por que este trabalho também aborda a importância de Rocha Lima para a criação desse instituto e o papel das relações com o mundo germânico para a configuração de sua tradição de pesquisas. Nesse aspecto, cabe destacar o fundamental desempenho desse pesquisador no evento reconhecido como crucial para a decolagem do projeto institucional de Oswaldo Cruz: a premiação na décima quarta Exposição de Higiene em Berlim, em 1907.
Clínica ou medicina experimental? Os dilemas de Rocha Lima na Berlim novecentista
Nascido no Rio de Janeiro em 24 de novembro de 1879, Henrique da Rocha Lima era filho de famoso clínico do Império, Carlos Henrique da Rocha Lima, um dos fundadores da Policlínica do Rio de Janeiro, e formou-se na Faculdade de Medicina da então Capital Federal. Em 1901, o jovem médico recém-formado decidiu rumar para Berlim, com a intenção original de seguir os passos do pai e especializar-se em clínica. Os fatos de ter estudado no Colégio Brasil-Alemão, em Petrópolis, e de o pai ter sido ligado à Policlínica, instituição vazada no modelo austríaco, sugerem que a germanofilia de nosso personagem tinha antecedentes familiares. No último quartel do século XIX, a medicina brasileira sofreu impacto da germânica, que se firmava naquele momento como uma das mais avançadas. A associação de ensino e pesquisa nas universidades alemãs influenciou o perfil da formação médica contemporânea por estimular a atividade científica, associando-a à docência, por um lado, e à indústria, por outro. O figurino germânico daria o tom da reforma adotada na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro nos anos 1880 (Edler, 1992). Seus efeitos ainda eram bem fortes quando Rocha Lima realizou seus estudos. Uma das figuras de maior projeção na Faculdade, o catedrático de clínica propedêutica Francisco de Castro, era fluente no alemão, idioma que ensinava na Escola Superior de Guerra, e acompanhava de perto os avanços da medicina germânica, os quais divulgava em suas preleções, rememoradas por seus ex-alunos, como Rocha Lima (1952, p.29) e Carlos Chagas (Kropf, 2009, p.55).
Assim como Francisco de Castro, havia um grupo de jovens médicos que se reunia para ler os textos divulgados nos periódicos e manuais de medicina veiculados em alemão. Conhecido como "grupo dos cinco germanistas", era composto pelos médicos da Policlínica Geral do Rio de Janeiro Egydio Salles Guerra, Antônio José Pereira da Silva Araújo, Aureliano Vieira Werneck Machado, Alfredo Alves da Silva Porto e Oswaldo Cruz (Benchimol, 1999, p.414). Apesar do interesse pelos textos médicos alemães, Oswaldo Cruz se especializara em microbiologia, entre 1896 e 1899, no Instituto Pasteur de Paris. Assim como na França, a nova ciência dos germes encontrou solo fértil para seu desenvolvimento na Alemanha, onde ficou associada ao nome de Robert Koch (Gradmann, 2010). Além de descrever os patógenos do antraz, da tuberculose e do cólera, Koch estabeleceu, em 1884, os critérios considerados fundamentais para a incriminação de um germe como agente patogênico e desenvolveu técnicas como o meio de cultura sólido e a fotomicrografia. Ao lado dos avanços na identificação de uma série de agentes causadores de doenças - a década de 1880 ficaria conhecida como a era de ouro da ciência dos micróbios - ver-se-iam na Alemanha avanços fundamentais na compreensão dos fenômenos da imunidade e bioquímicos, e em suas aplicações práticas, cujas expressões mais bem acabadas foram a soroterapia e a quimioterapia, representadas por Emil von Behring e Paul Ehrlich (Gradmann, 2010).
Antes de se dirigir a Berlim, onde pontificavam renomados representantes da ciência de Koch e Pasteur, Rocha Lima travou contato com Oswaldo Cruz, reconhecidamente versado nos procedimentos e cânones da microbiologia. Em 1899, ano em que retornara de Paris, Cruz havia identificado com Adolpho Lutz, 'cria' da medicina germânica (Benchimol, Sá, 2004), e Vital Brasil o surto de peste bubônica que irrompeu em Santos. A epidemia fez com que o governo de São Paulo estabelecesse, na Fazenda Butantan, um instituto para produção de soro e vacina antipestosos, medida seguida pelo prefeito do Rio de Janeiro, que determinou a instalação da nova instituição na região de Manguinhos, onde havia um antigo incinerador de lixo. Oswaldo Cruz assumiu a direção técnica do Instituto Soroterápico de Manguinhos, logo transferido para a alçada do governo federal (Benchimol, 1990). A primeira impressão que Rocha Lima teve de Oswaldo Cruz não foi favorável. Muitos anos depois, ele registra-ria que sua "figura um tanto estranha", "sua longa sobrecasaca preta e sua cartola de forma inusitada, os seus abundantes cabelos ligeiramente grisalhos e bigodes alevantados, junto ao ar circunspecto" teriam lhe causado aversão, "que me é própria por qualquer aparência esdrúxula, despertando suspeita de intencionalmente calculada" (Rocha Lima 1952, p.28). Logo eles se tornaram bastante próximos, e Rocha Lima frequentou Manguinhos por alguns meses. Às atividades de produção do soro e vacina antipestosos, juntaram-se as de pesquisa, realizadas por jovens interessados em desenvolver suas teses de conclusão do curso de medicina. As práticas de investigação combinavam os protocolos da microbiologia clássica com os da nova especialidade médica que se constituía naquela virada de século, referida pela primeira vez pelo inglês Patrick Manson, em 1897, como medicina tropical. Dedicava-se à pesquisa de doenças causadas por microrganismos complexos, que dependiam de outros seres para sua transmissão, os vetores, e que predominavam nas zonas de climas quentes. O edifício conceitual da medicina tropical fora erigido a partir da elucidação do modo de transmissão da malária por mosquitos; primeiro da malária aviária, desvendada por Ronald Ross em 1898 e, em seguida, da malária humana, demonstrada por Giovanni Grassi, Amico Bignami e Giuseppe Bastinelli. O sentido social da nova especialidade definia-se em relação ao 'imperialismo construtivo' do final do século XIX, no âmbito do qual a saúde dos colonizadores figurou como questão fundamental para a viabilização dos empreendimen-tos coloniais (Worboys, 1996). Não foi por acaso que as primeiras escolas de medicina tropical foram instaladas em Londres e Liverpool. No império alemão, de formação tardia e ávido por participar da 'partilha do mundo', a medicina tropical encontrou guarida institucional no Instituto de Doenças Marítimas e Tropicais de Hamburgo, criado em 1900 e instalado nas pro-ximidades de um dos mais ativos portos comerciais da Europa (Wulf, 1994; Mannweiler, 1998; Brahm, 2002).
Em Manguinhos desenvolveu-se o estudo de mosquitos, que haviam assumido impor-tância médica devido principalmente a seu papel na transmissão da malária. Os ingleses lideraram o esforço de catalogação das espécies ao redor de todo o mundo (Benchimol, Sá, 2006). Rocha Lima narra que no período em que começou a frequentar Manguinhos eram comuns excursões às regiões pantanosas do Instituto para coletar mosquitos. Uma de suas primeiras contribuições foi o desenho da asa de um anófeles identificado por Oswaldo Cruz (Rocha Lima, 1952). "Vivi assim nesse ambiente de trabalho o sonho juvenil de pesquisa em laboratório, que minha fantasia tanto acariciava" diria (p.29) em leitura retrospectiva de sua trajetória. Como a opção pelo trabalho em laboratório não figurava promissora, em virtude das poucas oportunidades de alocação profissional naquele contexto, ele abortou por ora a "fantasia" e seguiu para Berlim a fim de completar seus estudos em clínica médica, que acenava de forma muito mais generosa e segura para a possibilidade de obter um emprego e, assim, ascender na hierarquia social. Esse era o caminho seguido pela maioria dos médicos egressos das escolas médicas brasileiras naquele período.
Quando Rocha Lima chegou a Berlim, em 1901, a cidade encontrava-se no apogeu de seu florescimento como capital do império de Guilherme II. As largas e elegantes avenidas e as construções monumentais sinalizavam as pretensões de supremacia do Kaiser. Ao amigo e colega da Faculdade de Medicina Hugo Werneck Rocha Lima (1 set. 1901) descreveu, maravilhado, o proverbial espírito de ordem e disciplina associados à cultura germânica. Sentiu, contudo, dificuldades com o idioma, como confessaria em correspondência: "O alemão é uma língua dos diabos ... admiro-me como alguns patrícios chegam aqui e tomam logo cursos, em poucos meses dizem que sabem alemão; pois eu nem esperanças tenho de vir a sabê-lo direito".
Na época Berlim rivalizava com Paris e Viena o papel de centro de estudos para estudantes e recém-formados com interesse em completar sua formação em medicina. Em instituições como o Hospital Charité, lecionavam prestigiados ícones da medicina em especialida-des como oftalmologia, cirurgia, pediatria e higiene. Nesta última, os discípulos de Robert Koch ocupavam postos-chave, definindo, aliás, os rumos da saúde pública. O autoritário Estado alemão beneficiara largamente as medidas de intervenção no espaço público preconizadas pela ciência dos germes. Desde 1891, funcionava o Instituto de Doenças Infecciosas criado por Koch e que levaria seu nome (Gradmann, 2010).
Durante sua estada em Berlim, Rocha Lima foi atormentado pela dúvida entre seguir o caminho da clínica, mais auspicioso, e o da medicina experimental. Frequentou o curso de clínica cirúrgica do renomado Carl Jakob Adolf Christian Gerhard e tomou aulas com o higienista Phillip Martin Ficker2 2 Martin Ficker nasceu em Sohland no Spree em 17 de novembro de 1868. Formou-se em medicina pela Universidade de Bresslau, em cujo Instituto de Higiene foi assistente de Karl Flügges. Dedicou-se na época ao ramo da pesquisa bacteriológica do ar. Entre 1896 e 1901 foi assistente de Franz Hoffmann no Instituto de Higiene de Leipzig, em que defendeu livre-docência em 1898, "Sobre o tempo de vida e morte de germes patogênicos". Em 1902 tornou-se diretor de departamento do Instituto de Higiene da Universidade de Berlim e no ano seguinte foi nomeado professor de higiene dessa universidade. Publicou com seus professores Max Rubner e Gruber, entre 1911 e 1923, o "Manual de Higiene". Em 1913 foi nomeado diretor do Instituto Bacteriológico de São Paulo. Em razão da guerra, retornou em 1917 à Alemanha, quando assumiu o posto de diretor de departamento na Sociedade Kaiser Wilhelm, ocasião na qual realizou estudos sobre a toxina do antraz. Retornou a São Paulo em 1923, onde fundou um laboratório de bacteriologia que permaneceu ligado à Sociedade Kaiser Wilhelm, sendo elevado à categoria de estação microbiológica da Sociedade Kaiser Wilhelm em 1925. Permaneceu aí até sua morte, em 22 de novembro de 1950. Durante esse período realizou pesquisas sobre a lepra (Jusatz, 1961, p.134-135). , do Instituto de Higiene de Berlim, de quem se tornou bastante próximo e que desenvolveria grande parte de sua carreira no Brasil. Também tomou cursos em anatomia patológica, ramo da medicina que gozava de grande tradição em Berlim, devido ao fato de ter sido lá que lecionara Rudolf Virchow, considerado um dos fundadores da moderna especialidade. Virchow morreu quando Rocha Lima estava em Berlim, em 1902, inviabilizando sua intenção de assistir às aulas do formulador da teoria celular. Teve de contentar-se em frequentar o curso de seu sucessor, Johannes Orth (Rocha Lima, 20 ago. 1902). "O Orth pode não ser um Virchow, mas é um professor de mão cheia, incansável e de grande preparo", comentaria com Hugo Werneck (Rocha Lima, 12 nov. 1902). De maneira diversa de Virchow, que se manteve bastante cético e hesitante em relação ao modelo etiológico proposto pela ciência de Koch, Orth (1904, p.22) procurou harmonizar a bacteriologia com a anatomia patológica. "Anatomia patológica e bacteriologia não são opostas, mas ciências inseparáveis uma da outra. Todo moderno anatomopatologista deve possuir conhecimentos profundos das bactérias", afirmou em conferência. Sua tentativa de acomodar as duas especialidades certamente favoreceu Rocha Lima, que construía sua identidade científica na intersecção delas. Para Martin Ficker (1940, p.XII), esse foi o traço distintivo do pesquisador brasileiro, que lhe teria conferido grande vantagem, num período em que ambos os campos ensaiavam os primeiros passos na tentativa de abordagem conjunta dos fenômenos da morbidade.
"A minha paixão pelas coisas microscópicas não mais encontrou obstáculos e é dando pasto a elas que passo o dia inteiro entre o microscópio e vidros de materiais corantes", Rocha Lima (13 maio 1902) escreveria, entusiasmado, a Werneck. Mas logo o entusiasmo dava lugar à preocupação com o futuro profissional, pois a clínica prometia inserção profissional mais segura. Se refletisse muito - confessou ao colega - "concluiria que anatomia patológica e bacteriologia não adiantam nada e que o que vale é um ramo prático da medicina" (Rocha Lima, 6 jul. 1902). Meses depois, desabafaria: "tive vontade de mandar a bacteriologia ir com a anatomia patológica ao diabo e atracar-me com um livro de clínica e assistir a estas; enfim, deixar de maluquices e pensar seriamente na vida" (Rocha Lima, 12 nov. 1902). À medida que se aproximava o fim de 1902, crescia a angústia com sua carreira, pois muito embora houvesse decidido aproveitar o final de sua estada em Berlim "embrenhado nos mistérios da ciência pura", logo lamentou a Werneck, "estarei com uma mão atrás e outra adiante, sem ter o que fazer e sem dinheiro" (Rocha Lima, 12 nov. 1902). A saída do impasse deu-se com o convite que Oswaldo Cruz lhe fez, em carta de 17 de dezembro de 1902, para ocupar o posto de chefe de serviço em Manguinhos, cargo que ele assumiria ao lado de Figueiredo de Vasconcelos, com a atribuição de supervisionar os trabalhos de produção dos imunoterápicos, de pesquisa e de formação dos jovens médicos. Devido a desavenças o barão de Pedro Afonso deixou a direção-geral do Instituto, que foi então assumida por Cruz (Benchimol 1990, p.18). "Se por um acaso puder aceitar em conseguindo o que desejo e se meu bom amigo quiser voltar a Manguinhos, será para mim a realização de um dos sonhos que mais acaricio ... peço-lhe obséquio, caso aceite, de vir o mais breve possível", escreveu Oswaldo Cruz (17 dez. 1902). Rocha Lima não aceitou de pronto o convite. Preferiu concluir os estudos em Berlim e só em 8 de abril de 1903 embarcou de volta ao Brasil. Trouxe na bagagem coleção de culturas bacterianas e preparados histológicos, que constituiriam o "núcleo original de Manguinhos" (Benchimol, 1990, p.27). Certamente atravessou o Atlântico entre a empolgação por dar vazão a seu fascínio e a preocupação com a incerteza profissional. As iniciativas de estabelecimento de carreiras e instituições no âmbito da medicina experimental eram até então bastante rarefeitas. A nova conjuntura política e econômica, no entanto, favoreceria o cultivo da pesquisa médica e a decolagem da vida profissional de nosso personagem.
Rocha Lima, a febre amarela e o Instituto de Manguinhos
A chegada de Rocha Lima ao Rio de Janeiro coincidiu com o início das obras de remodelação urbana da Capital Federal, uma das prioridades do governo de Rodrigues Alves, empossado em dezembro de 1902. A conjuntura econômica permitiu levar adiante a reforma na qual pretendia adequar o Rio de Janeiro às exigências de circulação de pessoas e mercadorias e à imagem de 'vitrina' de país civilizado a que as elites aspiravam apresentar ao exterior (Benchimol, 2003). Junto com a reforma urbana ocorreu a reforma sanitária, cujo objetivo era combater as doenças que conferiam fama de cidade pestilenta à capital brasileira. A febre amarela era a principal delas. Oswaldo Cruz foi nomeado em março de 1903 diretor-geral de Saúde Pública, assumindo poderes discricionários para levar adiante o combate ao 'mal amarílico'. Ele se centraria no combate ao mosquito Stegomyia fasciata que, em 1900, havia sido comprovado por uma comissão médico-militar norte-americana em Havana como o transmissor da doença. A função na Diretoria-geral de Saúde Pública implicou certo afastamento do Instituto de Manguinhos. Coube a Rocha Lima o papel de monitorar os trabalhos científicos do Instituto e instruir os jovens médicos que para lá afluíam com o interesse de especializar-se nas ciências dos micróbios e vetores (Aragão, 1950; Benchimol, Teixeira, 1993). A equipe logo ganhou corpo com a chegada de nomes como Henrique Aragão, Alcides Godoy, Carlos Chagas e Arthur Neiva, que vinham juntar-se a Antônio Cardoso Fontes, Henrique Figueiredo de Vasconcelos e Ezequiel Dias. Cumpre acrescentar comentário de Rocha Lima (s.d.) em carta a Oswaldo Cruz na qual relata o andamento dos trabalhos em sua ausência: "Há duas semanas que começou a trabalhar aqui o Dr. Neiva, o que me tem tomado bastante tempo, mas uma vez encaminhado não mais me atrapalhará, pois é rapaz inteligente e muito trabalhador".
No renhido combate à febre amarela, Oswaldo Cruz operou amplo esquadrinhamento do espaço urbano. Medidas como o isolamento dos doentes, o estabelecimento de cordões sanitários e fumigação de residências garantiram o rápido controle da doença. A taxa de mortalidade, que em 1903 foi de 584 pessoas, caiu no ano seguinte para 48, tornou a subir para 289 em 1905, e depois entrou em curva descendente: 42 mortos, em 1906, 39 em 1907, quatro, em 1908 e, no ano seguinte, foi considerada oficialmente extinta na Capital Federal (Löwy, 2006, p.92). O êxito da campanha consagrou a reputação nacional e internacional de Oswaldo Cruz. Antes mesmo de anunciar o extermínio da doença, a campanha, que já era acompanhada in visu por uma comissão de médicos do Instituto Pasteur de Paris, chamou atenção dos alemães do Instituto de Doenças Marítimas e Tropicais de Hamburgo. Em fevereiro de 1904, desembarcaram no Rio de Janeiro Hans Erich Moritz Otto e Rudolf Otto Neumann. Munidos de potente ultramicroscópio Zeiss, realizaram pesquisas no Hospital de Isolamento São Sebastião sobre o vetor da febre amarela e abordaram a controvertida questão da etiologia.3 3 Sobre o debate acerca da etiologia da febre amarela e as diferentes teorias mobilizadas para elucidá-la ver Benchimol (2001). A expedição foi financiada por firmas ligadas ao comércio cafeicultor e por duas das mais importantes companhias que faziam o percurso de Hamburgo à América Latina, a Hamburg-Amerikanische Packefahrt-Actien Gesellschaft e a Hamburg-Südamerikanische Dampfschiffahrts-Gesellschaft. Conforme demonstra Brahm (2002), o interesse dessas firmas pela febre amarela decorria do ônus que ela representava para o comércio, por afetar seus representantes no Brasil e pelo obstáculo das quarentenas. Otto e Neumann registraram com interesse as medidas de combate à febre amarela adotadas por Oswaldo Cruz no Brasil, posteriormente aplicadas pelo primeiro na colônia alemã do Togo (Brahm, 2002, p.28).
A expedição de Otto e Neumann ao Brasil pode ser considerada o primeiro capítulo expressivo da aproximação científica teuto-brasileira no campo da medicina tropical e entre os Institutos de Manguinhos e de Doenças Marítimas e Tropicais de Hamburgo - ligação que desde então se mantém bastante forte (Silva, 2011).
No final de 1904 e início de 1905, Rocha Lima realizou, no mesmo Hospital de Isolamento em que ficaram os alemães, pesquisas anatomopatológicas em supostas vítimas de febre amarela. Suas observações levaram à identificação de lesões no fígado que considerou típicas da doença, defendendo sua aplicação no diagnóstico necroscópico. Inseguro com relação a suas conclusões, que contrariavam aquilo que advogavam grandes nomes da medicina da época, como Miguel Couto, só publicaria trabalho sobre o assunto em 1912, quando já estava na Alemanha (Rocha Lima, 1937). O pleno reconhecimento do valor diagnóstico das lesões descritas por ele só viria depois de 1929, com o reaparecimento da febre amarela no Rio de Janeiro e no contexto da ampla campanha realizada pela Fundação Rockefeller no Brasil nos anos 1930 (Benchimol, 2001; Löwy, 2006). Ao lado da identificação do agente causador do tifo exantemático em 1916, os estudos histopatológicos da febre amarela consistem em sua mais importante contribuição científica.
No período em que Oswaldo Cruz permaneceu à frente da Diretoria de Saúde Pública, as condições de trabalho em Manguinhos sofreram grande melhora (Benchimol, 1990). Recursos do órgão federal garantiram a transformação gradual das acanhadas instalações do Instituto no imponente conjunto arquitetônico, simbolizado pelo castelo em estilo mourisco, cuja construção, iniciada em 1905, só seria concluída em 1918, um ano depois da morte de Oswaldo Cruz. Os laboratórios foram modernizados, e a biblioteca foi guarnecida com revistas e livros nacionais e estrangeiros. A 'metamorfose' do Instituto Soroterápico num centro de pesquisa médica não tinha legitimidade legal. Embalado pelo sucesso da campanha contra a febre amarela, Oswaldo Cruz apresentou ao Congresso Nacional projeto que previa a transformação efetiva do perfil da instituição, que assumiria, ao lado da produção de imunobiológicos, a função de núcleo de pesquisas voltado às principais doenças infecciosas que grassavam em solo brasileiro. Além de legitimar as atividades de pesquisa que já se realizavam na prática, o projeto apresentado em 30 de junho de 1906 ao Legislativo previa o aumento de funcionários, instituía um plano de carreira para a pesquisa e ligava o Instituto diretamente ao ministro da Justiça e Negócios Interiores, sem passar pela Diretoria-geral de Saúde Pública (Benchimol 1990, p.34). Dessa forma Oswaldo Cruz pretendia criar um quadro de pessoal dedicado à pesquisa e estabelecer bases científicas sólidas, capazes de assegurar o desenvolvimento da instituição para além dos objetivos pragmáticos e limitados que haviam impulsionado sua criação. Conforme aponta literatura sobre o Instituto de Manguinhos (Aragão, 1950; Stepan, 1976; Benchimol, 1990; Benchimol, Teixeira, 1993; Cukierman, 2007), o projeto de Oswaldo Cruz só foi aprovado graças ao bom resultado da campanha antiamarílica e aos louros que a delegação brasileira colheria em Berlim, na décima quarta Exposição de Higiene, para a qual foram de crucial importância as articulações de Rocha Lima durante sua segunda viagem à Alemanha, em 1906 e 1907.
A segunda viagem de Rocha Lima à Alemanha e o "reclame" de Manguinhos
Em julho de 1906 Rocha Lima partiu novamente para a Alemanha a fim de complementar seus estudos, com apoio de Oswaldo Cruz, que conseguiu suporte diplomático do ministro das Relações Exteriores, o barão do Rio Branco (Paranhos Júnior, 22 jun. 1906), que encaminhou ao representante brasileiro na Alemanha carta de apresentação de Rocha Lima, "comissionado pelo Instituto de Manguinhos e pelo Ministério do Interior para estudar na Europa anatomia patológica, soroterapia e bacteriologia". Tendo passado por Londres e Paris, Rocha Lima encontrou-se em Berlim com o ex-professor Martin Ficker, a quem mostrou fotografias de Manguinhos e amostras de soros e vacinas. "[Ficker] é um bom elemento para tornar conhecido nosso instituto", escreveu a Oswaldo Cruz (Rocha Lima, 8 ago. 1906), apresentando a tônica do que seria aquela estada na Alemanha - o "reclame de Manguinhos", ou seja, o esforço em divulgar entre os alemães a instituição brasileira e as atividades ali desenvolvidas. O roteiro de estudo não estava previamente definido. Um dos objetivos era aperfeiçoar os conhecimentos em anatomia patológica com o patologista Hermann Dürck4 4 Hermann Dürck nasceu em Munique em 11 de fevereiro de 1869. Estudou com o reputado patologista Böllinger, em Munique, e Hans Chiari, em Praga. Doutorou-se em Munique, em 1892, e habilitou-se em anatomia e bacteriologia, em 1897. Em 1902, tornou-se professor extraordinário nessa especialidade. Em 1909, ocupou a direção do Instituto de Patologia da Universidade de Jena. Dois anos depois, retornou a Munique, onde assumiu a direção do Instituto Patológico, anexo ao Hospital Isar. Em 1919, tornou-se professor honorário da Universidade de Munique. Além de estudos sobre a histopatologia da peste e beribéri, aprofundou as investigações sobre a histopatologia do sistema nervoso. Descreveu, no sistema nervoso de pacientes com malária, uma formação granulomatosa batizada com seu nome (Gruber, 1959, p.163). , do Instituto de Patologia de Munique. Antes de dirigir-se para a capital bávara, Rocha Lima fez um périplo por instituições de pesquisa biomédica. Transmitiu a Oswaldo Cruz as observações detalhadas que fez sobre sua estrutura, modo de organização, técnicas empregadas nas pesquisas e nas rotinas de produção. Visitou o Instituto de Higiene de Munique, o Instituto de Doenças Infecciosas em Berlim e o Instituto Suíço de Soroterapia, dirigido pelo renomado Wilhelm Kolle. Tratou de divulgar a Kolle os métodos de combate à febre amarela empregados no Brasil e a técnica que utilizavam em Manguinhos para produção do soro antipestoso. O mais proveitoso da visita em Berna havia sido - comentou com Oswaldo Cruz em carta (Rocha Lima, 7 set. 1906) - a possibilidade de divulgar entre Kolle e seus colaboradores o que era feito no Brasil, praticamente desconhecido no estrangeiro. Sugeriu que confeccionassem folhetos e álbuns de divulgação, com texto em alemão e boa apresentação visual.
Meses depois Rocha Lima (7 nov. 1906), acompanhado de Dürck, visitaria em Berlim o instituto dirigido por Paul Uhlenhuth, registrando detalhadamente suas observações e impressões. "Isto que tem o nome modesto de Bakteriologische Abteilung (Departamento Bacteriológico) é um dos maiores e mais bem montados institutos que tenho visto", relatou em carta. Frequentou o curso oferecido por Uhlenhuth, sobre o qual escreveu:
Tive, assim, ocasião de travar relações com todos e mostrar que não somos macacos, tomando sempre parte nas discussões e fazendo sempre objeções, que, felizmente sempre aceitas, deram-me duas espécies de satisfação - uma íntima, vendo que com nossos estudos não estamos atrasados; outra menos modesta, de fazer reclame de Manguinhos desde as pequenas questões de técnica até as altas questões de imunidade (Rocha Lima, 7 nov. 1906).
Esse comentário toca um aspecto que perpassou toda a viagem de Rocha Lima e que seria constitutivo de sua identidade científica. Ao completar sua formação naquele que era considerado um dos principais centros da pesquisa médica internacional, exacerbou-se nele a tensão que marcou toda uma geração de cientistas e intelectuais brasileiros: o dilema daqueles hesitantes "entre a vontade de civilizar o Brasil pela transposição dos novos conhecimentos científicos e tecnológicos ocidentais e a vontade de desenvolver uma aproximação científica original, entre o reconhecimento da existência de uma 'ciência do centro', a única capaz de legitimar seus esforços ... e a aspiração a relativizar a sua importância" (Löwy, 2006, p.18).
Em Rocha Lima essa tensão expressou-se em atitude de autoafirmação: ao mesmo tempo em que procurava destacar a excelência da ciência produzida no subúrbio carioca, alimentou-se da convicção de que nem tudo na Alemanha era tão superior como se acreditava. Em seu confronto com os que se viam e/ou eram vistos como representantes de uma vanguarda científica e cultural, essa tensão era elevada à enésima potência e manifestou-se em comentários como o seguinte, endereçado a Oswaldo Cruz: "O Kolle recebeu-me o mais gentilmente possível ... enfim, sem o ar de pouco caso que é comum nesses homens quando tratam com brasileiros e que tive ocasião de observar mesmo com patrícios nossos ilustres" (Rocha Lima, 7 set. 1906).
Rocha Lima registrou impressões igualmente favoráveis em relação a Hermann Dürck. Inicialmente ficou dividido entre aprofundar os conhecimentos em anatomia patológica, em Munique, ou tomar cursos em várias especialidades da medicina experimental. Perguntou a Oswaldo Cruz o que considerava melhor para Manguinhos (Rocha Lima, 5 out. 1906). A relação com Dürck, entretanto, progrediu de tal forma, que acabou optando por ficar em Munique. "Passar três anos a desejar Berlim para cair em Munique não é propriamente o que se pode chamar ter sorte" (Rocha Lima, 3 dez. 1906), queixou-se a Oswaldo Cruz. Dürck concedeu-lhe toda sorte de facilidades, como o acesso irrestrito ao museu de patologia e a sua ampla coleção de preparados anatomopatológicos. O médico brasileiro ficou bastante satisfeito em notar o interesse que o patologista alemão e os colegas demonstraram por seus preparados de febre amarela, que chegaram, aliás, a ser exibidos numa conferência sobre doenças tropicais, sempre suscitando referências ao Brasil. Compartilhar os preparados representava um "reclame mais sólido para Manguinhos do que histórias e figuras", salientou a Oswaldo Cruz (Rocha Lima, 23 out. 1906).
Logo Rocha Lima assumiu trabalhos de rotina do laboratório de Dürck, como a análise do material enviado ao Instituto e autópsias de casos, possibilitando-lhe aprofundamento na anatomia patológica. A vastidão do campo afligiu-o: "Tendo todos os elementos para aprender cada vez mais, sei cada vez menos, cada vez me parece mais difícil a tal anatomia patoló-gica, cada vez tenho menos esperanças de passar de um sofrível cortador de parafina" (Rocha Lima, 3 dez. 1906). O pesquisador brasileiro conquistou a confiança de Dürck, evoluindo a relação entre eles para o âmbito pessoal. Em carta a Oswaldo Cruz, conta que haviam se tornado "bons companheiros" (Rocha Lima, 10 maio 1907). "Ele mostra-se cada vez mais camarada e facilita-me tudo. É de uma franqueza que cativa, de modo que estou a par de quase todos os negócios públicos dele", acrescentou em outra carta (Rocha Lima, 7 mar. 1907).
Oswaldo Cruz (21 nov. 1906), por sua vez, manteve Rocha Lima a par do andamento dos trabalhos em Manguinhos, não deixando de lado as tensões que já se delineavam entre os jovens integrantes daquele coletivo. "As relações internas do Instituto, por mais que eu procure aplainar as dificuldades, tornam-se cada vez mais tensas e tudo porque a vaidade de Aragão e o menoscabo de que faz alarde ... tornam a conjuntura atual difícil de ser mantida", queixou-se ao colaborador. As confidências sugerem relação de Rocha Lima com Oswaldo Cruz diferenciada daquela estabelecida pelo diretor de Manguinhos com os demais pesquisadores.
As tensões que começavam a se fazer presentes na equipe de Manguinhos estavam relacionadas, entre outros aspectos, à complexidade e densidade assumidas pelo programa de pesquisas. Algumas delas passaram a conferir destaque a seus autores. Foi o caso dos estudos de Henrique Aragão (1907; 1908) sobre o ciclo de vida do halterídio do pombo, parasita semelhante ao da malária humana e sobre a espiroquetose das galinhas, feitos em 1906 e 1907. As campanhas contra a malária realizadas desde 1905 nos canteiros de obras de infraestrutura, como hidrelétricas e ferrovias, resultariam na observação de novos fatos concernentes à epidemiologia da doença (Benchimol, Silva, 2008). A adaptação às condições locais do receituário com base em conhecimento veiculado nos manuais de medicina tropical traria como contrapartida a abertura de novas frentes de pesquisa e melhor compreensão dos complexos fatores relacionados à incidência daquelas doenças, que, como a malária, envolviam hospedeiros humanos, parasitas, vetores e o ambiente circundante. Estudos entomológicos enriqueciam o acervo dos transmissores do impaludismo. Numa dessas campanhas antipalúdicas, Carlos Chagas chegaria à observação dos fenômenos que levaram à descrição da nova tripanossomíase humana batizada com seu nome (Kropf, 2009).
Os autores dos estudos sobre os diversos aspectos concernentes às doenças infecciosas bebiam em diferentes fontes da medicina internacional, entre as quais tinham grande relevo as revistas e os manuais divulgados no idioma alemão. Os títulos vazados na língua de Goethe predominavam entre as revistas que ornavam a sala de leitura da biblioteca. Os manuais publicados pelas reputadas casas editoras de Leipzig tinham lugar cativo na estante de Oswaldo Cruz, ao lado de livros de ingleses, como o famoso Tropical diseases: a manual of the diseases of warm climates (conhecido como Manual de doenças tropicais), de Patrick Manson, e de franceses, como o Traité des fièvres palustres, de Laveran.
A dilatação das fronteiras geográficas e cognitivas de Manguinhos correu em paralelo ao desenvolvimento das instalações materiais do Instituto. A tentativa de Oswaldo Cruz de conferir bases legais à transformação do Instituto Soroterápico em um instituto de medicina experimental, nos moldes das instituições europeias, tramitava, vacilante, no Congresso nacional. O percurso do projeto pelos órgãos públicos foi alvo de comentários na cor-respondência com Rocha Lima: "nossa Manguinhos, que à falta de incenso e loas, jaz na pasta da Comissão de Saúde, da qual não tenho esperanças de exumá-la" (Cruz, 9. set. 1906). O projeto sofreu críticas dos parlamentares, que para Rocha Lima (5 out. 1906) expressavam sintomas de um "meio imoral", causando-lhe "acessos de indignação e revolta". Da Alemanha, nosso personagem torcia para o reconhecimento de Manguinhos por parte dos poderes públicos e da sociedade. Enquanto isso, sugeria que Oswaldo Cruz acionasse estratégias capazes de fortalecer a legitimidade do Instituto: "É preciso que Manguinhos domine cientificamente a nossa medicina" (Rocha Lima, 19 dez. 1906), asseverou. Nas linhas escritas a Rocha Lima, é possível acompanhar a angústia com que o diretor de Manguinhos acompanhava a tramitação de seu projeto e a desfiguração do desenho original que havia proposto para a instituição: "O nosso projeto quase que passou no Senado ... Se houvesse mais um dia de sessão, tê-lo-íamos aprovado", escreveu em janeiro de 1907 (Cruz, 21 jan. 1907). E quatro meses depois: "Querem transformá-lo [o Instituto de Manguinhos] em estabelecimento de ensino com alteração das verbas - enfim, o diabo" (Cruz, 29 maio 1907). Como já mencionado, a luta renhida pela aprovação do projeto só foi vencida depois do sucesso da participação brasileira na décima quarta Exposição de Higiene em Berlim. Acompanhemos, a seguir, o engajamento de Rocha Lima nesse evento.
Rocha Lima e o Congresso e Exposição de Higiene em Berlim
Logo na primeira carta em que escreveu a Oswaldo Cruz em sua segunda viagem à Alemanha, Rocha Lima (8 ago. 1906) mencionou a ocorrência de uma exposição e congresso internacionais de higiene, previstos para ocorrer em Berlim em 1907: "Acredito que será uma boa ocasião de tornar conhecido o que aí se faz, e com o Ficker posso obter bom e bastante lugar; mais tarde escreverei a respeito." Na resposta de um mês depois, o diretor de Manguinhos pediu que o colaborador estudasse a questão da Exposição, "a qual, talvez, possamos comparecer" (Cruz, 9 set. 1906).
Os meses seguintes seriam de engajamento intensivo de Rocha Lima na tentativa de viabilizar a participação brasileira no evento. Sua atenção aos mínimos detalhes revela um perfeccionista, com senso extremamente crítico, também no que se refere à dimensão estética. Ele se colocou na incômoda posição de 'tradutor' que deveria não apenas adequar as realizações da medicina brasileira à linguagem da ciência alemã, mas também conciliar duas lógicas bastante distintas - de um lado os alemães, com a obsessão por planejamento, antecedência, prazos e regras e, de outro, os brasileiros, com as tergiversações e adiamentos fundados naquela convicção íntima de que no final tudo dá certo. Tal convicção se viu confirmada naquela ocasião, mesmo que à custa do bem-estar psíquico de Rocha Lima, que chegou à beira da histeria.
Ele sugeriu que em vez de muitas fotografias e descrições, apresentassem quadros simples, com os aparelhos usados na campanha contra a febre amarela, que elucidassem o processo de produção do soro antipestoso, maquetes das enfermarias e serviços de expurgo e exposição dos produtos do Instituto. Propôs que não levassem maquete de Manguinhos "pois a esta gente aquele excesso de enfeites e ornamentos causa uma impressão pouco científica e um tanto ridícula, pois, referem-se logo sorrindo ao muito dinheiro que deve haver no Brasil. Se fosse possível fazer o Instituto com um aspecto menos esquisito!" (Rocha Lima, 5 out. 1906).
Para Rocha Lima, três assuntos e objetos mereceriam ser apresentados em Berlim: a febre amarela, Manguinhos e a coleção anatomopatológica de febre amarela e peste. Em relação ao último item, comentou: "Aqui todos se interessam muito por anatomia patológica e, depois, a febre amarela é completamente desconhecida e de peste, a melhor coleção é a do Dürck, que é muito inferior à nossa" (Rocha Lima, 7 nov. 1906). Além disso, expôs o que denominou "considerações psicológicas", que chamam atenção pela franqueza:
Eu conheço bem a psicologia do nosso meio. Será mesmo por patriotismo, desejo de aproveitar uma boa ocasião de salientar o Brasil e Manguinhos, convicção de que estas questões agora ainda na atualidade breve perderão o interesse, que eu me interesso e procuro interessá-lo nesta questão? Ou um sentimento egoísta é a mola que impulsiona este interesse? Não será, porque, devido às relações e outras facilidades que aqui tenho, e daí a evidente conveniência de, por causa da exposição, demorar-me eu mais tempo aqui do que pretendia, não será por isso que afeto tanto patriotismo? Estou neste caso, como o Senhor, com a organização de Manguinhos. Mesmo a opinião do Ficker é suspeita, porque pode ser o desejo que ele tem da minha companhia, as boas relações de amizade etc. que o levam a se interessar por nosso comparecimento. Enfim, mais uma vez, procurando seguir o seu exemplo: thue recht und scheue niemand (aja corretamente e não temas a ninguém). Em todo o caso, sempre fica qualquer coisa de desagradável e amargoso em tudo isto, e o meu desejo é que aí no Rio achem tudo isto desnecessário. Julgo de toda a conveniência uma resolução definitiva sobre o assunto, e insisto especialmente, no fato do governo ou Manguinhos ou a saúde, fornecer os meios necessários, evitando as expressões bem conhecidas entre nós 'Vamos ver o que se pode fazer' ou 'Há de se arranjar'. Neste caso, ou tudo ou nada (Rocha Lima, 7 nov. 1906).
Rocha Lima tinha consciência da importância da Exposição como vitrina do que vinha sendo feito em Manguinhos e como porta de acesso à ciência internacional. Sabia que a chave para esse acesso era o domínio das questões locais - os conhecimentos sobre a febre amarela e seu combate no Rio de Janeiro -, os quais deveriam ser arranjados em disposição consoante com as conveniências desses fóruns internacionais e veiculados na 'língua franca' daquele período, que era o alemão. Aos olhos de Rocha Lima, as boas relações estabelecidas com os luminares da ciência germânica tornavam aquela constelação praticamente única. Para isso, entretanto, Oswaldo Cruz deveria obter junto às instâncias políticas às quais estava subordinado o apoio capaz de garantir a participação brasileira à altura dos padrões do que se reconhecia como 'boa ciência'. A lógica da ciência deveria impor-se aos descaminhos e desventuras da política, mas, ao mesmo tempo, era a sua sombra que indivíduos como Oswaldo Cruz lutavam naquele período para estabelecer a pesquisa científica como atividade profissional. As negociações com o principal patrono da atividade científica - o Estado - requeriam apresentar as aplicações daquele conhecimento em termos de resolução de problemas práticos e/ou o possível reconhecimento que ele renderia em âmbito internacional.
Rocha Lima (21 jan. 1907) justificou na carta posterior a franqueza como sendo: "ditada pela minha natureza, pelo caráter um tanto íntimo que costumam ter as nossas conversas." E acrescentou: "O senhor não fará a injustiça de acreditar que com isso procuro engrandecer-me ou aumentar os meus méritos diante dos seus olhos." Tais considerações advinham exatamente pela impressão "de ter sido excessivamente franco". Fazia tudo em nome de Man-guinhos, emendou.
O cerco começou a se fechar sobre Rocha Lima quando os envolvidos na organização da Exposição cobraram-lhe mais do que um aceno de intenções. Em 9 de janeiro de 1907, ele escreveu a Oswaldo Cruz: "O Ficker perguntou-me a resposta que daríamos sobre o convite para a Exposição de Higiene, porque resta ainda muito pouco lugar. Eu disse que nada sabia a respeito" (Rocha Lima, 9 jan. 1907). Quase uma semana depois, Oswaldo Cruz (15 jan. 1907) respondeu que em Manguinhos todos se moviam para apresentar os trabalhos no Congresso de Berlim: Godoy abordaria a questão da dosagem do soro, Figueiredo Vasconcelos o combate à peste, Aragão os novos processos de imunização, Chagas e Neiva os insetos transmissores de doenças, José Gomes de Faria os bacilos do grupo paratifo, e ele o combate à febre amarela. Preparavam-se também para a exposição, arranjando as fotos, maquetes e os produtos a apresentar. Rocha Lima comunicou então a Berlim o provável comparecimento do Brasil no evento. Tornava-se urgente uma resposta oficial encaminhada diretamente aos organizadores, e a informação do espaço que precisariam, avisou a Oswaldo Cruz (Rocha Lima, 21 jan. 1907). Estava prevista a ida deste à Alemanha, para tratar mais de perto da organização. O próprio Ficker (s.d.) escreveu ao brasileiro, pedindo informações sobre os detalhes da sua viagem para poder acolhê-lo.
Em 30 de janeiro, Oswaldo Cruz (30 jan. 1907) confirmou a participação brasileira na Exposição. Pediu que Rocha Lima indicasse o espaço a ser reservado e perguntou a quem deveria informar a resposta oficial. Em resposta, Rocha Lima (2 fev. 1907) demonstrou contrariedade e inquietação com o andamento do processo:
Tenho presente a sua carta de 30 de janeiro, a qual me surpreendeu pela pergunta que me faz se deve responder ao Rubner, pois pensei que a resposta oficial já tivesse chegado a Berlim, à vista das cartas que nesse sentido lhe escrevi. Insisti, de acordo com as palavras do convite, em que mandasse dizer o espaço necessário para nós, pois não sei o que pretende expor, nem tenho autorização para fazer qualquer comunicação oficial. O mais que me foi possível fazer foi escrever uma carta particular ao Dr. Hoffmann dizendo que era muito provável que comparecêssemos e que me mandasse dizer até quando devia chegar a resposta oficial, para em caso de urgência telegrafar; a resposta demorou e quando aqui chegou, calculei que, à vista das minhas cartas, a tal sua respos-ta já estaria em caminho e não valia portanto a pena telegrafar. À vista de sua carta, sou obrigado a passar um telegrama pedindo que com urgência responda oficialmente e diga o espaço que precisa. Não será para admirar que o pouco espaço que restava, tenha diminuído com o tempo. Se em suas cartas me tivesse dito o que resolveu expor, qual das minhas ideias achou aproveitável, enfim, qualquer coisa sobre o assunto, eu poderia de novo em carta particular ao Hoffmann fazer reservar algum lugar; mas não posso escrever sem base alguma.
Diante da incerteza, resolveu ir a Berlim para falar pessoalmente com Hoffmann - médico militar da Kaiser Wilhelms-Akademie für das militärärztliche Bildungswesen (Academia Imperador Guilherme de Formação de Médicos Militares) - , que fazia parte do comitê de organização da Exposição. Ficou sabendo, através dele, que estavam tendo problemas de espaço devido ao grande número de participantes e pedidos. Restaria aos brasileiros uma área de três metros de parede com uma mesa de um metro de largura. Insistiu para que tivessem pelo menos cinco metros, o que seria possível - consentiu Hoffmann - desde que descrevessem oficialmente e de forma detalhada tudo que seria exposto. "Imagine em que apuros estou eu metido, sem ter a menor ideia do que é possível fazer quanto a quadros, fotografias ou estatísticas. Lamento que nada me tenha escrito sobre o assunto", queixou-se a Oswaldo Cruz. Inventaria alguma coisa e comunicaria ao superior. E como forma de pressioná-lo a agilizar os passos, informou que os outros convidados já haviam comunicado em detalhes o material a ser exposto, tendo, por isso, obtido lugares melhores. "Há porém já quase 6 meses que lhe escrevi sobre o assunto", reforçou a responsabilidade de Oswaldo Cruz pelo atraso e indefinições. Pediu que lhe definisse o que seria apresentado, e deu algumas sugestões diante das novas limitações de espaço. "Não imagina como esta incerteza e falta de instruções me aflige, pois embora esteja convencido de que não poupo esforços para que não façamos má figura, não posso me consolar com isso, pois desejo sinceramente que façamos coisa capaz", desabafou. Admitiu que estava com "os nervos irritados" (Rocha Lima, 7 mar. 1907).
Martin Ficker e Max Rubner também estavam envolvidos na organização da Exposição e prometeram conseguir os cinco metros, mas fizeram exigência igual à de Hoffmann: os brasileiros teriam que detalhar por escrito o que seria exposto. Rocha Lima escreveu, então, a comunicação do material a ser apresentado à secretaria da Exposição. Enviou a Oswaldo Cruz e pediu que ele desse seu parecer "não com um simples 'está bom', mas dizendo o que pretende trazer". A confecção dos modelos deveria ser feita com a máxima antecedência, bem como a inscrição no Congresso, que ocorreria junto com a Exposição. Propôs que o diretor de Manguinhos fosse o quanto antes para a Alemanha a fim de se dedicar às tarefas de organização. Tudo para evitar fazer "uma má figura" e para que ele não "ficasse no ar" (Rocha Lima, 8 mar. 1907).
A situação de Oswaldo Cruz no Brasil não era confortável. Ele lutava com a falta de posicionamento e lentidão das instâncias burocráticas, das quais dependia para assumir qualquer postura oficial: "Quanto à Exposição de Higiene, apesar das misérias que me estão fazendo, havemos de levá-la a efeito, por isso peço pedir espaço e manda-me dizer qual será ele e se puder manda uma planta das salas", escrevera em 20 de fevereiro. Logo que fosse autorizado pelo ministro da Justiça, mandaria uma resposta oficial (Cruz, 20 fev. 1907). Ficou posicionado entre a morosidade das autoridades e a pressão de Rocha Lima, que em cartas "biliosas", como ele as qualificou, cobrava atitude e definições do superior. Compreendia o desconforto de seu colaborador, que tinha que negociar diretamente com os alemães: "Você tem toda a razão de zangar-se por não ter eu ainda feito comunicação de aceitar ou não o convite." E justificou: "Mas o que quer você? Só consegui uma resposta do Ministro à vista do seu telegrama, para o que foi preciso, ainda, um grande exercício." Informou o que pretendiam levar à Exposição e deixou nas mãos de Rocha Lima conseguir o maior espaço possível. Em virtude dos serviços que organizava de combate à tuberculose, só poderia deixar o Brasil em julho de 1907 (Cruz, 12 mar. 1907), acentuando, com isso, a apreensão de nosso personagem, que esperava ter em breve a companhia de Oswaldo Cruz para auxiliá-lo (Rocha Lima, 20 mar. 1907).
Repetidas vezes Rocha Lima justificaria a dureza com que cobrava posições de Oswaldo Cruz e se desculparia por ter "extrapolado os limites": "Creio que tudo é devido ao desejo que tenho de não ter de dizer mais tarde - fiz tudo o que era possível - , mas de que façamos boa figura. Se fosse uma questão em que apenas a minha responsabilidade estivesse em jogo, estaria tranquilo" (Rocha Lima, 20 mar. 1907). Tudo faria para evitar que fizessem "uma figura muito triste na Exposição".
A apreensão de Rocha Lima (16 maio 1907) tornou-se mais aguda com a falta de instruções precisas sobre o que deveria ser exposto e a cobrança dos organizadores da Exposição. Seria um vexame - vaticinou - se discriminasse nos folhetos objetos que não fossem expostos, "principalmente com a tendência natural dos europeus em nos ligar pouca importância", acrescentou.
Em julho de 1907, Oswaldo Cruz dirigiu-se à Europa, passando primeiro por Paris e rumando em seguida para Berlim. Rocha Lima encontrou-se com ele e Luiz de Moraes, o arquiteto que projetara as construções de Manguinhos. Depois de ver tudo bem encaminhado, não obstante os contratempos, manifestou otimismo com a participação brasileira: "Nossos lugares são os melhores possíveis e talvez consigamos não fazer má figura", escreveu a Rocha Lima (Cruz, 30 ago. 1907). O desenrolar dos acontecimentos mostraria que não estava equivocado, conforme o próprio diretor de Manguinhos relataria à esposa em carta escrita um dia depois da abertura do Congresso e da Exposição de Higiene, que ocorreu em 23 de setembro de 1907: "O Congresso foi aberto ontem. Tem sido uma verdadeira amolação de festas. Nossa exposição tem causado um verdadeiro sucesso. Todos dizem que julgavam que no Brasil nunca se poderia trabalhar do modo por que o fazemos" (citado em Cukierman, 2007, p.330).
A delegação brasileira, que expôs nas seções de Bacteriologia Geral, Doenças Contagiosas e Vacinação Profilática, de Construção de Hospitais e Desinfecção e na de Estatísticas de Higiene, de Doenças e de Mortalidade, foi premiada com a medalha de ouro, entregue pela imperatriz alemã. Meses depois, Oswaldo Cruz foi recepcionado no porto do Rio de Janeiro como herói nacional. Em retribuição aos louros obtidos no Velho Mundo, o Congresso nacional finalmente aprovou o projeto que previa a transformação do Instituto Soroterápico num centro de pesquisas médicas (Benchimol, 1990, p.36-37). Em carta a João Pedroso escrita quando ainda estava na Alemanha, Oswaldo Cruz reconhecia o mérito de Rocha Lima no sucesso em Berlim: "O Rocha Lima, com as excelentes relações que tem aqui, obteve-nos os melhores lugares e fez uma propaganda lenta pela palavra ... assim foi ganha a batalha" (citado em Cukierman 2001, p.582).
O projeto sancionado pelo presidente Afonso Pena em dezembro de 1907 oficializava as atribuições de Manguinhos, tarefas que em grande parte já eram realizadas na prática. Além da pesquisa, a instituição poderia oferecer cursos de especialização, correspondendo ao perfil do Instituto Pasteur de Paris, com base no ensino, produção e pesquisa (Benchimol, 1990). O Instituto, rebatizado Instituto Oswaldo Cruz no ano seguinte, ficava diretamente subordinado ao Ministério da Justiça, assumindo estatuto equivalente ao da Diretoria-geral de Saúde Pública. Além da autonomia administrativa, o novo estatuto garantia autonomia financeira, ao liberar a comercialização dos produtos desenvolvidos na instituição. Dessa forma a renda da vacina contra a peste da manqueira, patenteada por Alcides Godoy, garantiria o financiamento de uma série de benefícios, como a contratação de novos quadros. Com a verba vieram para Manguinhos, por exemplo, Adolpho Lutz, Astrogildo Machado e o patologista Gaspar Vianna. O novo regulamento previa ainda a criação de uma revista científica, denominada Memórias do Instituto Oswaldo Cruz. O primeiro número entraria em circulação em 1909, veiculando até a Primeira Guerra Mundial artigos em português e alemão. Assim estreitaram-se ainda mais os canais de diálogo com a medicina germânica, que no ano anterior e nos seguintes se haviam intensificado com a vinda de pesquisadores de instituições alemãs a Manguinhos.
A ciência alemã em Manguinhos: Prowazek, Giemsa, Hartmann e Dürck no Instituto Oswaldo Cruz
Segundo Guerra (1940, p.370), os visitantes em Berlim puderam admirar pela primeira vez no estande brasileiro "peças anatomopatológicas de moléstias desconhecidas de muitos, insetos hematófagos, preparações microscópicas, a representação completa de ciclos evolutivos completos de protozoários que conheciam apenas de leitura". Certamente os cientistas que passavam por ali e se interessavam interagiam com os presentes. É bem provável que tenha sido numa dessas ocasiões que Oswaldo Cruz convidou para passar uma temporada em Manguinhos Stanislas von Prowazek5 5 Stanislas von Prowazek nasceu em 12 de novembro de 1875, na Boêmia. Fomou-se em ciências naturais na Universidade de Praga e na de Viena. Atuou durante curto período na estação zoológica de Trieste e, em 1901, no Instituto de Terapia Experimental de Paul Ehrlich, em Frankfurt. Em 1903, trabalhou com Fritz Schaudinn na estação biológica de Rovigno. Em 1905, substituiu Schaudinn no laboratório de protozoologia do serviço de saúde do Reich, em Berlim. No ano seguinte, assumiu a direção da seção de protozoologia do Tropeninstitut, em Hamburgo, também substituindo Schaudinn. Participou da expedição científica liderada por Albert Neisser a Java entre 1906 e 1907. Depois de permanecer no Instituto Oswaldo Cruz de 1908 a 1909, participou da expedição a Samoa, Sumatra e às ilhas Marianas, na qual realizou seus estudos sobre o tracoma. Em 1913, foi comissionado, com Carl Hegler, para a Sérvia, a fim de estudar o tifo exantemático. No ano seguinte, em companhia de Henrique da Rocha Lima, foi a Constantinopla, com a finalidade de dar continuidade ao estudo dessa doença. Os dois foram novamente destacados, já durante a Primeira Guerra Mundial, para combatê-la num campo de prisioneiros russos, em Cottbus. Durante as pesquisas, Prowazek contraiu a doença, falecendo em fevereiro de 1915. e Gustav Giemsa6 6 Gustav Giemsa nasceu em 20 de novembro de 1867 em Blechhammer bei Slaventziz, na Alta Silésia. Formou-se em farmácia em Leipzig, especializando-se em química, mineralogia e bacteriologia. Depois de atuar por alguns anos na África ocidental alemã, foi nomeado em 1900 chefe da seção de química do Instituto de Doenças Marítimas e Tropicais de Hamburgo, fundado naquele ano. Além do método de coloração nomeado em sua homenagem, Giemsa ocupou-se com a quimioterapia das doenças tropicais, destacando-se, nesse tema, seus estudos sobre a quinina. Em 1920 foi nomeado Privatdozent da recém-fundada Universidade de Hamburgo. Aposentou-se em 1933 e faleceu em 1948, no Tirol. Sua produção científica inclui mais de 120 publicações. Dados biográficos extraídos de Mannweiller (1998). , diretores dos departamentos de protozoologia e de química do Instituto de Doenças Marítimas e Tropicais de Hamburgo, respectivamente. O convite previa a realização de estudos com os pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz, a divulgação dos resultados nas Memórias e a oferta de cursos. O governo brasileiro assumiu os custos da viagem e o pagamento dos vencimentos dos alemães durante a estada prevista para durar seis meses (Benchimol, 1990).
Os nomes de Giemsa e Prowazek já eram internacionalmente prestigiados em suas especialidades. O do primeiro corria mundo, designando a solução por ele aperfeiçoada para a coloração de protozoários do sangue, mas que também mostrou-se útil na visualização de outros microrganismos e de componentes de tecidos. Prowazek acumulava número expressivo de trabalhos sobre protozoários e sobre biologia celular básica. Sucedeu, na dire-ção da seção de protozoologia, Fritz Schaudinn, célebre por ter descrito o espiroqueta causador da sífilis. Prowazek aprofundou os estudos de microrganismos semelhantes ao treponema, correlacionando-os a uma espécie de úlcera tropical e outras patologias. Além disso, associara inclusões intracitoplasmáticas, que referiu como clamidozoários, a doenças como o tracoma. Aquelas estruturas também foram associadas à escarlatina, raiva e peste bovina (Mannweiler, 1998).
As pesquisas de Prowazek em Manguinhos relacionaram-se ao possível papel de uma dessas formações na patogenia da varíola, doença que irrompeu em violento surto em 1908. Realizou esses estudos em colaboração com Henrique Aragão. O 'micróbio da varíola' apontado por eles gozou de grande notabilidade na época, tendo sido objeto de estudo publicado no semanário médico de Munique Münchener medizinische Wochenschrift e nas Memórias do Instituto Oswaldo Cruz. Prowazek (1909) também estudou o ciclo de vida do agente da espirilose das galinhas, demonstrando o papel do carrapato como hospedeiro intermediário. Também pesquisou protozoários de vida livre, pauta de pesquisas continuada posteriormente por Aristides Marques da Cunha e José Gomes de Faria. Segundo Aragão (1950) e Fonseca Filho (1974) ela representaria uma das principais contribuições duradouras da permanência de Prowazek. Em 1912, Giemsa viria novamente a Manguinhos para estudar, com Alcides Godoy e Cardoso Fontes, parasitas de peixes e protozoários que formavam o plâncton da baía de Guanabara (Benchimol, Teixeira, 1993, p.29).
Prowazek ainda acompanhou Arthur Neiva numa expedição científica à região que compreendia áreas dos estados de São Paulo e Mato Grosso. Parte do relatório da excursão encontra-se no arquivo do Instituto de Doenças Marítimas e Tropicais de Hamburgo. Nele, Prowazek (s.d.) descreve, maravilhado, o trajeto que fizeram de São Paulo até a embocadura do Tietê. Observou a malária em Bauru, reparando que ali a chamada forma tropical tinha evolução mais branda do que a forma terçã.
Menos bem documentadas são as atividades a que se dedicou Gustav Giemsa. Apenas um trabalho seu feito em colaboração com Alcides Godoy veio a lume nas Memórias. Trata da aplicação do método de ultrafiltração na concentração do soro antidiftérico produzido em Manguinhos (Giemsa, Godoy, 1909).
No período em que Prowazek e Giemsa estavam no Rio de Janeiro, outro pesquisador alemão fez breve visita ao Instituto Oswaldo Cruz: o também pesquisador do Instituto de Doenças Marítimas e Tropicais de Hamburgo Ernst Rodenwalt, médico militar que há pouco havia retornado do Togo, na África. Rodenwalt (1957, p.54) caracterizou Manguinhos como um instituto que dispunha dos mais modernos aparatos científicos da época. Em relação à equipe, menciona que havia se formado na Europa e trabalhava com "devotamento apaixonado".
A estada dos pesquisadores do também chamado Tropeninstitut coincidiu com o encontro, por Carlos Chagas, de um tripanossoma numa espécie de sugador conhecido popularmente como barbeiro nos locais da construção de uma ferrovia, para onde fora destacado a fim de realizar profilaxia contra a malária (Kropf, 2009). De acordo com Sá (2005, p.314), Prowazek comunicou na Alemanha que formas do tripanossoma observado por Chagas eram bastante semelhantes aos hemosporídios intracelulares, no tocante à esquizogonia e ao período de vida intracelular, além de não apresentar formas móveis de reprodução. Chagas publicou nos Archiv für Schiffs- und Tropen-Hygiene a ocorrência de dois tripanossomas o Trypanosoma minasense, que ele havia encontrado em macacos, e o Trypanosoma cruzi, nova espécie constatada no intestino dos barbeiros (Sá, 2005, p.314). Conforme ele próprio afirmara, os estudos do ciclo de vida da nova espécie de tripanossoma haviam ocorrido sob supervisão de Prowazek que, depois de retornar à Alemanha, publicou um estudo sistematizando os conhecimentos sobre os tripanossomas. Referiu-se ao trabalho do pesquisador de Manguinhos como uma evidência de que aqueles protozoários se desenvolviam nos vetores, questão controversa na época, muito embora o trabalho do pesquisador do Instituto de Doenças Infecciosas de Berlim Friedrich Karl Kleine defendesse isso para o caso da doença do sono (p.315). Em abril de 1909, Chagas fecharia o ciclo do novo tripanossoma, ao surpreendê-lo no sangue de uma criança encontrada no mesmo local em que flagrara barbeiros infectados. Apontou-o como patógeno de uma doença, cujo desenho clínico e epidemiologia conformar-se-iam, nos anos seguintes, entre avanços e recuos, dilemas e controvérsias, como aponta Kropf (2009). Designada doença de Chagas, ela seria considerada a principal conquista de Manguinhos e assumiria significados estreitamente relacionados com as propostas de intervenção de seus pesquisadores no espaço público (Kropf, 2009).
Em meio às turbulências trazidas pela nova 'descoberta', chegou em Manguinhos o protozoologista alemão Max Hartmann7 7 Max Hartmann nasceu em 1876. Formou-se em ciências naturais na Universidade de Munique, na qual se doutorou em 1901. Entre 1902 e 1905 foi Privatdozent no Instituto de Zoologia da Universidade de Gießen. Em 1903 apresentou tese de livre-docência sobre os modos de reprodução dos organismos, uma demonstração do que seria a tônica de sua produção científica - as teorias da sexualidade. Por influência de Fritz Schaudinn, transferiu-se em 1905 para o Instituto de Doenças Infecciosas de Berlim, no qual implantou o departamento de protozoologia. Esse mesmo departamento ele assumiu, em 1914, no Kaiser-Wilhelm Gesellschaft Institut für Biologie (Instituto de Biologia Imperador Guilherme), em Dahlem, Berlim, do qual foi diretor entre 1933 e 1955. A importância de Hartmann para a biologia consiste principalmente em suas contribuições para a compreensão dos mecanismos envolvidos na reprodução e nas teorias de sexualidade dos seres. Seus estudos sobre protozoários estavam relacionados a esse aspecto. Considerava mais simples o estudo desses mecanismos em organismos unicelulares. Voltou-se contra o vitalismo e o puro mecanicismo, e defendeu a aplicação do pensamento causal na biologia. Faleceu em 1962 (Dolezal, 1969). , ligado, como Prowazek, a Fritz Schaudinn. Hartmann era pesquisador do Instituto de Doenças Infecciosas de Berlim, dirigido por Koch. Havia assumido, junto com Prowazek, a direção do Archiv für Protistenkunde (Arquivos de Protozoologia), criado por Schaudinn. Em Manguinhos, Hartmann trabalhou com Chagas de forma bastante próxima. Estudaram juntos flagelados encontrados nas fezes de uma tartaruga, investigação que levou à identificação de uma nova espécie de ameba, que o alemão denominou Entamoeba testudinis (Hartmann, 1910). Fizeram ainda amplo inventário dos flagelados que encontraram em frascos de água doce originários dos pântanos de Manguinhos. O estudo daqueles protozoários tinha em mira comprovar o sistema classificatório que Hartmann havia estabelecido com Prowazek, bem como algumas concepções defendidas por Schaudinn, como a da duplicidade nuclear das células desses microrganismos (Hartmann, Chagas, 1910b). Em meio à multidão de flagelados analisados, encontraram uma ameba que apresentou uma forma muito peculiar de divisão nuclear, sendo objeto de outra publicação nas Memórias (Hartmann, Chagas, 1910a).
As concepções da 'escola de protozoologia' de Schaudinn, representada por Prowazek e Hartmann, impactaram o modo pelo qual Chagas descreveu o ciclo de vida do tripanossoma envolvido na nova patologia humana. Conforme demonstra Kropf (2006), uma das confirmações disso é a interpretação que ele deu às formas encontradas no pulmão de animais infectados - considerou-as estádios da divisão esquizogônica do parasita, uma característica que confirmava a hipótese de Schaudinn da estreita relação entre os tripanossomas e os hemosporídios. O Trypanossoma cruzi reforçava a sugestão de Hartmann, de alocação dessas duas categorias de protozoários sob uma nova ordem - a Binucleatta (Kropf, 2006, p.96).
Em 1912, foi a vez do ex-professor de Rocha Lima, Hermann Dürck, vir a Manguinhos para organizar o serviço de anatomopatologia ligado ao hospital que seria criado junto ao Instituto. Permaneceu ali durante seis meses, estada que também não deixou muitos registros nas fontes consultadas. Segundo Fonseca Filho (1974), Dürck não exerceria influência significativa na conformação da patologia em Manguinhos. Àquelas alturas, Rocha Lima já ganhava renome no exterior. Em 1909, partira para a Alemanha, inicialmente para ocupar a vaga de assistente de Dürck no Instituto de Patologia da Universidade de Jena. Permaneceu apenas oito meses em Jena, pois logo se transferiu para Hamburgo, onde, a convite de Prowazek, assumiu a função de pesquisador do Instituto de Doenças Marítimas e Tropicais, no qual atuou até 1927. O afastamento de Manguinhos e questões envolvendo a prorrogação da licença e o sucessor da vaga deixada por ele provocaram a ruptura com Oswaldo Cruz, que desejava sua permanência no Brasil. Ressentido com a atitude de Cruz, continuou acompanhando, atento, os conflitos envolvendo os ex-colegas e a complexa correlação de forças que operou realinhamentos, relacionados, entre outras coisas, à hierarquia sacramentada pelo novo regulamento do Instituto (Benchimol, Teixeira, 1993). Nos anos posteriores, no entanto, Rocha Lima daria seguimento à prolífica carreira científica, trazendo contribuições para o estudo da patologia da febre amarela, como vimos, da doença de Chagas, da verruga peruana/doença de Carrión, da histoplasmose e de outras micoses de manifestação cutânea. Prestígio internacional conquistaria, no entanto, com os estudos que levaram à descrição do agente etiológico do tifo exantemático, feitos durante a Primeira Guerra Mundial. Uma vez terminado o conflito, foi nomeado professor da Universidade de Hamburgo, fundada em 1919. A integração à comunidade acadêmica alemã e a inserção entre os médicos brasileiros permitiram que nos anos 1920 atuasse intensamente em favor do restabelecimento das relações da ciência germânica com o exterior, abaladas com a guerra. Aos diplomatas de Berlim, sugeriu que o Instituto Oswaldo Cruz atuasse como centro da propaganda cultural alemã no Rio de Janeiro, sendo o elo que permitiria manter rediviva a atração que os colegas tinham pela medicina germânica. Em 1928, Rocha Lima retornou ao Brasil, vindo a integrar o Instituto de Defesa Agrícola e Animal que Arthur Neiva fundava em São Paulo. Em 1933 assumiu a direção do Instituto e a ocupou até 1949, período em que o consolidou no cenário científico nacional e internacional seguindo a fórmula que Oswaldo Cruz aplicara em Manguinhos: fortalecimento dos laços com os segmentos sociais locais e acento na internacionalização (Stepan, 1976). Morreria sete anos depois, descontente com o pouco reconhecimento de suas contribuições científicas e marcado com a associação à Alemanha, cuja identidade passaria a ser indelevelmente ligada às barbáries ocorridas durante o nacional-socialismo.
Considerações finais
No presente trabalho foi possível vislumbrar o início dessa estreita relação de Rocha Lima com o mundo germânico, num momento em que a Alemanha figurava como principal centro científico no campo da pesquisa médica. Os dilemas de suas escolhas - se a clínica ou a carreira de pesquisador - não foi exclusividade sua. Muitos de seus contemporâneos, entre os quais Carlos Chagas, tentaram conciliar por algum tempo as duas esferas de atividade. A dedicação à ciência não figurava, no Brasil do início do século XX, como opção tão atraente e segura de inserção profissional como a clínica. O histórico das atividades científicas no país até então demonstrava iniciativas de curto fôlego ou que seguiam seu curso, periclitantes, com escasso apoio político e social. O mérito de Oswaldo Cruz foi a capacidade de negociar com as instâncias políticas e sociais de seu tempo as garantias de que precisava para estabelecer, no subúrbio do Rio de Janeiro, um instituto dedicado à medicina experimental, assegurando, como contrapartida, o atendimento às demandas práticas do Estado e dos demais setores envolvidos no projeto de modernização republicana. A agenda científica do Instituto de Manguinhos envolveu o estudo, diagnóstico e combate de doenças locais, apoderando-se, ecleticamente, do manancial de teorias e protocolos que circulavam em âmbito internacional. A atuação de Rocha Lima nos primeiros anos de sua trajetória evidencia essa busca de legitimidade internacional, tendo como chave de acesso aos fóruns estrangeiros o domínio de problemas locais. Esse aspecto 'dupla-face' local-internacional é fundamental para a compreensão dos fatores que levaram à decolagem do projeto institucional de Oswaldo Cruz, e Rocha Lima é o personagem que evidencia a segunda faceta de forma mais contundente. Menos do que esferas contraditórias, nacional e internacional são dimensões constitutivas da atividade científica. No entanto elas impõem, muitas vezes, tensões e conflitos de lealdade.
O empenho com que Rocha Lima procurou viabilizar a participação brasileira na exposição de Berlim revela sua capacidade como organizador, um traço que ele mobilizou em outros momentos de seu itinerário profissional, como na exposição missionária de Roma, em 1925, na organização de visitas e eventos diplomáticos e na direção do Instituto Biológico de São Paulo entre 1933 e 1949. Fosse no Brasil ou na Alemanha, sua atividade como cientista envolveria desde o início a capacidade de negociar, acomodar interesses e lógicas referentes a universos culturais e sociais distantes. Foi o talento em lidar com os desafios que isso impunha que fizeram de Rocha Lima o mais ativo promotor das relações científicas entre Brasil e Alemanha na primeira metade do século XX.
Notas
Recebido para publicação em abril de 2012.
Aprovado para publicação em novembro de 2012.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
02 Abr 2013 -
Data do Fascículo
Mar 2013
Histórico
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Recebido
Abr 2012 -
Aceito
Nov 2012