FONTES
Previsões são sempre traiçoeiras: João Baptista de Lacerda e seu Brasil branco
Predictions are always deceptive: João Baptista de Lacerda and his white Brazil
Lilia Moritz Schwarcz
Professora titular do Departamento de Antropologia/Universidade de São Paulo. Departamento de Antropologia/Universidade de São Paulo. Av. Luciano Gualberto, 315, 05508-900 - São Paulo - SP - Brasil, lilia.ms@uol.com.br
RESUMO
Apresenta e analisa a comunicação do cientista João Baptista de Lacerda no Congresso Universal das Raças (Londres, 1911), financiado pela Inglaterra e demais países participantes: França, Inglaterra, Bélgica, Itália, Pérsia, Turquia, Egito, Japão, África do Sul, Hungria, Rússia, Haiti, Serra Leoa e Brasil. Tomaram parte do evento autoridades governamentais e eclesiásticas, professores, membros do Tribunal Permanente de Arbitragem e da Segunda Conferência de Haia e um representante de cada país convidado. O Brasil, única nação latino-americana convidada, seria visto como exemplo de mistura de raças, e Lacerda advogaria que políticas de imigração fariam com que mestiços embranquecessem e a 'raça negra' fosse extinta no país. O Brasil ocuparia, assim, lugar de destaque nas Américas, distante do modelo segregacionista dos EUA ou das tiranias continentais.
Palavras-chave: João Baptista de Lacerda (1846-1915); raças; mestiçagem; teorias do branqueamento; Brasil.
ABSTRACT
The article presents and analyzes the talk given by scientist João Baptista de Lacerda at the First Universal Races Congress, held in London in 1911 and financed by England and other participating nations (France, Belgium, Italy, Persia, Turkey, Egypt, Japan, South Africa, Hungary, Russia, Haiti, Sierra Leone, and Brazil). Governmental and church authorities, professors, members of The Hague's Permanent Court of Arbitration and Second Conference, plus a representative of each invited country were in attendance. Brazil, the only Latin American nation invited, was seen as an example of the mixing of the races, and Lacerda argued that immigration policies would lead to the whitening of mestizos and the extinction of the "black race" in Brazil. The country thus occupied a unique position in the Americas, standing apart from the segregationist model of the United States and from South America's tyrannies.
Keywords: João Baptista de Lacerda (1846-1915); races; race mixing; theories of whitening; Brazil.
Entre 26 e 29 de julho de 1911 o Brasil participou, oficialmente, do Congresso Universal das Raças, realizado em Londres. Financiado pelo governo do marechal Hermes da Fonseca e apoiado cientificamente por seu assistente no Museu Nacional - o então jovem antropólogo Roquette-Pinto1 -, João Baptista de Lacerda (1846-1915) foi o cientista eleito para representar o país naquele evento. Intelectual de renome nacional, Lacerda formara-se em medicina pela Faculdade do Rio de Janeiro, era autor de pesquisas na área de fisiologia e microbiologia, tendo exercido atividades de relevo durante sua carreira. Foi ministro da Agricultura e, no Museu Nacional, chefe do Laboratório Experimental e subdiretor das seções de zoologia, antropologia e paleontologia. Boa parte de suas investigações resultou em artigos publicados na renomada Revista do Museu Nacional. Foi também diretor dessa instituição, além de presidente da Academia Nacional de Medicina.2
Lacerda era, pois, a pessoa certa para tomar parte de evento de tal importância. Afinal, combinava várias especialidades, entre elas a antropologia e, ainda mais, dominava as potencialidades de um país de raças mistas como o Brasil. No convite, já ficavam claros os propósitos do Congresso: "os brancos, cuja consciência desperta com a ideia do dever, convidam os negros e os amarelos, seus irmãos, a estreitar mais liames de amizade" (citado em Lacerda, 1912).
A reunião se deu na sede da Universidade de Londres e contou com uma exposição cuja curadoria ficou nas mãos do professor e fotógrafo Alfredo Haddon, que apresentou tipos humanos, livros, crânios e diagramas. Falavam-se muitos idiomas no encontro - inglês, francês, espanhol e italiano -, e o delegado brasileiro reclamava da dificuldade de entender tudo e todos, além de espantar-se ao ver o auditório repleto de homens e mulheres. Lord Weardale, um aristocrata saxão, foi eleito presidente do certame, e a secretaria geral ficou nas mãos de G. Spiller. Já o discurso inaugural foi proferido por Giuseppe Serge, um antropólogo italiano que falou sobre as diferentes raças e suas contribuições para a sociedade.
Além das palestras específicas sobre cada país, proferidas por seus respectivos representantes, ocorreram várias apresentações de temas considerados candentes como "O problema da raça negra nos EUA", "A posição mundial do negro e do negróide", "O destino da raça judaica", "A consciência moderna e os povos dependentes" e "As raças sob o ponto de vista sociológico". Como se vê, apesar do século XX já ter começado, os modelos ainda deviam muito aos modelos deterministas, com as raças sendo consideradas fenômenos ontológicos e finais.
No caso do Brasil, criador e criatura não poderiam ser mais representativos. Por um lado, a participação brasileira não deve ser entendida de maneira desavisada. Naquele momento o país era conhecido como um 'laboratório racial', sobretudo pelos viajantes europeus e norte-americanos que por aqui estiveram em busca do espetáculo da natureza e dos homens. O Brasil servia como um exemplo do cruzamento extremado de raças, algo que, no período, era visto como extremamente negativo: representávamos um exemplo de degeneração, obtida pelo efeito perverso da mistura de raças. Por outro lado, vale destacar a importância de João Baptista de Lacerda nessa reunião: membro correspondente de várias sociedades científicas da Europa e da América, professor honorário da Faculdade de Medicina da Universidade do Chile e, sobretudo, como vimos, diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Lacerda havia feito, entre outras, várias pesquisas sobre os Botocudo, e o resultado, publicado em alguns números dos Arquivos do Museu Nacional, comprovava a inferioridade do grupo, que restaria na 'infância da humanidade'. Aí estava uma marca forte, atestada por um dos cientistas mais eminentes do país, que comprovava para o mundo que o Brasil abrigava grupos em início do processo de civilização.
Lacerda e seus colegas de geração conheciam de perto os métodos da antropologia física e moviam-se no espaço demarcado pelas teorias do darwinismo social3, que condenavam o cruzamento e a mestiçagem. Ainda que fosse possível prever do que cada raça seria capaz, os resultados da mestiçagem permaneciam uma incógnita, a ameaçar a certeza desses modelos deterministas. O cientista foi, também, o primeiro professor a ministrar um curso de antropologia no Museu Nacional, cujo programa mais lembrava um projeto de anatomia. A antropologia física ou biológica era aplicada, então, sobretudo por médicos, que conheciam de perto os ensinamentos da frenologia e da craniometria, os do modelo italiano de Césare Lombroso ou os que seguiam as perspectivas de teóricos franceses como Paul Broca, Quatrefages, Adolphe Bertillon e Topinard. Por outro lado, eram bastante conhecidas as teses do conde Arthur de Gobineau (1816-1882), até mesmo em virtude de sua longa permanência no Brasil. Em seu Essai sur l'inegalité des races humaines, publicado em 1853, advogou uma noção pessimista com relação à mistura de raças humanas.4 Sem esquecer as máximas do zoólogo Hermann von Ihering (1850-1930) que, como diretor do Museu Paulista e em nome do darwinismo social, não esqueceu de dar um pequeno 'empurrão' na seleção natural, ao prever e pedir o extermínio dos Kaingang, os quais, por se localizarem no caminho da estrada de ferro Noroeste do Brasil, estariam atrapalhando 'os trilhos da civilização'.5
Mas não há como deixar passar o contexto em que o trabalho de Lacerda - analisado nesse artigo - foi escrito6 e o ambiente político que circundava a reunião. O momento era dado a radicalismos de toda ordem, e no caso da América imperava o pan-americanismo de Bolívar, agora combinado com a doutrina Monroe (o 'monroísmo', nos termos de Lacerda), que implicava imaginar um modelo único, interventor, para a toda a América. Obviamente, o padrão era o norte-americano e o pano de fundo tinha como referência, embora não de forma explícita, a 'anarquia' experimentada pelas pequenas repúblicas latino-americanas. O importante era, pois, guardar distância em relação a uma série de projeções que circundavam o evento. Em primeiro lugar, o cientista defenderia a concepção de que o Brasil não se igualava às demais 'republiquetas vizinhas' e que, ao contrário, por aqui reinaria a mais sublime ordem. Em segundo lugar, era necessário defender o mais difícil: a mestiçagem brasileira seria (apenas) transitória e benéfica, uma vez que não deixaria rastros ou pistas. Mais ainda: era preciso demonstrar como nos portávamos de maneira alternativa, até mesmo em relação aos EUA. Se por lá grassara um sistema escravocrata violento, no Brasil o processo teria sido marcadamente pacífico. Além do mais, se na América do Norte vigia uma ampla gama de preconceitos, por aqui a característica mais marcante seria a ausência de padrões de exclusão. Como se vê, bem no começo do século, João Baptista de Lacerda defendia uma espécie de melting pot, se não presente, ao menos futuro e assegurava ao Brasil uma identidade positiva, obtida pela contraposição que estabeleceu não só com os outros países da América do Sul, mas também com a América do Norte.
De problema, o cruzamento racial se convertia em solução, e nosso enviado oficial apostava em uma espécie de mestiçagem redentora, que se lograria a partir de algumas políticas públicas concernentes à imigração; de algumas certezas da ciência que apostava na seleção - branca - dos mais fortes, e com alguma fé. O fato é que a tese era abusada: em um século, e após três gerações, seríamos brancos. Lacerda havia chegado a essa conclusão a partir dos dados levantados por Edgar Roquette-Pinto (1884-1954), o qual trabalhara, por sua vez, com estatísticas de 1872 e 1890. O então jovem antropólogo constatara que a população negra e indígena vinha declinando progressivamente, e que o embranquecimento da população era "fato cientificamente observado" (citado por Souza, 2009, p.47).
Não obstante, previsões são sempre traiçoeiras, e como dizia o Conselheiro Aires, grande figura da galeria impagável de tipos de Machado de Assis, as coisas só são previsíveis quando já aconteceram. Apesar de não sermos todos brancos em 2011, Lacerda era mesmo um bom profeta para seu tempo.
Quem tem medo da miscigenação?: "A redenção de Cam"
Saudada pelos cientistas estrangeiros como fenômeno ainda pouco conhecido e bastante recente, a miscigenação transformara-se em tema polêmico entre as elites brasileiras, tendo como pano de fundo o determinismo racial, mais conhecido, nesse contexto, como darwinismo social. O importante é que o problema racial se tornara a linguagem através da qual se podia apreender as particularidades observadas e reconhecidas empiricamente no país. Nesse contexto, em que discursos raciais se vinculavam a projetos de cunho nacionalista, soava correto imaginar uma nação em termos biológicos, ou imaginar a existência de uma futura homogeneidade 'racial', como previa justamente João Baptista de Lacerda. Não foi por acaso o cientista introduziu, na abertura do seu trabalho sobre os mestiços brasileiros que levou ao Congresso Universal das Raças, a tela do artista acadêmico Modesto Brocos (1852-1936) chamada "A redenção de Cam" e a partir dela ilustrou o processo 'depurador' que ocorreria no Brasil com o passar do tempo.
Na legenda da tela, a frase não deixava dúvidas acerca da interpretação a ser seguida: "O negro passando a branco, na terceira geração, por efeito do cruzamento de raças".7 Na verdade, Lacerda traduzia a pintura em termos de darwinismo social, e imprimia a noção de uma evolução de mão única: se a avó era preta retinta, a mãe já trazia traços 'suavizados e evoluídos', e o filho, localizado no centro da composição, fruto do casamento com um branco (possivelmente estrangeiro e português), mais se parecia com um europeu.
A pintura trazia uma alusão ao episódio bíblico, quando Noé, ao dividir o território entre seus filhos, dividira também a humanidade em sua sorte. Nesse caso, porém, o processo evolutivo, cientificamente confirmado, 'redimiria' a máxima bíblica, que parecia renitente diante das certezas de época. A seleção darwinista levaria, inicialmente, a uma população mestiça, que passaria a branca no porvir, e este seria o destino certo do Brasil. Ademais, como naquele contexto intelectual a raça branca não era considerada exclusivamente um conceito biológico, antes implicava pensar em um paralelo civilizacional, está claro que a depuração significava, como metáfora e como realidade, que o Brasil era, mesmo, um 'país que daria certo'.
A tela permite também outra leitura, quem sabe menos científica. Num contexto marcado pelo catolicismo popular, a representação ganha um tom 'milagreiro'. A velha negra olha para os céus e, com um gesto milenarmente repetido e expresso pelas mãos, parece agradecer pela graça divina recebida. Mãe e pai olham orgulhosos para o filho, o qual, colocado bem no centro da cena, parece com Cristo na manjedoura. Dessa maneira, o que a ciência não resolvia, a crendice dava conta.
Uma mestiçagem redentora
Não é o caso de resumir as grandes conclusões do texto apresentado por Lacerda no Congresso, uma vez que seu estilo quase jornalístico, ou até mesmo publicitário, dá conta do recado. Financiada pelo governo de Hermes da Fonseca, a delegacia de Londres estava autorizada a pagar "um conto de ouro" aos dois representantes brasileiros e, em telegrama enviado do Brasil pelo ministro da Agricultura, Pedro de Toledo, fica-se se sabendo que se pretendia fazer "por meio que se julgasse mais acertado a propaganda de nosso país" (ministro Pedro de Toledo em carta a Roquette-Pinto, 1911, citado por Souza, 2009, p.121).
O ensaio é quase cristalino nas suas propostas, não fosse a ambivalência que condiciona, como pano de fundo, toda a análise. A mestiçagem surge como um 'mal' (pois o cientista não desfaz ou não desconhece as máximas do darwinismo social e da antropologia física), mas seria também um 'bem', uma vez que sinalizaria um caminho positivo e definitivo para o Brasil. Por isso, o texto começa cauteloso, mas termina com afirmações peremptórias, como se autor pretendesse convencer o público que esteve presente à sua conferência, no dia 26 de julho. Trata-se de uma fala política e, nesse caso, não é possível deixar margem para dúvidas ou nuanças.
Lacerda (1911) começa seu artigo afirmando os pontos dos quais partia: seu país era mesmo marcado pela mistura e por uma "proporção de mestiços ... muito elevada", que eram "descendentes do cruzamento do negro e do branco". Os mestiços teriam também, uma "representação social e política considerável" no Brasil. Por isso apela para a antropologia, com o objetivo de prever o 'futuro' da nação. E uma pergunta aparece de maneira explícita logo na abertura da comunicação: é necessário considerar brancos e negros como duas raças ou duas espécies?
Mais à frente o autor grifa seu texto, para que não restem dúvidas, e estabelece a máxima que orientará seu argumento, bem como sua visão otimista com relação ao papel da mestiçagem no país: se existe reprodução em gerações sucessivas, estamos diante de raças; se não existe, temos então espécies. O cientista responde ao desafio que ele mesmo se colocou, mostrando a evidência de duas raças distintas (e não espécies), mas estabelecendo também que o cruzamento não teria levado, ainda, a uma raça rígida e estável, 'verdadeira'. Os brasileiros seriam, assim, uma raça em formação, cujo desenvolvimento poderia ser, porém, absolutamente controlado.
Por sinal, controle parece ter sido palavra de ordem naquele ambiente político, onde estavam em questão as próprias soberanias nacionais. É o próprio Lacerda quem, de maneira enviesada, alerta para uma espécie de imperialismo interno - um imperialismo dentro da América Latina - que os EUA praticavam nesse contexto. A doutrina Monroe, a 'América para os americanos', esse dístico revelava tudo, menos o essencial: para quais americanos?
Defender, portanto, a especificidade do processo político e histórico brasileiro parecia ser uma necessidade pragmática e, talvez motivado por esse objetivo, Lacerda passa a inventariar a história do país. Comenta sobre os malefícios do tráfico; acerca de uma certa ascensão dos negros, uma seleção intelectual; caracteriza o que denomina boa escravidão e, ainda mais importante, a boa mestiçagem que ocorre no país. Em nome desses princípios condena o tráfico de almas, critica o sistema escravocrata e, por contraposição, mostra como, nos mestiços, "uma força obscura, desconhecida, faz florir ... uma inteligência capaz de atingir um desenvolvimento que não foi apanágio de nenhum de seus ascendentes". E a conclusão é cristalina: embora existissem características ruins nos mestiços, as previsões eram, porém, das mais otimistas. Os mestiços, com sua inteligência, dariam poetas, pintores, escultores, músicos, magistrados, oradores eloquentes, e literatos admiráveis. Superiores aos seus predecessores negros, os mestiços poderiam ser bons intelectuais, sobretudo em um país como o Brasil, o qual, diferente dos EUA, não praticaria, segundo o antropólogo, a exclusão ou o preconceito.
Assim, em três gerações, ofereceríamos um exemplo ao mundo: mostraríamos uma redenção e 'redução' étnica, bem no alvorar do novo século. A raça negra desapareceria entre os brasileiros e, junto com o incentivo à imigração europeia, a nação seria definitiva e finalmente branca. Com essa etapa alcançada, o país estaria pronto e preparado para transformar-se num dos "principais centros civilizados do mundo", na mesma condição que os EUA e os "povos Anglo-Saxões do Velho Continente". Enfim, uma nova Europa!
O lado oficial do texto de Lacerda revela-se não só em seu tom afirmativo, mas também nas referências ao pan-americanismo, na defesa da doutrina Monroe e na crítica às "pequenas repúblicas, povoadas por uma mistura de raças inferiores" e "tiranizadas". Para elas, restaria o protetorado das 'nações fortes'; já o Brasil, por conta da característica pacífica de sua população, do seu território imenso, das suas riquezas naturais, do seu sistema de governo democrático, não deveria sofrer a influência de uma nação estrangeira. Ao contrário, o país poderia permitir a entrada de imigrantes sem necessitar de qualquer protetorado.
O final do opúsculo não poderia ser mais apologético. O Brasil seria o país ideal para todas as raças do mundo que quisessem viver "reunidas e prósperas". No Congresso da Unesco de 1949, o Brasil de Arthur Ramos e Gilberto Freyre se transformaria em exemplo para um mundo do pós-guerra, um modelo de paz e concórdia (Maio, 1997); já em inícios do século XX Lacerda chamava atenção para a mesma missão. Avesso a ódios raciais (como os praticados nos EUA), ou às anarquias, o Brasil era, nos idos de 1911, o país do futuro.
Oito conclusões e um país
Façamos sobre um texto longo um comentário breve. Afinal, o leitor tem em mãos uma reprodução do documento, e não precisa de tantas lentes a decifrá-lo. Ainda mais porque, didático, nosso antropólogo de plantão adianta oito conclusões a fim de redimir quaisquer dúvidas: (1) homens brancos e negros formam duas raças, e não espécies; (2) o mestiço é um tipo étnico variável e pode retornar a uma ou outra raça que o produziu; (3) a população atual se ressente do atraso e dos vícios que os negros trouxeram para Brasil; (4) se o mestiço é inferior ao negro em força física, rivaliza com o branco em sua capacidade intelectual; (5) os mestiços brasileiros, diferentemente do que aconteceu em outros países, ajudaram no progresso do Brasil; (6) a imigração, a seleção sexual e a inexistência de preconceito de raça levarão à desaparição, breve, dos mestiços no Brasil; (7) em um século a população do Brasil será provavelmente branca e no mesmo período os índios e os negros desaparecerão; (8) um futuro brilhante aguardava o Brasil, que ocuparia o mesmo papel, na América do Sul, que os EUA desempenhavam na América do Norte. Se alguma questão existisse, ela seria assim prontamente sanada.
O tema anunciava um projeto identitário e transformava-se tanto em argumento racial quanto discursivo. Lacerda agenciava a mestiçagem e mostrava como, em vez de ser um entrave, ela servia como marca de nossa 'profunda' singularidade. Por um lado, não imitávamos a política segregacionista dos EUA; por outro lado, nada sinalizava que iríamos aderir à 'tirania' latino-americana. Mais ainda: o cruzamento racial virava símbolo de nossa 'índole pacífica' e de nossa 'vontade' de não ter preconceito. Assim, constituíam-se verdades essenciais, que mostravam haver no Brasil um projeto identitário que possibilitaria à nação alcançar a felicidade.
A recepção desse ensaio, dentro e fora do país, geraria reações. Apesar de seu tom evidentemente otimista, considerou-se que o estudo era pessimista demais e que três séculos representavam um tempo muito longo para se aguardar. Por certo, a constatação de que esta era uma 'nação mestiça' criava novos dilemas para os cientistas brasileiros. Se falar em 'raça' parecia oportuno - já que a questão referendava-se empiricamente e permitia certa naturalização de diferenças, sobretudo sociais -, também gerava paradoxos e levantava dúvidas sobre o futuro de uma nação de raças mistas como a nossa. Ficava evidente, portanto, a defasagem entre as teorias deterministas importadas, quando confrontadas com a realidade mestiça do país; e também a rigidez da teoria diante do objeto em questão, a nação brasileira. A saída foi então adaptar os modelos: preconizar a adoção do ideário científico, porém sem seu corolário teórico - aceitar a ideia da diferença ontológica entre as raças sem condenar a 'hibridação' -, uma vez que o país, a essas alturas, encontrava-se irremediavelmente miscigenado.8
Começaram a ganhar força, naquele exato momento, e não por coincidência, teorias de branqueamento que previam que - a despeito dos supostos efeitos negativos do darwinismo social -, ao Brasil era reservado um futuro branco e civilizado, compatível com os projetos de urbanização, modernidade e ocidentalização dos tempos de Hermes da Fonseca. Se não faltaram vozes a denunciar a 'arbitrariedade da modernidade', como Lima Barreto por exemplo, outros autores entraram no coro dos que apostavam numa saída quase 'laboratorial', que levaria ao clareamento controlado da população. Supunha-se que era possível limitar eugenicamente os casamentos (privilegiando alguns e negando outros), incentivar a imigração de brancos em detrimento da imigração de outros grupos, e confiar na infalibilidade da evolução. Se Graça Aranha escreveu o romance Canaã (1902), com seu imigrante Milkau, Oliveira Viana, alguns anos depois, em Raça e assimilação (1934), garantiria que nada havia a temer: o Brasil era mestiço, mas no futuro, com todas as ajudas possíveis, seria branco.
Mas essa já é outra história. Vale a pena, porém, atentar para o fato de que se trata de um debate de 'geração'9: todos se irmanavam diante dos augúrios que anunciavam um novo contexto, não só de modernização mas também de uma 'democracia racial', ou melhor, nos termos da época, de um 'branqueamento democrático e pacífico'. Afinal, talvez Lacerda não tenha sido tão ingênuo no título que deu a seu ensaio. Ao contrário, foi literal: se o momento anunciava um Brasil mais branco, em sua delegação oficial defendia-se um futuro promissor, que havia de se impor 'sobre' os mestiços, apesar e acima deles.
NOTAS
Sobre os mestiços no Brasil*
João Batista Lacerda
Primeiro Congresso Universal das Raças
Londres, 26-29 de julho de 1911
À sua excelência marechal Hermes da Fonseca, presidente
da República dos Estados Unidos do Brasil.
Em sinal de simpatia e gratidão, dedico esse trabalho.
O autor.
Paris, 26 de julho de 1911.
Comunicação apresentada a esse Congresso pelo doutor João Baptista de Lacerda, diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, membro honorário do mesmo Congresso, membro correspondente de diversas sociedades científicas da Europa e da América, professor honorário da Faculdade de Medicina da Universidade do Chile, delegado do Brasil no Congresso de Londres e encarregado de representar o presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, marechal Hermes da Fonseca, nomeado vice-presidente honorário do Congresso.
Os limites estreitos dentro dos quais me confino, para obedecer às prescrições do Comitê Executivo, não me permitem redigir um relatório com toda a extensão que o assunto comportaria. Eu não apresentarei nada além de uma breve nota, sem grandes desenvolvimentos, que remete aos pontos essenciais e verdadeiramente importantes da questão.1
Essa questão dos mestiços, considerada do ponto de vista antropológico e social, tem no Brasil uma importância extraordinária, sobretudo porque na população misturada desse país a proporção de mestiços é muito elevada e os descendentes do cruzamento do negro e do branco têm igualmente uma representação social e política considerável.
A fim de poder, um pouco mais adiante, estabelecer algumas induções quanto ao futuro dos mestiços no Brasil, nós nos vemos, a princípio, obrigados a reter como um ponto de partida uma questão antropológica que muitos consideram ainda não resolvida, e que consiste em saber se é possível considerar os brancos e os negros como duas raças ou duas espécies. Os poligenistas os tomam como duas espécies do gênero Homo, baseando-se na diferença de características físicas que separam o negro do branco e que, segundo eles, é mais profunda do que aquelas que existem entre muitas das espécies do reino animal. Esses que argumentam deste modo esquecem-se, contudo, que a mesma diferença de características físicas se observa entre raças da mesma espécie, como, por exemplo, na espécie de Canis familiaris, e em algumas espécies de pássaros nas quais a seleção natural ou artificial produziu uma diversidade de raças cujas características físicas de cor, forma e estatura são mais diferenciadas ainda do que aquelas que diferenciam o homem branco do negro. A ciência não possui ainda um critério infalível para distinguir as raças das espécies, e o único meio que permite estabelecer essa diferença sobre certa base é a fecundidade ou infecundidade dos descendentes do cruzamento de duas supostas espécies. Se seus descendentes continuam a se reproduzir em gerações sucessivas, seus reprodutores constituem uma raça; se, ao contrário, esses descendentes mantêm-se estéreis, seus reprodutores que efetuaram o cruzamento constituem uma espécie.
Aceitando esse critério, que me parece mais fisiológico e natural do que todos os outros, não tenho nenhuma dificuldade em admitir que o homem branco e o negro formam duas raças, e não duas espécies, visto que ninguém ignora que os mestiços, descendentes do cruzamento do branco com o negro, são fecundos durante uma longa sucessão de gerações.
Se, no entanto, o branco e o negro isoladamente conservam por tempo indefinido os caracteres próprios de sua raça - o que constitui a fixidez -, isso não é o mesmo para o produto do cruzamento deles, os mestiços. Estes não formam uma raça verdadeira em função da falta de fixidez de muitas características físicas que estão sujeitas a variar a cada cruzamento novo, tendendo ora ao tipo branco, ora ao tipo negro.
Essa tendência inata do mestiço, privando-o de qualidades próprias de uma raça fixamente constituída, tem um valor considerável nas transformações que sofrem, durante o curso dos anos, as populações misturadas, nas quais os cruzamentos não obedecem a regras sociais precisas; nas quais os mestiços têm toda a liberdade de se unir aos brancos, criando produtos que se aproximam cada vez mais do branco que do negro.
E é essa, precisamente, a condição atual das populações mistas do Brasil.
O negro, quase completamente selvagem, comprado dos feitores africanos e transportado à costa do Brasil pelos traficantes portugueses até a metade do último século, chegava aqui no estado de mais completo embrutecimento no qual é possível decair uma raça humana. Os aventureiros que exploravam nesta época as terras férteis do Brasil tratavam-nos pior do que a animais domésticos, infligindo-lhes provas das mais crueis e humilhantes. Durante a travessia do oceano, ao menor sinal de rebelião, eles os sufocavam no porão dos navios, fechando as escotilhas e despejando, nesta atmosfera confinada, sacas de cal. Uns morriam de fome, outros de sede, outros ainda asfixiados por suas próprias emanações que, em grande quantidade, viciavam o ar ambiente. Os governos de algumas nações civilizadas se revoltaram contra essa desumanidade, que não pesava em nada na consciência desses carrascos. A Inglaterra, dentre outras [nações], viu-se obrigada a tolerar os corsários para pôr a termo esse tráfico vergonhoso.
Depositados nas praias, nos lugares mais escondidos e menos acessíveis aos corsários, essas massas humanas eram divididas em lotes que se vendiam aos proprietários de terras, sem o pesar de separar as mulheres de seus maridos, os filhos de seus pais, ao capricho de destinos diversos. Foi assim que, para cultivar o solo, os portugueses introduziram no Brasil cerca de dois milhões de negros. Essa nefasta imigração forçada de escravos pesou sobre os destinos do Brasil até os nossos dias, implicando em resultados morais desastrosos que não desaparecerão a não ser com a lenta ação do tempo.
Os negros, recentemente chegados, eram transportados para o interior do país, onde morriam em massa depois de terem provado misérias de toda natureza. O que surpreende, nesse estado de coisas, é que os senhores, sem nenhuma delicadeza, fizessem de concubinas suas escravas. Naturalmente essas uniões entre brancos e negros tornaram-se rapidamente muito frequentes. Foram necessários poucos anos para se ver os arredores das propriedades rurais povoados de mestiços. Estes partilhavam da condição de seus pais, ficando também sob o jugo de senhores comuns. Como eram mais ativos e inteligentes que os negros, eles penetraram logo a casa-grande e se dedicaram aos serviços domésticos. Muitos conquistaram a estima de seus senhores e de seu círculo social. E alguns faziam mostra de real inteligência e devoção por seus patrões; esses últimos, num sentimento de reconhecimento, alforriavam esses indivíduos excepcionais e procuravam dar-lhes um rudimento de educação artística. Foi assim que muitos se tornaram hábeis mecânicos, carpinteiros, marceneiros e mesmo alfaiates. Nós conhecemos pessoalmente um mulato liberto que devia apenas às suas próprias capacidades o diploma de doutor em medicina ao qual ele fez honra durante toda sua vida.
A ascensão dos mestiços na escala social, que começou desde o tempo da escravidão, continuou lentamente até hoje, seguindo as leis da seleção intelectual.
Deve-se, além disso, fazer justiça aos sentimentos gerais da maioria dos brasileiros proprietários de escravos; eles deram prova de um espírito verdadeiramente cristão ao adoçar o tanto quanto possível a sorte dos filhos dos escravos nascidos em suas terras. Quantas vezes nós vimos senhores que não tinham nenhum problema de incluir à mesa da família seus pequenos escravos mulatos. Eles cuidavam da sua alimentação, das suas roupas e os tratavam durante a doença com doçura e bondade. As mulatas se apresentavam frequentemente vestidas segundo a moda, ornadas de joias, seguindo as filhas de seus mestres aos passeios, à igreja e às festas públicas, preenchendo o ofício de damas de companhia. Não era tampouco raro ver o filho do senhor acompanhado por um mestiço de mesma idade nas caçadas, nos passeios a cavalo, nos bailes campestres frequentados por pessoas de todas as classes. Em geral, os proprietários de escravos escolhiam, para alimentar seus filhos, negras ou mulatas. Essas afortunadas criaturas, uma vez seu dever cumprido, eram libertas; continuavam quase sempre a viver livremente sobre o mesmo teto, e gozando de diversos privilégios. Utilizavam os velhos negros apenas para serviços muito leves e, no resto do tempo, entretinham as crianças de seus proprietários, contando histórias pitorescas muito próprias para impressionar a imaginação infantil.
É de propósito que nós citamos esses fatos, porque os julgamos precisamente muito importantes para explicar como os vícios do negro foram inoculados na raça branca e na mestiça. Vícios de linguagem, vícios de sangue, concepções errôneas sobre a vida e a morte, superstições grosseiras, fetichismo, incompreensão de todo sentimento elevado de honra e de dignidade humana, baixo sensualismo: tal é a triste herança que recebemos da raça negra. Ela envenenou a fonte das gerações atuais; ela irritou o corpo social, aviltando o caráter dos mestiços e abaixando o nível dos brancos.
O encontro do português e do negro nas possessões do Novo Mundo tomou um caráter bem diferente daquele que os anglo-saxões souberam manter na presença da mesma raça. Enquanto o português não temia se misturar com o negro e constituir uma descendência, o anglo-saxão, mais zeloso da pureza de sua linhagem, manteve o negro à distância, e serviu-se dele apenas como um instrumento de trabalho. E é um fato curioso e notável que nem a ação do tempo nem outros fatores jamais puderam fazer mudar essa atitude primeira dos americanos do norte, que mantêm até a atualidade a raça negra separada da população branca. Para a desgraça do Brasil, é justamente o inverso que aqui tomou lugar; o branco se misturou ao negro com tão pouca discrição que se constituiu uma raça de mestiços, hoje dispersa por uma grande parte do país.
As deduções de Galton sobre as raças mestiças de animais não podem ter uma aplicação completa na mestiçagem do homem. Neste último, a hereditariedade das qualidades morais e intelectuais não obedece a regras fixas, absolutas. Sob a influência de fatores cuja natureza nos escapa, as qualidades intelectuais alcançam, frequentemente, nos produtos de cruzamento entre brancos e negros, um grau de superioridade cuja explicação não se encontra na hereditariedade nem longínqua, nem imediata. Uma força obscura, desconhecida, faz florir neles uma inteligência capaz de atingir um desenvolvimento que não foi apanágio de nenhum de seus ascendentes. É comum, com efeito, ver nascer de um branco, dotado de uma inteligência medíocre, cruzado com uma negra das mais incultas, um rebento que goza de altas qualidades intelectuais; como se um dos efeitos da mestiçagem no homem fosse precisamente afinar a inteligência, sem elevar entretanto o sentimento ou as qualidades morais e afetivas próprias aos indivíduos das duas raças cruzadas.
Porém, ainda que não se possa dizer que pelas suas formas e traços os mestiços sejam exemplo de beleza, é bem verdade que, sobretudo no sexo feminino, encontram-se tipos de formas graciosas e bem proporcionais. Os instintos voluptuosos são muito desenvolvidos na maioria, e eles se revelam no olhar lânguido, nos lábios espessos, no tom indolente, ligeiramente arrastado da voz. Geralmente eles são pouco musculosos e parecem oferecer pouca resistência às doenças. A tuberculose, sobretudo, faz entre eles numerosas vítimas. Eles são, habitualmente, corajosos, cheios de audácia, inteligentes, bem falantes e dotados de uma imaginação muito viva. Do ponto de vista moral, entretanto, é preciso reconhecer que não se pode confiar cegamente em sua lealdade ou em sua probidade. Eles têm os cabelos negros ou castanhos, algumas vezes aproximando-se do ruivo; raramente são lisos, mas ao contrário, são quase sempre crespos. Seus olhos são castanhos escuros e claros, às vezes esverdeados; seus dentes, menos resistentes e regulares do que aqueles da raça negra. Em alguns o prognatismo alveolar, tal como a coloração escura da mucosa gengival, são perfeitamente visíveis. Sua cor é inteiramente variada, desde o amarelado ou cor de oliva escura até o branco fosco. Eles são em geral dolicocéfalos e platirrinos; o índice cefálico e o nasal variam portanto sobre uma escala de vasta extensão.
Como trabalhadores do campo, os mestiços são visivelmente inferiores aos negros, de quem não herdaram nem a robustez física, nem a força muscular. Eles mostraram poucas aptidões para a vida comercial ou para a vida industrial; em geral dissipam suas posses, têm uma inclinação irrefreável para a ostentação, e são pouco práticos em seus negócios, volúveis, sem perseverança em seus empreendimentos. Ninguém, no entanto, pode negar sua inteligência viva, suas tendências literárias e científicas ou sua capacidade política. No Brasil, os mestiços ofereceram até hoje poetas de grande inspiração, pintores, escultores, músicos distintos, magistrados, jurisconsultos, oradores eloquentes, literatos notáveis, médicos e engenheiros que se apresentam sem comparação, graças às suas aptidões técnicas e capacidades profissionais. Como homens políticos, eles são hábeis, insinuantes, sabendo admiravelmente aproveitar as ocasiões favoráveis para conquistar as posições; em geral são enérgicos e corajosos na luta, onde empregam indiferentemente todas as armas. Depois do que acabamos de afirmar, vê-se bem que, contrariamente à opinião de diversos escritores, o cruzamento da raça negra com a raça branca não resulta, em geral, em produtos de uma intelectualidade inferior. E, se esses mesmos produtos não podem rivalizar em outras qualidades com as raças mais fortes do tronco ariano; se, como estas últimas, elas não têm um instinto de civilização muito acabado, não restam dúvidas de que não se pode mais colocar esses mestiços no nível de raças realmente inferiores: que eles são física e intelectualmente bem superiores aos negros, que entraram como elemento étnico de sua formação.
A colaboração dos mestiços no progresso e avanço do Brasil é notória, e está longe de ser de pouco valor. Foram eles que tiveram o maior papel na campanha, levada por vários anos no Brasil, em favor da abolição da escravidão. Eu poderia citar aqui os nomes célebres de mais de um desses mestiços que se colocou à cabeça desse movimento libertador; eles combatiam com firmeza, com intrepidez, por meio da imprensa, na tribuna de conferências públicas; eles afrontaram com coragem os maiores perigos aos quais suas vidas se encontravam expostas, lutando contra os poderosos proprietários de escravos que se encontravam protegidos pelos governos conservadores do Estado. Eles deram prova de sentimentos patrióticos, de abnegação e de valor durante a longa campanha do Paraguai, combatendo heroicamente na abordagem de navios na batalha naval de Riachuelo, e nos ataques dirigidos contra o exército brasileiro, em numerosas ocasiões memoráveis dessa longa guerra sul-americana. Foi ainda, graças a seu apoio, que a República pôde se levantar sobre as ruínas do Império.
Os preconceitos de raça e de cor, que nunca foram muito enraizados no Brasil, como sempre vimos entre as populações da América do Norte, perderam ainda mais força desde a Proclamação da República. A porta aberta por esse regime a todas as aptidões deixará penetrar muitos mulatos de talento até as mais altas corporações políticas do país. No Congresso Nacional, nos tribunais, na instrução superior, na carreira diplomática, nos corpos administrativos mais elevados, os mulatos ocupam hoje uma situação proeminente. Eles são uma grande influência sobre o governo do país. As uniões matrimoniais entre os mestiços e os brancos não são mais repelidas, como já foram no passado, a partir do momento em que a posição elevada do mulato e suas qualidades morais provadas fazem esquecer o contraste evidente de suas qualidades físicas, e que sua origem negra se esvai pela aproximação das suas qualidades morais e intelectuais dos brancos. O próprio mulato esforça-se por meio dessas uniões em fazer voltar seus descendentes ao tipo puro do branco. Já se viu, depois de três gerações, os filhos de mestiços apresentarem todas as características físicas da raça branca, por mais que em alguns persistam ainda alguns traços da raça negra devido à influência do atavismo.
A seleção sexual contínua aperfeiçoa sempre ao subjugar o atavismo e purga os descendentes de mestiços de todos os traços característicos do negro. Graças a este procedimento de redução étnica, é lógico supor que, no espaço de um novo século, os mestiços desaparecerão do Brasil, fato que coincidirá com a extinção paralela da raça negra entre nós. Depois da abolição, o negro entregue a ele próprio começou por sair dos grandes centros civilizados, sem procurar melhorar no entanto sua posição social, fugindo do movimento e do progresso ao qual não poderia se adaptar. Vivendo uma existência quase selvagem, sujeito a todas as causas de destruição, sem recursos suficientes para se manter, refratário a qualquer disciplina que seja, o negro se propaga pelas regiões pouco povoadas e tende a desaparecer de nosso território, como uma raça destinada à vida selvagem e rebelde à civilização.
A população mista do Brasil deverá então ter, dentro de um século, um aspecto bem diferente do atual. As correntes de imigração europeia, que aumentam a cada dia e em maior grau o elemento branco desta população, terminarão, ao fim de certo tempo, por sufocar os elementos dentro dos quais poderiam persistir ainda alguns traços do negro.
O Brasil, então, tornar-se-á um dos principais centros civilizados do mundo; este será o grande mercado da riqueza da América, explorando todas as indústrias, aproveitando todas as facilidades de transporte para o comércio exterior e intracontinental, transbordando uma população ativa, empreendedora, que preencherá as grandes cidades do litoral, e se difundirá em seguida pelas vastas planícies do interior e ao longo dos rios sinuosos da América do Sul.
No Brasil atual, a população total oferece um aspecto diferente, conforme se considera as capitais ou as regiões distantes do interior, onde a civilização ainda não penetrou. Sobre o litoral, nas cidades comerciais, as mais populosas do sul, o elemento branco estrangeiro é representado pelo português, o italiano e o espanhol que, depois de terem fixado residência, se misturam pouco a pouco entre eles, constituindo assim uma população mista, derivada da raça latina. Esta população se dedica ao comércio, explora as indústrias e representa uma massa considerável de trabalhadores cujos serviços são utilizados nas fábricas, na construção de linhas férreas, na edificação de imóveis, enfim em todas as melhorias materiais das cidades.
Nas regiões distantes do interior, os núcleos de população formados, que são quase exclusivamente constituídos de elementos estrangeiros, provieram da Itália ou da Alemanha. Estas são pequenas colônias, algumas italianas, outras alemãs, dedicadas aos trabalhos de agricultura e de indústria rural, vivendo todas em uma relativa prosperidade. Nestas colônias, o negro e o mestiço são rechaçados e considerados como maus elementos, nocivos à prosperidade das mesmas. Fora das colônias, nas regiões limítrofes, pouco povoadas ainda, encontra-se uma população instável, nômade, constituída por mestiços de brancos e índios, que se ocupa de certos trabalhos nos campos, derrubada das florestas, navegação dos rios; população semisselvagem, ignorante das indústrias do homem civilizado, e vivendo sem leis e sem obediência a qualquer autoridade. Este grupo é representado pelo 'gaúcho' no extremo sul do Brasil, o 'jagunço' na região central, e o 'caboclo' no extremo norte.2
Estes tipos étnicos, perfeitamente adaptados às condições do meio onde vivem, muito resistentes aos rigores do clima, são instrumentos excepcionais de trabalho nos grandes empreendimentos de criação de animais e indústrias extrativas como aquelas da borracha e das essências vegetais, que constituem a riqueza do grande vale da Amazônia. À medida que a civilização penetrar progressivamente pelas estradas de ferro, pela navegação nos rios, com as máquinas agrícolas etc., estes tipos de raças particulares tenderão a desaparecer, porque eles são, por natureza, refratários a toda civilização, e menosprezam todas as suas vantagens e seus instrumentos.
O puro tipo indígena, completamente selvagem, que ocupa ainda hoje pequenas regiões dispersas no norte e no centro do Brasil, tende, ele também, a se modificar e desaparecer. Neste momento, começamos a incentivá-los a formar pequenos centros graças a uma catequese laica, inspirada e perfeitamente dirigida aos cuidados do governo federal. Nós não acreditamos que estes núcleos indígenas possam prosperar e influenciar o progresso futuro do Brasil; durante muito tempo eles viverão uma existência mirrada e terminarão por se dissolver, quando se colocarem em contato mais imediato com a civilização que penetra gradualmente nas regiões desconhecidas do Brasil. Nós já dissemos que o completo desabrochar das raças superiores, formadas por elementos imigrados de países europeus, deveria, no espaço de um século, dar um aspecto bem diferente do atual à população total do Brasil; quando isso se realizar, os mestiços e o negro terão desaparecido, deixando lugar ao branco; os indígenas terão submergido como aqueles da Austrália, consecutivamente à invasão dos anglo-saxões; os descendentes de portugueses, cruzados com italianos e alemães, formarão uma população de aparência toda europeia, modificada pela ação do clima tropical: população vigorosa, inteligente, amiga do progresso, plena de ardor ao trabalho, que sabe se utilizar de todas as conquistas da civilização para melhorar as condições de sua existência. No Brasil, a população encontrar-se-á então vis-à-vis aos povos latinos da Europa, nas mesmas condições que os Estados Unidos da América do Norte vis-à-vis aos povos anglo-saxões do Velho Continente.
Contudo, no momento atual, estamos no direito de perguntar se as ambições da conquista, o ardor belicoso e a heterogeneidade das raças que entram na formação dos povos reunidos sob a mesma bandeira não virão, após um século, desmentir as nossas profecias, e mudar todas estas visões esplêndidas sobre o futuro. A resposta a esta questão traz consigo uma breve apreciação sobre o problema da guerra, tal qual é considerado nas gerações contemporâneas, guiadas por mentalidades eminentes. A razão universal chegou, assim, à convicção de que a guerra entre as nações por motivo de conquista é uma expressão de barbárie que se encontra absolutamente incoerente com o grau de cultura atingido pelos povos modernos. A razão e os princípios da justiça e do direito tendem a substituir, nas diferentes nações internacionais, a força cega das armas.
O mais forte não poderá mais, doravante, subjugar o mais fraco, ainda que este último tenha a razão e a justiça a seu lado; a humanidade constituir-se-á em um tribunal e decidirá estas questões por meio da arbitragem, evitando a quantidade de sangue vertido e as consequências sempre desastrosas e funestas de uma luta entre nações. A criação do Tribunal de Haia para regrar e decidir as questões internacionais é, desde já, um grande passo feito nesta via em que todas as nações do mundo civilizado tendem a se dirigir. A Constituição do Brasil, promulgada com a eclosão da República, determina a arbitragem como o único meio de resolver as questões internacionais que poderiam sublevar este país; e não é sem propósito lembrar que muitas diferenças desta natureza resolveram-se desta forma, no Brasil, durante o atual regime governamental. O Pan-Americanismo e o Monroísmo, doutrinas sustentadas pelas nações americanas, constituem, de outra parte, uma barreira contra toda pretensão conquistadora de nações europeias sobre os territórios do Novo Mundo. Se as riquezas das nações deste continente podem atiçar a cobiça das nações do Velho Mundo, elas fornecem igualmente aos primeiros meios suficientes para criar e aparelhar as grandes esquadras, e manter exércitos que lhes permitem conter as veleidades conquistadoras de nações igualmente poderosas. O equilíbrio americano está estabelecido sob o interesse do respeito recíproco que guardam entre si as nações americanas, cada uma delas procurando manter os limites atuais de seu território sem invadir os outros; cada uma delas avançando para defender outra atacada pelo estrangeiro. Se estes princípios de direito internacional parecem hoje normalmente admitidos e praticados, não há razão para supor que eles possam ser violados no futuro, quando a civilização progredirá ainda mais, quando a justiça e a razão deverão reger com mais energia o espírito das nações, e o senso prático dos governos que as dirigem.
Infelizmente, é necessário reconhecer que em algumas repúblicas americanas retardatárias, o período do 'condottierismo' não está ainda terminado. Estas pequenas repúblicas, povoadas por uma mistura de raças inferiores, sem civilização nem instrução, deixam-se sublevar por capitães astuciosos que se investem de funções de pastor de uma tropa de homens submissos cegamente à vontade do tirano.
Este período de ditaduras, cortado de rebeliões, de conspirações, de reações sangrentas, de carnificina, durará muito tempo até que a introdução do elemento civilizado se coloque para tirar o povo de seu embrutecimento. O protetorado exercido pelas nações fortes, e mesmo a anexação são, no momento, os únicos remédios para dar a tranquilidade, o repouso e a prosperidade a estas pequenas repúblicas tiranizadas. O futuro dirá se estes remédios devem ser efetivamente aplicados a um mal que parece inveterado, ou se não seria melhor deixar estas nações sofrerem as consequências deste mal até que, em consequência de uma evolução natural, estes povos retardatários e inquietos cheguem a reconquistar sua liberdade, destruindo a estirpe dos tiranos aos quais devem sua desgraça.
O caráter pacífico do povo brasileiro, a imensidão do território nacional, suas riquezas naturais tão glorificadas, seu sistema de governo estabelecido sob bases puramente democráticas são razões certas e bastante poderosas para que não haja temor de que o país se torne agressor de uma nação estrangeira. Contudo, sem ter os sentimentos agressivos ou belicosos, o Brasil sabe perfeitamente tratar de sua proteção contra os ataques de outros povos; isso porque, graças aos recursos inesgotáveis de que dispõe, ele aparelhou uma poderosa esquadra para guardar suas costas e defender seus portos; ele construiu estradas de ferro estratégicas e militarizou a nação, colocando-a em condições de poder proteger com vantagens seu território em caso de invasão. Suas questões limítrofes estão resolvidas, e as leis votadas ultimamente em favor da imigração, a fim de assegurar os direitos dos estrangeiros diante dos tribunais da nação, são as melhores garantias dos capitais estrangeiros empregados nos trabalhos de utilidade nacional. Pode-se portanto afirmar, sem medo de faltar à verdade, que o Brasil está pronto, nesse momento, para acolher em seu vasto seio o êxodo dos povos europeus.
Eles descobrirão, como fim à sua atividade, e para constituir a base da riqueza de suas famílias, as grandes culturas de café, de cana-de-açúcar, de cacau, a exploração de borracha, a cultura de frutas tropicais, da videira e do trigo, as indústrias de fabricações diversas, a cultura do bicho-da-seda, a exploração de minerais, a criação dos rebanhos de bois e cavalos, a indústria leiteira etc., fonte de riquezas as quais as leis do país prestam ainda mais seguros e assistência, pela concessão de terras e pela promessa de garantia em dinheiro.
Pax, labor et divitiae, tal é o emblema gravado no frontão do pórtico deste vasto território americano, nomeado Brasil, no qual há espaço suficiente para que todas as raças do mundo possam viver reunidas e prósperas.
Conclusões
Depois dos fatos e das considerações anteriores, eu acredito que se pode legitimamente tirar as seguintes conclusões:
1. A observação e a comparação dos fatos zoológicos, no tema da função de reprodução, conduzem a reconhecer que o homem branco e o homem negro formam duas raças e não duas espécies.
2. Os mestiços, produto da união sexual do branco e do negro, não constituem uma raça verdadeira, mas um tipo étnico variável, transitório, tendo tendência a retornar a uma das duas raças originais que o produziu.
3. A importação, em uma vasta escala, da raça negra ao Brasil, exerceu uma influência nefasta sobre o progresso deste país; ela retardou por muito tempo seu desenvolvimento material, e tornou difícil o emprego de suas imensas riquezas naturais. O caráter da população ressentiu-se dos defeitos e os vícios da raça inferior importada.
4. O mestiço é inferior ao negro em resistência corporal e força física, mas ele rivaliza frequentemente com o próprio branco em inteligência e aptidões técnicas e artísticas.
5. No Brasil, os mestiços ajudaram nas ações dos brancos para o progresso do país, e eles foram bem-sucedidos ao se elevarem às mais altas posições na administração e na política.
6. A imigração crescente dos povos de raça branca, a seleção sexual, o desaparecimento de preconceitos de raça cooperam para a extinção a curto prazo dos mestiços no Brasil.
7. Após um século, provavelmente, a população do Brasil será representada, na maior parte, pelos indivíduos de raça branca, latina, e, ao mesmo tempo, o negro e o índio terão sem dúvida desaparecido desta parte da América.
8. Um futuro brilhante está reservado ao Brasil, ele tornar-se-á a estação principal onde a raça latina virá se reanimar, rejuvenescer-se na América do Sul, como os Estados Unidos o foram na América do Norte para a raça saxã.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
01 Jun 2011 -
Data do Fascículo
Mar 2011