Resumo
O artigo apresenta uma discussão acerca da produção de histórias transculturais da rede de psicoterapias. Reflete sobre a ausência de trabalhos comparativos na área, delineia a crise de identidade das psicoterapias, focaliza pontos nodais, como o surgimento do termo, as tentativas fracassadas de unificar o campo de Forel a Jung e a aparição de estudos de resultados. Finalmente, situa as histórias das psicoterapias no contexto de áreas adjacentes: a relação da história da psicoterapia com a história das ciências, os estudos de Freud, a história da religião e os estudos religiosos, a história intelectual, a história da psiquiatria, a história da medicina e seu lugar na história cultural.
psicoterapia; historiografia; ciência; medicina; religião
Abstract
This article introduces the work of the transcultural histories of psychotherapies network. Reflecting on the comparative lack of work here, it traces psychotherapies’ identity crisis, focussing on nodal points such as the rise of the term, failed attempts to unify the field from Forel to Jung, and the rise of outcome studies. Finally, it situates histories of psychotherapies within the context of adjacent fields: the relation of the history of psychotherapy to the history of science, to Freud studies, to the history of religion and religious studies, to intellectual history, to the history of psychiatry, to the history of medicine, and its place within cultural history.
psychotherapy; historiography; science; medicine; religion
Você já passou por algum tipo de psicoterapia ou conhece alguém que o tenha feito? Para muitos de nós, a resposta a essas perguntas será afirmativa. Portanto, estudar a história da psicoterapia é estudar a nós mesmos – ou estudar algo diretamente alusivo a nós e aos que nos circundam. Isso oferece um ponto de relevância para a pesquisa histórica, mas também apresenta um paradoxo. A psicoterapia nos atinge graças ao nosso próprio envolvimento com ela. Por um lado, tal ligação oferece um acesso mais imediato ao tópico – isto é, trata-se de uma questão de interesse pessoal, talvez mais direta do que outras áreas da história das ciências ou da história da medicina. Por outro lado, é também, em alguns aspectos, próxima demais, pois estamos, de certa forma, envolvidos com algum tipo de terapia, seja autoanálise ou terapia de outrem, ou ouvindo sobre a terapia de alguém e preocupando-nos sobre o que estaria acontecendo com a pessoa ou sugerindo que precisa de alguma forma de terapia. Como consequência, embora tal proximidade nos permita um acesso particular ao tema, também exige que recuemos e fiquemos atentos ao nosso envolvimento e aos riscos a ele atrelados, de uma maneira autorreflexiva. Ela também proporciona relevância à história do tema, pois estamos construindo uma história da constituição não só do que forma a nossa identidade, nossas aflições, mas também como tentamos lidar com elas e tratá-las.
O campo da psicoterapia é estranho, pairando entre ciência, medicina, religião, arte e filosofia. As psicoterapias modernas conformam uma das mais notáveis peças da área da saúde do século XX. Produzidas inicialmente no que se convencionou chamar de Ocidente, são cada vez mais exportadas para o restante do chamado mundo em desenvolvimento. Entretanto, o estudo histórico desse campo se encontra muito aquém de seu impacto na sociedade e do papel que exerce nas políticas contemporâneas de saúde de diversos países. Essa lacuna está em processo de retificação. Há um crescente volume de trabalhos dedicados ao estudo das histórias das psicoterapias em contextos locais distintos, o que vem expandindo e reformulando nosso conhecimento sobre elas. O colóquio e a edição especial dele advinda sinalizam essa mudança. Apontam para a necessidade de reunir e correlacionar o trabalho realizado nas histórias das psicoterapias em diferentes domínios culturais e analisar o resultado dessa combinação.
Gostaria de começar abordando o que poderíamos chamar de crise de identidade da psicoterapia. A crise de identidade da psicoterapia é tão antiga quanto ela própria. A psicoterapia é um campo que desde seu surgimento está em busca de uma identidade. Uma das definições mais remotas, de 1893, criada pelo psiquiatra holandês Frederick van Eeden (1893 , p.99), a circunscrevia assim: “Chamo de psicoterapia todos os métodos de cura que usam agentes psíquicos para combater a doença por meio da intervenção de funções psíquicas”.1 Tratava-se de uma definição abrangente, universal, e que simplesmente omitia os tratamentos somáticos. A questão sobre em que base se constituíam agentes psíquicos ou funções psíquicas permanecia em aberto. Tudo leva a crer que nela estaria inclusa qualquer forma de tratamento não somático. Isso era, na verdade, uma definição negativa do campo, designada contra a orientação crescentemente somática da medicina clínica.
No início do século XX, o termo psicoterapia havia se tornado realmente consagrado, mas não era visto como exclusivo de uma escola ou abordagem. Era utilizado de diferentes modos para designar uma variedade de procedimentos, desde mesmerismo, hipnose, terapia sugestiva, terapia moral, cura psíquica, cura mental, fortalecimento da vontade, reeducação, o método catártico e a persuasão racional até a prática médica geral na “arte” da medicina. Em consequência, as histórias da psicoterapia começaram a ser escritas e a sofrer contestação (Camus, Pagniez, 1904). No início do século XX, um agrupamento heterogêneo de práticas terapêuticas havia se formado sob o termo “psicoterapia” e identificado como uma disciplina moderna, racional, pretensamente científica.
Considerando-se a ampla disseminação e o impacto das práticas psicoterapêuticas na sociedade, mas também a concorrência cada vez mais agonística de diversos postulantes reivindicando para si o papel de juízes exclusivos do campo, o neurologista e psiquiatra suíço Auguste Forel, em 1908, achou que a situação seria resolvida por meio da formação de uma associação geral de psicoterapia. Abordando o status da disciplina, ele observou a indesejável presença de todos os tipos de pseudoterapeutas, que denominava “charlatães, curadores magnéticos, o Instituto de Ciências de Nova York, milagreiros de Lourdes, spas , naturopatas e assim por diante” ( Forel, 1910 , p.308). Para Forel, esses não eram psicoterapeutas; eram pseudoterapeutas. A primeira medida da associação foi distinguir os psicoterapeutas – os verdadeiros – dos impostores. O espectro do charlatanismo há muito assombra o campo da psicoterapia, e definições de psicoterapeuta muitas vezes buscaram diferenciar essa figura do impostor ( Tuke, 1872 ). Temos, portanto, outra definição negativa. Nas palavras de Forel (25 Feb. 1910, p.42-45):
A psicoterapia engloba, acima de tudo, sugestão terapêutica, psicanálise e métodos análogos, baseada diretamente em uma bem compreendida psicologia... Contudo, desprezadas e negligenciadas, de modo geral, pelas faculdades de medicina, a psicologia e a psiquiatria foram estudadas, sobretudo, por autodidatas que criaram escolas especiais ou locais, como Paris, Nancy, Vienna etc., as quais se desenvolveram de acordo com suas ideias particulares, sem contato com outras, sem debates científicos aprofundados e sem consenso sobre os termos. Como resultado dessa situação, parece-me que algumas coisas se fazem extremamente necessárias:
Obter um acordo internacional que ajude as discussões científicas no domínio que nos ocupa – acordo sobre os fatos e termos;
Unificar a ciência neurológica e torná-la conhecida em todas as suas ramificações pela faculdade de medicina.
Forel (1910 , p.307) tentava organizar o que chamou de Torre de Babel, facilitando intercâmbios científicos e estabelecendo uma “terminologia internacional clara, capaz de ser aceita de maneira geral por pessoas diferentes”. O intuito era que fosse uma autêntica sociedade científica internacional de psicoterapia. Ao contrário da Associação Psicanalítica Internacional, de Freud, então em vias de ser criada, aquela deveria ser aberta a todos, e não dominada por alguma doutrina particular. O projeto não obteve êxito. Houve uma série de congressos, mas o movimento manteve-se disperso. No entanto, a tentativa de organização é útil para ressaltar o problema sobre o que era psicoterapia e os debates de como esse campo poderia reivindicar o status de ciência ou fazer parte da medicina se não havia consenso acerca de sua própria identidade.
Em vez da visão de psicoterapia expressa por Forel como algo que se desenvolvesse em afinidade com outras disciplinas médicas e científicas, o século XX foi palco de uma crescente multiplicidade de escolas de psicoterapia guerreando entre si. De fato, poderíamos descrever isso, sem exageros, como uma guerra de psicoterapias ( Pignarre, 2006 ). No século XX, organizações concorrentes baseadas em fórmulas próprias se tornaram o modelo dominante para as psicoterapias. O termo foi empregado em uma ampla gama de disciplinas divergentes, desdobramento favorecido pelo fato de que nunca foi uma coisa só. Era intensamente maleável; qualquer coisa poderia, na verdade, ser chamada de psicoterapia, e de fato foi. Apesar de esforços, nenhuma escola conseguiu conquistar a totalidade do campo da psicoterapia, embora em determinados contextos algumas escolas tenham alcançado um certo tipo de hegemonia em domínios específicos, haja vista a posição da psicanálise na psiquiatria norte-americana da década de 1950 ( Friedman, 1992 ).
As tentativas de sanar a crise de identidade da psicoterapia por meio da superação da diversidade, das diferenças e da imposição de uma conformidade não funcionaram; na verdade, acentuaram o problema. Em 1938, houve nova tentativa de unificar o campo da psicoterapia a fim de solucionar sua crise de identidade por parte de outro suíço, C.G. Jung, no décimo Congresso Médico Internacional de Psicoterapia, em Oxford. Em seu discurso de abertura, ele salientou que a Sociedade Suíça de Psicoterapia formulara 14 pontos com os quais todos os psicoterapeutas que aplicassem análise psicológica – exceto pelos adeptos da hipnose – concordariam. Portanto, já de início ele excluía os hipnotizadores – mas, de qualquer forma, propôs esses 14 pontos. Eram eles:
Tendo sido desenvolvida por médicos, a psicoterapia adota técnicas médicas. Seu primeiro objetivo é o diagnóstico e, para tal fim, recorre à anamnese. O paciente relata suas dificuldades e, tomando essas informações por base, somadas aos sintomas, faz-se uma tentativa de descobrir a natureza específica da doença.
Os resultados mostram que há formas de doença que nada têm a ver com distúrbios físicos, mas que só são inteligíveis em termos de psique ou mente.
Assim sendo, tal método de diagnóstico não se concentra no local da doença, mas na disposição psíquica geral do enfermo. O método de investigação é adaptado ao estudo da psique e é aplicado a uma base mais ampla comparada àquela obtida na patologia.
Levam-se em consideração todas as formas possíveis pelas quais uma pessoa pode se expressar: seu discurso premeditado, suas livres associações, suas fantasias, seus sonhos, seus sintomas e ações sintomáticas e seu comportamento.
Essa investigação revela uma etiologia que avança às profundezas da personalidade e, portanto, transcende os limites da mente consciente.
À porção obscura da psique, a psicoterapia atribui o nome de inconsciente. A investigação conduz, primeiramente, à descoberta de fixações inconscientes sobre situações cruciais e pessoas significativas na infância do paciente. Essas fixações possuem um aspecto tanto casual quanto intencional e impõem tarefas para futura execução.
Lançar luz aos fatores a partir dos quais a doença se desenvolveu e se prolongou é uma das tarefas da psicoterapia.
Seu método consiste na análise e interpretação de todas as formas de expressão.
O desenvolvimento terapêutico do paciente depende da relação entre ele e o médico. Essa relação também estabelece a base do relacionamento do paciente com a sociedade.
No tratamento, essa relação assume formas específicas de transferência, que é a projeção de conteúdo do inconsciente e surge como uma neurose de transferência.
A redução da neurose de transferência demonstra que ela foi desenvolvida com base nas fixações inconscientes da infância.
Por trás dessas fixações individuais, presume-se haver fatores coletivos do inconsciente.
Os novos conteúdos devem ser compreendidos como partes da personalidade, pois somente dessa forma o paciente é capaz de sentir a sua responsabilidade em relação a eles (Medical Psychotherapy, 6 Aug. 1938, p.332).
Tratava-se de um esforço ambicioso, porém, em última análise, pírrico para unificar todo o campo da psicoterapia. Por que 14 pontos? Poderíamos inferir alguma relação com os Catorze Pontos de Woodrow Wilson que puseram fim às hostilidades da Primeira Guerra Mundial... a tentativa de Jung, entretanto, não encerrou a guerra das psicoterapias. O projeto não decolou, e prolongaram-se o crescente conflito e o que poderíamos chamar de divisão quase espontânea das escolas de psicoterapia.
Nas décadas seguintes surgiram estudos de resultados em psicoterapia, os quais foram, inicialmente, tentativas de mostrar a superioridade de certos tipos de psicoterapia, porém eles reconhecidamente fracassaram ( Erwin, 1996 ). Um dos projetos mais duradouros foi o Psychotherapy Research Project da Menninger Foundation, um estudo com 42 pacientes ao longo de três décadas. Conforme Robert Wallerstein (1989 , p.195), então presidente da International Psychoanalytic Association, sintetizou no resumo de seu primeiro relatório sobre o tema:
A psicanálise obteve resultados mais limitados do que se previa; as psicoterapias muitas vezes alcançavam mais do que o previsto. Os mecanismos de apoio se infiltraram em todas as terapias, a psicanálise entre elas, e foram responsáveis por mais resultados alcançados (incluindo mudanças estruturais) do que se previa.
Foi uma forma diplomática de dizer que o projeto não logrou êxito em demonstrar a superioridade da psicanálise. Com efeito, demonstrou que a psicanálise não havia se saído melhor do que o que se denominava terapias psicanalíticas.2
Em resposta às concorrentes reivindicações da miríade de escolas de psicoterapia, Jerome Frank, em 1961, escreveu o clássico estudo P e rsuasion and healing: a comparative study of psychotherapy (Persuasão e cura: um estudo comparativo de psicoterapia).3 Ele propôs o argumento de que se todas as formas de psicoterapia pareciam eficazes mais ou menos no mesmo nível, seu sucesso provavelmente não deveria ser creditado a um método próprio ou a algum tipo de fórmula secreta tipo “Coca-Cola”,4 mas a características comuns e genéricas, e essas é que deveriam ser estudadas. Tal iniciativa de fato ensejou a formação de um campo de psicoterapia comparada, de certa forma análogo ao campo da religião comparada. No entanto, houve poucos interessados nisso, como se compreenderia nesse contexto. Frank sugeria que a resolução da crise de identidade da psicoterapia era a percepção de que ela não tinha identidade, ou que sua identidade tinha de estar em um nível genérico que englobasse o campo como um todo, envolvendo a tarefa crucial de identificar fatores curativos comuns. Ao mesmo tempo, os fracassos nas tentativas de unificar a psicoterapia ou de encontrar consenso sobre a eficácia de seus fatores comuns não interromperam sua disseminação ou impacto na sociedade. Na verdade, é possível conjecturar que os dissensos contribuíram para sua circulação, uma vez que não havia um limite claramente definido acerca do que era a psicoterapia ou quem poderia ser um psicoterapeuta.
O surgimento de práticas psicoterapêuticas levou à criação do papel do paciente psicoterapêutico, distinto do paciente médico, do paciente neurológico ou do paroquiano da igreja. Tratava-se de um novo papel sociológico no século XX. A psicoterapia ofereceu um novo idioma para o que Talcott Parsons (1991) chamou de o papel do doente, o qual evidentemente possibilitou sua extensão. Resultou no fato de que a doença, a saúde e o bem-estar de cidadãos passassem a ser concebidos no modelo de paciente, independentemente de esses estarem ou não passando por alguma forma de tratamento; ou seja, todos nós passamos a ser considerados pacientes em potencial, e nossa saúde e nosso bem-estar tornaram-se cada vez mais definidos não só em termos psicológicos, mas psicoterapêuticos. Dessa maneira, as concepções psicoterápicas passaram a permear outros discursos e esferas da vida e se tornaram permanentes. Por esse motivo, tornou-se difícil escapar dos efeitos da psicoterapia, mas isso também torna a sua história ainda mais necessária. A história é capaz de lançar luz, talvez até de resolver, a crise de identidade da psicoterapia observando como esses grupos de disciplinas se formaram, e como assumiram as posições que ocupam nas sociedades contemporâneas.
Entretanto, isso também apresenta outros problemas, porque essa crise de identidade da psicoterapia afetou os locais disciplinares nos quais essas histórias foram construídas. Não há um periódico para a história da psicoterapia; não há associações para a história da psicoterapia. As primeiras histórias das psicoterapias foram construídas por seus protagonistas e poderiam, em parte, ser consideradas a continuação dessa batalha por outros meios. Um exemplo fundamental disso é Vida e obra de Sigmund Freud , de Ernest Jones (1953-1957). Essa linha continua sendo desenvolvida nas obras de apologistas freudianos como Elisabeth Roudinesco, Peter Gay e John Forrester. Isso resultou em menos aceitação do campo da história da psicoterapia em campos históricos mais abrangentes, pois a primeira tarefa teria que ser a desmitificação desfazer histórias míticas que não raro foram escritas por indivíduos que tiveram acesso a documentos que haviam sido confiscados de outros, particularmente no campo da psicanálise (Borch-Jacobsen, Shamdasani, 2012). Assim, o estudo da história da psicoterapia acabou inserido em outros campos históricos de mais destaque, quase sempre em letras minúsculas, e não lhe foi conferida a merecida relevância. O próximo item faz um esboço da interface entre a história da psicoterapia e sete desses campos, no qual se sugerem algumas maneiras possíveis pelas quais um estudo mais adensado da história da psicoterapia poderia produzir ramificações mais amplas. Essa lista não pretende, de forma alguma, ser exaustiva, nem apresenta uma historiografia completa: sete pontos foram escolhidos em vez de 14, a fim de evitar uma infeliz reprise!
A história das psicoterapias em relação à história das ciências
Após décadas de relativização do status da ciência, de anos da Escola de Edimburgo, de estudos de ciência, de teoria ator-rede, do descarte de estudos de fronteira e da ruptura com propostas de especificidade atemporal ou transcultural à palavra ciência, a disciplina de história das ciências ainda tende a se concentrar no estudo da história das ciências consagradas, as chamadas ciências duras, as ciências naturais, prestando muito menos atenção à história das disciplinas psicológicas.5 No entanto, é justamente nessas áreas que a questão da especificidade assume um papel particular, conforme já se discutiu, considerando-se a insegurança epistêmica das disciplinas psicológicas. Como vimos, havia o interesse em estabelecer a sua cientificidade porque jamais poderiam menosprezá-la e, portanto, tiveram de debater o problema acerca do que constituía a ciência na psicologia. Mesmo se considerando as disciplinas psicológicas, ainda que tenha sido dedicada alguma atenção em nível histórico aos debates referentes à cientificidade da psicologia, o esforço ainda está para ser feito no que diz respeito às psicoterapias. Principalmente, é preciso que se pesquise como a emulação de ciência moldou o desenvolvimento teórico do campo, bem como concedeu legitimidade retórica às suas concepções.6
A história das psicoterapias em relação aos estudos de Freud
No caso das psicoterapias, há uma predominância de obras sobre os estudos de Freud. Um volume considerável de trabalho foi realizado nesse campo, porém houve uma tendência freudocêntrica dentro dos estudos de Freud, com relativo abandono do movimento psicanalítico mais abrangente e da disseminação e implantação da psicanálise em diferentes contextos culturais. Ainda há muito trabalho a ser feito nesses campos, assim como na interface agonística entre a psicanálise e outras formas de psicoterapia.7
A história das psicoterapias em relação à história da religião e dos estudos religiosos
Embora haja significativo estudo sobre o surgimento do movimento da Nova Era e formas de espiritualidade contemporânea e, mais recentemente, sobre o movimento mindfulness ,8 pouco se estudou de forma detalhada a maneira como as práticas terapêuticas promoveram e ajudaram a dar origem a novas concepções de espiritualidade pessoal – com efeito, à redefinição de espiritualidade como uma forma de autoanálise. Em outras palavras, pouco investimento foi dado ao aspecto psicoterapêutico facultado às tendências de espiritualidade nas sociedades contemporâneas. Os trabalhos de Chris Harding (2015) e Gavin Miller (2020) são notáveis exceções nesse caso. A complexa interação de novas formas de espiritualidade e práticas psicoterapêuticas justifica a necessidade de mais estudos.
A história das psicoterapias em relação à história intelectual
Há, comparativamente, um menor número de trabalhos em história intelectual em relação à história social ou cultural sobre esse tema. Embora tenha havido um volume significativo de trabalho sobre a história do self ,9 e a maneira geral pela qual as concepções psicológicas moldaram as concepções de identidade,10 há poucas obras detalhadas que estudem o modo pelo qual as práticas psicoterapêuticas promulgaram novos conceitos do self , consciência, inconsciente, e assim por diante, fornecendo matrizes formativas e transformativas. Em realidade, sem considerar seu papel nessas novas concepções, é difícil compreender como as psicoterapias se enraizaram nas sociedades contemporâneas. O modo como as práticas psicoterapêuticas levaram muitos indivíduos a adquirir um inconsciente merece estudos mais aprofundados.11
A história das psicoterapias em relação à história da psiquiatria
Durante muitas décadas, grande parte das obras trilhou o que poderíamos denominar estrada foucaultiana, focalizando a origem dos manicômios, histórias de manicômios, que seguiam ou não os mantras foucaultianos de poder/saber, vigiar e punir ou não. O foco em manicômios e em histórias de manicômios passou a dominar grande parte do trabalho em história da psiquiatria por motivos justificáveis, dada a sua proeminência no campo da psiquiatria. Eram também mais fáceis de estudar, considerando-se a natureza acessível da documentação. Somente em tempos relativamente recentes é que trabalhos sobre desinstitucionalização foram realizados.12 Uma menor quantidade de trabalhos foi realizada seguindo o que poderíamos denominar desvios ellenbergianos, ou, como disse certa vez Mark Micale (1993) , segundo a tradição ellenbergiana na história da psicoterapia – investigando-se as figuras do magnetizador, hipnotizador, o psiquiatra dinâmico, que foi reconfigurado como o psicoterapeuta –, ou seja, toda a esfera de prática privada em contraste com a psiquiatria institucionalizada.
A história das psicoterapias em relação à história da medicina
A história da medicina é um campo bem desenvolvido, porém curiosamente pouco se produziu, em termos comparativos, sobre a história das relações médico/paciente no século XX. Tampouco houve muitos estudos sobre como a psicoterapia se originou e progressivamente se desvinculou da prática médica geral, nem sobre o que Edward Shorter (1986) chamou de psicoterapia informal da consulta médica, ou a relação entre a criação do conceito de efeito placebo e sugestão e autossugestão em psicoterapia.
Na história social da medicina, o lugar da psicoterapia no mercado de saúde foi pouco tratado, o mesmo se dando com a escolha da psicoterapia como opção de tratamento de saúde, ou o lugar das práticas psicoterapêuticas no crescente mercado de saúde, bem-estar e espiritualidade. É necessário que se produzam obras sobre esses temas, mais ou menos como o trabalho que Roy Porter (1986) e outros fizeram sobre o mercado médico do século XVIII.
A história das psicoterapias na história cultural
Há uma necessidade patente de estudar as culturas psicoterapêuticas ou o papel da psicoterapia na formação e estruturação das culturas – o modo como as concepções e práticas psicoterapêuticas permearam as sociedades. Aquilo que intelectuais como Robert Darnton (1986) fez em sua obra Mesmer e o final do Iluminismo na França para a história cultural do mesmerismo ainda há de ser feito para as psicoterapias do século XX. Valeria a pena retomar o terreno de especialistas como Philip Rieff (1966) sobre o “triunfo da terapêutica” e substituir suas moralizações e generalizações excessivamente abrangentes por estudos históricos detalhados.13 Houve relevantes aberturas recentes nesse sentido que precisam ser ampliadas para comparações interculturais mais abrangentes.14
Qual, então, é o interesse específico, além desses sete pontos, de estudar as histórias das psicoterapias? Como sabemos, “o Ocidente” se tornou sinônimo de “o universal”. A partir desse ângulo, a tarefa de uma história global das psicoterapias seria simplesmente mapear suas origens e subsequente disseminação geográfica. Contudo, um projeto como esse simplesmente representaria de maneira acrítica o apoio às suposições implícitas acerca das psicoterapias ocidentais contemporâneas. Ao contrário disso, os colaboradores deste número especial afirmam que para desenvolver uma perspectiva transcultural sobre a história das psicoterapias, em vez de uma abordagem globalizante, necessita-se de uma abordagem provincial (ou provinciana), tomando emprestado o termo cunhado por Dipesh Chakrabharty. Segundo ele, “provincializar a Europa é exatamente descobrir como e em que sentido as ideias europeias que eram universais também eram, ao mesmo tempo, originadas de tradições intelectuais muito particulares que não poderiam alegar nenhuma validade universal” (Chakrabharty, 2007, p.XIII). Apenas escavando-se a imersão cultural e temporal das psicoterapias ocidentais é possível estar em posição de compreender o que está sendo subsequentemente transferido e adaptado a contextos culturais radicalmente diferentes, e em uma maneira dialética de mão dupla, em formas de redes recíprocas de intercâmbio. A demanda é por histórias flexíveis que não estejam encapsuladas, mas sejam definidas em relação ao trabalho realizado em outras disciplinas antes indicadas, que tanto informam como, por sua vez, são informadas pelo trabalho nas histórias transculturais das psicoterapias.
Um dos recursos mais interessantes e valiosos das histórias da psicoterapia está no fato de que o campo em si se constitui como um local de intersecção entre as teorias, as técnicas e os pacientes da psicologia. Logo, essas histórias devem ser, ao mesmo tempo, histórias conceituais, histórias dos profissionais, práticas e experiências desses pacientes. O objetivo não é uma história global universal, mesmo que isso pudesse ser alcançado, mas histórias plurais justapostas, sem pressupor alguma coerência geral, mas estudando convergências e divergências, sendo, ao mesmo tempo, metodologicamente plurais. Também não é estritamente comparativa, na forma de uma psicoterapia comparativa histórica, mas abre a possibilidade de insights comparativos, fazendo com que formas díspares se relacionem e se conectem. Esse evento – e agora esta edição especial – tenta avançar nesse intercâmbio, colocando em interrelação e justaposição diferentes desdobramentos em diferentes contextos sem pressupor qualquer unicidade ou identidade para esse campo ou qualquer monocultura na forma como o tema deveria ser estudado. Isso faz parte de uma significativa transformação historiográfica em curso no momento.15
Em conclusão, podemos retornar ao nosso ponto de partida. Considerando nossos envolvimentos e investimentos pessoais nas práticas e nos discursos psicoterapêuticos, abrir esse debate em um domínio transcultural nos oferece a possibilidade de reflexões mais profundas sobre como chegamos a esta situação. Isso não necessariamente resolve os problemas enfrentados por nós como indivíduos ou por pessoas próximas a nós. Contudo, pode nos proporcionar uma visão mais fundamentada sobre como chegamos a esta situação e como adotamos essas concepções ou recorremos a essas práticas para tentar resolvê-los.
AGRADECIMENTOS
Este artigo foi apresentado na terceira conferência internacional do Projeto Histórias Transculturais das Psicoterapias, realizado na Fiocruz, no Rio de Janeiro, em 2018. Gostaria de agradecer a Cristiana Facchinetti por organizar o evento e à Fundação Oswaldo Cruz, ao UCL Global Engagement Office e ao UCL Santander Research Catalyst Award por patrociná-lo. A versão gravada da apresentação foi preservada.
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- WHITE, Ross et al. (ed.). Other psychotherapies. Transcultural psychiatry, v.57, n.6, special issue, 2020.
- WILSON, Jeff. Mindful America: the mutual transformation of Buddhist meditation and American culture. Oxford: Oxford University Press, 2014.
- WOODWARD, William; ASH, Mitchell (ed.). The problematic science: psychology in nineteenth century thought. New York: Praeger, 1990.
NOTAS
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1
Nessa e nas demais citações de textos publicados em outros idiomas, a tradução é livre.
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2
De fato, se as estatísticas servem como indicativos, 69% demonstraram algum nível de melhora na psicanálise, comparados com 77% na psicoterapia de apoio ( Wallerstein, 1986 , p.516).
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3
Frank estava desenvolvendo um argumento que havia sido apresentado por Saul Rosenzweig (1936) em “Some implicit common factors in diverse methods of psychotherapy” (Alguns fatores implícitos comuns em diversos métodos de psicoterapia).
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4
Conforme observado por Thomas Szasz (1989 , p.149-150), em 1963, com respeito às objeções de Freud com Alfred Adler, “era como se Freud houvesse patenteado a Coca-Cola. Ele não estava de fato preocupado se a Pepsi-Cola ou a Royal-Cola ou a Crown-Cola seriam melhores. Ele apenas queria se certificar de que somente os seus produtos levariam o rótulo original”.
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5
Para uma visão geral, consulte Golinski (2005) .
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6
Ver, por exemplo, Woodward, Ash (1990).
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7
Sobre a historiografia da psicanálise, ver Borch-Jacobsen, Shamdasani (2012). Para notáveis exceções ao enfoque freudocêntrico, ver Falzeder (2015) ; Ruperthuz, Plotkin (2017); Dagfal (2011) .
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8
Ver Heelas (1996) ; Carette, King (2004); Wilson (2014) .
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9
Ver Taylor (1989) ; Porter (1996) .
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10
Ver Rose (2010) .
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11
Ver Shamdasani (2017) .
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12
Ver Kritsotaki, Long, Smith (2015).
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13
Para um exemplo elucidativo nesse sentido, ver Lears (2000) .
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14
Ver Illouz (2008) e Aubry, Travis (2015).
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15
Ver as seguintes coleções e edições especiais: Marks (2017) ; Rosner (2018) ; White et al. (2020) ; Shamdasani, Loewenthal (2019).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
06 Jan 2023 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
06 Abr 2021 -
Aceito
18 Jan 2022