Resumos
Com base em documentação em grande parte inédita, recentemente pesquisada em arquivos e bibliotecas portugueses, este texto chama atenção para um tema ainda muito pouco estudado da história da Amazônia colonial: a existência ali de grande número de degredados, enviados desde Portugal, desde várias regiões brasileiras e desde outras colônias lusitanas, cuja presença foi de muitos modos marcante na região, até 1822. O artigo põe em evidência a complexa política portuguesa do degredo e a diversidade de experiências e de papéis sociais que os degredados vivenciaram na Amazônia.
história da Amazônia; degredo; degredados; Amazônia colonial
Based in large part on new documentation, recently uncovered in archives and libraries in Portugal, the text focuses on a topic in the history of colonial Amazon that has received very little attention to date: the presence of a large number of banished Portuguese, sent to the region from Portugal itself, from different parts of Brazil, and from other Portuguese colonies. In many ways, these banished individuals had an important effect in the Amazon through 1822. The article points up Portugal’s complex policy of banishment and the diversity of these individuals’ experiences and their social roles in the Amazon.
history of the Amazon; banishment; banished; colonial Amazon
Viajantes involuntários: degredados portugueses para a Amazônia colonial
Involuntary voyagers: Portuguese banished to colonial Amazon
Janaína Amado
Universidade de Brasília (UnB)
Colina Bloco i ap. 406
70910S970 Brasília DF Brasil
AMADO, J.: Viajantes involuntários: degredados portugueses para a Amazônia colonial. História, Ciências, Saúde Manguinhos, vol. VI (suplemento), 813-832, setembro 2000.
Com base em documentação em grande parte inédita, recentemente pesquisada em arquivos e bibliotecas portugueses, este texto chama atenção para um tema ainda muito pouco estudado da história da Amazônia colonial: a existência ali de grande número de degredados, enviados desde Portugal, desde várias regiões brasileiras e desde outras colônias lusitanas, cuja presença foi de muitos modos marcante na região, até 1822. O artigo põe em evidência a complexa política portuguesa do degredo e a diversidade de experiências e de papéis sociais que os degredados vivenciaram na Amazônia.
PALAVRAS-CHAVE: história da Amazônia, degredo, degredados, Amazônia colonial.
AMADO, J.: Involuntary voyagers: Portuguese banished to colonial Amazon. História, Ciências, Saúde Manguinhos, vol. VI (supplement), 813-832, September 2000.
Based in large part on new documentation, recently uncovered in archives and libraries in Portugal, the text focuses on a topic in the history of colonial Amazon that has received very little attention to date: the presence of a large number of banished Portuguese, sent to the region from Portugal itself, from different parts of Brazil, and from other Portuguese colonies. In many ways, these banished individuals had an important effect in the Amazon through 1822. The article points up Portugals complex policy of banishment and the diversity of these individuals experiences and their social roles in the Amazon.
KEYWORDS: history of the Amazon, banishment, banished, colonial Amazon.
1 O degredo moderno é tema ainda pouquíssimo estudado, que somente nos últimos anos começa a receber atenção dos historiadores. Não conhecemos nenhum estudo de fôlego que se ocupe especificamente do degredo para a Amazônia. Mesmo as obras gerais sobre história da Amazônia, assim como as que tratam de períodos específicos (como o pombalino) na região, não se referem ao assunto do degredo ou o fazem de forma muito ligeira.
2 A pesquisa histórica em Portugal, realizada entre agosto de 1996 e outubro de 1997, foi possível graças ao apoio da Capes, que concedeu à autora deste artigo uma bolsa do pós-doutorado. A pesquisa continua no momento nos arquivos brasileiros, com o apoio de uma bolsa de pesquisa do CNPq.
3 Arquivo Histórico Ultramarino (daqui em diante, AHU), Códice 274 (Registro de consultas sobre vários assuntos do Maranhão), p. 321.
4 Citações, respectivamente, de: Biblioteca Pública de Évora (daqui em diante, BPE), Códice CXV- 2-3, pp. 259v.-260; e AHU, Códice 558 (Moçambique), p. 92.
5 Respectivamente, AHU, Bahia, Caixa 19, Documento 8; e AHU, Reino, Maço 18 (2674), 1673-1833.
6 Respectivamente, Biblioteca da Ajuda (daqui em diante, BA), 51-V-43, p. 43; AHU, Códice 209 (Maranhão), p. 198; e AHU, Códice 336 (Pará), p. 44v.
7 Respectivamente, AHU, Códice 598 (Cartas-régias, Regimentos e Ordens), p. 122; Códice 592 (Ofícios, Alvarás e Cartas-régias), p. 39v; e Códice 887 (Escritos e avisos para o Almirantado), p. 14.
8 Respectivamente, AHU, Códice 592 (Maranhão), p. 152v; AHU, Bahia, Caixa 19, Documento 8; e BA, 51-XI-29, p. 22.
9 A idéia da circularidade cultural do degredo foi primeiro exposta por Souza (1993).
10 AHU, Códice 43 (Correspondência oficial para o Brasil), p. 151v.
11 HU, Códice 209 (Consultas para o Brasil), pp. 198-9.
12 Respectivamente, Ribeiro (1805, vol. III, pp. 177); e Figueiredo (1790, vol. I, p. 401).
13 AHU, Códice 37 (Conselho Ultramarino), "Sobre uma memória que na corte de S. M. fez Bento Maciel, governador do Maranhão, acerca da fortificação e mais causas importantes daquela conquista", p. 175.
14 As citações são, respectivamente, de: AHU, Códice 847 (Conselho do Almirantado), pp. 39-39v; e AHU, Reino, Maço 212.
15 No relatório do presídio da Trafaria datado de 9.8.1802, por exemplo, o diretor do presídio informa que segue um "Resumo dos soldados arregimentados, presos de levas e mulheres presas, filhas de uma das ditas, e casais que se acham no presídio da Trafaria". O diretor do presídio, de um total de 142 presos, lista 54 como "soldados arregimentados" (seriam soldados recrutados à força, ou que se apresentaram voluntariamente?) e 32 "presos de levas" (muitos dos quais, no entanto, também estavam sendo enviados para fortalezas da Amazônia). Ver AHU, Reino, Caixa 145, Maço 2.193.
16 AHU, Códice 274 (Maranhão), pp. 27v-28.
17 AHU, Códice 209 (Maranhão), p. 5v.
18 AHU, Códice 209 (Maranhão), p. 197.
19 AHU, Códice 209 (Maranhão), pp. 32v, 33.
20 AHU, Códice 596 (Maranhão e Grão-Pará), pp. 45-7.
21 Citações de: AHU, Códice 209 (Maranhão), respectivamente pp. 8, 197.
22 A presença de degredados na guarnição de Rio Negro está assinalada em: AHU, Códice 592 (Grão-Pará e Maranhão), pp. 347-347v.
23 Esta e as próximas citações foram retiradas de: Biblioteca Nacional de Lisboa (daqui em diante, BNL), Coleção Pombalina, Códice 159, pp. 53v.-56.
24 AHU, Códice 592 (Grão-Pará e Maranhão), documento inserto entre as pp. 36, 37. Esses homens foram degredados devido "à grave irregularidade dos seus procedimentos e costumes".
25 AHU, Códice 596 (Maranhão e Grão-Pará), p. 90.
26 AHU, Códice 847 (Conselho do Almirantado), p. 39.
27 BNL, Coleção Josefina, Códice 468 (Leis várias do governo de d. Maria).
28 AHU, Códice 848 (Conselho do Almirantado), p. 58v.
29 BA, 51-V-43, pp. 42-42v.
30 BNL, Coleção Pombalina, Códice 622 (Cartas de diversas autoridades ao governador Francisco Xavier de Mendonça Furtado), p. 53v.
31 BA, 51-V-43, p. 42v.
32 BA, 51-V-43, p. 43v.
33 BA, 51-V-43, p. 43.
34 AHU, Reino, Maço 18 (2674), 1673-1833, Capilha 1783.
35 AHU, Reino, Maço 18 (2674), 1617-1833, Capilha 1812
36 Respectivamente, AHU, Códice 336 (Pará), p. 43v; AHU, Reino, Maço 212 (2059), 1756-1821; e BA, 51-VI-54, p. 165.
37 Note-se que os totais parciais (referentes a estado civil dos degredados, crimes cometidos, penas aplicadas etc.) não apenas são diferentes do total geral de degredados enviados para a Amazônia, como também são diferentes entre si. Isso se deve ao fato de que os dados contidos nos Livros dos degredados são incompletos, nem sempre aí constando, para cada condenado a degredo, informações completas (citadas no início deste artigo). Os totais parciais, portanto, referem-se sempre ao número de registros encontrados para uma determinada informação.
38 Livro dos degredados, respectivamente Livro 5, p. 121v; Livro 8, p. 312; e Livro 2, p. 87v.
Variados degredos
Degredados-soldados
Variaram, ao longo do tempo, as motivações para o envio de degredados à Amazônia. Alguns (majoritariamente, jovens solteiros) foram enviados como soldados, para atender a objetivos militares. Outros, para povoar áreas que a Coroa e o governo local queriam desenvolver. Outros, ainda, como mão-de-obra para determinados serviços. Às vezes, dois ou mais desses objetivos estiveram coligados.
A documentação demonstra que o degredo com objetivos especificamente militares foi uma constante na Amazônia, como o foi também em determinadas regiões do império português, como a Índia (Coates, op. cit., p. 113 e ss.). O envio de degredados-soldados para a região amazônica, contudo, embora sempre vinculado de alguma forma à defesa da área, adquiriu contornos diversos, segundo o período e a situação histórica específica em que ocorreram. Em determinadas épocas, esses degredados foram enviados para lutar contra estrangeiros que invadiam a colônia; em outras, para combater revoltas ou situações de turbulência política que de alguma forma ameaçavam o domínio português na àrea; às vezes, foram enviados para trabalhar em uma das muitas fortalezas da região.
Exemplo do envio de degredados com o objetivo específico de lutar contra ataques estrangeiros ocorreu em 30.7.1648, pouco após a invasão holandesa a São Luís, quando a segurança de todo o estado do Maranhão ainda era precária. Nesta data, um decreto real determinou "se condenarem para o Maranhão alguns réus incursos em pena de degredo para as conquistas" (Ribeiro, 1805, vol. III, pp. 17-8). Já em 1685-86, época turbulenta na Amazônia, pois ali ocorria a chamada "revolta de Beckman", na qual o senhor de engenho Manuel Beckman chefiou um movimento social contra a política monopolista da Companhia do Comércio do Estado do Maranhão, a Coroa portuguesa, para reprimir os revoltosos, decretou que em Portugal se mandasse "comutar o degredo de África para o Maranhão" (Collecção, chronológica , 1819, vol. I, p. 211).
Os degredados-soldados, contudo, parecem ter sido enviados de forma mais freqüente para as numerosas fortalezas (como as de Itapemirim, Rio Negro, Amapá, Itapicuru, cachoeiras do rio Madeira etc.), as quais caracterizaram a ocupação socioespacial da Amazônia colonial, marcando também sua história nacional, inclusive em tempos recentes. No período colonial, entre outras tarefas, as fortalezas demarcaram os nem sempre claros, e por isso mesmo perigosos, limites entre o território português e o espanhol, sinalizaram a presença branca e portuguesa em região basicamente indígena, apoiaram de diversos modos as iniciativas governamentais e defenderam os interesses da Coroa, tanto contra estrangeiros quanto contra rebeldes internos, fossem eles brancos, negros, índios ou mestiços.
Degredo para as fortalezas
Degredados para povoamento
Muitos degredados foram enviados à Amazônia para reforçar o povoamento português na região ou para trabalhar nos vários empreendimentos da Coroa. Lembre-se de que a população branca, se já era reduzida em outras áreas brasileiras, era insignificante na região amazônica: em 1785-87, por exemplo, Alexandre Rodrigues Ferreira calculou a população sedentária da Amazônia brasileira em 6.642 habitantes, dos quais apenas 635 brancos! Embora a política de degredar para povoar tenha existido desde o século XVII recorde-se aqui os casos já citados de envio de degredados com estes objetivos, em 1637 e 1748 , ela parece ter sido reforçada durante o período pombalino, quando a Coroa portuguesa implantou na região uma série de empreendimentos econômicos (principalmente a Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão) e estratégico-militares (como a construção de diversas fortalezas e vilas), para os quais precisava de povoadores e trabalhadores portugueses. A documentação traz também várias referências ao envio de degredados para povoamento no período pós-pombalino, especialmente no final do século XVIII.
O transporte de mulheres entre o reino e as colônias, assim como entre as regiões de uma mesma colônia, costumava ser muito controlado. Extensa legislação portuguesa, constantemente reafirmada, proibia o livre trânsito de mulheres, sendo permitidas apenas as viagens de mulheres expressamente autorizadas pela Coroa, em geral esposas de funcionários reais, órfãs do rei e degredadas.
Muitos sofrimentos, poucos sucessos
Obrigados a prover o próprio sustento nos locais de degredo somente a partir do final do século XVIII começou a implantar-se em Portugal a noção de que o Estado era responsável pela sobrevivência dos cidadãos que condenava , os degredados passavam por dificuldades de várias ordens, que começavam no reino, por ocasião da detenção e do confinamento em alguma prisão, abarcavam as longas e duras viagens oceânicas e se estendiam às desconhecidas colônias. Alguns poucos registros permitem entrar em contato com os sofrimentos dos degredados para a Amazônia.
O segundo tipo de fonte consultada, os Livros dos degredados, permite complementar as informações até aqui reunidas com dados numéricos, todos referentes ao período 1784-1800. São informações que não permitem comparação com outras de igual teor, pois para períodos anteriores não se localizaram documentos seriais como os dos Livros dos degredados. O que se fará a partir de agora é uma fotografia incompleta e imprecisa, pela natureza lacunar das informações e pelo tratamento ainda preliminar dado a elas do conjunto de degredados enviados de Portugal para a Amazônia em fins do século XVIII, fotografia preciosa por sua raridade, capaz talvez de fornecer uma segunda chave de entrada, uma outra forma de aproximação com o tema do degredo para a Amazônia colonial. Temos, assim, no conjunto deste artigo, dois tipos de informação que se completam: o tratado até aqui, proveniente de documentos diversos e intermitentes, mas que abrangem um largo período histórico, e o proveniente dos documentos estudados a seguir, todos do mesmo tipo (o que permite dar a eles um tratamento serial), porém referentes apenas ao período 1784-1800.
O primeiro fato a chamar atenção é o de que, embora os Livros dos degredados existissem desde 1752, registrando degredados para diversas regiões do Brasil desde 1737, os primeiros registros de condenados a degredo para a região amazônica datam apenas de 1784. Não temos uma explicação para isso, já que as outras fontes disponíveis, trabalhadas anteriormente neste texto, comprovam a existência de numerosos degredados para a Amazônia desde o século XVII e ao longo de todo o século XVIII. De qualquer forma, as informações apresentadas a seguir referem-se ao período 1784-1800. Ressalte-se que representam não o número total de degredados enviados desde Portugal para a Amazônia no período, mas o número mínimo de degredados, isto é, apenas aqueles registrados nessa série documental específica.
O total de condenados a degredo enviados para a Amazônia no período 1784-1800 foi de 866, dos quais 766 (88, 5%) homens e cem (11,5% ) mulheres, representando 73,26% do total de degredados (1.182) enviados de Portugal para todo o Brasil no período. A Amazônia foi de longe, portanto, a região brasileira que mais recebeu condenados a degredo, de Portugal para o Brasil, nos últimos 16 anos do século XVIII. Para um termo de comparação, lembre-se de que a ilha de Santa Catarina, a segunda área a receber mais degredados, representou apenas 13% do total. Isso provavelmente ocorreu devido à já comentada concentração do degredo no estado do Maranhão ao longo do século XVIII (devido à descoberta do ouro), enviando a Coroa degredados para o Estado do Brasil apenas em casos excepcionais, como o de Santa Catarina, região afastada das áreas mineradoras e constantemente ameaçada por invasões espanholas.
Embora a porcentagem de mulheres degredadas (11,5%) tenha sido muito menor do que a de homens, o fato a ressaltar aqui é a própria existência dessas degredadas, até agora pouquíssimo notada. Outro fato a destacar é: a porcentagem de mulheres, relativamente ao total de degredados para a Amazônia colonial, foi mais elevada do que a porcentagem de mulheres (9,78%), relativamente ao conjunto de degredados para o Brasil, no mesmo período. Portanto, não apenas as degredadas estiveram presentes na Amazônia, como a porcentagem delas foi mais alta do que a de mulheres degredadas em outras regiões brasileiras, à época. Lembre-se de que a estas mulheres degredadas deve ser acrescido o número nada desprezível das mulheres portuguesas que acompanharam os maridos condenados no degredo, conforme já referido.
Dos 866 condenados a degredo de Portugal para a Amazônia, a grande maioria (88,1%) foi enviada para o Pará, contra 7,9% para o Maranhão. Os restantes 4% foram pulverizados por vários locais, especialmente para as fortalezas, muitas vezes citadas explicitamente ("para a fortaleza de Rio Negro", "para a fortaleza de Macapá" etc.). Ressalte-se pelo cotejo com o primeiro grupo de documentos trabalhados neste texto que a porcentagem de degredados enviados como soldados à Amazônia, inclusive para servir nas fortalezas, deve ter em muito ultrapassado os citados 4%. Provavelmente o destino específico nem sempre constou dos registros, prevalecendo muitas vezes o local genérico de destino (Pará, Maranhão).
Estado civil, faixa etária e profissão
Tipos de crimes e penas
Entre os 752 registros relativos aos crimes cometidos pelos degredados, a maioria (51,6%) aponta o crime de furto, seguido de homicídio (17,3%), vadiagem (12,1%), brigas e ferimentos (7%), deserção (6,6%), contrabando (2,9%) e falsificação (1,6%), diluindo-se os restantes 0,9% entre diversos tipos de outros crimes (bigamia, adultério, resistência à Justiça etc.).
Conclusão
Os dados reunidos neste texto, tanto de um quanto de outro grupo de documentos, comprovam a longa permanência dos degredados portugueses na Amazônia; proporcionalmente à população branca da região, o número de degredados portugueses, conforme se viu, foi muito expressivo. Esses "agentes sociais invisíveis", que a história só registrou de forma muito ocasional, em verdade estiveram presentes de maneira contínua na região amazônica desde o século XVII até o final do século XIX; embora aqui tenham sido estudados apenas os degredados do período colonial, a pena do degredo foi incorporada ao Estado brasileiro após a independência, mantendo-se em vigor até 1892, quando da promulgação do primeiro código republicano. Muitos degredados passaram vários anos de suas vidas na Amazônia, outros lá ficaram para sempre, ou por haver sido condenados ao degredo perpétuo, ou porque, cumprida a pena, não puderam retornar a Portugal (deviam custear a própria passagem) ou não desejaram fazê-lo, adaptados que estavam à vida na região amazônica. Muitos, ao retornar a Portugal, carregaram consigo e difundiram no reino aspectos da vida cotidiana, das práticas, dos mitos e da cultura amazônica.
A variedade de situações sociais vivenciadas pelos degredados na Amazônia, homens e mulheres, convida a uma investigação mais cuidadosa sobre os diferentes papéis sociais que eles representaram na região. Sem abandonar a identidade comum de degredados ao contrário, incorporando-a à análise , é preciso distinguir entre os vários tipos de condenados. É preciso estudar especificamente os soldados, cujas atividades caracterizaram um dos mais persistentes traços de toda a história da Amazônia, inclusive da história recente: o fato de se configurar como uma região armada, conquistada e mantida graças às armas e exércitos. No período estudado, foram as fortalezas, os regimentos e as guarnições, mantidos pelos soldados os quais, conforme se constatou, eram sobretudo degredados que garantiram a presença portuguesa na região. É preciso estudar cada grupo de degredados as mulheres, as crianças (tanto as que vieram com suas mães quanto os jovens condenados de 16 anos), os povoadores, os trabalhadores em empreendimentos estatais etc. , investigar suas múltiplas e complexas formas de inserção social, suas dificuldades, seus desejos, suas realizações, emprestando voz, nome e rosto a personagens até agora teimosamente invisíveis que, no entanto, conforme comprovado neste texto, foram agentes ativos da construção da história da Amazônia.
Recebido para publicação em agosto de 1999.
Aprovado para publicação em outubro de 1999.
Referências bibliográficas
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- 1819 Collecção chronológica de leis extravagantes posteriores à nova compilação das Ordenações do Reino, publicadas em 1603. Coimbra, Real Imprensa da Universidade.
- Figueiredo, José Anastasio de (org.) 1790 Synopsis chronológica de subsídios ainda os mais raros para a história e estudo crítico da legislação portuguesa Lisboa, Academia Real de Ciências.
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- Ribeiro, João Pedro 1805 Índice chronologico remissivo da legislação portuguesa posterior à publicação do Código Filipino Lisboa, Typographia da Academia de Ciências de Lisboa.
- Souza, Laura de Mello e 1993 Por dentro do império: infernalização e degredo. Em Inferno atlântico demonologia e colonização, séculos XVI-XVIII São Paulo, Companhia das Letras, pp. 89-101.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
19 Maio 2006 -
Data do Fascículo
Set 2000
Histórico
-
Aceito
Out 1999 -
Recebido
Ago 1999