Acessibilidade / Reportar erro

Euclides da Cunha na Amazônia: descontinuidades históricas nos modos de ver e narrar a floresta

Euclides da Cunha in the Amazon: historical discontinuities in how the forest is seen and narrated

Resumos

Examina como se consolidaram, no país, processos discursivos, sociais e políticos que nacionalizaram a Amazônia, no período da Primeira República. Com base em textos de Euclides da Cunha sobre a Amazônia, argumenta-se que estava em operação um modo de ver e narrar a floresta distinto do encontrado em relatos de viagem escritos por naturalistas, sobretudo estrangeiros, ao longo do século XIX. Aprofunda, sob inspiração dos estudos culturais de vertentes latino-americanas, o argumento em defesa de uma descontinuidade histórica entre a literatura estrangeira e romântica de viagem do século XIX e os escritos euclidianos do início do século XX.

estudos culturais; Euclides da Cunha (1866-1909); Amazônia; Brasil


The article examines how the discursive, social, and political processes that nationalized the Amazon gained firm footing during Brazil's First Republic. It is argued that Euclides da Cunha's texts on the Amazon see the forest and narrate its story in a way that differs from the travel accounts of nineteenth-century naturalists, above all foreign ones. Drawing inspiration from Latin American cultural studies, the article reinforces the argument that there is a historical discontinuity between the romantic foreign travel literature of the nineteenth century and the early twentieth-century writings of Euclides da Cunha.

cultural studies; Euclides da Cunha (1866-1909); Amazon; Brazil


ANÁLISE

Euclides da Cunha na Amazônia: descontinuidades históricas nos modos de ver e narrar a floresta

Euclides da Cunha in the Amazon: historical discontinuities in how the forest is seen and narrated

Leandro Belinaso Guimarães

Professor do Curso de Licenciatura em Ciências Biológicas e do Programa de Pós-graduação em Educação/Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); pesquisador do Grupo Tecendo - Educação Ambiental e Estudos Culturais/UFSC, CNPq. Rua Desembargador Pedro Silva, 2100/701B 88080-700 - Florianópolis - SC - Brasil lebelinaso@uol.com.br

RESUMO

Examina como se consolidaram, no país, processos discursivos, sociais e políticos que nacionalizaram a Amazônia, no período da Primeira República. Com base em textos de Euclides da Cunha sobre a Amazônia, argumenta-se que estava em operação um modo de ver e narrar a floresta distinto do encontrado em relatos de viagem escritos por naturalistas, sobretudo estrangeiros, ao longo do século XIX. Aprofunda, sob inspiração dos estudos culturais de vertentes latino-americanas, o argumento em defesa de uma descontinuidade histórica entre a literatura estrangeira e romântica de viagem do século XIX e os escritos euclidianos do início do século XX.

Palavras-chave: estudos culturais; Euclides da Cunha (1866-1909); Amazônia; Brasil.

ABSTRACT

The article examines how the discursive, social, and political processes that nationalized the Amazon gained firm footing during Brazil's First Republic. It is argued that Euclides da Cunha's texts on the Amazon see the forest and narrate its story in a way that differs from the travel accounts of nineteenth-century naturalists, above all foreign ones. Drawing inspiration from Latin American cultural studies, the article reinforces the argument that there is a historical discontinuity between the romantic foreign travel literature of the nineteenth century and the early twentieth-century writings of Euclides da Cunha.

Keywords: cultural studies; Euclides da Cunha (1866-1909); Amazon; Brazil.

Cartas, telegramas, memorandos, relatórios, diários de bordo ... Viajar era de certa forma escrever.

Ricardo Ventura, Euclides da Cunha, 2003, p.241.

Em 1884, foi publicado no jornal O Democrata, do Rio de Janeiro, aquele que é considerado o texto inaugural de Euclides da Cunha1 1 Importante literato brasileiro que viajou para a Floresta Amazônica, em 1905, como funcionário do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, com o intuito de demarcar o trajeto do rio Purus e contribuir para as definições de fronteira do país com o Peru e a Bolívia. , pelo menos o primeiro a tornar-se público. Iniciar este artigo fazendo referência a ele, que de antemão explicito não dizer respeito especificamente à Amazônia - foco deste estudo -, pode parecer uma digressão indevida. O leitor e a leitora poderiam questionar: qual a relação desse ensaio com os futuros textos que escreveria o viajante a respeito da floresta? Respondo então que, mesmo não sendo a Amazônia o tema central daquela matéria, nela a natureza brasileira já estava sob a mira do escritor. Naqueles tempos em que a nação buscava trilhar os caminhos que a levariam a um futuro de progresso e plena civilização, chama a atenção o tom aparentemente contrário a tais ideais que transparece nesse primeiro texto 'euclidiano'. Também os modos como a 'nossa' natureza foi significada, no artigo, traduzem-se, como veremos adiante, em uma quase antítese dos que circularam nos escritos amazônicos de Euclides da Cunha. Em razão dessa constatação inicial, interessou-me começar este artigo fazendo referência justamente ao texto inaugural do viajante.

Nesse primeiro artigo de Euclides, está posta em jogo uma articulação entre viagem e natureza que permeará grande parte dos seus textos, inclusive os amazônicos. Parafraseando Ventura (2003), na epígrafe que abre este texto, para Euclides da Cunha "viajar era de certa forma escrever". Desde seus primeiros escritos, o autor parecia querer dizer que, para escrever sobre o Brasil, era preciso estar 'em' viagem. Ademais, escriturar a nação associava-se, também, na perspectiva do viajante-personagem desse primeiro texto, ao ato de escrever sobre a natureza. Para tanto, era imprescindível viajar aos confins da nação, o que, efetivamente, o autor fez no decorrer de sua trajetória profissional. Viajar aos lugares mais longínquos do país 'requisitava' ao viajante-narrador (quase como uma necessidade imanente) a tessitura de uma narrativa, entre outras coisas, sobre a natureza que avistava durante a viagem. Vejamos essa articulação entre viagem e natureza, nas próprias palavras de Euclides da Cunha (1995b), na transcrição quase completa de seu primeiro artigo:

Meus colegas:

Escrevo-os às pressas, desordenadamente...

Guiam-me a pena as impressões fugitivas das multicores e variegadas telas de uma natureza esplêndida que o tramway me deixa presenciar de relance quase.

É majestoso o que nos rodeia - no seio dos espaços palpita coruscante o grande motor da vida; envolta na clâmide cintilante do dia, a natureza ergue-se brilhante e sonora numa expansão sublime de canções, auroras e perfumes... A primavera cinge, no seio azul da mata, um colar de flores e o sol oblíquo, cálido, num beijo ígneo, acende na fronte granítica das cordilheiras uma auréola de lampejos... por toda a parte a vida...; contudo uma ideia triste nubla-me este quadro grandioso - lançando para a frente o olhar, avisto ali, curva sinistra, entre o claro azul da floresta, a linha da locomotiva, como uma ruga fatal na fronte da natureza...

Uma ruga, sim!... Ah! Tachem-me muito embora de antiprogressista e anticivilizador; mas clamarei sempre e sempre: - o progresso envelhece a natureza, cada linha do trem de ferro é uma ruga e longe não vem o tempo em que ela, sem seiva, minada, morrerá! E a humanidade, não será dos céus que há de partir o grande "Basta" (botem b grande) que ponha fim a essa comédia lacrimosa a que chamam vida; mas sim de Londres; não finar-se-á o mundo ao rolar a última lágrima e sim ao queimar-se o último pedaço de carvão de pedra...

Tudo isto me revolta, me revolta vendo a cidade dominar a floresta, a sarjeta dominar a flor!

Mas... eis-me enredado em digressões inúteis... Basta de "filosofias"!... (Cunha, 1995b, p.568).

Há várias questões interessantes a comentar a partir desse pequeno texto. Mas o que parece ser relevante para os propósitos da investigação aqui exposta é a conjunção entre escrita, viagem e natureza, posta em relevo no artigo. Tais articulações, inclusive, marcarão a escritura euclidiana a respeito da floresta amazônica. Além dessas conexões, cabe sublinhar a associação estabelecida entre natureza e progresso tecnológico, representado pela locomotiva em que viaja o escritor-personagem. De qualquer forma, destaco o fato de ser a natureza o foco da atenção do escritor já nos primeiros traços que publicou. É a natureza brasileira que merece, antes de qualquer outra observação, ser descrita e narrada na viagem feita pelo personagem.

No relato em questão, o território que o viajante atravessa não está explícito. Presume-se que viaja em um "cintilante" dia de primavera, pois a luz do sol permitiria vislumbrar melhor os encantos de uma natureza "brilhante". Além disso, pouco ou quase nada se sabe a respeito do lugar de onde o trem partiu. Também se desconhece de antemão o destino final da viagem. Entretanto, sabe-se muito bem sobre a paisagem que se contempla no transcorrer da viagem. O viajante poderia perder alguns minutos do percurso observando uma cena qualquer no interior do vagão, ou mesmo lendo algum antigo livro de viagem sobre a América, mas assim que seus olhos atravessassem a janela avistariam a natureza, em todos os seus diferentes matizes de azuis reluzentes e celestes.

Caberia, então, perguntar: será apenas por essa contemplação da paisagem vista pela janela do trem que o leitor do texto pode inferir em que país efetivamente se passa essa curta história de viagem e natureza? Esse país seria o Brasil, que, se configurando como nação naquele final do século XIX, se mirava no espelho e assistia ao próprio progresso, à nascente industrialização, ao crescimento estampado no desenvolvimento urbano das cidades, às linhas telegráficas que adentravam o interior do país, às vias férreas que começavam a chegar aos mais remotos sítios - tal como analisou Francisco Foot Hardman (2005), em instigante livro sobre a construção da estrada férrea Madeira-Mamoré nos confins da floresta. Enfim, pode-se inferir que é o interior do Brasil que é contemplado e narrado pelo olhar transeunte do viajante. Por seus olhos o país via a si próprio: uma nação territorialmente grandiosa, como o era sua própria natureza.

O Brasil é testemunhado e narrado, entre outras coisas, por meio de um olhar que avista o "azul da mata" que inundaria grande parte da nação. Na escrita poética do viajante, a mata perde até mesmo seu predicado colorido mais latente e concreto: seu verde. Transmuta-se em azul, "o claro azul da floresta", como talvez o fosse a principal tonalidade a colorir uma mata em seio celeste. É o paraíso, esse lugar de "natureza esplêndida" que o trem vai rompendo, rasgando, cicatrizando, machucando, mas também deixando "rugas" ao cortá-lo e, nesse proceder, envelhecendo a natureza que deveria ser eterna, para contemplar essa beleza, esse paraíso, essa natureza que é o próprio país, apenas ascendendo às mais sublimes conjunções de "canções, auroras e perfumes" traduzidas em escrita.

Euclides da Cunha atualiza, por meio de seu texto, uma literatura de viagem que percorreu séculos e instituiu uma articulação entre natureza e brasilidade que, até os nossos dias, ainda atua sobre os modos de pensar o território nacional e a própria nacionalidade. Também nos recorda, veladamente, com a estranha associação entre a cor azul sobrepondo-se e incorporando-se a uma mata vivamente verde, o mito do paraíso terrestre, que nos séculos XV e XVI esteve associado às terras recém-descobertas do Novo Mundo. Refiro-me a uma ampla literatura de viagem, produzida na época das grandes navegações, que marcou a América tropical como um território de natureza exuberante, uma região maravilhosa e encantada, que corresponderia, ou ao menos pareceria corresponder, ao paraíso terrestre, com campos fertilíssimos, clima de perene primavera e onde encontraríamos, por exemplo, a Fonte da Juventude e a árvore do Bem e do Mal (Leite, 1996).

Sérgio Buarque de Holanda (1996) aborda a difusão, na Europa, desde os descobrimentos marítimos dos séculos XV e XVI, de uma visão dos trópicos como o Éden terrestre. Destaca que os teólogos da Idade Média não representavam o paraíso terrestre como um mundo inatingível e incorpóreo, mas sim como algo acessível, ainda que recôndito, o que teria ajudado a conformar as imagens e narrativas dos navegadores daqueles tempos. Ressalta, porém, que uma imagem contrária a essa 'fantasia' também esteve presente naqueles séculos: "Não serão apenas primores e deleites o que se há de oferecer aqui ao descobridor (Cristóvão Colombo). Aos poucos, nesse mágico cenário, começa ele a entrever espantos e perigos" (p.16). Contudo, salienta que tal negação nunca ocupou espaço tão amplo e extremado, nos discursos da época, como o da idealização paradisíaca do Novo Mundo. Uma fauna de seres fantásticos (sereias, amazonas, cinocéfalos, homens caudatos), que imbuíam de medos e arrepios os viajantes, foi vista, não como marcando um lugar infernal, uma negação da visão paradisíaca dos trópicos, mas, pelo contrário, reforçando-a, pois tal fauna foi concebida como produto vontade divina, constituinte do próprio Jardim do Éden.

Naquele tempo, escrever sobre as viagens ao Novo Mundo era quase falar, apenas, de encantamentos; falar do misterioso, do enigmático, do monstruoso, do impressionante, do quase inacreditável. Falar das lendas, que incluíam as amazonas, supostas habitantes das florestas tropicais: "Monstruosidade e extravagâncias, em vez de afastar o leitor de viagens no século XVI, pareciam mesmo seduzi-lo" (Süssekind, 1990, p.131). O mundo tropical era tido como exótico e exuberante, e o Brasil fora inventado, por meio desses relatos de viagem, como o entrelaçamento de um Éden espiritual e paradisíaco com o Eldorado de riquezas abundantes, uma espécie de "antevisão do paraíso, posta em circulação pelas utopias do humanismo quinhentista de Erasmo, Bacon e Montaigne" (Pereira, 2001, p.33). Tal visão, conforme Lisboa (1997, p.35), pode ser lida por intermédio dos viajantes e criadores do Brasil quinhentista, como Hans Staden, André Thevet e Jean de Léry que, depois, "foram seguidos por mais viajantes ao longo do século XVII".

Sem dúvida, esse primeiro artigo, despretensioso, de Euclides da Cunha (1995b) não está imbuído de todos os atributos que as literaturas de viagens dos séculos XV e XVI instituíram. O viajante escreve em outra época, com outros enfoques e articulações. De qualquer modo, a ideia de um país conformado e identificado pela natureza que se avista da janela de um trem quando se viaja, mesmo não sabendo de onde se vem (presume-se que seja da cidade, do litoral brasileiro, do sul da nação) e muito menos para onde se vai (infere-se que seja para os rincões do país, seu interior, seu norte), rearticula e atualiza esse vínculo quase 'naturalizado' entre o país e sua natureza paradisíaca.

José Murilo de Carvalho (1998), ao analisar duas pesquisas de opinião pública a respeito de como brasileiros e cariocas enxergam o país e seus compatriotas, assinala que o motivo edênico persiste fortemente entre eles, como importante significação atrelada ao Brasil. Sugere que essa vitalidade pode estar relacionada à educação, à religião e ao Hino Nacional, mas ao se perguntar por razões de natureza histórica e social, sugere que as qualidades depreciativas atribuídas ao brasileiro, nas respostas coligidas pelas pesquisas - passividade, sofrimento, conformismo, tudo temperado com alegria -, indicam que a natureza acaba sendo um espaço de valorização e admiração da nação, já que, segundo os pesquisados, pouco orgulho se poderia ter das instituições, da política e do próprio povo brasileiro.

Por sua vez, Isabel Carvalho (2001, p.63), ao abordar a permanência de um motivo edênico na configuração do Brasil, argumenta: "as ideias acerca de uma ecologia política, a despeito da gravidade dos problemas ambientais, não conseguiram dar o tom à tradição das ideias ambientais no Brasil, porque não se impuseram ao forte imaginário que recai sobre o país e toda a América como Novo Mundo ou o mundo da própria natureza". Salienta ainda que, mesmo com as grandes perdas dos recursos naturais ao longo da história do país, o motivo edênico continua imperando fertilmente sobre o elevado índice de degra-dação ambiental que presenciamos, mantendo-se, portanto, "vigente no imaginário dos próprios brasileiros" (p.66).

Convém apontar que toda essa tradição discursiva esteve atuando na configuração do pequeno relato de viagem de Euclides da Cunha (1995b). Porém, o que se destaca com maior veemência não é a descrição quase edênica da paisagem brasileira que se avista da janela de um trem, mas a separação que o autor estabelece entre o progresso representado pela locomotiva e a natureza - configurada, esta última, como um território que está sendo minado por essa aceleração tecnológica que corta e cria 'rugas' no interior tranquilo, sereno e exuberante. A revolta do viajante é com o fato de constatar, durante uma viagem de trem (veículo desencadeador de progresso e de civilização, mas, também, de 'rugas'), o quanto a cidade (o lugar da industrialização e do progresso tecnológico) dominava a floresta. Revoltava-lhe ver a "sarjeta dominar a flor". Esse afago em tom romântico sobre o território brasileiro, espaço de natureza e beleza, também não é novidade discursiva, pois marcou toda uma literatura de viagem que emergiu, no século XIX, em contraposição à de acento iluminista que compôs uma narrativa repleta de negatividades sobre o Novo Mundo.

As narrativas negativas sobre o Novo Mundo emergiram com força com o movimento ilustrado do século XVIII. Para Roberto Ventura (1991, p.22; grifo do original), a "filosofia da Ilustração inverteu a visão paradisíaca da América, ao formar um novo discurso sobre o homem e a natureza americanos, marcado pela negatividade". Em obras de pensadores como Georges-Louis Buffon, Cornelius De Pauw e Guillaume Raynal, marcou-se a inferioridade do ambiente do Novo Mundo e a fraqueza das formas de vida que o habitavam. Tais estudiosos eram adeptos do Classicismo, vertente artística e estética associada ao chamado Século das Luzes, que se ancorava na busca da transparência e racionalidade das 'coisas' do mundo. A natureza foi concebida, pelos adeptos da Ilustração, como uma exterioridade a ser apreendida pela razão. Em outras palavras, ela seria apreensível racionalmente e regida por leis. Se a razão era um atributo próprio aos sujeitos europeus (sobretudo homens e brancos), aos climas temperados e à civilização, apenas ao lado da irracionalidade, da barbárie e da selvageria poderia estar o Novo Mundo e, consequentemente, a floresta e os sujeitos que viviam em clima tropical (Ventura, 1991).

Em contraposição a essas narrativas emergem, ainda no século XVIII, aquelas que se configuraram a partir das premissas românticas edificadas por Rousseau, que afirmavam "a superioridade do homem natural e de seu equivalente histórico - o selvagem - sobre o civilizado europeu" (Ventura, 1991, p.23; grifos do original). O Romantismo dota a irracionalidade de uma força positiva. Gerd Borheim (2002) argumenta que, de acordo com as premissas do movimento romântico do século XVIII, seria a partir de nossa interioridade que poderíamos "compreender ... a natureza [como] ainda isenta da mácula de mão humana, estranha e anterior à cultura" (p.81). Autores como Alexander von Humboldt, sob inspiração romântica, invertem, no início do século XIX, "a imagem negativa da natureza tropical e do clima americano" (Ventura, 1991, p.27). O naturalista alemão é considerado aquele que, além de romper com uma descrição negativa do Novo Mundo, uniu ciência e arte na constituição discursiva da natureza.

A contraposição de significados da Ilustração e do Romantismo teria fornecido os argumentos que permearam a disputa entre a idealização e a desilusão do Novo Mundo, no século XVIII e início do seguinte (Gerbi, 1996). A partir da obra de Humboldt2 2 Alexander von Humboldt (1769-1859) escreveu a obra científica Le voyage aux régions equinoxiales du Nouveau Continent (A viagem às regiões equinociais do Novo Continente), publicada em Paris, em 34 volumes - 12 dedicados à geografia, dois às medições astronômicas, 18 à botânica, dois à zoologia -, porém foram seus escritos não técnicos que alcançaram maior impacto e disseminação. Sua obra ainda é pouco conhecida no Brasil. Quadros da natureza ( Ansichten der Natur), único publicado originalmente em alemão e também o único publicado no Brasil, é seu trabalho mais popular. , o século XIX pôde assistir à emergência de narrativas que procuravam marcar a valorização dos territórios do Novo Mundo, processando uma ruptura tanto com a imagem do Paraíso quanto com a depreciação ilustrada. Porém, é preciso considerar que tanto para os naturalistas ilustrados do século XVIII, como para os 'discípulos' de Humboldt no século XIX (que uniram ciência e arte, sob inspiração romântica), a natureza passou a ser concebida como objeto das ciências naturais. Se nos séculos XV e XVI o encanto das viagens pelo Novo Mundo remetiam ao encantado e ao maravilhoso, nas viagens dos séculos XVIII e XIX ele estava na possibilidade de fortalecer uma ciência natural em consolidação.

Ao opor a cidade (espaço de progresso e de civilização) ao interior do país (lugar da beleza e da natureza), Euclides, no artigo em análise, coloca-se na esteira das escritas românticas sobre uma natureza que se confunde com o próprio território brasileiro. Mas esse é, apenas, um Euclides da Cunha, que se diz inundado por digressões inúteis, um viajante que escreve "às pressas" e "desordenadamente". É o relato de um viajante com o olhar ao léu e não um olhar atento, imbuído de alguma missão ou vinculado a alguma posição social estratégica. Assim que a exigência de um olhar interessado, vigilante, fez dele um viajante que não escrevia mais digressões, a floresta brasileira emergiu com outras tonalidades, odores e significados. E Euclides, quando passa a escrever sobre a Amazônia e, também, a adentrá-la, busca romper com todas as significações a respeito da natureza e do Brasil manifestadas, aparentemente de modo paradoxal, em seu primeiro relato sobre viagem, natureza, brasilidade e progresso.

No discurso proferido por ocasião de sua posse como membro da Academia Brasileira de Letras, já tendo retornado da viagem oficial à Amazônia, percebe-se essa ruptura logo em suas primeiras palavras:

Há dois anos entrei pela primeira vez naquele estuário do Pará, "que já é rio e ainda é oceano", tão ineridos estes fáceis geográficos se mostram à entrada da Amazônia.

Mas contra o que esperava não me surpreendi...

Afinal, o que prefigurara grande era um diminutivo: o diminutivo do mar, sem o pitoresco da onda e sem os mistérios da profundura.

... Calei um desapontamento (Cunha, 1995a, p.230).

Com o que, efetivamente, esteve o viajante desapontado? O que esperava avistar, ou melhor, quais foram as expectativas que não se confirmaram? Euclides, quem sabe, desejava testemunhar, reviver, relembrar as mesmas sensações que lhe tomaram o corpo-alma quando escreveu seu primeiro texto sobre viagem e natureza. O que viu na Amazônia tinha pouca relação com tais sentimentos e significações. Nada havia na floresta que pudesse confirmar a imagem paradisíaca que atravessou séculos e contaminou, em parte, seu primeiro relato de viagem. O autor também não podia estar imbuído de algum sentimento romântico, que lhe abrandaria a alma-corpo e lhe conectaria com todo o encanto, toda a pureza e todo esplendor que a natureza amazônica poderia vir a suscitar. Nada disso esteve presente, ao mesmo tempo que tudo isso esteve também presente na escrita amazônica de Euclides da Cunha. Dizer dessa forma pode parecer confuso, paradoxal, mas, ao contrário, analiso esse desapontamento euclidiano com a Amazônia como uma significação tecida por um sujeito instituído 'em' processos de hibridação. Vejamos um pouco melhor tal aspecto.

Em alguns textos, Euclides aciona determinadas articulações e, em outros momentos de sua escrita sobre a floresta, sobre a natureza e sobre o Brasil, coloca em operação outras conexões (são outros os discursos que reverberam na escrita do viajante). Em alguns, como o de sua primeira escrita aqui apresentada, a literatura de viagem, sobretudo a de inspiração romântica, articula-se fortemente com aquilo que o autor escreve sobre a natureza e sobre o país. Isso 'acontece', como já argumentei, quando o autor está tecendo um relato que é fruto de um olhar ao léu, um olhar sem, por exemplo, a intenção de integrar, demarcar e construir a nação brasileira. Anos mais tarde, quando suas viagens e seus escritos estão conformados, entre outras coisas, por esse olhar nacional à floresta (pelo desejo pessoal e oficial de integrá-la à nação e desenvolvê-la), a literatura de viagem passaria a articular-se de maneira muito mais tênue com seus escritos. Ela continua operando e sendo importante 'marcador'3 3 Timothy Lenoir (1997, p.58) destaca, a partir de estudos efetuados por Jonathan Culler, que sem os 'marcadores' (placas, suvenires, cartões-postais, guias, entre outros) nada haveria para ser apreciado nos lugares que visitamos. "No caso do turismo, a existência dos marcadores é o que torna a coisa ... reconhecível como original", produzindo, então, a autenticidade (consumível por meio do turismo) do lugar que visitamos. Nesse sentido, o turismo transformaria os lugares em uma espécie de museu, pois "seus marcadores emolduram os cenários que merecem ser percebidos, como se estivessem colocados em um hall de exibição". para tudo o que escreve sobre a Amazônia. Contudo, a partir de um olhar interessado e oficial, uma articulação mais sutil entre seus escritos e a literatura romântica e estrangeira de viagem seria processada. Emerge uma escrita que institui a Amazônia como um território que lhe provoca desapontamentos; passam a ser outras, e de outra ordem, as articulações processadas nos escritos amazônicos euclidianos.

Este artigo busca aprofundar, exatamente, a descontinuidade entre a literatura estrangeira e romântica de viagem e os escritos euclidianos em que emerge uma floresta amazônica desencantada e provocadora de desapontamentos. A Amazônia transmuta-se, enfim, em uma região "desnuda e monótona" (Cunha, 1995a, p.230). Além de marcar essa descontinuidade, o artigo mostra, a seguir, quais articulações se processam para que tal significação possa ser edificada.

Passando a limpo a Amazônia: a produção da floresta desencantada

No início do século XX, era preciso lançar um olhar para a Amazônia que fosse muito próprio do Brasil; era necessário não apenas ver, mas ver com os olhos de um brasileiro. O Brasil republicano necessitava encontrar seus rumos em direção ao progresso e à civilização. Era preciso, então, destituir a Amazônia dos 'marcadores' que a literatura científica (e estrangeira) de viagem lhe havia imprimido durante mais de um século. Uma floresta que encantava a alma humana não coadunava com uma nação que urgia ser completamente civilizada e caminhar em direção ao progresso, sendo necessário, para tanto, entre muitas outras coisas, eliminar os últimos redutos 'desérticos' do Brasil. A Amazônia configura-se, então, sob essa perspectiva, repleta de desencantos, pois como seria possível desenvolver, modificar uma 'terra encantada'? Tornava-se necessário constituí-la 'de outros modos' e, assim, incorporá-la ao processo de desenvolvimento considerado necessário à República do Brasil.

Ao revés da admiração ou do entusiasmo, o que sobressalteia geralmente, diante do Amazonas, no desembocar do Dédalo florido do Tajapuru, aberto em cheio para o grande rio, é antes um desapontamento. A massa de águas é, certo, sem par, capaz daquele terror que se refere Wallace; mas como todos nós desde mui cedo gizamos um amazonas ideal, mercê das páginas singularmente líricas dos não sei quantos viajantes que desde Humboldt até hoje contemplaram a Hylae prodigiosa, com um espanto quase religioso - sucede um caso vulgar de psicologia: ao defrontarmos o amazonas real, vemo-lo inferior à imagem subjetiva há longo tempo prefigurada. Além disso, sob o conceito estreitamente artístico, isto é, como um trecho da terra desabrochando em imagens capazes de se fundirem harmoniosamente na síntese de uma impressão empolgante, é de todo em todo inferior a um sem-número de outros lugares do nosso país. Toda a Amazônia, sob este aspecto, não vale o segmento do litoral que vai de Cabo Frio à ponta do Munduba (Cunha, 1999, p.1; grifo do original).

Se a literatura científica de viagem, no decorrer do século XIX, principalmente aquela que combinou ciência com estética romântica, produziu uma Amazônia repleta de encantos, tratava-se, agora, de produzir o seu desencantamento, e com urgência. Por meio da viagem euclidiana, a floresta desencantada poderia finalmente inscrever-se no mundo. Talvez caiba destacar que não foi a Amazônia real (como argumenta o autor, na passagem acima destacada) que produziu aos olhos de Euclides da Cunha certo desencantamento, pois ele fala de sua inegável grandiosidade; ouso dizer que a intenção de instituir tal desencanto já estava dada antes mesmo de a viagem ocorrer. Nesse sentido, não é a Amazônia, quando limpa das marcas nela imprimidas por Humboldt (e por muitos outros naturalistas que adentraram a floresta no século XIX), que se apresenta aos olhos euclidianos em toda sua verdade e transparência. Em seus textos emerge agora uma floresta desencantada e limpa aos olhos do Brasil. Para melhor discutir tal emergência, passo a indicar outros elementos que estiveram em jogo, na viagem de Euclides pela Amazônia, além das 'instruções', que era preciso seguir; do trabalho de Chandless, que era necessário corrigir; e dos 'marcadores' das literaturas científicas de viagem, que precisavam ser dissolvidos.

No final do século XIX e início do século XX, a Amazônia era o lugar, no Brasil, onde o progresso parecia querer marchar em ritmo alucinante. Foi essa a época da Belle Epoque amazônica, nas palavras de Ana Maria Daou (2000). Nela, Manaus sofreu uma gigantesca transformação urbana, com a implantação de vários serviços (redes de esgoto, iluminação elétrica, pavimentação de ruas, circulação de bondes), sendo um dos mais importantes "o sistema de telégrafo subfluvial, que garantia a comunicação da capital com os principais centros mundiais de negociação da borracha" (p.37). Manaus modernizou-se e a razão foi a extração e a comercialização mundial do látex extraído das seringueiras (Hevea brasilienses)4 4 Cada seringueira pode ser 'sangrada' (é feita uma incisão no seu caule, permitindo o afloramento do látex) "três vezes por semana durante todo o ano e por cerca de trinta anos" (Araújo, 1998, p.87). , espalhadas pela floresta amazônica. Características químicas como plasticidade, elasticidade, impermeabilidade e propriedades isolantes levaram a borracha amazonense a ocupar um lugar importante no mundo - "ela multiplicou as possibilidades de reunião de materiais diferentes num mesmo artefato técnico, proporcionando mobilidade e flexibilidade a inúmeros equipamentos e produtos industriais" (Araújo, 1998, p.69).

Muitos eram os símbolos que sintetizaram o espírito de desenvolvimento e progresso por que passava Manaus em consequência do boom da borracha. Tal sentimento era compartilhado, de modo geral, por quase todo o país. Enquanto as grandes cidades assistiam a uma urbanização crescente, nos mais remotos territórios da nação vivia-se a possibilidade da chegada do telégrafo e das estradas de ferro (símbolos do progresso que pretendia trilhar a nação). As estradas de ferro, especialmente, foram um dos ícones mais concretos de integração e desenvolvimento do país; progresso e civilização conjugavam-se na figura do trem. No primeiro texto publicado de Euclides da Cunha, ele próprio indica saber que suas posições contrárias à transformação da natureza, pela cicatriz deixada pela locomotiva e por todas as mudanças que ela traria, seriam vistas como contrárias à civilização e ao progresso. Porém, vale lembrar que aquelas foram palavras escritas ao vento, de maneira despretensiosa, quase sem querer, repletas de divagações e de pouca seriedade - na visão do próprio viajante. Em um outro texto, publicado no jornal O Estado de S.Paulo, antes de Euclides da Cunha viajar à Amazônia, sua perspectiva muda:

Não podemos apagar o traço bem pouco civilizador que caracteriza a distensão das nossas redes de estradas de ferro. De fato, nenhuma busca o centro do país, visando a despertar as energias latentes que o afastamento do litoral adormece.

Povoam despovoando. Não multiplicam as energias nacionais, deslocam-nas.

Este fato que ninguém contesta define as anomalias de um desenvolvimento e de um progresso contestáveis. Reflete o vício de uma expansão em que não colaboram as forças profundas do país, porque vai da periferia para o centro sobre não ter o caráter francamente nacional, a pouco e pouco extinto no vigor das correntes intensivas de imigrantes que, diante da nossa indiferença fatalista pelo futuro, já vão assumindo o aspecto de uma invasão de bárbaros pacíficos.

As gentes sertanejas, com seus hábitos antigos, vezadas aos remansos de uma vida primitiva, não poderão, certo, ascender de chofre ao nosso meio. Esta intimidade indispensável far-se-á através de uma evolução que devemos provocar auxiliando, mas não dispensando um fator valiosíssimo - o tempo.

A locomotiva veloz, golfando-lhes de improviso em pleno seio todas as exigências de um estado social superior, não as atrairá. Talvez as repila, ou as deixe indiferentes, ou, o que é mais sério, as deixe suplantadas.

... aferramo-nos cada vez mais às duas preocupações que se contrabatem, irreconciliáveis: a necessidade urgentíssima, improrrogável, de incorporarmos à nossa história as obscuras sociedades sertanejas e o grande espasmo financeiro que nos impossibilita desde já aquele congraçamento pelos luxuosos meios da vida moderna (Cunha, 1995c, p.551-555).

Esse já não é um autor que olha ao léu para o Brasil, para sua natureza, seus sertões, seu progresso, suas "gentes sertanejas". Nestas passagens, percebe-se um viajante imbuído da tarefa de pensar a integração, o progresso e o futuro da nação brasileira. O trem não é mais visto como instalador de 'rugas' nas florestas azuis e encantadoras. Entretanto, a locomotiva por si só não garantiria o desenvolvimento, o progresso e, principalmente, a integração territorial e social do país. Pelo contrário, poderia desintegrá-lo, provocar um revés em seus sonhos de rumar fortemente à civilização. A locomotiva estaria submetida a um novo tempo, acelerado, que não seria o mesmo dos sertões brasileiros. E, por tudo isso, parece ser possível dizer que, para Euclides da Cunha, construir paulatinamente uma sintonia entre tais tempos era imprescindível para a construção da nação.

Certamente, não foi para a locomotiva como objeto, símbolo do desenvolvimento tecnológico, que o autor desferiu suas críticas, mas a esse descompasso entre, por um lado, o tempo do litoral, da civilização, do trem, do progresso e, por outro, o tempo do sertão, do interior, da natureza, dos sertanejos ainda não completamente 'civilizados'.

Outro aspecto complicava ainda mais esse descompasso entre territórios tão distintos em uma mesma nação. Os atributos raciais do brasileiro eram indefinidos sob um "complicado caldeamento de raças" a formar o país (Cunha, 1995c, p.547). Em razão dessa confusão de misturas raciais, antes de levar a locomotiva ao interior - e com ela os imigrantes estrangeiros, sobretudo os europeus -, era preciso resgatar, desenvolver, fortalecer, assistir aquele que, como analisa Guimarães (2007), foi concebido como o cerne racial da nossa nacionalidade: o sertanejo, então transmutado em seringueiro na Amazônia. Toda a crítica concebida à locomotiva e à imigração estrangeira passou por esse ideal, sintetizado pelo próprio viajante no mesmo artigo que venho citando:

a ideia política da defesa do território e o pensamento social de incorporar à nossa [dos brasileiros] vida frágil e sem autonomia, de ribeirinhos do Atlântico, o cerne vigoroso das sociedades sertanejas. ...

absorve-me, mais modesto e mais grave [não o progresso geral representado pela locomotiva em todas as partes do mundo], o problema estritamente brasileiro (Cunha, 1995c, p.546, p. 549).

O problema brasileiro, para Euclides da Cunha, era civilizar, assistir e desenvolver, antes de tudo, os sertanejos-seringueiros abandonados no interior do país e da floresta. O trem chega e assusta, podendo, na perspectiva do viajante, afastar esses vigorosos brasileiros do processo de desenvolvimento e progresso do país. O Brasil perderia, com isso, a chance de ser construído pelas mãos de sua própria gente, os sertanejos, que sintetizavam, para Euclides da Cunha, 'nossa' raça e 'nossa' esperança.

De certa forma, ir ao encontro dos sertanejos parece ter sido um desejo que conformou, em parte, os itinerários das viagens que o autor realizou. Naquela época, após ter obtido um sucesso estrondoso com o lançamento de Os sertões, uma 'outra' viagem, agora à Amazônia, avistava-se como muito importante. Euclides, contrariando os desejos de sua época, que levavam muitos eruditos como ele a Paris, fez suas viagens sempre em direção às regiões 'desérticas' brasileiras, isto é, àquelas regiões consideradas por ele à margem da civilização e da história. Após incursionar pela caatinga e acompanhar de perto o desfecho do levante de Canudos, parece ter-se interessado em penetrar a floresta tropical amazônica e acompanhar o extenso fluxo migratório sertanejo que se processava em direção a essa outra região surpreendentemente 'desértica' do Brasil. "Estima-se que até 1910, cerca de 500.000 trabalhadores emigrantes (a maior parte vinda do Nordeste brasileiro) já havia se dirigido à Amazônia" (Araújo, 1998, p.82).

Euclides havia dado grande destaque, em Os Sertões, à questão da raça, discutindo a formação racial do sertanejo e "os perigos da mestiçagem", ao explicar a guerra de Canudos "como resultado do choque entre dois processos de mestiçagem: a litorânea e a sertaneja" (Ventura, 1998, p.138). É preciso registrar, mais uma vez, que ele também parece ter viajado à Amazônia para ir ao encontro do sertanejo (agora transmutado de seringueiro) - cerne racial da nossa nacionalidade (Guimarães, 2007).

Retomando a questão relativa aos modos como se configurou a chegada do trem ao interior do país, importa referir que, ao escrever sobre as estradas de ferro, depois de ter viajado para a Amazônia, o autor, como um sujeito em processos de hibridação, passou a tecer alguns escritos nos quais aparecem articuladas outras questões que o fizeram defender fervorosamente a construção de uma ferrovia que penetrasse suave e limpidamente as planícies da região.

Dentro do espírito de sua época, e consumido pelo tom desenvolvimentista que inundava o território amazônico, Euclides escreve em À margem da história um interessante texto a respeito da construção de uma estrada de ferro na floresta. De modo aparentemente surpreendente, foram outras as articulações que se configuraram para permitir uma escritura de defesa da chegada da locomotiva à floresta. Inserido naquela que é tida como sua obra amazônica mais importante, o artigo intitulado "A Transacreana" reveste-se, exatamente por isso, de maior relevância quando comparado aos outros dois analisados anteriormente. Por incrível que possa parecer, Euclides da Cunha passou a defender, nesse outro momento, até mesmo de maneira entusiástica, a construção de uma estrada de ferro que pudesse cortar e inundar plenamente a floresta amazônica. Quais seriam as razões para que o viajante deixasse seus tons críticos e passasse a desejar fortemente a presença da locomotiva? Vejamos tal entusiasmo e motivações em suas próprias palavras:

o homem, em vez de senhorear a terra, escravizava-se ao rio. O povoamento não se expandia: estirava-se. Progredia em longas filas, ou volvia sobre si mesmo sem deixar os sulcos em que se encaixa - tendendo a imobilizar-se na aparência de um progresso ilusório, de recuos e avançadas, do aventureiro que parte, penetra fundo a terra, explora-a e volta pelas mesmas trilhas - ou renova, monotonamente, os mesmos itinerários da sua inambulação invariável. ... Ora, este aspecto social desalentador, criado sobretudo pelas condições, em começo tão favoráveis, dos rios, corrige-se pela ligação transversa de seus grandes vales. ... O varadouro ... é a vereda atalhadora que vai por terra de uma vertente fluvial à outra. ... Por fim, numa afirmativa crescente da vontade, vai estirando de rio em rio, retramada com os infinitos fios dos igarapés, a rede aprisionadora, de malhas cada vez menores e mais numerosas, que lhe entregará em breve a terra dominada. ... A estrada de Cruzeiro do Sul ao Acre não irá como as do sul do nosso país, justapondo-se à diretriz dos grandes vales, porque tem um destino diverso. Estas últimas, sobretudo em São Paulo, são tipos clássicos de linhas de penetração: levam o povoamento ao âmago da terra. Naquele recanto amazônico esta função, como o vimos, é desempenhada pelos cursos de água. À linha planeada resta o destino de distribuir o povoamento, que já existe. É um auxiliar dos rios. Corta-lhes, por isto, transversa, os vales (Cunha, 1995d, p.309-313).

Se inicialmente o trem foi visto pelo autor como um criador de 'rugas' na esplêndida e celeste natureza brasileira, posteriormente passou a ser considerado não mais como um problema em si mesmo e para a natureza, mas como um produto tecnológico que atendia a um tempo que não era aquele em que viviam as "gentes sertanejas". Antes do trem, era necessário o resgate e o desenvolvimento de tais populações, pois tais políticas sociais faziam-se imprescindíveis para a construção, a integração e o progresso do Brasil. Contudo, ao adentrar a floresta, Euclides passa a ver na locomotiva um fator de auxílio à ocupação sertaneja e, portanto, brasileira da floresta. O trem passa a ser visto, então, como uma necessidade que adere ao rol das políticas de assistência à vida sertaneja na floresta. Sem o trem, o rio continuaria a escravizar as populações de brasileiros na Amazônia, e o progresso continuaria sendo apenas ilusório, pois as marcas de civilização deixadas pelos sertanejos não seriam suficientes para apagar o primitivismo da floresta. A ocupação avançaria, mas logo recuaria. O sertanejo-seringueiro penetrava fundo naquelas terras em busca da borracha, mas continuaria, sempre, percorrendo os mesmos caminhos, e isso impediria uma ocupação que, de uma vez por todas, tomasse integralmente a Amazônia.

Entretanto, os varadouros - interconexões criadas pelos seringueiros, no meio da floresta, para ligar pontos distintos do território encurtando as distâncias e tornando mais fácil o deslocamento - nutriram as esperanças de domínio daquele território hostil, pois por meio deles se foi constituindo uma rede de caminhos que entrelaçou diferentes pontos da floresta e permitiu uma mais ampla ocupação territorial. Porém os varadouros eram igualmente insuficientes para imprimir cicatrizes de civilização na floresta. Era necessário distribuir o povoamento e fazer com que as "gentes sertanejas" dominassem, definitivamente, a Amazônia, e nada melhor do que uma estrada de ferro somando-se aos entrelaçamentos já construídos pela ocupação sertaneja-seringueira.

Se antes o trem penetrava fundo no interior brasileiro, à margem do desenvolvimento de suas populações, nesse outro momento, na floresta, ele seria, ao contrário, seu desencadeador. Nas palavras de Euclides da Cunha (1995d, p.319), "o que se deve ver naquela via férrea é, sobretudo, uma grande estrada internacional de aliança civilizadora, e de paz". Civilizadora não apenas por levar tais marcas à floresta, mas por civilizar a própria população sertaneja. Uma estratégia de paz, porque os brasileiros abandonados na hostilidade amazônica deixariam de guerrear contra os rios que aprisionam, contra uma natureza que oprime, e enfim venceria a batalha contra o que não se deixava dominar. O trem era a arma de civilização que faltaria aos seringueiros brasileiros em suas lutas diárias com aquele território tão familiar, mas, ao mesmo tempo, tão estrangeiro, tão inóspito, tão hostil.

Para finalizar, quero destacar que apenas uma floresta desencantada poderia vislumbrar a chegada e a penetração das linhas velozes dos trens. Era preciso desencantá-la para transformá-la. Assim, uma ruptura com a literatura estrangeira de viagem se processou, pois um território encantado impedia a efetivação da integração amazônica ao país. Um território encantado só poderia avistar 'rugas' em uma estrada de ferro que o cortasse; uma floresta desencantada estaria disponível para a chegada triunfante da locomotiva que propiciaria uma ocupação sertaneja mais robusta, mais espalhada por toda a floresta, mais propensa a deixar cicatrizes de civilização por toda a Amazônia. O progresso e o desenvolvimento daquele território estariam, finalmente, nas mãos desses esquecidos brasileiros, os sertanejos-seringueiros, vistos como os cernes raciais da nossa nacionalidade.

NOTAS

Recebido para publicação em janeiro de 2009.

Aprovado para publicação em abril de 2010.

  • ARAÚJO, Hermetes Reis. O mercado, a floresta e a ciência do mundo industrial. In: Araújo, Hermetes Reis (Org.). Tecnociência e cultura: ensaios sobre o tempo presente. São Paulo: Estação Liberdade. p.65-90. 1998.
  • BORHEIM, Gerd. A filosofia do Romantismo. In: Guinsburg, Jacob. O Romantismo São Paulo: Perspectiva. p.75-111. 2002.
  • CARVALHO, Isabel. A invenção ecológica: narrativas e trajetórias da educação ambiental no Brasil. Porto Alegre: UFRGS. 2001.
  • CARVALHO, José Murilo de. O motivo edênico no imaginário social brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 13, n. 38, p.63-79. 1998.
  • CUNHA, Euclides da. À margem da história São Paulo: Martins Fontes. 1999.
  • CUNHA, Euclides da. Academia Brasileira de Letras (discurso de recepção). In: Coutinho, Afrânio (Org.). Euclides da Cunha Obra completa. v.1. Rio de Janeiro: Nova Aguilar. p.229-245. 1995a.
  • CUNHA, Euclides da. Em viagem (folhetim). In: Coutinho, Afrânio (Org.). Euclides da Cunha Obra completa. v.1. Rio de Janeiro: Nova Aguilar. p.567. 1995b.
  • CUNHA, Euclides da. Os trabalhos da Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus. In: Coutinho, Afrânio (Org.). Euclides da Cunha Obra completa. v.1. Rio de Janeiro: Nova Aguilar. p.553-558. 1995c.
  • CUNHA, Euclides da. A Transacreana. In: Coutinho, Afrânio (Org.). Euclides da Cunha Obra completa. v.1. Rio de Janeiro: Nova Aguilar. p.308-319. 1995d.
  • DAOU, Ana Maria. A Belle Epoque amazônica Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2000.
  • GERBI, Antonello. O Novo Mundo: história de uma polêmica (1750-1900). São Paulo: Companhia das Letras. 1996.
  • GUIMARÃES, Leandro Belinaso. Um olhar nacional sobre a Amazônia: apreendendo a floresta em textos de Euclides da Cunha. Tese - Doutorado - Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 2007.
  • HARDMAN, Francisco Foot. Trem-fantasma: a ferrovia Madeira-Mamoré e a modernidade da selva. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras. 2005.
  • HOLANDA, Sergio Buarque de. Visão do paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: Brasiliense. 1996.
  • LEITE, José Roberto Teixeira. Viajantes do imaginário: a América vista da Europa, séc. XV-XVII. Revista USP, São Paulo, n.30, p.32-45. 1996.
  • LENOIR, Thimoty. A ciência produzindo a natureza: o museu de história naturalizada. Episteme, Porto Alegre, v.2, n.4, p.55-72. 1997.
  • LISBOA, Karen Macknow. A nova atlântida de Spix e Martius: natureza e civilização na Viagem pelo Brasil (1817-1820). São Paulo: Hucitec. 1997.
  • PEREIRA, Paulo Roberto. Viajantes do século XVI. In: Pereira, Paulo Roberto. (Org.). Brasiliana da Biblioteca Nacional: Guia das fontes sobre o Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional. 2001.
  • SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem. São Paulo: Companhia das Letras. 1990.
  • VENTURA, Roberto. Euclides da Cunha: esboço biográfico. São Paulo: Companhia das Letras. 2003.
  • VENTURA, Roberto. Visões do deserto: selva e sertão em Euclides da Cunha. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v.5, supl., p.133-147. 1998.
  • VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras. 1991.
  • 1
    Importante literato brasileiro que viajou para a Floresta Amazônica, em 1905, como funcionário do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, com o intuito de demarcar o trajeto do rio Purus e contribuir para as definições de fronteira do país com o Peru e a Bolívia.
  • 2
    Alexander von Humboldt (1769-1859) escreveu a obra científica
    Le voyage aux régions equinoxiales du Nouveau Continent (A viagem às regiões equinociais do Novo Continente), publicada em Paris, em 34 volumes - 12 dedicados à geografia, dois às medições astronômicas, 18 à botânica, dois à zoologia -, porém foram seus escritos não técnicos que alcançaram maior impacto e disseminação. Sua obra ainda é pouco conhecida no Brasil.
    Quadros da natureza (
    Ansichten der Natur), único publicado originalmente em alemão e também o único publicado no Brasil, é seu trabalho mais popular.
  • 3
    Timothy Lenoir (1997, p.58) destaca, a partir de estudos efetuados por Jonathan Culler, que sem os 'marcadores' (placas, suvenires, cartões-postais, guias, entre outros) nada haveria para ser apreciado nos lugares que visitamos. "No caso do turismo, a existência dos marcadores é o que torna a coisa ... reconhecível como original", produzindo, então, a autenticidade (consumível por meio do turismo) do lugar que visitamos. Nesse sentido, o turismo transformaria os lugares em uma espécie de museu, pois "seus marcadores emolduram os cenários que merecem ser percebidos, como se estivessem colocados em um
    hall de exibição".
  • 4
    Cada seringueira pode ser 'sangrada' (é feita uma incisão no seu caule, permitindo o afloramento do látex) "três vezes por semana durante todo o ano e por cerca de trinta anos" (Araújo, 1998, p.87).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Out 2010
    • Data do Fascículo
      2010

    Histórico

    • Recebido
      Jan 2009
    • Aceito
      Abr 2010
    Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz Av. Brasil, 4365, 21040-900 , Tel: +55 (21) 3865-2208/2195/2196 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
    E-mail: hscience@fiocruz.br