Resumos
Pela análise de prontuários médicos de instituição para tratamento de alienados, dirigida por uma associação de seguidores do espiritismo de orientação kardecista, identificam-se as diferentes percepções e estratégias de tratamento e administração social da loucura desenvolvidas por setores da população brasileira na primeira metade do século XX, numa região interiorana do país. Enfatiza-se o aspecto multidimensional da experiência da loucura, tomando-a como acontecimento sociocultural capaz de produzir diferentes análises e interpretações por grupos heterogêneos de atores sociais, que irão interpretá-la a partir de seus sistemas próprios de significação e entendimento.
psiquiatria; espiritismo; loucura; prontuários médicos; Brasil
Through analysis of the medical charts from an institution for treatment of the insane run by an association of Kardecist spiritists, it is possible to identify the various perceptions and strategies for treatment and social control of insanity developed by different sectors of the Brazilian population in the first half of the twentieth century in the Brazilian countryside. The multidimensional aspect of the experience of insanity is stressed, as it is a sociocultural event capable of different analyses and interpretations by heterogeneous groups of social actors, who interpret it based on their own systems of meaning and understanding.
psychiatry; spiritism; insanity; medical charts; Brazil
ANÁLISE
Estratégias populares de identificação e tratamento da loucura na primeira metade do século XX: uma análise dos prontuários médicos do Sanatório Espírita de Uberaba
Alexander Jabert
Professor do Departamento de Psicologia/Universidade Federal de Sergipe. Rua Constante Sodré, 869/1202, 29055-420 - Vitória -ES - Brasil, alexanderjabert@hotmail.com
RESUMO
Pela análise de prontuários médicos de instituição para tratamento de alienados, dirigida por uma associação de seguidores do espiritismo de orientação kardecista, identificam-se as diferentes percepções e estratégias de tratamento e administração social da loucura desenvolvidas por setores da população brasileira na primeira metade do século XX, numa região interiorana do país. Enfatiza-se o aspecto multidimensional da experiência da loucura, tomando-a como acontecimento sociocultural capaz de produzir diferentes análises e interpretações por grupos heterogêneos de atores sociais, que irão interpretá-la a partir de seus sistemas próprios de significação e entendimento.
Palavras-chave: psiquiatria; espiritismo; loucura; prontuários médicos; Brasil.
Prontuários médicos caracterizam-se por oferecer rica fonte de informações para o pesquisador que trabalha no campo da história da loucura. Constituem instrumento privilegiado para a análise das atividades das instituições e de seus agentes terapêuticos, e propiciam melhor compreensão das experiências coletivas e individuais relativas à loucura.
Primeiramente, nos prontuários das instituições asilares destinadas ao recolhimento de alienados, o discurso sobre a loucura, seja psiquiátrico ou espírita, é apresentado de maneira diversa daquela encontrada nos textos que tratam do tema sob um ponto de vista estritamente teórico e que têm por objetivo produzir um sistema interpretativo que ofereça inteligibilidade para o fenômeno da loucura. Nos prontuários, esse discurso aparece operacionalizado pelo corpo médico-administrativo da instituição em sua forma prática de análise, interpretação e controle da loucura, além de estar atrelado a casos individuais e singulares que exemplificam a experiência cotidiana da loucura através da aplicação desse discurso a situações específicas.
Em segundo lugar, a análise desse tipo de documento permite identificar como o fenômeno da loucura era compreendido pelo grupo social em que o indivíduo considerado louco estava inserido, demonstrando como esse acontecimento era interpretado, que fatores eram considerados produtores da loucura e que tipo de procedimento deveria ser adotado quando ela se manifestasse. Permite também detectar quais atitudes e comportamentos exibidos por determinado sujeito eram identificados como sinais visíveis de sua loucura. Enfim, constitui oportunidade de vislumbrar a forma diversificada com que grupos de atores sociais heterogêneos detectavam, interpretavam e tratavam a loucura.
Durante minha pesquisa no Sanatório Espírita de Uberaba, foram localizados 1.851 prontuários de pacientes internados entre 1933 - ano da inauguração da instituição - e 1950. Para a elaboração deste artigo, foi realizada análise qualitativa da anamnese de todos os prontuários referentes a esse período, sendo selecionados os casos considerados exemplares para a descrição dos modos com que a população da região procurava identificar e tratar a loucura.
Espiritismo e loucura
A bibliografia que trata da história da medicina brasileira pode ser divida em três momentos. No primeiro, eram comuns trabalhos que tinham como objetivo construir uma visão enobrecedora e triunfante da medicina, vista como conhecimento que se desenvolvia de modo progressivo, e que tratavam a classe médica como elite heróica na vanguarda da luta contra as doenças que atingiam a população brasileira. Esses textos foram produzidos quase exclusivamente por médicos e ofereciam uma narrativa descritiva e esquemática, que conduzia inexoravelmente à celebração dos avanços da medicina moderna. Os dois volumes da obra História geral da medicina brasileira, de Lycurgo Santos Filho (1991), é exemplar desse momento.
O segundo período, iniciado na década de 1970, foi marcado pela influência sobre os pesquisadores brasileiros das obras de Michel Foucault, que no Brasil foi aliada a um marxismo de influência gramsciniana. A principal característica dessas obras foi a produção de análises que caracterizavam a medicina acadêmica como instrumento utilizado de forma privilegiada pelo Estado para disciplinarização e controle das populações urbanas brasileiras desde o período imperial, passando a ganhar mais fôlego com a implantação do regime republicano. Nessa abordagem, a classe médica teria desenvolvido um projeto de medicalização da sociedade que colocaria todos os seus setores em posição de subordinação a seu saber, e ofereceria simultaneamente suporte ideológico para a construção de aparelho estatal repressor e coercitivo. O livro Danação da norma, de Roberto Machado e colaboradores (1978), pode ser considerado um dos trabalhos pioneiros nesse tipo de abordagem.
A partir da década de 1990 começaram a ser produzidas abordagens que relativizavam o prestígio da medicina acadêmica durante o percurso de construção de um Estado nacional no Brasil. Esses trabalhos procuravam explorar as tensões produzidas entre os representantes do saber médico e os agentes do poder público, no processo de elaboração de políticas de saúde, as quais apresentariam maior complexidade do que as abordagens anteriores sugeriam. Questionavam também a capacidade de penetração do saber médico junto a uma população que se encontrava em permanente contato com variadas práticas de cura acionadas em caso de adoecimento, em detrimento do recurso à medicina acadêmica oficial. Exemplos dessa abordagem são os livros Nas trincheiras da cura, de Gabriela Sampaio (2001) e As artes de curar, de Beatriz Weber (1999).
Em sintonia com essas últimas abordagens, alguns trabalhos acadêmicos têm procurado analisar como as atividades terapêuticas desenvolvidas por seguidores do espiritismo de orientação kardecista se constituíram como uma das principais práticas de cura concorrentes da medicina acadêmica e de seu projeto para se tornar o saber hegemônico no campo das artes de curar no Brasil da primeira metade do século XX (Jabert, 2008; Almeida, 2007; Scoton, 2007).
Entre as atividades desenvolvidas pelos grupos kardecistas, encontrava-se um conjunto de práticas de cura baseadas na crença de que entidades espirituais teriam a capacidade de intervir no curso natural de desenvolvimento de uma enfermidade (Giumbelli, 1997). Entre essas práticas, podem ser destacados os trabalhos de 'desobsessão espiritual', que procuravam tratar indivíduos acometidos de acessos de loucura através da doutrinação espiritual de 'espíritos obsessores'.
Embora sua preocupação original não estivesse relacionada com a busca de explicação para o fenômeno da loucura, o espiritismo de orientação kardecista acabou por produzir concepção explicativa própria sobre a natureza dos fenômenos mentais. Segundo essa doutrina, funções mentais como a vontade, a inteligência, a consciência, os sentimentos e a razão seriam atributos próprios de um corpo espiritual que se encontraria temporariamente habitando um corpo material. Nesse sentido, o kardecismo apresenta visão dualista da realidade, que ocuparia o mundo material, visível para nós, e um mundo espiritual, que permaneceria inobservável a maior parte do tempo. As entidades que habitam esse mundo espiritual possuiriam a capacidade de influenciar as ações dos espíritos encarnados no mundo material. Como resultado dessa concepção, a doutrina espírita desenvolveu a noção de que existiriam duas formas fundamentais de manifestação da loucura: por lesão cerebral, de natureza orgânica e que deveria ser tratada pela medicina; e por obsessão espiritual, independente da existência de lesão.
Em A loucura sob um novo prisma, o médico Bezerra de Menezes (2002, p.7) apresenta algumas das concepções espíritas sobre o funcionamento da mente humana. Segundo esse autor, por exemplo, o cérebro não deveria ser considerado o órgão produtor do pensamento, mas apenas seu órgão transmissor: "o pensamento é pura função da alma ou espírito, e, portanto, ... suas perturbações, em tese, não dependem de lesão do cérebro". De acordo com o kardecismo, o corpo espiritual seria o responsável por animar e controlar o corpo físico. No entender dos espíritas, quando algo afetava a origem natural do pensamento, o espírito, este se poderia apresentar perturbado e incompreensível. Nesse caso, como o espírito é entendido como corpo imaterial, a fonte da perturbação só poderia ser também de natureza imaterial, o que levava Bezerra de Menezes a afirmar que a loucura "pode ser, também, resultante da ação fluídica de Espíritos inimigos sobre a alma ou Espírito encarnado no corpo"(p.9).
Em aproximação aos conceitos desenvolvidos pelo alienismo francês da primeira metade do século XIX, o espiritismo postulava que qualquer excesso das paixões e dos sentimentos atuaria como fator de predisposição para a loucura, visto que a adoção de um estilo de vida desregrado e intempestivo facilitaria a atração de espíritos inferiores e vingativos, responsáveis pelas obsessões espirituais.
Mediante suas formulações conceituais, podemos dizer que, para o kardecismo, todos os tipos de distúrbios mentais que não fossem decorrentes de causa orgânica eram compreendidos como desvios da razão ou da moral, passando a ser explicados como resultantes da ação persecutória de espíritos que teriam a capacidade de influenciar as manifestações mentais dos encarnados. Nesse sentido, quando uma obsessão espiritual fosse constatada, o tratamento a ser empregado recorreria a um grupo especializado de médiuns, que atuaria no sentido de doutrinar o espírito obsessor procurando convencê-lo a abandonar a perseguição ao alienado, num exercício de tematização dos preceitos cristãos do perdão e da caridade.
Assim, por uma derivação de sua crença mais generalizada na existência de um mundo espiritual paralelo ao nosso, o espiritismo acabou por estabelecer uma explicação própria sobre a natureza dos fenômenos mentais, da mente humana como manifestação de um corpo espiritual temporariamente habitando um corpo material e da loucura como possível resultado da influência de entidades desencarnadas. Por outro lado, como resultado de sua convicção de que certos indivíduos possuiriam capacidade inata de estabelecer vias privilegiadas de comunicação com os desencarnados, o espiritismo desenvolveu método terapêutico próprio para o tratamento da loucura, entendida como um processo de obsessão espiritual. Como resultado dessas formulações, acrescidas da importância depositada pelo kardecismo no desenvolvimento de ações de caridade como forma de facilitar a evolução espiritual de seus seguidores, os espíritas brasileiros acabaram por patrocinar a criação de diversas instituições de tratamento de alienados na primeira metade do século XX. Entre as décadas de 1930 e 1950, só no interior do estado de São Paulo foram criadas sete instituições com tais características (Puttini, 2004).
O objetivo deste artigo é analisar as diversas estratégias desenvolvidas pela população brasileira para identificar, administrar e tratar os problemas sociais e familiares produzidos pelo louco e pela experiência da loucura - e que não estavam restritas ao recurso à medicina ou ao espiritismo -, a partir da análise dos prontuários médicos de uma dessas instituições, o Sanatório Espírita de Uberaba (SEU).
Prontuários médicos e estratégias populares para o tratamento da loucura
A construção do SEU foi o resultado da mobilização do movimento espírita uberabense em torno de um projeto que visava oferecer à população da cidade uma instituição de acolhimento e tratamento de alienados. Inaugurado em dezembro de 1933, era dirigido pela médium Maria Modesto, relevante figura do movimento espírita uberabense e principal articuladora para a criação do Sanatório. Segundo os registros locais, após ter sido curada de uma enfermidade por um médium da região, Maria Modesto teria sido aconselhada a iniciar sua militância junto ao espiritismo, com a recomendação de incentivar a criação de instituições que pudessem atuar no tratamento de enfermos e alienados (Araujo Júnior, 2007, p.34). Desde sua inauguração até a década de 1980, o Sanatório teve como diretor clínico o médico Inácio Ferreira. É importante ressaltar que, mesmo tendo-se formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1929, o doutor Inácio Ferreira era praticante do espiritismo e também atuava como médium no Sanatório Espírita de Uberaba (Jabert, 2008). Além disso, nos anos seguintes a sua contratação como diretor clínico dessa instituição, publicou uma série de livros em que defendia o uso da terapêutica espírita como forma viável de tratamento da loucura (Ferreira, 1941, 1945, 1946, 1949, 1951).
A análise dos prontuários do SEU permite observar algumas das principais práticas terapêuticas utilizadas pelos pacientes e por suas famílias para o tratamento da loucura. Estando Uberaba situada em região cuja economia, no período, centrava-se na produção agrícola familiar, normalmente era a família o grupo social mais imediatamente próximo aos indivíduos que apresentavam desvios de comportamento considerados constrangedores e socialmente reprováveis. Consequentemente, com frequência cabia-lhe a responsabilidade de tomar as primeiras providências no sentido de regularizar a conduta do sujeito, de modo a reconduzi-lo ao convívio social normalizado.
Os indícios encontrados nos prontuários do SEU sugerem que, para tentar entender e corrigir o comportamento errático e desviante apresentado por algum de seus membros, um dos principais recursos utilizados pelos grupos familiares locais consistia em buscar auxílio, orientação e tratamento junto aos médiuns que atuavam nos centros espíritas espalhados pela região. Nos arquivos do Sanatório, são frequentes os relatos de casos com essas características.
Assim, no dia 13 de setembro de 1940, deu entrada na instituição o paciente O.A.R., brasileiro, negro, solteiro, com 17 anos e procedente da cidade mineira de Prata. Segundo os dados recolhidos em sua anamnese, fazia um ano que "esteve perturbado, ficou doente durante 6 meses e foi curado com o tratamento espírita, só tomava os passes e a água fluidificada, ficou verdadeiramente são, agora faz 12 dias que tornou a manifestar a perturbação" (Livro de registro, 1940, prontuário 469).
Ainda no mesmo mês, no dia 22, também foi admitido o paciente J.S.B., brasileiro, branco, solteiro, com 66 anos e procedente da cidade mineira de Araxá. Segundo os dados oferecidos pela família do paciente, havia já
cinco anos, mais ou menos, que vem sofrendo de crises de alienação mental, sendo esta a terceira. As duas primeiras foram de curta duração, vindo repentinamente e todas elas tratadas em centros espíritas. Esta última mais demorada, fazendo já 2 meses que seu estado está estacionário ... Vários casos de perturbação na família, mas todos curados pelos recursos espíritas (Livro de registro, 1940, prontuário 470).
Cabe salientar que, apesar de o espiritismo ser considerado recurso viável para o tratamento da loucura, ele era apenas uma das diversas práticas de cura a que a população recorria, naquele período, para o tratamento de suas inúmeras moléstias. Quando os prontuários médicos dos pacientes do SEU trazem informações acerca dos recursos terapêuticos utilizados antes de sua internação, pelo paciente ou sua família, como primeira tentativa de tratar os transtornos mentais ou problemas de saúde, apontam que em geral o recurso ao espiritismo só era acionado após outras práticas terem se mostrado ineficazes. Seguindo tradição comum à cultura das classes populares brasileiras, o auxílio terapêutico mais frequentemente utilizado pelos pacientes consistia em procurar tratamento junto a curandeiros e raizeiros de todo tipo, uma indicação de que essas práticas eram mais acessíveis a grandes setores da população do que a medicina oficial e o espiritismo.
Exemplo dessa característica da população brasileira do período pode ser encontrado no caso da paciente L.G. Seus transtornos se iniciaram com o falecimento de seu pai, dois anos antes de sua internação. A partir de então, começou a mostrar-se bastante agressiva com a família e os filhos, que optaram por mantê-la sempre amarrada em casa, tendo a enferma vivido nesse estado durante vários meses antes que optassem por sua internação. No entanto, segundo seus familiares, mesmo antes desses acontecimentos a enferma se mostrara constantemente "vítima de doenças, em uso constante de medicamentos fornecidos pelos raizeiros que se instalam por todos os lugares" (Livro de registro, 1938, prontuário 183).
Relato ainda mais ilustrativo encontra-se na anamnese do paciente J.S.C., em que se pode perceber como a população da região recorria aos curandeiros para o tratamento de diversos tipos de enfermidades. Apesar de seus familiares declararem que esse paciente, casado e pai de seis filhos, sempre tivera boa disposição para o trabalho e nunca apresentara qualquer moléstia de maior gravidade que o impedisse de prover o sustento de sua família, também referiam a ocorrência de
moléstias venéreas as quais o doente tratava com curandeiros ... Pouco mais de um mês [antes de seu internamento], na sua lide diária na fazenda tomou um coice de um cavalo. Pegou no ventre e derrubou-o, ficando alguns minutos desacordado. Deram-lhe remédios caseiros ... Aconselhado a procurar um médico aceitou os conselhos de amigos e foi a um raizeiro que lhe deu uma garrafada (Livro de registro, 1937, prontuário 58).
Outro relato que demonstra quão rotineiro era o recurso a curandeiros e raizeiros na realidade cotidiana da população brasileira, além de evidenciar o papel preponderante desempenhado por esses personagens perante as concepções de saúde e doença produzidas pela cultura popular do período, encontra-se no prontuário referente à paciente M.A.S., casada, residente na cidade de Uberaba e contando 35 anos na época de sua internação. Havia contraído matrimônio aos 16 anos, mas não possuía nenhum filho vivo - segundo o registro de sua anamnese - porque tivera "4 abortos provocados, para isso tomando tudo quanto [os raizeiros] lhe ensinavam" (Livro de registro, 1937, prontuário 129). Os problemas da paciente teriam começado após seu marido contrair varicela e passar vários dias acamado, o que a teria sobrecarregado de trabalho e a obrigado a conciliar as atividades diárias com os cuidados ao esposo doente. Após a melhora de seu marido a paciente adoeceu, apresentando quadro de febre e cólicas do fígado e dos rins que terminaram por forçá-la a acamar-se também. O aspecto mais interessante desse caso diz respeito à interpretação da paciente quanto a sua própria doença e ao tratamento que ela e sua família procuraram. Segundo a anamnese, a paciente,
Após vários dias [doente], levantou-se e, muito enfraquecida, começou a manifestar sintomas de alienação mental. Ora chorando, ora quieta, distraída. Perguntando-se-lhe qual o motivo desse pranto, disse que estava sendo vítima de feitiços que lhe fizeram com seus próprios cabelos. Procuraram consultar um macumbeiro e esse confirmou dizendo que haviam-na enfeitiçado e deu-lhe uma garrafada onde o aguardente entrava ... Ela mostrava inclinação por bebidas e achando esse remédio muito bom, começou a tomá-lo com mais regularidade do que o aconselhado e em maior dose (Livro de registro, 1937, prontuário 129).
Além de apresentar exemplo adicional de que, quando atingida por algum tipo de enfermidade, a população costumava recorrer aos serviços de curandeiros, esse caso ainda permite observar outro traço característico das concepções sobre saúde e doença produzidas pela população brasileira do período: a crença de que determinados rituais de feitiçaria poderiam influenciar o estado de saúde dos sujeitos.1 1 Para análise mais elaborada sobre a crença na capacidade de os feitiços influenciarem a saúde e o adoecimento dos indivíduos, e de como essa crença era compartilhada pelas camadas populares e pela elite brasileira, ver Maggie, 1992, e Sampaio, 2000.
Também acreditava estar sendo vítima de feitiçaria a paciente M.G.J., casada, branca e com 45 anos ao ser internada. Durante toda a sua vida gozara de bom quadro de saúde, sendo acometida apenas por doenças corriqueiras. Tendo-se casado com vinte anos, após 25 anos de matrimônio possuía três filhos vivos e seis falecidos. Segundo seus familiares, nos dez meses anteriores a sua internação a paciente começara a apresentar quadro de irritação constante, queixando-se de fortes dores de ouvido, chorando continuamente e afirmando que se sentia como se estivessem lhe enfiando agulhas por todo o corpo. Segundo os dados de seu prontuário, nessas ocasiões a paciente
ficava muito nervosa, chorando e clamando em altos brados ... Alguns dias após [o começo de seus sintomas] dizia estar enfeitiçada e com uma ideia fixa - vivia procurando o lugar onde julgava estar escondido o feitiço que lhe haviam feito. Começou então a rasgar os colchões, quebrar objetos, escavar o chão procurando com afã uma determinada coisa que lhe corroía a imaginação (Livro de registro, 1937, prontuário 65).
Pode-se portanto perceber como os pacientes internados no SEU frequentemente procuravam explicações e recursos terapêuticos alternativos à medicina oficial, em suas tentativas de dar sentido e solucionar problemas de saúde. Embora apareçam em menor frequência, há também indicações, nos prontuários do Sanatório, de que os pacientes e seus familiares haviam procurado o auxílio da medicina oficial antes de optar pela internação naquela instituição. A baixa procura dos recursos da medicina pode ser, em parte, atribuída à carência de instituições de saúde que atendessem às populações carentes da região durante o período. Na época da inauguração do Sanatório, a Santa Casa de Misericórdia de Uberaba se encontrava instalada em exíguo e precário edifício. A outra instituição a atender gratuitamente a população empobrecida do município era o Posto de Saúde dirigido pela Sociedade de Medicina e Cirurgia de Uberaba. Segundo o Anuário demográfico de Minas Gerais, apenas essas duas instituições deveriam atender um município que já contava com mais de 75 mil habitantes em 1929 (Martins, 2003, p.156).
Os prontuários de internamento do SEU registram a indignação dos médicos da instituição perante o descaso do poder público com a saúde da população carente daquela região, além de ilustrarem claramente a situação de quase total desamparo a que ela estava submetida. O relato referente à interna H.F.A. é exemplar nesse sentido. Proveniente de família humilde, a paciente era casada desde seus 15 anos, tinha três filhos vivos, residia em Uberaba e foi internada aos 28 anos. Normalmente dividia seu tempo entre os afazeres domésticos e o trabalho na lavoura com o marido, para o qual sempre se mostrou bem disposta. No período anterior a seu internamento, entretanto, teria começado a sentir forte indisposição física, que a afastou de suas atividades cotidianas. Reclamava de fortes e frequentes dores de cabeça, como se estivesse "constantemente levando ferroadas". Dizia também sentir o corpo febril, sem conseguir dormir nem se alimentar, experimentando repugnância pela comida. Após seu estado de enfraquecimento ter chegado a ponto de quase não poder mais colocar-se de pé, a família resolveu interná-la no Sanatório. Ao descrever os exames realizados na paciente, o médico nos revela a causa de suas dores de cabeça e de seu mal-estar: "Essa doente foi internada e, no mesmo instante examinada. O couro cabeludo estava cheio de feridas onde pululavam milhares de larvas de varejeiras. Lêndeas e piolhos fervilhavam. Imediatamente foi feita a higienização precisa e, em poucos dias, ela voltou a ser o que era - disposta e forte em relação ao seu físico e organismo" (Livro de registro, 1938, prontuário 229).
A indignação do médico em relação ao estado da paciente foi tamanha, que por alguns momentos ele passou a usar seu prontuário como espaço para expressar fortes críticas ao governo central - principalmente com relação à ausência deste em áreas tão fundamentais quanto a saúde básica da população -, cuja presença só se fazia notar pelo fisco. Para o médico, o caso dessa paciente seria um
Atestado vivo da degenerescência de uma raça desprezada pelos governantes. Postos de profilaxia, postos de higienização, exames pré-nupciais, nada é dado a essa população miserável que vive labutando quase dia e noite, sacrificada pelo fisco que lhe arrebata a maior parte do seu esforço, sem lhe dar, nem ao menos as condições necessárias de saúde para que o rendimento seja mais produtivo (Livro de registro, 1938, prontuário 229).
O caso serve para ilustrar as condições de saúde a que estava submetida grande parcela da população brasileira do período, que dificilmente tinha acesso a serviços públicos de saúde; um exemplo do vazio institucional deixado pelo Estado brasileiro nas regiões interioranas do país. Assim, mesmo com intensas reivindicações dos sanitaristas e de parte da intelectualidade brasileira, desde as primeiras décadas do século XX, acerca da necessidade de realização de ampla campanha de saneamento rural com o fim de recuperar a saúde da população (Hochman, 1998), pode-se notar que, até o final da década de 1930, o acesso a esses serviços ainda era problemático.
Conforme os autores que tratam da história da região do Triângulo Mineiro e de Uberaba, o quadro ali era ainda mais agravado devido à frágil representação política dessa área junto ao governo estadual. Essa realidade fazia com que a região triangulina fosse preterida em relação a outras do estado de Minas Gerais, no acesso aos recursos destinados a obras de infraestrutura, saúde pública e assistência social (Martins, 2003; Wagner, 2006). Tal vazio institucional era precariamente preenchido pela elite econômica local, que por iniciativa própria financiava instituições filantrópicas ou de caridade, usualmente organizadas por grupos religiosos. Nesse sentido, a Santa Casa de Misericórdia e o SEU procuravam atenuar a ineficiência do Estado, por meio da divulgação e defesa de seus preceitos de caridade e amor ao próximo.
Prontuários médicos e formas de regulação da instituição familiar
Conforme mencionado, os prontuários do SEU parecem indicar que a ele recorreram preferencialmente famílias da região, como instrumento de regulação e controle de seus membros menos disciplinados. Diversamente do que ocorria nos grandes centros urbanos nacionais, como o Rio de Janeiro, onde até 96% dos internamentos no Hospício Nacional de Alienados decorriam de encaminhamentos realizados por instituições policiais (Facchinetti, 2004), em Uberaba as internações resultavam quase sempre de reivindicação do núcleo familiar do paciente. Mesmo quando um indivíduo era encaminhado para internação pela delegacia de polícia de Uberaba, isso decorria de solicitação anterior da família do alienado, a exemplo de J.R. No prontuário de internação desse paciente, encontra-se anexa uma carta do delegado de polícia da cidade, que esclarece: "Achando-se recolhidos à cadeia pública local J.R. e A.A.P., a pedido das respectivas famílias por tratar-se de enfermos mentais, vos solicito a internação dos mesmos nesse estabelecimento" (Livro de registro, 1942, prontuário 723).
Em alguns prontuários do Sanatório observam-se situações em que, apesar de os médicos e funcionários da instituição não chegarem a diagnosticar qualquer traço de alienação mental no indivíduo analisado, os familiares insistiam na internação alegando algum comportamento nele que julgavam inapropriado. Tais ocorrências são demonstrativas do modo como a instituição familiar recorria a suas prerrogativas socioculturais para controlar e determinar o destino social de seus membros. Tal foi o caso, por exemplo, do paciente V.F., internado pela segunda vez na instituição em 7 de junho de 1937. De acordo com os dados de sua anamnese, V.F., "no ano de 1936, durante os primeiros meses, esteve internado neste Sanatório, sem demonstrar nada que justificasse aquele internamento. Agora acontece o mesmo" (Livro de registro, 1937, prontuário 69). No entanto, segundo seus familiares, o paciente sempre fora muito calado e evitava o convívio dos membros de sua família, embora tivesse amigos fora do círculo familiar, com os quais passeava e conversava normalmente, aparentando um apreço pelos amigos que não demonstrava sentir pelos pais e irmãos. Considerando esse comportamento preocupante e anormal, seus familiares resolveram encaminhá-lo novamente para internação. Contudo, segundo o médico que acompanhou o caso, o paciente possuía
Perfeita noção de lugar, tempo e espaço, recordando-se de quando aqui esteve internado ... Não está e não se sente doente. Alguma coisa que faz, coisas naturais também, é devido a contrariedade por parte de sua família. Não necessita ser internado. Veio para satisfazer o gosto do pai, que julga necessitar mais do que ele, passar aqui uma temporada ... Amigo dos companheiros com os quais sempre troca ideias, é um bom auxiliar nos serviços do Sanatório (Livro de registro, 1937, prontuário 69).
Observa-se, portanto, como o Sanatório podia ser utilizado como mediador na solução de conflitos familiares, além de ser empregado, pelas famílias da região, na regulação e no controle dos indivíduos com comportamentos considerados socialmente inapropriados. Quais seriam, porém, esses comportamentos que tinham como resultado a exclusão do indivíduo do convívio social e familiar, levando à internação num sanatório de alienados?
No campo reservado à anamnese dos pacientes, em geral encontram-se os argumentos apresentados pelas famílias para justificar as requisições de internamento, e relatos dos distúrbios familiares provocados pelos pacientes. Sua análise possibilita observar como estavam organizadas as relações socioculturais que regulavam, na época, o convívio social dos indivíduos. Era essa realidade sociocultural que determinava os projetos, anseios e desejos aceitáveis e legítimos, além de definir os papéis sociais a serem desempenhados pelos gêneros e grupos sociais. Os prontuários de internação do Sanatório fornecem exemplos reais das possíveis consequências reservadas àqueles cujas ações e desejos podiam ameaçar a integridade da instituição familiar, ou aos que viessem a contestar os modelos estabelecidos de conduta.
Quando analisamos os distúrbios dos pacientes conforme eles eram relatados pelos familiares no momento da internação, um aspecto que chama a atenção é a sua distinção de acordo com o gênero. No caso dos pacientes adultos do sexo masculino, as manifestações comportamentais indicativas de loucura aparecem, em geral, relacionadas à capacidade produtiva e à disposição individual para o trabalho. Por outro lado - e embora essa disposição também possa aparecer como fator relevante nos casos das mulheres oriundas de camadas mais empobrecidas da população -, os comportamentos relacionados com a alienação das pacientes adultas do sexo feminino costumam ser associados a distúrbios domésticos. Em ambos os casos, o internamento teve como objetivo preservar a integridade familiar, mas as variações quanto ao gênero dos pacientes estavam circunscritas sobretudo a essas duas esferas diferenciadas da vida social.
Para os indivíduos do sexo masculino, a percepção social de normalidade estava diretamente relacionada ao papel de provedor do lar e chefe de família, à capacidade de desempenhar de forma satisfatória essas funções, principalmente através do trabalho. Em consequência dessas características, um dos dados mais importantes presentes nos prontuários dos homens internados no Sanatório, juntamente com informações sobre sua carga hereditária familiar e seu estado de saúde, diz respeito à disposição pregressa para o trabalho, sendo esta normalmente a primeira informação registrada na anamnese. Assim, por exemplo, no início da anamnese do paciente J.A.S., o médico responsável por seu internamento fez questão de registrar: "indivíduo pobre, com numerosa família, foi sempre afeito ao labor rude e pesado, pois como bom homem e bom pai de família sempre foi morigerado nos seus costumes, trabalhando para que nada faltasse aos seus". Nesse caso, nota-se como a imagem do "bom homem" estava diretamente associada à de "bom pai de família", representação que, por sua vez, era expressa pelo fato de ser ele um trabalhador que demonstrava capacidade de sustentar materialmente seu grupo familiar. Outro ponto interessante com relação a esse caso é que, depois de os médiuns do Sanatório terem determinado que o distúrbio mental de J.A.S. seria de natureza espiritual, ele foi diagnosticado como médium sensitivo, ou seja, sua perturbação não foi caracterizada como resultado de perseguição empreendida por alguma entidade espiritual vingativa, mas sim como uma perturbação resultante de sua escassa orientação espiritual no estudo da doutrina kardecista, como indica o registro de seu prognóstico: "Prognóstico: Favorável. Trata-se de mediunidade não desenvolvida. Necessita de orientação e desenvolvimento" (Livro de registro, 1937, prontuário 82).
Por outro lado, M.A.S., casado, internado aos 36 anos, pai de sete filhos vivos, proveniente da cidade de Jubaí, no estado de Minas Gerais, e diagnosticado como sofrendo de obsessão espiritual, encontrava maior dificuldade para se adequar de forma apropriada ao papel de pai de família e provedor do lar. Em sua anamnese, lê-se:
Há 10 anos que vive em alternativas de normalidade e anormalidade do cérebro. Tem ocasiões que briga muito com a mulher, maltratando os filhos, bruto e estúpido para com todo mundo, mormente pessoas de conhecimento e amizade. Expulsa a mulher de casa, entrega os filhos aos vizinhos e fica à toa, sem trabalhar, andando ao léu... Passados dias, às vezes meses, vai se acalmando, voltando a ser bom pai e bom esposo. Faz com que a mulher retorne para o lar e recontinua seu trabalho ... Há 10 dias atrás voltaram as mesmas manias, expulsando a mulher de casa ... , maltratando os filhos e deixando de trabalhar (Livro de registro, 1937, prontuário 82).
A disposição para o trabalho era característica tão importante para a avaliação social de um indivíduo, que chegava a ser utilizada como um dos principais parâmetros para a definição do seu estado de saúde ou de seu equilíbrio mental. Na anamnese de D.B.C. podemos observar que seus familiares começaram a suspeitar que ele sofria das 'faculdades mentais' quando parou de trabalhar: "Há 1 mês, notaram que não estava perfeitamente equilibrado, pois deixou de trabalhar e ficou perambulando [pelas ruas]" (Livro de registro, 1938, prontuário 189).
Aspecto interessante registrado nos prontuários, que reforça a importância depositada na capacidade masculina de desempenhar de forma satisfatória as funções de chefe do lar, pode ser observado nos casos em que os pacientes eram encaminhados para internação quando suas resoluções ou comportamentos passavam a ameaçar o patrimônio material e a estabilidade financeira da família. Foram essas as razões apresentadas pelos parentes de E.A.R. ao solicitar que ele fosse admitido para tratamento no Sanatório. Descrito como competente homem de negócios, perspicaz e trabalhador, seus problemas teriam começado quando seus familiares notaram que ele
ia aos poucos perdendo a vivacidade e o tino para transações comerciais. Essa desorientação foi aumentando sensivelmente, tanto que pessoas amigas chegaram a aconselhar que a família fizesse com que procurasse descansar um pouco, julgando que fosse trabalho demasiado a enfraquecê-lo. Há 4 meses atrás, essa desorientação chegou ao ponto de fazer negócios absurdos, transações desnecessárias cujos prejuízos eram visíveis mesmo ao alcance de uma inteligência mediana ... Vivia procurando todos os fazendeiros a fim de lhes propor a compra de suas propriedades (Livro de registro, 1937, prontuário 63).
Outro aspecto de seu comportamento que alarmou seus familiares foi o desejo de "procurar os chefes políticos e autoridades, pedindo-lhes permissão para mandar, por sua conta, fazer os serviços imprescindíveis a fim de dotar o lugar de água, luz e esgotos" (Livro de registro, 1937, prontuário 63). Cabe observar que, devido às tênues ligações políticas da região do Triângulo Mineiro com o governo estadual, Uberaba sofria grande carência de investimentos em obras de infraestrutura que possibilitassem o incremento da qualidade de vida da população e de sua capacidade produtiva. Como resultado, coube muitas vezes à elite agropecuária e comercial da região a tarefa de, por conta própria, dotar a cidade de algumas melhorias infraestruturais ou de instituições assistenciais que beneficiassem a população uberabense. Ao perceber a situação de abandono da região, por parte do poder público, e se dispor a dotar a localidade de melhorias - prática relativamente comum entre a elite local -, o paciente demonstrava possuir discernimento suficiente para perceber as carências infraestruturais que prejudicavam o desenvolvimento da região. Entretanto, seus projetos passaram a ser vistos como ameaça ao patrimônio da família, que decidiu pelo recolhimento de E.A.R. a uma instituição de alienados, onde ele viria a falecer ao final de seu primeiro ano de internamento.
Enquanto as regras socioculturais que regulavam o comportamento masculino determinavam que os homens adultos deviam desempenhar prioritariamente o papel do chefe de família trabalhador, a imagem de mulher ideal estava intimamente associada ao papel da dona de casa e mãe de família. Essa limitação do papel social da mulher ao universo doméstico e familiar pode ser claramente constatada nas respostas ao quesito "Profissão", nos prontuários das pacientes do sexo feminino. Com exceção das raríssimas ocorrências de professoras primárias, as ocupações femininas são quase invariavelmente descritas pelos termos 'doméstica' ou 'do lar', ao passo que pacientes do sexo masculino, embora em sua maioria sejam descritos como 'lavrador', apresentam variação maior de ocupações profissionais, como telegrafistas, pedreiros, escriturários, barbeiros, alfaiates, comerciantes, industriais e eventualmente médicos. Como resultado dessa realidade sociocultural, ainda que nos casos referentes às pacientes do sexo feminino a internação também fosse resultado de iniciativas que visavam preservar a integridade da instituição familiar, os distúrbios apresentados como justificativa para a internação normalmente estavam circunscritos à esfera doméstica e privada.
Situação ilustrativa de como se esperava que os papéis sociais de mãe, esposa e dona de casa fossem cumpridos de forma satisfatória pelas mulheres, além de demonstrar qual o destino social reservado àquelas que não conseguissem se adequar a eles, é observada no caso de A.F.S., 48 anos, branca, casada e mãe de cinco filhos. As informações passadas por sua família atestam: "Boa esposa, boa mãe, adorando os seus filhinhos, foi sempre de uma dedicação e de um carinho a toda prova", até que a paciente passou a mostrar-se
muito nervosa, contrariando-se por senões e mesmo chegando à irritação não provocada. Tomou raiva do marido, contrariando-o em tudo e, apesar da paciência e carinho de que era rodeada, caía em verdadeiro pranto e lamentações ... Do marido, passou aos filhos, implicando com todos eles e proporcionando mesmo castigos severos, contrastando com o que sempre fora para eles, boa e carinhosa (Livro de registro, 1937, prontuário 90).
No entanto, não só conflitos domésticos decorrentes de excesso de irritabilidade em relação ao marido ou aos filhos resultavam no encaminhamento de mulheres para tratamento no Sanatório, já que eram variadas as situações que poderiam vir a comprometer a estabilidade da instituição familiar e fazer com que a mulher passasse a ser classificada como mentalmente desequilibrada. Exemplar é o caso de C.D.B. Casada, branca e com 40 anos ao ser internada, foi encaminhada ao Sanatório cinco dias após começar a apresentar a 'mania' de querer divorciar-se do marido, só vindo a receber alta dois meses depois, então considerada curada de sua perturbação mental (Livro de registro, 1942, prontuário 641).
A análise dos prontuários do Sanatório também aponta que, de acordo com os padrões de moralidade da época, a única forma legítima de expressão do desejo feminino era através das regras estritas do matrimônio. Embora também existissem mecanismos de regulação da sexualidade masculina, era o livre exercício da sexualidade feminina que se apresentava como uma das principais ameaças à instituição familiar. M.D.A., por exemplo, teria começado a desenvolver sua enfermidade nos cinco anos anteriores a sua internação. Segundo informações de seu prontuário, embora a paciente fosse casada e mãe de nove filhos, quando foi encaminhada ao Sanatório estaria
Vivendo afastada não só do esposo como, também, da família devido aos seus costumes licenciosos. Enfeita-se muito, exageradamente, com pó de arroz, rouge, batom, dizendo mesmo que assim procede com a intenção de arranjar um noivo, para isso lhe servindo qualquer pessoa. Só pensa em enfeites, vestidos caros e passeios. Vivendo engolfada nessas ideias, em absoluto se conformando com a sua detenção. Todas as pessoas com as quais se aproxima, pede para chamar um automóvel a fim de ir passear. Não tem noção do ridículo que pratica e, quando aconselhada ou chamada à realidade, zanga-se ficando muito nervosa, agitada, falando muito (Livro de registro, 1943, prontuário 788).
Evidencia-se nesse prontuário a repulsa do médico diante do comportamento da paciente, em demonstração de intolerância quanto às formas de expressão do desejo sexual não subjugadas às regras matrimoniais e, consequentemente, consideradas inapropriadas para a condição feminina.
As tentativas de burlar as regras matrimoniais poderia ter como resultado a internação num asilo de alienados, mas também havia regras sobre os procedimentos adequados a uma mulher para alcançar o consórcio matrimonial. Por ter utilizado estratégia considerada incorreta e escandalosa por seus familiares, N.M.L. acabou sendo recolhida ao Sanatório. Solteira aos 32 anos, ela havia começado a se tornar motivo de preocupação para seus parentes:
De dois anos para cá, aos poucos, começou a demonstrar ódio contra as pessoas da família, ao mesmo tempo em que uma vaidade ridícula a assaltava, abusando da pintura, vestes berrantes e enfeites que ultrapassavam do normal. Aconselhada por irmãos e irmãs, zangava-se, chorando, maldizendo a vida - pois era jovem, dizia, e precisava arranjar um casamento. Nos últimos tempos, esteve internada em vários sanatórios de São Paulo, sem resultados apreciáveis (Livro de registro, 1943, prontuário 744).
Esse caso demonstra, mais uma vez, como o Sanatório podia ser utilizado como instrumento de punição aos desviantes das normas estabelecidas, já que a paciente, em sua tentativa de atrair a atenção de algum potencial marido, foi classificada como mentalmente desequilibrada por se vestir de modo considerado inadequado por seus familiares. O caso também ilustra a angústia experimentada por mulheres que, tendo atingido determinada idade sem se casar, passavam a viver numa espécie de limbo social por não desempenhar os únicos papéis socialmente legítimos para elas - os de esposa, mãe de família e dona de casa.
Mediante o relato desses casos, apontamos que uma das principais funções do Sanatório Espírita de Uberaba era servir como instrumento de intermediação e resolução de conflitos familiares, sendo empregado prioritariamente no tratamento, controle, punição e disciplinarização dos indivíduos que apresentavam comportamentos considerados socialmente inapropriados pelo grupo familiar.
Considerações finais
Com o objetivo de indicar os possíveis mecanismos socioculturais de identificação da loucura, apresentei os motivos mais frequentes com que a instituição familiar justificava o internamento de seus membros. Como observado, as razões que levavam ao internamento em uma instituição de alienados apresentavam evidente divisão de gêneros, semelhante à encontrada por Cunha (1986, p.143) nos prontuários do Hospital Psiquiátrico do Juquery. A análise das justificativas apresentadas pelas famílias acerca das causas imediatas da internação permite observar como estavam organizadas as relações que regulavam, na época, o convívio social dos indivíduos. Nesse sentido, homens e mulheres das camadas mais empobrecidas da população em geral eram encaminhados para tratamento quando se mostravam incapacitados para o trabalho, sendo que no caso dos pacientes do sexo masculino essa incapacidade era normalmente considerada ameaça ao patrimônio familiar. No caso das famílias que se encontravam acima da linha da miséria, os comportamentos relacionados à alienação das pacientes adultas do sexo feminino normalmente eram associados a distúrbios domésticos.
Pode-se concluir que, independentemente do recurso aos preceitos do espiritismo ou da psiquiatria, os profissionais que atuavam no SEU eram 'homens do seu tempo', e isso se refletia no processo sociocultural de identificação da loucura. Assim, homens que se mostravam incapacitados ou indispostos para o trabalho, ou que apresentavam comportamento considerado ameaçador ao patrimônio familiar, e mulheres que desejavam obter o divórcio ou utilizavam técnicas consideradas impróprias para encontrar um marido poderiam ser classificados como loucos e ter como destino social final o internamento numa instituição de alienados.
Vimos também as possíveis estratégias terapêuticas utilizadas durante a primeira metade do século XX por setores da população brasileira, quando defrontados com o fenômeno da loucura. Foi possível observar que, com frequência, o enfermo e sua família procuravam prioritariamente o auxílio de práticas populares de cura, na tentativa de encontrar solução para os casos de alienação mental. No entanto, quando esses recursos falhavam a família recorria a outros métodos de tratamento - que poderiam ser tanto a medicina oficial quanto o espiritismo -, em mais uma tentativa de encontrar a cura para a enfermidade de um de seus membros. Procurei demonstrar, com isso, que a população brasileira do período possuía diferentes recursos terapêuticos, dos quais lançava mão em busca da solução de seus problemas de saúde - e, mesmo que tais recursos não levassem à cura, ao menos ofereciam uma explicação satisfatória para o fenômeno do adoecimento.
O fato de os enfermos e suas famílias recorrerem ao espiritismo pode ser visto como demonstração da capacidade da doutrina espírita de produzir uma rede simbólica, inserida no universo cultural brasileiro do período, que oferecia um sentido para o processo do adoecimento capaz de torná-lo mais inteligível para os enfermos e sua rede de socialização mais imediata, normalmente a família.
No caso específico das práticas terapêuticas utilizadas pelos espíritas, vimos que, no entendimento dessa doutrina, a loucura seria normalmente o resultado da perseguição de entidades espirituais que procuravam vingar-se do enfermo devido a falhas cometidas por ele em sua existência atual ou em encarnação anterior. A aceitação dessa lei de retribuição espiritual fazia o infortúnio e a enfermidade serem compreendidos como provações a serem enfrentadas pelo indivíduo, a fim de atingir grau mais elevado de perfeição espiritual. Como consequência dessas formulações, o fenômeno da alienação mental poderia, a princípio, passar a ter significado menos estigmatizante para os seguidores do espiritismo.
Essa capacidade de reinterpretar o fenômeno da loucura permitia, aos seguidores do espitirismo, oferecer concorrência às teorias psiquiátricas em voga no período. Mais do que a cura, o que a doutrina de Alan Kardec forneceu para uma parcela considerável da sociedade brasileira do período - nela incluídos médicos como o doutor Inácio Ferreira - foi a possibilidade de produzir novo sentido para um fenômeno de difícil compreensão quando analisado a partir dos pressupostos da medicina acadêmica, e oferecer inteligibilidade para a experiência do adoecimento, a ser enfrentada por enfermos e suas famílias.
NOTA
Recebido para publicação em dezembro de 2009.
Aprovado para publicação em março de 2010.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
01 Jun 2011 -
Data do Fascículo
Mar 2011
Histórico
-
Recebido
04 Dez 2009 -
Aceito
03 Mar 2010