Open-access A trajetória de Henrique da Rocha Lima e as relações teuto-brasileiras (1901-1956)

Resumos

A trajetória de Henrique da Rocha Lima vincula-se estreitamente às relações científicas e culturais entre Brasil e Alemanha. Seus trabalhos científicos foram produzidos em instituições de pesquisa biomédica dos dois países, mas foi na Alemanha que ele conquistou projeção internacional, graças a suas pesquisas nos campos da microbiologia, patologia e medicina tropical. Lastreado pelo prestígio e boa inserção nas comunidades científicas brasileira e alemã, contribuiu para o estreitamento do intercâmbio intelectual entre os dois países, mobilizando diversos personagens e instituições como pontos de apoio. Apresentam-se percalços e desafios impostos pelo estudo desse personagem complexo, cuja trajetória lança luz, a um só tempo, sobre os meandros das relações científicas internacionais e sobre processos sócio-históricos marcantes na institucionalização das ciências no Brasil.

Henrique da Rocha Lima (1879-1956); trajetórias científicas; relações Brasil; guerras mundiais; cientista-embaixador


The career of Henrique da Rocha Lima is closely linked to cultural and scientific relations between Brazil and Germany. He pursued his scientific work at biomedical research institutions in both countries, but it was in Germany that he attained international standing, thanks to his research in the fields of microbiology, pathology and tropical medicine. His prestige and active participation in both Brazil's and Germany's scientific communities meant he was able to further academic interchange between both nations, mobilizing many people and institutions to contribute to this process. I present the obstacles and challenges faced in studying this complex character, whose career sheds light on the machinations of international scientific relations and some socio-historical processes that marked the institutionalization of science in Brazil.

Henrique da Rocha Lima (1879-1956); scientific careers; Brazilian-German relations; world wars; ambassador-scientist


NOTA DE PESQUISA

A trajetória de Henrique da Rocha Lima e as relações teuto-brasileiras (1901-1956)

André Felipe Cândido da Silva

Doutorando do Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde/Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz. Rua Cardeal Dom Sebastião Leme, 114/202, 20240-010 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil. andrfe@hotmail.com

RESUMO

A trajetória de Henrique da Rocha Lima vincula-se estreitamente às relações científicas e culturais entre Brasil e Alemanha. Seus trabalhos científicos foram produzidos em instituições de pesquisa biomédica dos dois países, mas foi na Alemanha que ele conquistou projeção internacional, graças a suas pesquisas nos campos da microbiologia, patologia e medicina tropical. Lastreado pelo prestígio e boa inserção nas comunidades científicas brasileira e alemã, contribuiu para o estreitamento do intercâmbio intelectual entre os dois países, mobilizando diversos personagens e instituições como pontos de apoio. Apresentam-se percalços e desafios impostos pelo estudo desse personagem complexo, cuja trajetória lança luz, a um só tempo, sobre os meandros das relações científicas internacionais e sobre processos sócio-históricos marcantes na institucionalização das ciências no Brasil.

Palavras-chave: Henrique da Rocha Lima (1879-1956); trajetórias científicas; relações Brasil/Alemanha; guerras mundiais; cientista-embaixador.

Quando desenvolvia pesquisa sobre a broca-do-café, praga que ameaçou a pujança do centro mais dinâmico da economia brasileira nos anos 1920 e que foi tema de minha dissertação de mestrado (Silva, 2006), entrei em contato com rica documentação concernente a Henrique da Rocha Lima (1879-1956). Ela se encontrava dispersa em meio a cerca de 180 mil documentos que compõem o acervo histórico do Instituto Biológico de Defesa Agrícola e Animal, criado em São Paulo em 1927 como desdobramento da comissão científica formada para dar combate àquela praga. Rocha Lima dirigiu a seção dedicada à pesquisa, ao tratamento e à profilaxia de doenças veterinárias de 1928 a 1933, quando assumiu a direção-geral, que exerceu até 1949. Ele é apontado como um dos principais responsáveis pela consolidação do hoje denominado Instituto Biológico de São Paulo, no que se refere ao arcabouço científico e à legitimidade social (Ribeiro, 1997).

Quando estive lá, há poucos anos, em busca de materiais concernentes à praga dos cafeeiros, deparei com pilhas enormes de papéis tisnados pelo tempo abrigadas numa sala. Essa documentação fora reunida ali por alguns quadros da instituição dedicados à preservação de sua memória, dos quais destacamos Márcia Maria Rebouças, articuladora das iniciativas que redundaram na criação de um centro de memória em 2007, quando a instituição completou oitenta anos de existência.

A documentação de Rocha Lima distinguia-se das demais por ser em grande parte vazada em alemão, o que me chamou a atenção, muito embora já soubesse que boa parte de sua trajetória havia transcorrido na Alemanha. Além das viagens feitas àquele país em 1901-1902 e em 1906-1908, quando pertencia aos quadros do Instituto Soroterápico de Manguinhos (Instituto Oswaldo Cruz), lá teria lugar - arrisco dizer - a parte mais prolífica de sua trajetória como cientista. Em 1909, permaneceu por oito meses no Instituto de Anatomia Patológica da Universidade de Jena, a convite de seu antigo professor Hermann Duerck, transferindo-se em seguida para o Instituto de Doenças Marítimas e Tropicais de Hamburgo (Institut für Schiffs-und Tropenkrankheiten), no qual permaneceu até 1927. Como diretor e pesquisador da Seção de Patologia e Vírus, criada especialmente para ele, realizou estudos que lhe valeram reconhecimento internacional, sobretudo a identificação do agente etiológico do tifo exantemático, com base em pesquisas desenvolvidas durante a Primeira Guerra Mundial.1 Rocha Lima determinou então nova categoria de microrganismos: as riquétsias. Isso daria ensejo à descoberta de uma série de doenças referidas como riquetsioses, hoje caracterizadas em geral pela ocorrência de lesões cutâneas, febre, mal-estar, cefaleia, prostração, aumento anormal do volume do fígado e do baço. Em 1927, durante a última das quatro viagens que realizou ao Brasil naquela década, Rocha Lima foi convidado a integrar o referido Instituto Biológico que Arthur Neiva acabara de fundar em São Paulo, após ter dirigido por quase quatro anos a campanha contra a praga dos cafeeiros.

Uma vez concluída a dissertação de mestrado, participei de projeto de pesquisa sobre a história da medicina tropical no Instituto Oswaldo Cruz (1908-1940).2 Muito importantes no período para a conformação desse campo da medicina experimental, tanto no IOC como em outras instituições, foram as relações científicas entre Brasil e Alemanha, no âmbito das quais Rocha Lima parece ter desempenhado papel fundamental. O extenso trabalho de Benchimol e Sá sobre a produção intelectual de Adolpho Lutz já chamara atenção para isso. A historiografia sobre o Instituto de Manguinhos, por sua vez, salientara a importância de Rocha Lima para a formação dos jovens médicos recrutados por Oswaldo Cruz (entre os quais se incluía Neiva), para a constituição do patrimônio científico da instituição, especialmente no terreno da anatomia patológica, e ainda para seu reconhecimento internacional e a consequente legitimidade junto à opinião pública brasileira (Stepan, 1976; Benchimol, 1990; Benchimol, Teixeira, 1993).

Por outro lado, um dos Leitmotiven da produção memorialística dedicada a Rocha Lima3 é o "silêncio que ronda sua importância científica até mesmo dentro de seu próprio país" (USP, 1998, p.51). A identificação com a Alemanha, de cujas hostes participou Rocha Lima durante a Primeira Guerra Mundial, e o prêmio que lhe foi conferido em 1938 pelo governo de Adolf Hitler parecem ter lançado uma sombra sobre a memória desse cientista brasileiro. A preponderância quase absoluta do inglês como idioma da ciência internacional a partir de 1945, suplantando a hegemonia que tiveram o alemão e o francês, também contribuiu para obscurecer as contribuições científicas de nosso personagem, em sua maior parte veiculadas no idioma de Goethe. A pouca familiaridade dos historiadores e memorialistas brasileiros com esse idioma - assunto que voltarei a abordar adiante - ajudou a perpetuar esse silêncio. Fato é que não há qualquer trabalho de cunho historiográfico sobre Henrique da Rocha Lima, não obstante o boom recente da história das ciências ter motivado a produção de numerosos trabalhos sobre outros cientistas brasileiros.

Essa circunstância e o interesse pelo personagem suscitado pela pesquisa de mestrado levaram-me a propor ao Programa de História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz, em 2006, como projeto de doutorado, o estudo da trajetória de Henrique da Rocha Lima, tendo em mira principalmente analisar sua atuação em favor das relações científicas teuto-brasileiras. Jaime Larry Benchimol, professor e pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz, que já me havia acompanhado durante o trabalho de mestrado, comprometeu-se a orientar novamente minhas pesquisas. Definimos, então, como recorte temporal o período de 1901, ano de sua graduação na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e da primeira viagem à Alemanha, a 1956, ano de sua morte. Nesse meio século, assistiu-se à luta pela consolidação no plano internacional da hegemonia da ciência e da cultura alemãs e aos esforços para sorguê-las após a Primeira Guerra Mundial, e a sua derrocada no curso da Segunda. A trajetória de Rocha Lima foi muito marcada por esses triunfos e transtornos, pois sua identidade profissional, sua agenda e projeção como cientista foram em grande medida modeladas pela íntima associação com a ciência e a cultura do país que protagonizou os dois maiores conflitos do século XX.

A seguir compartilho com o leitor algumas dificuldades e reflexões surgidas no decorrer da pesquisa em andamento, percurso árduo, mas largamente compensador pelas portas que me abriu.

Ein Stein mitten im Weg (uma pedra no meio do caminho)

A maior dificuldade se apresentou logo que escolhi meu objeto de pesquisa: ele requereu, por razões óbvias, o aprendizado do alemão, idioma para nós difícil e um dos principais obstáculos à maior intimidade dos historiadores brasileiros com a cultura germânica. Colocou-se em questão a viabilidade do empreendimento, já que dois anos, no mínimo, seriam necessários para começar a ter acesso aos conteúdos da vasta documentação relativa a meu personagem. É interessante observar que o próprio Rocha Lima defendeu insistentemente nos anos 1920 a necessidade de os alemães investirem na propaganda cultural, de modo a contornar o obstáculo representado pelo idioma. Quando assumiu a direção do Instituto Biológico, contratou uma secretária alemã para dar aulas gratuitas aos jovens pesquisadores e assim fortalecer os laços da instituição há pouco fundada com sua 'pátria científica'. Criou dessa forma uma legião de cientistas versados em alemão, entre eles José Reis, Agesilau Bitancourt, Maurício Oscar da Rocha e Silva, Adolpho Martins Penha, Juvenal Ricardo Meyer e Otto Bier. Como não tive esse privilégio, a solução foi ingressar num curso de alemão e pensar em meios alternativos que a curto prazo contornassem a barreira linguística.

Auxílio providencial veio com o financiamento do CNPq, conseguido graças à submissão, por meu orientador, de projeto sobre Rocha Lima ao edital de ciências humanas aberto em 2007. A verba aprovada mostrou-se, no entanto, limitada para os trabalhos de tradução requeridos pelo grande número de correspondências, relatórios e artigos científicos. Na verdade, àquela altura eu não tinha ainda ideia da exata dimensão da documentação relativa a Rocha Lima. Só naquele ano fora iniciada a catalogação do acervo documental do Instituto Biológico, já devidamente acondicionado nas dependências do recém-criado Centro de Memória. A equipe de Márcia Rebouças dava início à classificação dos documentos relacionados a Rocha Lima, privilegiando, é claro, aqueles em português. Os escritos em alemão foram separados, mas não identificados. Nas visitas ao arquivo, em São Paulo, procurei fazer uma catalogação inicial da documentação em alemão: identifiquei as séries mais extensas de correspondência e os materiais que envolviam personagens e instituições com os quais já estava familiarizado. Sem condições ainda de conhecer o conteúdo daquelas fontes, tateava às escuras, procurando trazer para o Rio de Janeiro o maior número possível de documentos digitalizados, de modo a restringir as viagens a São Paulo. É importante ressaltar que meu trabalho só foi possível graças ao acesso irrestrito ao acervo, facultado por Rebouças, e aos equipamentos que disponibilizou (escâner e computador).

Entrementes, eu prosseguia o curso de alemão no Instituto Goethe, no Rio de Janeiro, atracando-me com gêneros de substantivos, declinações e uma estrutura linguística muito distante do português. Conquistava terreno à medida que os semestres se sucediam, mas a correspondência de Rocha Lima permanecia para mim impenetrável. A verba concedida pelo CNPq seria suficiente para traduzir ínfima parte do material selecionado. Negociamos então, com uma tradutora, uma solução que se mostrou bastante vantajosa: a tradução oral das fontes digitalizadas que eu transcrevia, que diminuiu consideravelmente o custo da tradução e o tempo nela despendido, tendo o 'método' a vantagem adicional de contribuir para meu aprendizado do idioma. Aproxima-se de trezentos o número de documentos traduzidos com a verba do CNPq, os quais totalizam cerca de oitocentas páginas.

Duas circunstâncias essenciais ao êxito do método devem ser mencionadas: a tradutora fora adestrada na interpretação de correspondência e literatura científica do período, no projeto de edição da obra completa de Adolpho Lutz, coordenado por Benchimol e Sá (2004-2007); é, ademais, historiadora que desenvolveu então forte interesse pelos estudos em história da ciência.

As dificuldades e soluções apresentadas até aqui dizem respeito apenas às fontes. Examinemos agora os obstáculos nada desprezíveis de ordem cognitiva que se foram revelando à medida que a pesquisa descortinava um personagem complexo, irredutível a simplificações e fórmulas analíticas prontas.

A construção do objeto de pesquisa

A relação com o objeto de pesquisa é sempre dinâmica; sujeita a avanços, recuos e mudanças, e é nesse movimento que construímos o conhecimento histórico. Redijo o presente relato em trânsito, sem vislumbrar ainda o ponto de chegada, e por isso mesmo o momento é propício à apresentação dos dilemas e descaminhos no estudo da trajetória de Henrique da Rocha Lima.

No projeto original, eu propunha o estudo de seu itinerário profissional, com ênfase no papel que desempenhou na articulação das relações científicas teuto-brasileiras, mas com pouca clareza sobre a natureza dessas relações e dos aportes teóricos mais adequados para sua abordagem. Ajudaram a abrir caminhos no âmbito dessa questão as disciplinas da Pós-Graduação na Casa de Oswaldo Cruz e o diálogo com o orientador e com Magali Romero Sá, que se tornou oficialmente coorientadora de meu projeto.

A historiografia brasileira não tem dado a devida atenção às relações científicas com o mundo germânico. Isso, sem dúvida, é em parte reflexo da pouca familiaridade dos historiadores brasileiros com o idioma e a cultura alemães, em contraste com a maior intimidade com a língua e cultura francesas, inglesas e norte-americanas, indício da hegemonia que exerceram ou exercem sobre nosso ambiente intelectual.

No que se refere às relações teuto-brasileiras, num plano mais geral, nossa historiografia concentra-se basicamente em diferentes aspectos da imigração alemã, como sua contribuição a nossa formação nacional e questões relativas a identidades étnicas e integração social e política à vida local. Nossa historiografia das relações internacionais privilegia as dimensões política e econômica, pouco enfatizando o peso da esfera cultural, a ciência incluída, no jogo de poderes entre as nações. Os estudos voltados para os intercâmbios científicos entre Brasil e Alemanha concentram-se no período anterior à Primeira Guerra Mundial, destacando a história natural e a etnografia.4

A medicina constitui uma das faces mais fascinantes e até agora pouquíssimo exploradas das relações culturais de Brasil e Alemanha. Uma de nossas hipóteses, até agora plenamente confirmada, é a de que Rocha Lima foi um dos mais destacados promotores dessas relações na primeira metade do século XX. A envergadura de sua produção intelectual em microbiologia, patologia e medicina tropical, e a rede de relações por ele tecida asseguraram sua plena inserção na comunidade médico-científica alemã, posição quase única na história de vida de cientistas brasileiros contemporâneos e a partir da qual pôde Rocha Lima contribuir decisivamente para a aproximação intelectual desses dois países.

Os estudos em história da medicina e das ciências da vida feitos nos últimos anos mostram que o Brasil não estava à margem da ciência internacional. Na passagem do século XIX para o XX, vinha reforçando sua inserção nessa cartografia graças à publicação em periódicos estrangeiros de trabalhos realizados no Brasil por investigadores cuja formação transcorrera, em parte ou integralmente, em centros de ensino europeus, sobretudo franceses e alemães. A repercussão internacional de trabalhos veiculados em francês ou alemão já no Brasil, a participação de médicos e investigadores brasileiros em congressos internacionais, o fortalecimento das instituições nativas voltadas para a pesquisa biomédica e a saúde pública, a troca crescente de materiais biológicos e outros dados relevantes para a ciência forânea vinham adensando a rede de relações do Brasil com a comunidade internacional - ou talvez devêssemos usar o plural, as comunidades, a fim de ressaltar as rivalidades nacionais e os 'abismos' que ainda segmentavam a rede por onde fluíam os conhecimentos e no âmbito das quais eram sacramentadas as reputações científicas.

A análise das fontes vem demonstrando a densidade dos contatos estabelecidos por Rocha Lima com parceiros internacionais e a projeção por ele conquistada nas sociedades de seu tempo, tanto a brasileira como a alemã. O fato de alcançar tal projeção num dos principais centros de ensino e pesquisa do Velho Mundo, como integrante de seu próprio establishment, confere notável singularidade a esse personagem. Como sugere Levi (1996, p.176), essa singularidade deve ser compreendida como desvio aparente das normas, mas em "contexto histórico que o justifica".

Minha proposta de tomar a trajetória de um indivíduo como fio condutor para a análise de cenários e processos mais amplos é beneficiada por conjuntura favorável à revalorização da biografia como ferramenta legítima e valiosa para a escrita da história. Na esteira dessa tendência mais ampla, a historiografia das ciências, inspirada também pelos chamados estudos sociais da ciência, tem dado grande impulso à escrita de biografias científicas. Por meio delas, tem procurado investigar a ambiência e os recursos culturais de que se vale a produção dos conhecimentos científicos e o modo como eles se relacionam com a identidade social de seus praticantes (Porter, 2006, p.315; Nye, 2006, p.324).

No projeto de doutorado que apresentei em 2006 ao Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde, apostei na abordagem biográfica sem ter muita familiaridade com o personagem e com a literatura concernente aos intercâmbios intelectuais. A tentativa de dar conta dos múltiplos aspectos da trajetória de Rocha Lima logo se mostrou por demais ambiciosa, impondo a necessidade de refinar o recorte analítico e a aproximação empírica do personagem, de maneira a sedimentar 'plataformas' que permitissem o avanço da pesquisa. Dividi então o itinerário profissional de Rocha Lima em cinco fases, eventualmente reavaliáveis, mas que me ajudariam a organizar o trabalho e a delimitar conjuntos bibliográficos específicos:

(1a) de 1901 a 1909: começa com a primeira viagem de Rocha Lima à Alemanha, para fazer estudos de aperfeiçoamento, e se encerra com seu regresso a esse país a fim de ocupar a direção do Instituto de Patologia da Universidade de Jena. Abrange quase todo o seu tempo de permanência no Instituto Soroterápico de Manguinhos (Instituto Oswaldo Cruz a partir de 1908), durante o qual contribuiu para o reconhecimento da instituição nos círculos acadêmicos alemães e, dessa maneira, para a circulação internacional dos conhecimentos aí produzidos.

(2a) de 1910 a 1918: Rocha Lima integra o Instituto de Doenças Tropicais de Hamburgo, bem como os esforços alemães de estudo e combate do tifo exantemático; primeiramente em Constantinopla (atual Istambul), um dos cenários em que se deflagravam as guerras balcânicas (1912-1913) e, depois, num campo de prisioneiros russos, no início da Primeira Guerra Mundial. Nesse período desenvolve a parte mais significativa de sua produção científica: além dos trabalhos sobre essa e outras 'riquetsioses', dá prosseguimento aos estudos iniciados em Manguinhos sobre a anatomia patológica da febre amarela; estuda a histopatologia da verruga peruana (doença de Carrión); pesquisa também as blastomicoses e a doença de Chagas.

(3a) de 1919 a 1927: inicia-se com a assinatura do Tratado de Versalhes, que tem profundas implicações para a ciência alemã e, mais especificamente, para o Instituto de Doenças Tropicais de Hamburgo, e encerra-se com o regresso de Rocha Lima ao Brasil. As desastrosas condições sociais e econômicas do pós-guerra, bem como o isolamento da ciência alemã em âmbito internacional, levaram a que ele e outros cientistas do Tropeninstitut e de outras instituições alemãs fossem mobilizados pelo governo e por agências não estatais no sentido de promover no exterior a medicina e a cultura alemãs, sobretudo entre os grupos sociais e políticos dominantes e as camadas intelectuais. Lançam-se também à tarefa de forjar relações científicas com pesquisadores de países a leste e oeste para reconquistar a hegemonia perdida, para neutralizar consequências da perda das possessões coloniais africanas e abrir mercados para a indústria, em especial a farmacêutica e de insumos médicos.

(4a) de 1928 a 1942: estende-se do ingresso de Rocha Lima no Instituto Biológico de São Paulo até a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Meu personagem dedica-se à consolidação científica da nova instituição, reassume compromissos mais estreitos com a ciência brasileira, sem descuidar, porém, do projeto de forjar a reaproximação de Brasil e Alemanha, país ao qual se sente intimamente ligado.

(5a) de 1942 a 1956: última fase da trajetória de Rocha Lima, mas nem por isso menos ativa. Ele se engaja com vigor na agenda defendida pelos círculos científicos brasileiros, sobressaindo, aliás, como um dos principais defensores da criação da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, em 1949, quando se aposenta no Instituto Biológico por ter completado setenta anos de idade. Mantém durante todo esse período e até sua morte (1956) estreito contato com colegas alemães.

Em virtude de ter maior conhecimento e interesse pela terceira fase (1919-1927) da trajetória de Rocha Lima, decidi iniciar por aí as investigações mais sistemáticas que resultariam nos primeiros capítulos apresentados no exame de qualificação, em 2009. As fontes digitalizadas em São Paulo e traduzidas correspondiam em sua maior parte a esse período. A maior familiaridade com a conjuntura do pós-guerra de 1914-1918 deve-se ao fato de ter desenvolvido, no já mencionado projeto sobre a história da medicina tropical no Instituto de Manguinhos, trabalho em colaboração com Magali Romero Sá sobre a Revista Médica de Hamburgo, criada em 1920 por Bernhard Nocht e Ludolph Brauer, diretores, respectivamente, do Instituto de Doenças Tropicais de Hamburgo e do Eppendorf, hospital ligado à Universidade dessa cidade alemã. Veiculada predominantemente em espanhol, a publicação tinha como objetivo divulgar os avanços da pesquisa médica alemã ao mundo ibero-americano, tendo sido o principal suporte do movimento de promoção da ciência e cultura germânicas nos países de língua portuguesa e espanhola. O corpo de colaboradores da revista serve como verdadeira 'radiografia' da rede armada pelos alemães na tentativa de reconquistar nichos de influência na América Latina, alvo preferencial da política cultural formulada em Hamburgo e Berlim. A participação de Rocha Lima no corpo editorial da revista garantiu, a um só tempo, a incorporação de cientistas brasileiros como colaboradores e a publicação de artigos e resenhas em português sobre os principais trabalhos veiculados em revistas do Brasil e da Alemanha (Sá, Silva, no prelo).

O contato que esse trabalho propiciou com a bibliografia relativa ao período e ao tema da medicina tropical, no âmbito do chamado revisionismo pós-Versalhes5, ajudou-me a situar melhor Rocha Lima nessa conjuntura. A abundante correspondência mantida então com os círculos diplomáticos da Alemanha e do Brasil sugeria que, de fato, meu personagem havia-se dedicado com afinco ao estreitamento das relações entre os dois países, obedecendo à orientação da instituição a que estava ligado, procurando, ao mesmo tempo, viabilizar seus interesses pessoais e ampliar o espaço de manobra em favor de sua própria agenda como cientista. Por ambas as razões, a trajetória de Rocha Lima mostra-se excelente fio condutor para penetrarmos a complexa urdidura das relações científicas internacionais e lança luz sobre uma constelação de atores, instituições e dinâmicas de pesquisa em ambos os lados do Atlântico no período demarcado. Seu estudo demandava o enfrentamento de questões específicas, apresentadas sumariamente a seguir.

O cientista-embaixador

Ao tratar das missões universitárias francesas ao Brasil nos anos 1920 a 1940 e sua relação com a política cultural arquitetada pelo Ministério das Relações Exteriores da França, Hugo Suppo (2000) propõe a expressão intelectual-embaixador para qualificar aqueles que aliaram suas estratégias e ambições profissionais aos interesses e objetivos perseguidos pelos círculos diplomáticos. Inspirado nesse trabalho, passei a empregar a categoria cientista-embaixador para classificar personagens como Rocha Lima, que adequaram suas agendas científicas a demandas de política externa, guiados, na maioria das vezes, pelo objetivo de recrutar parceiros no exterior; fomentar políticas bilaterais de cooperação ou tomar parte em organizações multilaterais ou associações científicas internacionais. Cientistas-embaixadores como Rocha Lima estiveram à frente das políticas de diplomacia cultural, fenômeno característico do século XX, estreitamente relacionado aos nacionalismos e imperialismos, e reforçado pelas guerras totais (David-Fox, 2006).

O livro organizado por Susan Solomon (2006), que aborda as relações médico-científicas da Alemanha com a Rússia no entreguerras, demonstra que esse perfil de cientista foi bastante frequente naquela conjuntura, assumindo a ciência papel muito importante na política externa dos Estados. Grande parte dos estudos que compõem o livro trata de indivíduos que atuaram na promoção das relações médicas russo-germânicas, e por isso me proporcionaram ótimos insights sobre como analisar Rocha Lima na condição de cientista-embaixador. Esses estudos sugerem que a história do intercâmbio intelectual deve ser compreendida como parte da história do desenvolvimento científico dos países envolvidos (p.11) e que a chave da cooperação quase nunca foi o consenso, mas sim a capacidade dos cientistas nela envolvidos de traduzir, negociar, debater e simplificar ideias e interesses, estabelecendo diálogo 'bilíngue' (Hachten, 2006, p.159).

Ficou mais clara a partir daí a necessidade de precisar as condições históricas que levaram Rocha Lima a atuar como promotor das relações científicas teuto-brasileiras, a necessidade de conhecer suas agendas e as dos atores sociais com os quais interagiu, bem como as estratégias então acionadas para conjugar atividades propriamente científicas ao intercâmbio intelectual e à diplomacia cultural. Tornou-se importante compreender as escolhas feitas e as posições assumidas por Rocha Lima frente às opções permitidas pelas circunstâncias, determinando que a promoção das relações teuto-brasileiras ganhasse lugar tão central em sua trajetória no entreguerras. A bibliografia consultada, as discussões acadêmicas que mantive e o gradual conhecimento das fontes começaram a mostrar como Rocha Lima e seus parceiros praticaram efetivamente a ciência no âmbito dos esforços de cooperação, como elaboraram suas agendas de pesquisa; como conduziram os trabalhos em laboratório e em campo; como ao mesmo tempo construíram as redes interpares e as relações com patronos e com os públicos disponíveis para a ciência num e noutro cenário. Compreender o perfil de Rocha Lima como cientista-embaixador requer também precisar o conhecimento de peculiaridades individuais que lhe permitiram circular com desenvoltura nos contextos brasileiro e alemão. É evidente que foi favorecido pela projeção acadêmica conquistada e pelo grau de articulação com ambas as comunidades científicas, fatores que lhe proporcionaram considerável espaço de manobra junto aos círculos intelectuais, políticos e diplomáticos. A destreza de Rocha Lima nas relações teuto-brasileiras só foi possível graças ao pleno domínio da língua e cultura alemãs, adquirido desde a formação escolar, o que sugere ter a inclinação germanófila antecedentes familiares. O pai, Carlos Henrique da Rocha Lima, médico também, foi um dos fundadores da Policlínica do Rio de Janeiro, inspirada em instituição análoga criada em Viena, e o irmão, Carlos da Rocha Lima, trabalhou em representações diplomáticas brasileiras na Alemanha.

O enfoque que passei a privilegiar situa o percurso de Rocha Lima na interseção de identidade profissional, intercâmbios científicos, ambições políticas e alinhamentos ideológicos, tendo por moldura maior as relações teuto-brasileiras, com suas variáveis configurações históricas. Isso, porém, não esgota as questões suscitadas por personalidades híbridas que como Rocha Lima foram não apenas intermediários culturais mas transgressores de fronteiras nacionais. Se, por um lado, como salienta Solomon (2006, p.16), são relativamente abundantes os trabalhos que abordam a circulação de ideias, a transmissão e adaptação de modelos institucionais e a criação de redes científicas, por outro são bem menos frequentes os estudos sobre personagens que promoveram atividades científicas e culturais nesse plano transnacional. Isso nos remete à singularidade de Rocha Lima assinalada no começo desta nota de pesquisa, a sua dupla cidadania, implicando pertenças e compromissos, numa época em que os nacionalismos exacerbados obrigavam todos a definir claramente quais eram suas lealdades.

A tarefa de compreender o cientista-embaixador Rocha Lima nos remete às engrenagens do internacionalismo científico na primeira metade do século XX e a suas tensões com os nacionalismos, bastante agudas naquela conjuntura. A bibliografia e as fontes consultadas mostram que a Primeira Guerra Mundial provocou abalos e reconfigurações na ciência internacional e nas relações entre ciência e política, com forte impacto sobre a trajetória de meu personagem.

O nacional e internacional, o Brasil e a Alemanha no mundo

Henrique da Rocha Lima nos leva ao cerne das configurações assumidas pelo internacionalismo e pelos nacionalismos científicos na primeira metade do século XX. Ao contribuir para a inserção da ciência originada no Brasil à "vertente germânica da ciência internacional" (Cukierman, 2007) - tônica do projeto institucional de Oswaldo Cruz (Benchimol, 1990; Stepan 1976) - Rocha Lima parece ter dado vazão às ambições de toda uma geração no sentido de garantir um lugar para a ciência profissional mediante, entre outros aspectos, a adequação do conhecimento localmente produzido a uma gramática compartilhada em escala internacional. A ciência como profissão, de Dominichi Miranda de Sá (2006), desenvolve muito criativamente essa questão. Por outro lado, a historiografia especializada mostrou-me que a ciência internacional é algo que deve interessar mais como prática social e historicamente determinada do que como éthos universalista. Assim, os esforços para transcender as barreiras locais não configuram consequência inexorável da atividade científica, mas escolhas deliberadas de atores em coordenadas específicas de tempo e espaço. Em combinação com outras dimensões da vida social, as ciências contribuíram para a criação do espaço internacional e das múltiplas atividades e organizações que lhe conferem densidade. Em trabalho magistral sobre o assunto, Crawford, Shinn e Sörlin (1993, p.36) reforçam a ideia de que o internacionalismo científico assumiu significados distintos de acordo com as circunstâncias em que foi exercido, ou seja, não constitui um padrão fixo de ciência, mas sim o produto de várias formas de engajamento político. Outros autores mostram que inerente à atividade científica, além do permanente conflito entre cooperação e competição, é a tensão entre o desejo de atingir significação universal e imposições de culturas acadêmicas e projetos institucionais e políticos nacionalmente alicerçados (Forman, 1973, p.153). Essa tensão é inerente à ciência há, pelo menos, 150 anos, desde que a ideia de nação fundou-se no particularismo, e a de ciência, no universalismo (Góes Filho, Araújo, 2004, p.170).

A trajetória profissional de Rocha Lima inicia-se no auge da manifestação do internacionalismo como prática e valor, abalados em seguida com a irrupção da Primeira Guerra Mundial. Os esforços das décadas anteriores em prol da internacionalização deram lugar à fragmentação da arena científica em campos hostis (Kevles, 1971). A guerra consolidou nova relação entre ciência e poder militar e impôs a percepção de que o domínio dos conhecimentos científicos era crucial à sobrevivência nacional - pôs, portanto, a ciência no cerne das relações de poder entre as nações e em primeiro plano em seus esforços de propaganda política (Crawford, 1988, 1992; Crawford, Terry, Sörling, 1993; Petitjean, 1996, p.31). Nos anos seguintes, cientistas e políticos tentaram reviver as práticas e o éthos do internacionalismo, mas foram atropelados pela Segunda Guerra Mundial, que provocaria considerável reconfiguração da 'ciência-mundo'. O internacionalismo ganhou a partir de então novo ímpeto e passou a ser enaltecido como importante ingrediente do cimento de uma ordem internacional fundada na paz e no consentimento mútuo. Esse ideal ganhou concretude com a criação da Unesco. Paulo Carneiro, Carlos Chagas Filho e outros personagens assumiriam o papel de articular a ciência brasileira às agendas dos novos fóruns (Maio, 2004).

Intimamente ligada aos triunfos e percalços da ciência alemã, a trajetória e a identidade de Rocha Lima foram marcadas pelo fato de ele estar associado ao país que foi o principal inimigo e o derrotado nas duas guerras mundiais, emergindo da segunda como protagonista do feito mais hediondo já praticado na história da humanidade, o Holocausto, talvez o fruto mais sinistro da combinação de política, ideologia e ciência. Por outro lado, Rocha Lima compartilhou - em alguns momentos mais, em outros menos - as aspirações e os dramas vividos pelos compatriotas. Ele personifica, da forma mais contundente, o dilema daqueles que procuraram integrar o Brasil a uma ciência cada vez mais mundializada, lidando com a tensão entre a valorização da ciência do 'centro', a única capaz de legitimar seus esforços em benefício da periférica, mas também, por lealdade a esta última, procurando com frequência "relativizar a sua importância" (Löwy, 2006).

Para superar o desafio de compreender a inserção do Brasil no quadro da ciência internacional sem cair no unilateralismo e eurocentrismo das concepções difusionistas, armadilha sempre à espreita, ou do modelo centro-periferia, "que é corolário de uma ciência sem função social", nas palavras de Polanco (1992, p.192; tradução livre), foram muito úteis para mim as concepções desse autor, que dá subsídios para compreender a participação da América Latina como um todo no processo de mundialização da ciência europeia, que resultou num sistema de conhecimento marcado por assimetrias de ordem conjuntural e não estrutural (Polanco, 1990; 1992). Polanco mostra que as relações no âmbito da ciência-mundo são dinâmicas, sujeitas a desenvolvimentos de curta e longa duração, a mudanças nas lideranças científicas e às idiossincrasias de cada disciplina. Sua perspectiva valoriza o papel de lideranças na sedimentação de formas intelectuais e institucionais de conhecimento, que se impõem como padrões para se alcançar o que se convenciona qualificar como boa ciência. Facilidades de treinamento, recursos para pesquisa, acesso formal e informal à informação e produtividade científica impelem estudantes e cientistas a migrar para instituições que prometem treinamento mais avançado e prestígio acadêmico.

A formação desse relevo acidentado só é reconhecível através da análise histórica de dados empíricos, no qual a integração da América Latina não foi espontânea nem a "consequência automática de processos cognitivos" (Petitjean, 1996, p.25): foi fruto de escolhas deliberadas de cientistas e de outros integrantes das elites ou do Estado. Caberia compreender, então, qual foi o papel do fluxo de pessoas - estudantes e cientistas - como vetores da expansão da ciência europeia e de que maneira a miscigenação da ciência moderna com sistemas de conhecimento tradicionais na América Latina - em nosso caso, Brasil - resultou numa tradição científica "específica e complexa", como vem sendo retratado pelos estudos enfeixados sob a rubrica ciência & impérios (p.26).

Evidenciou-se para mim que o intercâmbio científico Brasil-Alemanha deve ser encarado como via de mão dupla, ainda que marcado por assimetrias: aos alemães, possibilitou o acesso a fatos e artefatos, bem como às vantagens decorrentes do consumo de sua ciência e cultura por obra dos esforços de diplomacia cultural; aos brasileiros, facultou o acesso às habilidades e tecnologias alemãs; formação acadêmica em centros prestigiados de ensino e, ainda, oportunidade para divulgar pesquisas originais feitas no Brasil, lhes proporcionando visibilidade, reconhecimento e legitimidade em escala mais ampla. É razoável supor que as atividades de Rocha Lima em favor da articulação de duas formações socioculturais tão diferentes tenham sido marcadas por acomodações, tensões e ambivalências. Assim como outros personagens de seu tempo, que se dedicaram a tarefa semelhante, Rocha Lima procurou estabelecer um diálogo bilíngue e acomodar interesses nem sempre congruentes. Seguindo a agenda proposta por Gilberto Freyre (1987), ao abordar as relações do Nordeste brasileiro (basicamente Recife) com o mundo germânico, impôs-se a mim o estudo de relações "entre fatos, entre personalidades e comunidades, entre personalidades, comunidades e coisas, entre personalidades, comunidades e época e tempos sociais ... . De jogos de relações que variam com os sujeitos e objetos em posições de relacionamento" (p.25).

As reflexões feitas no decorrer da pesquisa - ambas em curso - deram origem, como disse, a um primeiro relato sistematizado que apresentei em exame de qualificação em junho de 2009. Tive então a oportunidade de revalidar caminhos, abandonar outros e rever pressupostos. Em abril de 2010 parto para a Alemanha, onde permanecerei sete meses, graças à bolsa concedida pelo Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD). Nos arquivos e bibliotecas de Hamburgo e Berlim, e no diálogo com acadêmicos alemães, terei oportunidade de enriquecer a pesquisa com novas fontes e ideias que certamente darão nova roupagem à trajetória de Rocha Lima e às relações teuto-brasileiras. Stefan Wulf, da Universidade de Hamburgo, supervisionará minhas pesquisas, com grande proveito, já que é profundo conhecedor da história do Instituto de Doenças Tropicais de Hamburgo e da ciência médica alemã na primeira metade do século XX. Lá terei um novo ponto de vista dos obstáculos e recompensas vivenciados por meu personagem em seu bem-sucedido esforço de conquistar projeção em realidade geográfica, social e culturalmente tão distante daquela que modelou sua infância e juventude. Saberei talvez dimensionar melhor essas distâncias e, espero, também aquela que se impõe a todo historiador: o tempo que me separa de Rocha Lima, que tem muito a dizer sobre as "vicissitudes da vida científica", para usar o título que ele atribuiu à conferência proferida em 1949 (Rocha Lima, 1949).

NOTAS

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  • WULF, Stefan. Das Hamburger Tropeninstitut 1919 bis 1945: auswärtlige Kulturpolitik und Kolonialrevisionismus nach Versailles. Berlin: Reimer. 1994.
  • 1
    Há controvérsia quanto à prioridade de Rocha Lima, em que ele esteve envolvido até os últimos anos de sua vida. Em 1909, Howard Taylor Ricketts (1871-1910) e Russel Morse Wilder (1885-1959) descreveram formações que seriam depois denominadas por Rocha Lima
    Rickettsia prowazekii. Ao que tudo indica, eles não incriminaram de forma inequívoca o microrganismo como o agente etiológico do tifo exantemático, até porque Ricketts morreu de tifo antes de poder fazê-lo. Rocha Lima parece ter sido o primeiro a demonstrar experimentalmente a relação causal entre a
    Rickettsia prowazekii e a doença. Na historiografia a ela relativa não há consenso a esse respeito.
  • 2
    O projeto Teorias Europeias e Ciências Biomédicas no Brasil: a Medicina Tropical em Manguinhos (1908-1940), coordenado por Magali Romero Sá, foi desenvolvido de 2006 a 2008.
  • 3
    A esse respeito, ver Bier, 1956, 1979; Falcão, 1966, 1967; Faculdade de Medicina da USP, 1998; Guimarães, 1968; Moraes, 1968; Rebouças, 2009; Reis, 1956a, 1956b, 1976; Ribeiro, 1997; Rocha e Silva, 1956; Vieira, 2000.
  • 4
    A esse respeito, ver Born, 2007; Frank, 2005; Hartmann, 1980; Hermannstädter, 2004; Junghanns, 2008; Kraus, 2004; Lisboa, 1997, 2003; Penteado Coelho, 1993.
  • 5
    Essa expressão e outras similares -
    Kolonialrevisionismus [revisionismo colonial] - referem-se à política externa da Alemanha no entreguerras, às tentativa do regime de Weimar e do nacional-socialismo de rever as cláusulas do tratado de paz, incluídas as que determinavam a apropriação das colônias e protetorados alemães (Wulf, 1994; Eckart, 1997; Niedhart, 1999).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Jul 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2010
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